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AS CARTAS DE PAULO AOS TESSALONICENSES:
A vinda de Jesus é iminente ou não?
Francisco Benedito Leite1
INTRODUÇÃO
As Cartas aos Tessalonicenses são os primeiros textos que foram escritos dentre os
documentos que formaram o Novo Testamento em sua atual forma. Ainda que pese certa
dúvida quanto à II Tessalonicenses, por causa de sua estrutura ser muito semelhante, enquanto
que sua argumentação a respeito do tema central – a saber, a parousia – é muito diferente do
que está presente em I Tessalonicenses. No entanto, as duas cartas têm em comum o destaque
elevado das características da apocalíptica judaica.
No que diz respeito diretamente à opinião dos eruditos a respeito da autenticidade e
da antiguidade de I Tessalonicenses, é unânime que esta seja a mais antiga carta de Paulo e
que, consequentemente, seja reveladora do primeiro estágio teológico de Paulo, no qual se
destaca uma concepção da parousia que não está presente nos demais textos paulinos
autênticos, ao menos não com o mesmo entusiasmo apocalíptico2.
Independentemente dos critérios de autoria, destacam-se nessas cartas: a parousia
(I Ts 1.10; 4.13-18; 5.1-11 cf. II Ts 1.3-12; 2) e o tema do trabalho (I Ts 2.9; II Ts 3.6-15).
Ambos devem fazer reminiscência a uma problemática particular da comunidade de
Tessalônica, o que justificaria a ausência da mesma ênfase em outros textos de Paulo, devido
ao pressuposto de que as outras comunidades cristãs tinham problemas distintos. Esse fato não
diminui a importância da reflexão sobre os referidos temas, pois ainda que esta seja a verdade,
permanece a relevância dos enunciados paulinos privilegiados em vista do tema da
escatologia.
1 Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; graduando em Letras (português-grego) pela Universidade de São Paulo; mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo; Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. E-mail: ethnosfran@hotmail.com.
2 DUNN, James D. G. A Teologia do apóstolo Paulo – 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2008, p.358.
.
1
A importância desses documentos devido a sua posição particular para a História
da Literatura Cristã em vista da problemática de sua relação sinóptica, introduzem-nos na
importante questão a respeito da compreensão que se pode ter a respeito da Teologia do
Apóstolo Paulo – isto é, caso se possa dizer que ele tem uma teologia. Tendo em vista que por
um lado, pode-se atribuir a sua autoria às duas cartas, confirmando uma proposição a respeito
de sua incoerência; ou, por outro lado, pode-se simplesmente atribuir a segunda carta a um
autor desconhecido, solucionando o problema apenas parcialmente, pois isso pode significar a
simplificação de uma questão mais ampla.
Nos parágrafos que se seguem entraremos em contato com cada um dos temas
levantados acima, cada um em seu determinado momento. Primeiramente, no entanto,
realizaremos uma breve apresentação a respeito da cidade para a qual as cartas foram
endereçadas, do mesmo modo, apresentaremos algumas informações a respeito das escassas
informações que temos da passagem de Paulo por esse local.
Tessalônica e a missão de Paulo.
Tessalônica (atual Saloniki) era uma importante cidade do Império Romano, assim
como as demais localidades onde o apóstolo Paulo constituiu suas comunidades. Fora fundada
em 316 a.C. por Cassandro da Macedônia, que nomeara a cidade com o nome de sua esposa,
irmã de Alexandre Magno. Sua posição geográfica privilegiada para relações políticas e
comerciais (situada na Via Egnatiana que ligava Roma a Bizâncio) a levou a se desenvolver
economicamente, e fez com que se tornasse capital da eparquia da Macedônia, sede do
procônsul e obtivesse o título de “cidade livre” – possuía conselho e assembléia popular –
durante o período do Império Romano; além disso, também recebeu o honroso título de
neokoros [guarda do templo].
