Post on 03-Aug-2020
REFLEXÕES CONCEITUAIS E HISTÓRICAS SOBRE OS QUILOMBOS: as
particularidades da realidade cearense.
Wanessa Nhayara Maria Pereira Brandão1
Daiane Daine de Oliveira Gomes2
RESUMO: Este artigo objetiva apresentar elementos acerca da formação e atuais desafios enfrentados pelas comunidades remanescentes de quilombos, com foco na realidade cearense. Desse modo, são apresentadas concepções sobre a categoria quilombo, as configurações das relações étnico-raciais no Brasil, bem como as particularidades históricas cearenses. Conclui-se que essas populações assumem grande importância para a preservação ambiental e da herança cultural e social de matriz africana deste país. Contudo, apesar dos avanços jurídicos, o racismo estrutural os impõe grandes obstáculos na sua busca por acessar direitos, tais como reconhecimento, redistribuição de renda e representação política.
Palavras-chave: Quilombo. Relações étnico-raciais. Racismo.
ABSTRACT: This article aims to present elements about the formation and current challenges faced by the remaining communities of quilombos, focusing on the reality of Ceará. In this way, conceptions about the quilombo category, the configurations of ethnic-racial relations in Brazil, as well as the historical peculiarities of Ceará are presented. It is concluded that these populations assume great importance for the environmental preservation and the cultural and social heritage of this country's African matrix. However, despite legal advances, structural racism imposes great obstacles on them in their quest to access rights, such as recognition, redistribution of income, and political representation.
Keywords: Quilombo. Ethnic-racial relations. Racism.
1 INTRODUÇÃO
1 Mestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora
do NUAFRO. Atualmente trabalha na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR) do Ceará. E-mail: brandao.wanessa@gmail.com 2 Mestre em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do
NUAFRO. Atualmente trabalha na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR) do Ceará. E-mail: daianedaine@hotmail.com
Os quilombos são grupos que possuem identidade étnica diferenciada e
dependem da terra para sua reprodução. A definição legal, contida no Decreto nº
4.887/2003, assinala que estas comunidades são compostas por grupos étnico-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com resistência
à opressão histórica sofrida. A emergência das comunidades quilombolas como sujeitos
coletivos de direitos no Brasil se deu a partir da Constituição de 1988, conforme artigo 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Essas populações assumem grande importância para a preservação ambiental e
da herança cultural, social, ancestral de matriz africana deste país. Contudo, devido a
discriminações por questões étnicas e raciais, enfrentam grandes obstáculos na sua busca
por acessar direitos, tais como reconhecimento, redistribuição econômica e representação
política (FRASER, 2013).
A consolidação do direito coletivo ao território, o acesso à terra a que pertencem
e a manutenção do seu modo de vida é uma necessidade social e econômica para
reprodução quilombola. O processo de identificação e reconhecimento dos territórios
quilombolas no Brasil enfrenta diversos obstáculos e costumeiramente é moroso. Por sua
vez, sem a titulação, os territórios que remontam ao período colonial ficam inacessíveis para
políticas públicas básicas e se tornam alvos de maior vulnerabilidade social e conflitos.
Nesse sentido, abordar a temática quilombola exige refletir sobre aspectos referentes
à história da colonização brasileira e às práticas de dominação, exclusão e violência que
marcaram e marcam a realidade dessas populações, assim como suas estratégias de
resistência.
O estudo ora apresentado não objetiva esgotar a temática, mas apresentar
elementos que contribuam para o debate e possibilitem análises criticas acerca das
condições de vida, organização e acesso a direitos sociais dos e das populações
remanescentes de quilombos.
Assim, fez-se necessário elucidar brevemente sobre as concepções em torno da
categoria quilombo, os elementos históricos acerca da formação dessas comunidades no
Brasil, bem como abordar as particularidades das relações raciais na realidade cearense.
2 QUILOMBO: ASPECTOS CONCEITUAIS E RESSIGNIFICAÇÕES HISTÓRICAS
São diversos os significados da categoria quilombo, e uma das obras
significativas na perspectiva pan-africanista sobre quilombos é o livro de Abdias do
Nascimento, chamado “O quilombismo”, de 1980. Nesta obra, Nascimento (1980), conceitua
quilombismo como uma rede de interações dos negro/as. O autor entende que todo espaço
de sociabilidade de comunidades negras, seja no continente africano ou na diáspora
brasileira é um quilombo.
