Post on 15-Oct-2015
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Cincias Sociais
Faculdade de Direito
Clcio Jos Morandi de Assis Lemos
Poltica Criminal no Brasil Neoliberal
Rio de Janeiro
2011
Clcio Jos Morandi de Assis Lemos
Poltica Criminal no Brasil Neoliberal
Dissertao apresentada, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Direito, ao Programa de Ps-Graduao em
Direito, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. rea de concentrao:
Transformaes do Direito Privado, Cidade e
Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Nilo Batista
Rio de Janeiro
2011
Clcio Jos Morandi de Assis Lemos
Poltica Criminal no Brasil Neoliberal
Dissertao apresentada, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Direito, ao Programa de Ps-Graduao em
Direito, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. rea de concentrao:
Transformaes do Direito Privado, Cidade e
Sociedade.
Aprovada em:
Banca examinadora:
___________________________________________________
Prof. Dr. Nilo Batista (Orientador)
Faculdade de Direito da UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Adriano Japiass
Faculdade de Direito da UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Salo de Carvalho
Faculdade de Direito da UFRGS
Rio de Janeiro
2011
DEDICATRIA
Aos meus pais (Clcio, Clio, Carlos Eduardo) e s minhas mes (Scheila, Desiree,
Paula). Por todo amor que nunca me foi negado.
O carinho mais puro que recebi nesta vida vem das mos de minhas avs. Marylda e
Nair, toda dedicatria pouco.
s minhas irms (Shaira, Bianca e Luana), irmos (Andr e Vincius), tios e primos.
Aos quatro grandes amigos, verdadeiros irmos, que a vida me permitiu conhecer:
Rafael Comrio Chaves, caro Jos Moura Sili, Marcos Simes Martins Filho e Ludgero
Liberato.
A todos aqueles que sofrem diariamente com os tormentos do sistema punitivo
brasileiro.
AGRADECIMENTOS
Ricardo Tadeu Penitente Genelh foi incansvel incentivador e brilhante parceiro nas
pesquisas desde o ingresso no mestrado at os momentos finais deste trabalho. A ele, rendo os
meus primeiros agradecimentos.
Ao meu tio Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, exemplo mais perfeito de dedicao de
uma vida por trabalho honesto e dedicado execuo penal minimamente humana no Brasil.
Ao professor Nilo Batista, por ter pacientemente compartilhado comigo sua
genialidade cientfica, sua compaixo com os excludos, seu comprometimento com a reduo
do sistema punitivo e violncia no Brasil.
Vera Malaguti Batista, Carlos Eduardo Adriano Japiass e Salo de Carvalho, pelas
imprescindveis orientaes na elaborao do presente trabalho.
Maria (in memoriam) e Denise, que me acolheram em suas casas para que eu
pudesse viver na bela cidade do Rio de Janeiro durante os estudos do mestrado.
Meu objetivo ser mostrar-lhes como as prticas sociais podem chegar a engendrar
domnios do saber que no somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas
tcnicas, mas tambm fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de
conhecimento. O prprio sujeito de conhecimento tem uma histria, a relao do sujeito com
o objeto, ou, mais claramente, a prpria verdade tem uma histria.
Michel Foucault, A verdade e as formas jurdicas.
E, assim como a cultura no isenta de barbrie, no o , tampouco, o processo de
transmisso da cultura. Por isso, na medida do possvel, o materialista histrico se desvia dela.
Considera sua tarefa escovar a histria a contrapelo.
Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de histria.
RESUMO
LEMOS, Clcio. Poltica Criminal no Brasil Neoliberal. 2011. 137f. Dissertao (Mestrado
em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2011.