Uma cidade como Tessalônica era atrativa para pessoas de distintas regiões, o que
foi responsável por sua pluralidade religiosa. Dentre as religiões presentes, também figurava o
judaísmo que possuía uma sinagoga que contava com pagãos convertidos e simpatizantes, os
“tementes a Deus”. Atos 17.1-10 testemunha a obra missionária efetuada por Paulo e seu
companheiro Silas/Silvano nesse local, que em linhas gerais é digno de crédito, embora
saibamos que Lucas erra em alguns detalhes, como quando afirma que Paulo esteve por ali por
apenas três semanas; ensinou na sinagoga especificamente durante “três sábados” (At 17.2),
enquanto em Filipenses 4.16 Paulo se refere a mais de uma ajuda que recebera para seu
2
sustento, além de que ele afirma com veemência o seu trabalho árduo no período que ali
esteve em I Tessalonicenses 2.9, fatos que indiciam que sua permanência durou alguns meses.
Dentre os que são convencidos pela pregação de Paulo, além de “alguns judeus”,
destacam-se a hiperbólica “multidão de gregos” e “não poucas mulheres principais” (At.
17.4). Desse grupo misto de pessoas que se tornaram cristãos, formou-se a comunidade de
Tessalônica; a segunda a ser fundada por Paulo na Europa – antecedida apenas pela recente
fundação de Filipos.
O alvoroço envolvendo um cristão chamado Jasão, referido em Atos dos Apóstolos
17.4-9 também é plausível, tendo em vista que em I Tessalonicenses 2.14-16 Paulo se refere a
uma suposta perseguição que os crentes recebem dos habitantes da própria cidade, embora não
afirme como em Atos dos Apóstolos que essa perseguição seja efetuada pela inveja dos judeus.
Além disso, em ambos os textos a causa da perseguição parece ser a mesma, embora descrita
de diferentes maneiras. No caso, em Atos dos Apóstolos, afirma-se que os cristãos alegam que
há outro rei além de César, o qual é Jesus (At 17.7); no caso de I Tessalonicenses, há a
entusiástica afirmativa a respeito da parousia que implicitamente intitula Jesus como rei.
De Tessalônica Paulo parte para Beréia, conforme a descrição de Atos dos
Apóstolos 17.10; mas conforme seu próprio testemunho, é a partir de Atenas que ele envia
Timóteo a Tessalônica (I Ts 3.-2), o qual vai até a comunidade cristã da cidade e volta a se
encontrar com Paulo e Silas/Silvano apenas em Corinto (entre 50 e 52) de acordo com a
própria descrição de Atos dos Apóstolos (18.5), daí se estipula que seja esse encontro onde se
realiza a redação da Carta aos Tessalonicenses, já que a autoria da carta é dos três (I Ts 1.1).
Acredita-se unanimemente que esta seja a primeira carta que Paulo escreve.
Quanto ao lugar e a datação de II Tessalonicenses preferimos não levantar dados,
pois discutiremos essa questão no momento específico, quando forem dadas as complicações
específicas desse documento.
Estrutura literária de I Tessalonicenses
Philipp Vielhauer propõe a seguinte estrutura para I Tessalonicenses3:
Pré-escrito, 1.1.
3 VIELHAUER, Phillipp. História da Literatura Cristã primitiva – uma introdução ao Novo Testamento aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos. Santo André: Academia Cristã, 2005, p.113.
3
Proêmio = I parte 1.2-313.
1. Agradecimento pelo estado da comunidade e confirmação de recordação 1.2-10.
2. Recordação da atividade de Paulo (“apologia”) 2.1-12.
3. Agradecimento pela persistência da comunidade em uma perseguição 2.13-16.
4. Saudade de Paulo e envio de Timóteo 2.17-3.5
5. Alegria pelas boas notícias trazidas por Timóteo 3.6-10.
6. Intercessão 3.11-13.
Parênese = II parte 4.1-5.22.
1. Admoestações éticas (palavra-chave “santificação”) 4.1-12.
2. Instruções sobre o destino dos cristãos falecidos 4.13-18.
3. Advertências para estarem prevenidos para a parusia iminente 5.1-11.
4. Advertência para a vida em comunidade 5.12-22.
Conclusão da carta 5.23-28.
Conteúdo
A carta possui um proêmio singular dentre as autênticas. Nas outras cartas além
dos proêmios serem mais breves, também é característico que tratem de assuntos concretos.