. Para Abdias Nascimento, terreiros, afoxés, escolas de samba, gafieiras, clubes
e confrarias negras – que foram legitimadas perante a cultura dominante como quilombo
formam uma unidade étnica, cultural e humana, ou seja, constitui um complexo de
significações, a práxis afro-brasileira (NASCIMENTO, 1980, p. 255).
Por sua vez, Clóvis Moura (1987), em seu livro “Quilombos: da resistência ao
escravismo”, destaca que os quilombos foram uma das formas de resistência ao sistema
escravista. No escravismo mercantil, cerca de 50.000 mil negros foram “importados” para o
Brasil todos os anos. Para o autor o trabalho escravo modelou a sociedade brasileira
durante esse período, fortificou as classes dominantes e direcionou o tipo de
desenvolvimento das instituições, grupos e classes no período pós-abolição da escravatura.
Entre os séculos XVI e XIX, construíram-se sociedades coloniais nas Américas –
desde o atual Canadá até a América Latina – que mantiveram trabalho escravizado tanto de
indígenas como de negros africanos, este último principalmente. Para Moura (1987), onde
existia a escravidão, existia o negro aquilombado, haveria formas de resistência negra e a
formação de quilombos seriam um dos modos mais recorrentes. Destaca que nos
quilombos da época não existiam somente os negros fugidos, mas que existiam indígenas e
trabalhadores outros que foram também escravizados e que tinham a necessidade de fugir,
e os quilombos acolhiam. Os quilombolas travaram lutas com capitães do mato e sofreram
ataques violentos por parte do “Estado escravista”.
Os africanos que vieram para o Brasil eram provenientes tanto de
microssociedades como de grandes impérios, a exemplo de Daomé, Oyo, Ndongo, Ketu,
Mutamba, Bantu, etc, bem como de cidades como Luanda (que é da parte ocidental), e
também outras partes do continente africano, entre savanas e florestas. Além disso, eram
membros da realeza, como também sacerdotes, artesãos, agricultores, enfim, possuíam
ocupações e profissões antes de serem sequestrados de seus países.
Entendendo toda a exploração do trabalho, é importante salientar as resistências
que essas populações tiveram, pois
[...] todos os movimentos, processos de luta, fuga, afirmação identitária, expressão cultural, desde a vinda nos navios negreiros até
os dias atuais, são considerados como estratégias plurais de resistir e lutar contra a ordem societária de opressão e exploração vigente (MADEIRA; GOMES, 2018, p. 9).
Nessa perspectiva de resistência é que surgem os quilombos e nesse sentido
temos inúmeras formas de ser quilombo, não somente de escravizados fugidos, mas por
ocupação de terras devolutas e permanência em seus locais de escravização.
No Brasil, a primeira forma de nomear os agrupamentos de negros cativos
fugidos, foram mocambos, que significa “esconderijo”, já o termo quilombo foi generalizado
no país após a experiência com o quilombo de Palmares3. A etmologia dessas palavras se
dá a partir de várias regiões do continente africano, em especial a África Central, no país
Angola, e eram usados para designar acampamentos improvisados, utilizados em guerras
ou para a própria apreensão de escravizados. O termo quilombo só aparece na
documentação colonial no final do século XVII e ganha mais popularidade a partir do século
XVIII (SCHWARCZ; STARLING, 2015).
A concepção de quilombos como espaço de negro/as fugidas não tinha apenas
a intenção de valorizar a noção de liberdade a partir da visão do/as negro/as, era também
atrelada a ideia de criminalização, pois se estavam fugindo, estavam “infligindo a lei” e,
portanto, precisariam ser caçados, na visão dos brancos. O histórico de criminalização das
resistências negras ocupa espaço em todas as Américas até hoje.
3. O RACISMO ESTRUTURAL E AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA DOS
QUILOMBOS NO BRASIL
Diferente do que se possa pensar, o Brasil, mesmo caracterizado como país
pluriétnico, não conseguiu evitar a permanência de grandes disparidades raciais na renda,
na inserção qualificada no mercado de trabalho, educação, saúde, expectativa de vida e
outros indicadores revelados por agência de reconhecimento como IBGE4, PNAD5 dentre
outras.