Seria mais natural que Paulo fosse direto ao assunto ao invés de fazer tanto “rodeio”, como
realiza na extensão dos três primeiros capítulos dessa carta, porém, nesse caso, Paulo inicia
um discurso elogioso para a comunidade de Tessalônica e faz questão que os membros da
comunidade saibam que ele se recorda deles e que sabe de sua boa reputação (1.2-10). Dentre
a boa conduta da comunidade, consta “Esperar dos céus a seu Filho [de Deus], a quem
ressuscitou dentre os mortos, a saber, Jesus Cristo, que nos livra da ira futura” (1.10). Não é
em vão que Paulo se refira ao fato de que os crentes esperarem Jesus Cristo vir dos céus, pois
esse é um gancho para o tema central da carta, que será tratado na próxima parte – a parousia,
ou seja, a vinda de Jesus. Paulo utiliza esse termo quatro vezes em I Tessalonicenses (2.19;
3.13; 4.15; 5.23) e mais duas em II Tessalonicenses (2.1; 2.8), enquanto que no restante de
suas cartas utiliza apenas uma vez (I Co 15.23), algo sintomático para apontar essa sua fase
religiosa específica.
Mas antes de adentrar no tema central, Paulo trata de outro assunto importante: o
trabalho. Para tanto, ele realiza sua argumentação em forma de apologia, pois, se o problema
em Tessalônica é o trabalho, ele pode afirmar: “Porque bem vós lembrais, irmãos, do nosso
4
trabalho e fadiga; pois, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós, vos
pregando o evangelho de Deus” (2.9).
Notemos que na saudação (1.1) ele não se demorou muito ao se apresentar, como
fizera nas comunidades em que é questionado (I Co 1.1-9 e Gl 1.1-5). Contudo, embora ele
não seja questionado em Tessalônica parece que lhe pesa a responsabilidade dos crentes terem
deixado de trabalhar para esperar a vinda de Jesus, fato que justifica sua apologia que insiste
implicitamente na necessidade que os irmãos têm de trabalhar, tomando como base o próprio
exemplo dele, que se desgastava a maior parte de seu tempo – aproximadamente dezesseis
horas de seu dia – trabalhando braçalmente, no serviço de fazer tendas.4, de maneira que seu
trabalho evangelístico certamente ocorria durante sua atividade profissional5.
Ainda no proêmio, Paulo, sucessivamente, exalta a perseverança dos crentes em
meio a uma adversidade particular; afirma sentir saudades e não ter podido ir vê-los; o que
justificou o envio de Timóteo, que trouxera boas notícias.
Paulo muda de assunto e inicia suas admoestações, a primeira delas é à santidade,
como é tradicional, recomenda o domínio das paixões, pureza sexual e honestidade nos
negócios. Ainda admoesta veladamente ao amor fraternal (4.9) e retoma pela última vez
necessidade do trabalho, pois daí em diante muda de assunto.
Inicia uma nova argumentação, tendo em vista que encerrou o tratamento do
primeiro assunto pendente, Paulo agora começa a falar sobre o destino dos cristãos falecidos,
o que parece ser a segunda crise da comunidade, baseado em algo que talvez ele próprio disse
no passado. Então Paulo esclarece o assunto, afirmando que os que “dormem”, também
ressuscitarão, na verdade eles ressuscitarão antes do que “nós que ficarmos vivos” (4.13-18).
Duas coisas a serem notadas nesse versículo: em primeiro lugar notemos que, para
que a comunidade tenha entrado em crise, deve ter morrido uma pessoa ou mais dentre os
crentes. Talvez devido à referida perseguição (2.13-16), ou talvez por morte natural, não
interessa, o fato é que o calor escatológico era tão grande que se imaginava que a vinda de
Jesus era para absolutamente todos os cristãos, de maneira que não se pressupunha o que
poderia acontecer com quem morreria antes da parousia – não é a toa que alguns crentes não
queriam mais trabalhar!
4 I Co 4.12; II Co 11.9; 12.13-14, II Ts 3.8.5
? MESTERS, Carlos. Paulo Apóstolo: uma trabalhador que anuncia o Evangelho – 8ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.
5
Em segundo lugar está o fato de que o próprio Paulo – que não ameniza as
expectativas escatológicas – ele próprio está envolvido na mesma concepção, a ponto de
incluir-se no grupo dos que estarão vivos quando Jesus vier, é assim que os primeiros textos
do Novo Testamento descrevem a vinda de Jesus6. Isso demonstra que para Paulo a
expectativa da parousia é iminente, a única coisa que ele acrescenta aos crentes é a esperança
quanto aos que morreram, mas não recomenda a ninguém que tenha seu entusiasmo
diminuído, tampouco coloca algum sinal para anteceder a vinda de Jesus, ela é imediata, como
ficará claro desenvolvimento dos assuntos.
Afirmar que os cristãos de Tessalônica devem ter esperança na ressurreição serve
como prelúdio para o ápice da carta, que é tratar da parousia. Mais uma vez Paulo entra nesse
assunto através de uma estratégia retórica que é característica em suas cartas “não precisamos
tratar desse assunto” (5.1). Paulo fala da parousia nas próprias palavras metafóricas de Jesus,
retomando as metáforas do ladrão (Mt 24.43; Lc 12.39), das dores de parto (Mc 13.8), a
dualidade: luz/trevas (Mt 8.12; 25.30). Na verdade estes são temas característicos da
apocalíptica judaica de uma forma geral. O mesmo pode-se dizer a respeito do restante das
imagens, como as nuvens – uma espécie de transporte celestial (Is 19.1; Ez 1.4-28; Dn 7.13;
Mc 13.26; 14.62; At 1.9; Ap 1.7); anjo e trombeta que emitem o sinal determinante da parusia
(Mt 24.31; Ap 8.2; 8.6; passim) e do verbo harpazein tipicamente utilizado nas viagens
celestiais.
A parousia significa estritamente: “presença; actualidade; ocasião favorável;
chegada (sic.)”7, como qualquer dicionário de grego pode nos informar. Com esse termo, na
linguagem cotidiana do Império Romano se falava a respeito da visita de pessoas ilustres à
cidade, sobretudo à visita do Imperador. É notável que Paulo use esse mesmo termo para se
referir à chegada de alguém que ele considera mais ilustre do que o próprio Imperador, cuja
vinda será mais triunfal. No entanto, ele usa o mesmo termo político como provocar às
autoridades que possivelmente seriam as responsáveis pela provação que a comunidade cristã
de Tessalônica sofrera (2.13-16)8. Portanto, o fato de Paulo ter utilizado o termo parousia para
6 Cf. Mc 14. 62
7 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego - 8ª edição. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1998, p.441.
8 Helmut Koester afirma que esse é um termo político e que é introduzido no vocabulário cristão a partir das referencias realizadas por Paulo em I Tessalonicenses. Veja em: Ideologia imperial e a escatologia de Paulo em I Tessalonicenses. In: HORSLEY, Richard. Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo Paulus, 2004, pp. 161-169.
6
se referir à vinda de Cristo significa, implicitamente chamá-lo de rei e contrapô-lo a César,
conforme consta na confusão descrita em Atos dos Apóstolos 17.5-9, onde os cristãos,
sobretudo Jasão é acusado de confessar a existência de outro rei, que é Jesus.
Paulo também é provocante quando afirma “Pois que, quando disserem: Há paz e
segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição (5.3). Tendo em vista que “paz” – no
grego do NT eirene, em latim pax – é o título dado pelos romanos à política de domínio
mediante a força bruta. É paz do ponto de vista do governante, pois todos os súditos estão
subjugados9.
Diante da injustiça opressora do Império Romano, Paulo assegura aos crentes a
“vinda” iminente do Senhor. Parousia não pode ser volta, por que para os cristãos primitivos
o messias ainda não havia vindo como Senhor [Kyrios], havia vindo apenas como “servo
sofredor” na figura de Jesus. A vinda do Senhor, como afirma Daniel 7 insurgiria em breve
como filho do homem glorificado (Mc 14.62), foi o apologista Justino que a reinterpretara
pela primeira vez como “volta”, justificando a demora de Jesus através do desenvolvimento da
ideia de primeira e segunda vinda e nova vinda (Dial 118.2)10.