3 Foi um quilombo da era colonial brasileira. Com localização na Serra da Barriga, na então Capitania
de Pernambuco, região hoje pertencente ao município de União dos Palmares, no estado brasileiro de Alagoas. Liderado por Zumbi dos Palmares e Dandara dos Palmares, se tornou uma das maiores referências em quilombos no mundo. 4 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
5 Pesquisa Nacional por Amostra de Domícilios.
Esta realidade explica-se a partir da forma como o racismo estrutura as relações
sociais e segue reproduzindo e ampliando desigualdades no país. Para Nogueira (2017) o
racismo só pode ser compreendido como relação de poder, esse está estruturado por dentro
das instituições sociais, e para a superação não se faz sem a reforma destas.
Desse modo a discriminação racial ganha centralidade como variável presente
na produção e reprodução das desigualdades sociais e nos processos de exclusão social da
população negra no Brasil, afetando, logicamente, os povos e comunidades tradicionais
quilombolas em seu modo de viver e sobreviver, pois (...) a escravidão nos legou o racismo
como prática social dominante que liga ideologicamente os brancos, mantendo seus
privilégios, enquanto é negada a cidadania aos negros e negras. (...) (NOGUEIRA, 2017:
p.05).
O projeto de nação brasileiro, após a abolição da escravatura insistiu no processo de
branqueamento, haja vista, para a classe dominante a miscigenação extremada significava
a degenerescência, impedindo a evolução e o desenvolvimento do Brasil. Essa ideia é
ilustrada quando o antropólogo Roquete Pinto ao presidir o I Congresso Brasileiro de
Eugenia em 1929, previa que em 2012 teríamos uma população composta de 80% de
brancos e 20% de mestiços, nenhum negro, nenhum índio (SCHWARCZ, 1998, p.26).
A população negra do país tem sido subjugada, violentada e criminalizada desde
a escravidão para saciar os interesses sociais e econômicos das classes ricas — fenômeno
acolhido por leis cujos efeitos camuflam, revalidam e perpetuam a opressão. A propagação
do discurso preconceituoso e discriminatório alicerça a narrativa para desqualificar a
cidadania afrodescendente, e isso vem afetando, logicamente, ao longo da história, o
acesso das populações quilombolas aos direitos sociais.
No período colonial brasileiro, os quilombos eram sistemas coloniais alternativos,
“brechas no sistema escravista”, conforme Nascimento (1985). A organização econômica,
política e social de grupos de etnias comuns ofereciam risco à sociedade escravista uma
vez que as fugas implicavam numa reação a essa forma de Estado colonial. Além disso,
para Nascimento (1985), é importante demarcar que os quilombos de grande porte também
se encontravam em centros urbanos.
Seguindo, com relação aos quilombos históricos Schwarcz e Starling (2015,
p.98), anunciam:
O quilombo não era só um lugar transitório e improvável; tampouco era apenas desobediente às coordenadas estabelecidas, do lado de cá, pela ordem escravista e, do lado de lá, pelo isolamento absoluto. Na prática, é possível que a experiência
dos quilombos tenha construído um lugar radicalmente novo no panorama político, capaz de conciliar, em igual medida, resistência e negociação, rejeição e convivência.
Assim, os quilombos se constituíram como outro modelo de sociedade, com
interações econômicas dentro e fora dos territórios, com proteção contra ameaças, bem
como fortalecimento de vínculos. Sociabilidade que sustenta princípios e valores dos
quilombos contemporâneos, que foram sendo passados de geração em geração.
As comunidades quilombolas mantêm, ainda hoje, práticas centenárias trazidas por seus ancestrais do continente africano. Essas práticas, além de culturais, dizem respeito à religiosidade, à política e às formas de produção, envolvendo técnicas agrícolas, formas de manejo do solo, formas de plantio, se constituindo em uma íntima relação dessas comunidades com o ambiente em que estão inseridas, a partir do desenvolvimento de técnicas conservacionistas e utilização racional dos recursos naturais, garantindo desta forma a manutenção da biodiversidade, para utilização das gerações futuras. Suas conquistas passaram automaticamente pelo período de redemocratização do país, no qual o movimento negro e lideranças das comunidades quilombolas intensifcaram a luta por direitos que garantissem a cidadania a essas comunidades (SILVA; FERRAZ, 2012, p. 73).