Mas não se pode deixar de notar que Deus também é ativo nesse fenômeno: é ele
quem tornará a trazer os que dormem em Cristo (4.14); também é ele quem “nos destina a
aquisição da salvação (...)” quando Jesus vier (5.9), pois a já efetuada ressurreição de Jesus é o
sinal de que Deus também ressuscitará aos crentes e os destinará a salvação, portanto, além
desse sinal, não há outro que se anteponha a parousia.
Saindo do assunto da parousia o tom de voz diminui e Paulo retoma as
recomendações éticas (5.12-22). Até que para finalizar Paulo manda saudações para a
comunidade (5.23-28), mas como não tem intimidade com ninguém não cita nomes, nem
recomendações especificas.
Estrutura literária de II Tessalonicenses
Philipp Vielhauer propõe a seguinte estrutura para II Tessalonicenses11:
9 WENGST, Klaus. Pax Romana, pretensão e realidade. São Paulo: Paulus, 1991.
10 BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008, p, 69.
11 VIELHAUER, Phillipp. História da Literatura Cristã primitiva – uma introdução ao Novo Testamento aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos, p.119.
7
Pré-escrito 1.1s.
Proêmio 1.3-12.
1. parte: Instrução apocalíptica sobre os sinais do fim 2.1-12.
2. parte: Agradecimento, intercessão e admoestação 2.13-3.5
3. parte: Admoestações 3.6-15
a) Disciplina eclesiástica contra desordeiros preguiçosos
b) Admoestações para os membros fiéis da comunidade 3.13-15
Votos de paz e conclusão da carta de próprio punho 3.16-18
Conteúdo
Como o leitor já deve ter notado na estrutura acima, o conteúdo da segunda carta é
bem parecido com o da primeira, embora o proêmio não seja tão extenso, (não há a apologia),
novamente aparece o tema da parousia como central e o tema do trabalho em segunda
instância. Tecnicamente temos apenas duas diferenças: Em primeiro lugar está: 2.1-12 quanto
o autor da carta apresenta um elemento totalmente estranho a I Tessalonicenses – embora o
tema seja o mesmo – a saber, dois sinais que antecedem a vinda do Senhor, os quis são: 1) a
“apostasia” e 2) a “vinda do homem do pecado” (2.3). Em segundo lugar está 1.5-10 onde se
manifesta o ardente desejo de vingança, todavia intrínseco na apocalíptica, mas aqui explícito
de mais em comparação com a linguagem de Paulo em qualquer outra parte de seus escritos.
Retomemos II Tessalonicenses do começo e vejamos cada coisa em seu momento e
especificidade.
A identificação dos redatores da segunda carta é exatamente a mesma que está na
primeira: Paulo. Silvano e Timóteo e a saudação também não muda significativamente (1.1-2).
A referência a esses nomes não significa que haja três autores, mas sim, que há mais duas
pessoas confiáveis e conhecidas pela comunidade que concordam com Paulo. A inclusão de
nomes ao lado do nome de Paulo significa que ele não pensava isoladamente, mas que
compartilhava o mesmo pensamento que outros cristãos.
O proêmio começa com o mesmo tom elogioso nos versículos 3 e 4, mas a partir
versículo 5 o tom de voz aumenta, assim como em I Tessalonicenses 5.1-11. Aqui novamente
são evocadas as imagens vívidas e coloridas da apocalíptica, dessa vez, com ainda mais
intensidade. Aparecem as imagens “labareda de fogo”, “céu’, “anjos”, “poder”; mas, além da
presença desses elementos, a vinda do Senhor pagará com tribulação aos que atribularam os
8
crentes (1.6), essa é a ênfase do referido trecho. Como se pode notar, o desejo de uma
vingança violenta se fundamenta em citações e alusões do Antigo Testamento e sua concepção
de Deus como juiz (Sl 76.6; Is 2.19-21; 11.4; 66.15-16).
James Dunn12 sugere que pensemos em uma pintura de Hieronymus Bosch para
que imaginemos as imagens terríveis da cena do evento da parousia descrito por Paulo em I
Tessalonicenses 1.5-6. Embora ele não tenha designado nenhuma em particular, sugiro que
vejamos The Last Judgement (O julgamento final), onde Jesus aparece no céu ao centro e
abaixo dele e à sua esquerda estão os condenados e acima dele e a sua direita estão os salvos –
note que o número de salvos é significativamente menor.
The Last Judgement de Hieronymus Bosch
Apesar da relativa diferença de vocabulário e da ênfase na vingança, esse trecho da
carta parece ter relação com a perseguição sofrida pelos crentes tessalonicenses, conforme já
foi referida na primeira carta. Assim o desejo de vingança é algo natural diante do sentimento
de frustração e impotência diante da injustiça provocada pelos poderes [archontes]13. Mais
grave, no entanto, é o que vem na seqüência, como já adiantamos, “o Paulo”, autor dessa carta
12 DUNN, James D. G. A Teologia do apóstolo Paulo – 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2008, p.357.
13
? STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Paulus / São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 173.
9
apresenta dois elementos que se antepõe à vinda do Senhor, enquanto que em I
Tessalaonicenses o único sinal que vem antes da parousia é o já ocorrido evento da
ressurreição de Jesus (I Ts 4.14, cf. I Co 15. 22; Rm 1.4). Pois assim está escrito na carta:
“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos pertubeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola como de nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto. Ninguém de maneira nenhuma vos engane (...)” (II Ts 2.2-3)14
Curioso que Paulo tenha enviado uma carta anterior afirmando a iminência da
parousia e agora exorta aos crentes para que não sejam enganados por supostas cartas da
autoria dele. Será que com essa afirmativa ele quer dizer que a primeira carta seja falsa? Não
sabemos exatamente, mas parece-nos que a intenção é ajudar os leitores a compreenderem a
primeira carta, pois em II Tessalonicenses a estima que se tem por Paulo é inquestionável, se
alguém a escreveu, este era um de seus admiradores. Contudo, é impossível harmonizar as
duas.
Não que seja impossível harmoniza-las apenas devido a incoerência das duas, pois
Paulo bem poderia ter mudado de pensamento a respeito da parousia no decorrer de sua vida,
isso seria absolutamente admissível de nosso ponto de vista. Embora, mesmo assim, duas de
suas últimas cartas atestam que Paulo ainda acreditava na iminência da parousia (Fp 4.5;
Rm13.11). Contudo, o problema maior é o literário, tendo em vista que a estrutura das duas
cartas é a mesma, inclusive os problemas referidos em seu interior são idênticos. Isso implica
que as duas cartas não devem ter uma larga distância cronológica na data de sua redação, caso
se distanciassem no tempo os problemas específicos também mudariam, ou, ainda que não
mudassem o autor não teria a estrita estrutura da carta em sua memória a ponto reconstruí-la
com tal sucesso.
Isso faz com que seja mais provável que um autor posterior a tenha escrito com a
intenção de se contrapor ou corrigir Paulo, devido aos problemas entusiásticos que ocorriam
no interior da comunidade graças à interpretação que se fazia das palavras da primeira carta.
Pseudepigrafia exercida com sucesso, a não ser no lapso que o autor comete ao substituir Deus
pelo Senhor [Jesus] (I Ts 4.14 e 16; 5.9 cf. II Ts 2.8); como é característico dos cristãos das
gerações posteriores a elevação da exaltação de Jesus15. Ou talvez, a segunda carta tenha sido
14 Grifo nosso.15 Note os atributos de Jesus em Efésios e Colossenses em comparação com Gálatas, I e II Corintíos, Filipenses, Filemon e Romanos. Veja tal discussão em MOURA, Rogério. Lima; LEITE, Francisco Benedito. O misticismo da cristologia cósmica das Dêutero-paulinas. Oracula (UMESP), São Bernardo do Campo, n. 13, 2012.