Somente a partir de 1988, quando foi promulgada a Constituição da República
Federativa do Brasil, que o Estado brasileiro reconhece-os como comunidades
remanescentes de quilombos, assumindo essas populações como sujeitos de direitos. Tal
reconhecimento é resultado das pressões dos movimentos negros e acordos internacionais
para eliminação de todas as formas de discriminação racial.
Com relação aos direitos quilombolas, as comunidades vivem entre a conquista
e a morosidade, ou seja, pequenas conquistas como promulgações de decretos e mais um
passo no caminho da titulação, porém enfrentam a lentidão para a efetividade dos seus
direitos.
Destacam-se no âmbito jurídico algumas legislações resultantes de longos
processos de resistências e reivindicações dos (as) quilombolas, movimento negro e
movimento de mulheres negras. O decreto n° 4.886 de 20 de novembro de 2003 institui a
Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) e dá outras providências. Além
dele, o decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias6. Também o decreto N° 5.051, de 19 de abril de
2004, promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre
6 Artigo 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos.
Povos Indígenas e Tribais e torna-se um marco no compromisso do Brasil com definições
internacionais acerca dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Outras legislações também relevantes a definição de políticas públicas às
Comunidades quilombolas diz respeito ao Decreto n° 6040, de 7 de fevereiro de 2007, que
institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais e o Decreto N° 6261 de 20 de novembro de 2007 que dispõe sobre a gestão
integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no âmbito do Programa
Brasil Quilombola, e dá outras providências
Além destas, a Portaria da Fundação Cultural Palmares nº 98, de 26 de
novembro de 2007, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos
Quilombos para efeito do regulamento que dispõe o Decreto nº 4.887/03 e a instrução
normativa n° 57 de 20 de outubro de 2009 que regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
Segundo dados da Fundação Cultural Palmares (2019) o Brasil conta com 3.271
comunidades quilombolas identificadas, destas 2.729 certificadas. Para o Ministério do
Desenvolvimento Social – MDS (2010) existem 4.520 quilombos em quase todos os estados
brasileiros, sendo a maior concentração no Maranhão com 1.351 comunidades.
A maioria destes está inserida na Política de Regularização Fundiária para
Territórios Quilombolas7, que é regulamentada pelo Decreto N° 4.887/03 e garante o titulo
de propriedade coletiva quilombola reconhecida como território da União. Apesar do grande
número de comunidades quilombolas no Brasil, apenas 179 quilombos são titulados.
Desses 179 titulados, 77% do total foram titulados ainda por governos estaduais,
que é uma etapa anterior ao título definitivo expedido pela Presidência da República. O
número de Comunidades Remanescentes de quilombolas com título expedido pelo governo
federal corresponde, por sua vez, a 21%, e, apenas, 2% dos territórios são titulados pelo
governo federal e por governos estaduais. Significa dizer que ainda há um longo caminho
para a garantia do direito ao território quilombola.
Esses dados revelam como o racismo institucional opera, uma vez que as
titulações poderiam acontecer sem tantas burocracias, mas dependem de decisões políticas
permeadas por disputas de interesses. O racismo institucional (SOUZA, 2011; ALMEIDA,
7 A Política de Regularização Fundiária para Territórios Quilombolas é uma política pública de reparação histórica dos grupos étnicos quilombolas, que é regulamentada pelo Decreto N° 4.887/03, e tem como objetivo a titulação de territórios quilombolas. A política é gerida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
2018) advém de um racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) que demarca a formação sócio-
histórica do Brasil, de forma a dificultar a garantia de direitos sociais.
Nessa linha de pensamento, Madeira e Gomes (2018, p. 10), afirmam:
Os Povos e Comunidades Tradicionais (PCT’s) discriminados por questões étnicas e raciais, quilombolas, indígenas e povos de terreiro têm se utilizado de diferentes formas para reafirmar sua ancestralidade e permanecer lutando cotidianamente por direitos e reparação por séculos de discriminação. Diante dos numerosos conflitos que eles enfrentam no decorrer dos processos de busca por acesso a direitos, os movimentos sociais quilombola e indígena têm lutado pela efetividade do que foi garantido constitucionalmente em 1988.