10
escrita mediante a crise que os crentes enfrentam com o passar dos anos e a sucessiva morte
de cristãos e o fato da não concretização da parousia. Uma resposta para tal demora seria
atribuir a Paulo a afirmativa de que a parousia apenas seria iminente após o acontecimento
dos dois eventos referidos.
Os dois elementos que o autor de II Tessalonicenses antepõe à parousia não eram
anacronismos de sua parte, pois afirmar que existem sinais a serem cumpridos antes da
parousia, também é característico no Evangelho de Marcos (Mc 13.7-10) que está
cronologicamente próximo de I Tessalonicenses. Enquanto algumas correntes do cristianismo
primitivo demonstram que afirmar que a parousia está prestes a acontecer é uma heresia
perniciosa (Lc 21.8), o autor de II Tessalonicenses afirma que é uma ilusão insensata (2.2-3),
talvez ele mesmo tenha sido vítima dessa frustração e escreva no intento de que o mesmo não
ocorra aos outros crentes.
Quanto à figura do “Homem Sem Lei” também não é particular: I Jo 2.18-22; 4.3;
II Jô 7; Mc 13.14; Ap 13 e 17. Este é um elemento da escatologia cristã primitiva e de sua
matriz judaica, fundamentada no mito do inimigo primordial de Deus que se levantará no
tempo final, quando será definitivamente derrotado. Essa figura também chamada de dragão,
diabo, serpente, foi historicizada de diversas formas diferentes, como Antíoco IV Epífanes,
Pompeu, Caligura, Nero (posteriormente na história do cristianismo não cessaria de surgir
novos “anticristos”).
A partir de 2.13 II Tessalonicenses continua declinando o tom de voz, o ápice da
mensagem já passou. Em 2.13-3.5 uma espécie de texto bastante padronizado: “agradecimento
a Deus pelos irmãos” (2.13-14); “exortação a permanecerem firmes” (2.15-17), o que mais
uma vez afirma implicitamente a possível demora da parousia; “pedido de oração” (3. 1-5),
mas este trecho é, mais uma vez, um pretexto para que o autor retome às questões práticas que
virão em seguida.
A começar pela recomendação de como devem ser tratados supostos “desordeiros-
preguiçosos”. Mais uma vez esse é um tema de I Tessalonicenses que se manifesta também
aqui. “Paulo” é bastante rigoroso com o tratamento que deve ser dado a esses crentes que
querem comer a comida dos outros com a desculpa de que Jesus vem em breve e que por isso
não faz sentido trabalhar. Em contraposição a esses, “Paulo” cita seu próprio exemplo, como
fizera na apologia (I Ts 2.1-12). Mas, além disso, cita uma frase que possivelmente seja um
ditado popular conhecido pelos crentes locais “Quem não trabalhar não come” (II Ts 3.10b).
11
Por fim Paulo saúda a comunidade, deseja-lhes paz, afirma ter escrito a carta e
fecha o texto, desejando que “a graça do nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos”. Nada de
incomum, a não ser afirmar que assinou a carta de próprio punho (v.17). Essa estratégia que o
autor utiliza contra sua pseudo-epigrafia, na verdade, volta-se contra ele, porque esse versículo
entra em contradição com 2.2, pois se há um sinal que identifica a autoria paulina, ele não
precisa se referir às supostas cartas que tenham sido escritas em seu nome. Caso ele tenha
realizado tal exortação é sinal que ele vive um momento em que já existem muitas cópias das
cartas que circulam na região.
Essas dúvidas quanto à autoria nos impedem de dizer com segurança quando e
onde este documento foi escrito. Sabemos apenas que é a mais antiga pseudo-paulina, e que a
afirmativa de que o próprio Paulo a tenha assinado, a coloca próxima do ano 80, ou seja antes
da morte de Paulo. Assim como o conhecimento que o autor tem de I Tessalonicenses faz com
que pensemos que esse autor esteja perto da comunidade de Tessalônica ou nas cidades
vizinhas que podem ter recebido uma cópia desta carta para ser lida no culto. Todas essas
afirmativas a respeito de sua datação e do local onde a carta foi escrita são apenas
especulações, no entanto bastante plausíveis.