Apesar das dificuldades apresentadas, é importante destacarmos que, mesmo
enfrentando múltiplos conflitos pela terra e violações de direitos, as comunidades
quilombolas constituíram-se em uma dinâmica valiosa de “diálogo cultural, de afrmação da
identidade, de resistência étnica, de luta pela terra, de relacionamento peculiar com a
natureza, que nos remete à compreensão de [...] de todos os valores civilizatórios ligados à
África e preservados mediante séculos de tradição” (SILVA, FERRAZ, 2012, p. 77).
4 PRESENÇA NEGRA E QUILOMBOS NO CEARÁ
A presença africana foi forte no Ceará e influenciou muito na formação social e
cultural do Estado. Uma das marcas do racismo na época, era trocar o nome dos
escravizados como forma de minar suas identidades, assim, havia muitas Marias, Josés e
outros que não tinham esse nome de “batismo”, mesmo que em alguns casos, os senhores
de engenho mantinham o nome de suas nações, por exemplo: Manoel Congo, Maria
Cabinda, etc (FUNES, 2000).
Estes africanos que chegaram aqui no Ceará, eram tirados a força,
principalmente da região congo-angola, de cultura Bantu - grupo étnico da África Central,
que traz uma contribuição relevante para o território cearense a partir da língua, com os
idiomas Kicongo e Kimbundo, além da culinária como, por exemplo, a macaxeira, banana e
milho (NKONDO, 2019)8.
Apesar da influência dos povos vindos de África no estado, há uma recorrente
expressão que permeia o imaginário social e se apresenta nos argumentos dos que não
consideram necessárias políticas públicas para a população negra: “no Ceará não tem
8 Ver mais em: http://ilabantu.inzotumbansi.org/cultura-e-tradicao-bantu/.
negro”, afirmação esta que acentua a invisibilidade da população negra no estado. Além de
representar um “equívoco” histórico. A ideia postulada fundamenta-se no fato de que no
Ceará a escravidão foi pouco expressiva. Isto leva a uma lógica perversa: associar o negro
a escravidão” (FUNES, 2000, p. 103), como se não houvessem negros livres, pois seus
lugares sociais pré-determinados eram as casas grandes e senzalas.
O número de afrobrasileiros no Ceará era significativo no século XIX, como
Funes (2000) afirma:
No início do século XIX, a presença de afro-brasileiros já era significativa por estas terras cearenses, onde negros e pardos libertos somavam 60,7% de uma população total de 77.375 habitantes. Neste universo, a população negra e parda cativa somava 12.254, ou seja, 15,8% da população (FUNES, 2000, p. 104).
Nessa linha de pensamento, situam-se também no imaginário popular brasileiro
e cearense que os quilombos foram lugares que se limitaram ao passado, onde os negros
escravizados fugiram e se refugiaram, lugares estes escondidos nas matas, do qual os
quilombolas eram rebeldes e muito violentos. Um estereótipo implantado pelo projeto de
colonialidade que reforça a imagem do negro agressivo e nocivo à sociedade.
Porém, a realidade não é essa. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária – INCRA, há no nordeste cerca de 977 quilombos registrados9. E segundo
a Fundação Cultural Palmares – FCP há no Ceará, 50 quilombos certificados10. Significa
dizer que, o nordeste é a região com o maior número de quilombos do Brasil e o Ceará é o
6° estado do nordeste com o maior número.
Segundo a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas Rurais do
Estado do Ceará (CERQUICE) – entidade de representação política dos quilombos
cearenses – há no estado do Ceará 88 comunidades quilombolas11, dentre estas as que se
autoidentificam quilombolas que estão ou não com processos abertos junto ao INCRA. Para
Gomes (2015), os números sobem, e há no Ceará 121 quilombos reconhecidos e/ou
certificados.
O que significa dizer que a presença dos quilombos no Brasil, sobretudo no
nordeste é quase que incalculável, uma vez que os quilombos surgem numa forma de
9 Ver mais em: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-processosabertos-quilombolas-
v2.pdf. Acesso: 14/02/2019.