Se estas afirmativas a respeito de II Tessalonicenses se confirmarem, então
chegamos à conclusão que essa, de fato, não era uma carta em sentido estrito, mas sim uma
epístola. Visto que diferentemente da carta autêntica, o que motiva o autor aqui não são os
problemas práticos da comunidade, mas sim a intervenção teológica; uma afirmação realizada
no passado deve ser esclarecida para que sejam evitados abusos e prejuízos aos cristãos.
Portanto, parece que em II Tessalonicenses não se manifesta uma carta legítima, de um
redator interessado em ajudar na prática a uma comunidade cristã em seus problemas
cotidianos, mas sim um tratado teológico epistolar a fim de solucionar um problema teológico
que pode levar a memória e a identidade do apóstolo Paulo a serem desacreditados e em
conseqüência sua autoridade como apóstolo pode ser negada pelas futuras gerações de
cristãos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim concluímos nossa apresentação das Cartas de Paulo aos Tessalonicenses.
Muito próximas na estrutura e no conteúdo, porém, muito distintas na argumentação a respeito
do tema central: a vinda do Senhor Jesus. Enquanto em I Tessalonicenses o próprio autor se
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mostra envolvido pelo entusiasmo dos crentes da comunidade a qual remete a carta; em II
Tessalonicenses o autor afirma que existem dois elementos que acontecerão antes da parousia.
Além da parousia, o tema da necessidade de trabalhar pelo próprio sustento está
presente nas duas cartas, mas, enquanto na primeira os dois elementos referidos acima são
problemas práticos enfrentados pela comunidade, na segunda, a parousia é um problema
teológico, as motivações práticas estão em uma segunda instância, que é o tipo de
comportamento que esse tipo de teologia pode acarretar.
O autor de II Tessalonicenses, sem dúvida, foi bem sucedido em seu intento, pois
mesmo hoje, entre os avançados estudos da academia há quem defenda que as duas cartas são
autênticas, apesar de todos problemas teológicos e literários que apresentamos. Fato que
demonstra que ele também era um admirador do apóstolo Paulo. Seu intento provavelmente
era justificar sua teologia mediante problemas graves que estavam ocorrendo devido às suas
próprias palavras.
Apresentar a pseudoepígrafa como falsificação não se enquadra nos critérios de
autoria da antiguidade. Enquanto no nosso mundo contemporâneo tal ato se aproximaria da
falsidade ideologia, no mundo antigo essa estratégia enaltecia o nome do referido autor ainda
que já houvesse morrido há muito tempo atrás, como em outros casos mais explícitos.
Importa ainda destacar a relevância que essas cartas tiveram para a cultura
ocidental, ao apresentarem a importância do trabalho braçal e do esforço pelo próprio
sustento16 em contraposição à visão pejorativa que a elite greco-romana tinha do mesmo17. No
que diz respeito à contradição que as duas cartas entram sobre a parousia, é de se destacar a
pluralidade e a riqueza do cânon cristão, que aceita duas ideias tão diferentes a respeito do
mesmo evento. Algo sintomático do cânon e nos cristianismo primitivos18, mas ausente nas
teologias eclesiásticas contemporâneas. Por isso, ironicamente não respondemos a pergunta
inicial que fizemos no título desse texto, pois as duas respostas dadas a respeito da vinda de
Jesus em cada uma das duas Cartas aos Tessalonicenses bem podem ser verdadeiras ao
mesmo tempo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS16 MESTERS, Carlos. Paulo Apóstolo: uma trabalhador que anuncia o Evangelho – 8ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.
17 Paul Veyne destaca que a Antiguidade foi a época da ociosidade como mérito. História da vida privada – VOL. I: Do Império Romano até o ano mil. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p. 112.
18 Essa é a teoria que James D. G. Dunn desenvolve em seu livro: Unidade e diversidade no Novo Testamento: um estudo das características dos primórdios do cristianismo.
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BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008.
DUNN, James D. G. A Teologia do apóstolo Paulo – 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.
_____. Unidade e diversidade no Novo Testamento: um estudo das características dos
primórdios do cristianismo. Santo André: Academia Cristã, 2009.
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Testamento aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos. Santo André: Academia Cristã, 2005.
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