10 Ver mais em: Fundação Cultural Palmares – FCP: http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acesso: 14/02/2019. Dados atualizados até a portaria nº 316/2018, publicada no dou de 23/11/2018. E também ver tabela dos Quilombos no Ceará certificados pela FCP nos anexos. 11 Dado retirado a partir da fala de Renato Baiano representante estadual da CERQUICE, em
documentário para a secretaria de educação do estado do Ceará: https://www.youtube.com/watch?v=8kFtbQhGnRM&feature=youtu.be. Acesso: 14/02/2019.
resistência negra enquanto sociabilidade possível e suas formas de organização e defesa
eram tão eficazes que havia a dificuldade de encontrar esses agrupamentos. Além disso, o
fato é que “o quilombo foi a unidade básica de resistência do escravo” (MOURA, 1987,
p.14), e para tanto capilarizou por todo o país.
No Ceará, a formação populacional foi diferente de outras regiões do nordeste.
De acordo com Funes (2000) o ciclo econômico do açúcar foi sendo rompido pelo gado e
por isso, tinha pouca mão-de obra, o que gerava uma configuração social diferente das
sociedades de engenho. Logo, houve pouco trabalho explorado braçal. Não há a intenção
de dizer que não houve trabalho escravizado no Ceará, mas é importante demarcar que
com a chegada do gado o trabalho diminui12.
A população africana não deixou de vir para o Estado, sobretudo teve um
grande fluxo a partir do século XVIII, quando a lavoura algodoeira e a pecuária tornam-se
uma das principais vias de trabalho mais valorizadas com relação a outros estados
nordestinos. Funes (2000, p. 106) anuncia que “o Ceará estava incorporado ao mercado
colonial graças à força de trabalho do nativo, do homem pobre livre – em especial do negro
e mestiço liberto – e do cativo nacional e africano”.
Dito isto, com relação a constituição dos direitos da população negra, o Ceará foi
pioneiro na libertação dos escravizados, efetivando a abolição da escravatura quatro anos
antes de todo o restante do país. Isso não quer dizer que foi um ponto positivo, visto que a
população sai desse processo sem condições de sobrevivência com relação a trabalho e
nem muito menos com acesso à educação ou terra para morar.
Nesse sentido, no estado do Ceará, ainda não há nenhum quilombo com
território titulado. E sobre o assunto, Madeira (2018, s/p) afirma:
Algumas estão com o processo mais perto da finalização: Sítio Arruda em Araripe, Comunidades Encantados do Bom Jardim, Brutos e Lagoa das Pedras em Tamboril, Alto Alegre em Horizonte, Comunidade de Base em Pacajus, Três Irmãos em Croatá, Serra dos Chagas em Salitre e Minador no município de Novo Oriente.
Esse dado nos mostra as estruturas coloniais que permanecem na cena atual,
mantendo a população quilombola numa condição marginalizada, com negação de direitos e
desrespeito aos compromissos jurídicos internacionais assumidos pelo Estado.
3 CONCLUSÃO
12 “Isso não minimiza o sentido e o significado da presença escrava na sociedade cearense e muito
menos deve ser entendido como fator determinante de um modelo específico de escravidão marcada pela cordialidade e fraternidade dos senhores em relação aos seus cativos. O fato de ser, ou ter, escravo, já é por si uma prática aviltante do direito e à cidadania” (FUNES, 2000, p. 108)
A existência de comunidades que assumem uma perspectiva de desenvolvimento
diferente da propagada na sociabilidade capitalista, que lutam por preservar os valores
culturais, sociais e políticas das civilizações africanas é estranhada e estigmatizada pelo
olhar hegemônico de sociedade que permeia as relações étnico-raciais no Brasil, e
particularmente no Ceará.
É inegável a contribuição dada por africanos e seus descendentes na história
brasileira, mas, ao mesmo tempo, o racismo estrutural reproduz a perpetuação de uma
estrutura social desigual e opressora que gera a invisibilidade ou visão estereotipada desses
mesmos grupos, imbricando-se às opressões de classe social e gênero.
Logo, as Comunidades Quilombolas foram excluídas do acesso a políticas públicas,
trabalho e ao direito a terra no decorrer do processo de modernização brasileira. Tiveram
suas expressões culturais desrespeitadas e modos de vida ameaçados. Contudo,
permanecem a resistir e avançar na busca pelo bem viver e desenvolvimento social
sustentável.
REFERÊNCIAS
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