Esta dissertao parte da compreenso dos sistemas punitivos em meio s estruturas
sociais, demonstrando que o uso da coero pblica um dos pilares fundamentais dos
Estados modernos. Sustenta a necessidade de se desvendar os discursos ideolgicos que
legitimam o poder de criminalizao, a fim de politizar o contexto das punies e alcanar a
sua funo latente. Concentra-se nas caractersticas especficas do Estado brasileiro instalado
a partir da dcada de 1990, seguindo a trilha do Leviat dos EUA neoliberal instaurado desde
a dcada de 1980. Constata a correlao entre os sistemas punitivos brasileiro e norte-
americano, com seus extensos campos de controle e semelhantes pensamentos
criminolgicos. Por fim, encontra a real funcionalidade das penas no Neoliberalismo,
conformando um mtodo de promover e manter as polticas econmicas e sociais tpicas de
sua conjuntura, manejando a insegurana social decorrente do desemprego estrutural,
precarizao do trabalho, aprofundamento da misria e desigualdade.
Palavras-chave: Poltica Criminal. Sistema punitivo. Direito Penal. Priso. Penas
alternativas. Neoliberalismo. EUA. Brasil.
ABSTRACT
This dissertation starts form the comprehension of the punitive systems amid social
structures, demonstrating that the use of public coercion is one of the fundamental pillars of
the modern States. Holds the necessity of unveiling the ideological speeches that legitimize
the power of criminalization, toward politicize the punishment context and reach its latent
function. Concentrates in the specific characteristics of the brazilian State installed from the
decade of 1990, following the trail of the USA neoliberal Leviathan established since de
decade of 1980. Notes the correlation between the brazilian and north-american punitive
systems, with their extensive fields of control and similar criminological thoughts. In the end,
find the real functionality of the criminal penalty in the Neoliberalism, conforming a method
to promote and keep the economic and social policy typical of the conjuncture, managing the
social insecurity due to the structural unemployment, precarious work, deepening of misery
and inequality.
Keywords: Criminal policy. Punitive system. Criminal Law. Prison. Alternative
punishment. Neoliberalism. USA. Brazil.
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................... 10
1 INTRODUO CRTICA POLTICA CRIMINAL ...................................... 12
1.1 Poltica Criminal ............................................................................................... 12
1.1.1 Organizao das Cincias Criminais ........................................................... 12
1.1.2 Conceito de Poltica Criminal ...................................................................... 15
1.1.3 Poder punitivo .............................................................................................. 20
1.2 Punio e estrutura social ................................................................................ 21
1.2.1 O confisco do conflito ................................................................................. 24
1.2.2 Sucesso histrica das punies .................................................................. 28
1.3 Pensamentos criminolgicos ............................................................................ 35
1.3.1 Etiologia legitimante .................................................................................... 35
1.3.2 O mito do crime ontolgico ......................................................................... 39
1.3.3 Reao social e deslegitimao.................................................................... 43
1.3.4 Teorias da pena ............................................................................................ 45
1.4 Direito e sistema jurdico ................................................................................. 49
1.4.1 Sistema legal ................................................................................................ 50
1.4.2 Seletividade estrutural ................................................................................. 55
2 O LEVIAT NEOLIBERAL NORTE-AMERICANO ....................................... 62
2.1 Poltica econmica (fundamentalismo de mercado) ...................................... 64
2.2 Poltica social (mal-estar e bulimia) ................................................................ 69
2.3 Poder punitivo ................................................................................................... 76
2.3.1 Nmeros do controle punitivo ..................................................................... 78
2.3.2 Novos discursos criminolgicos .................................................................. 83
3 O BRASIL NEOLIBERAL ..................................................................................... 90
3.1 Poltica econmica (ordens de Washington) ................................................... 90
3.2 Poltica social ..................................................................................................... 96
3.3 Poder punitivo ................................................................................................. 101
3.3.1 Encarceramento ......................................................................................... 102
3.3.2 Ferramentas do grande encarceramento .................................................... 106
3.3.3 Penas e Medidas Alternativas (PMA) ........................................................ 110
3.3.4 O vento que sopra da Amrica ................................................................... 113
4 FUNES LATENTES DA PENA NEOLIBERAL .......................................... 122
5 CONCLUSO ........................................................................................................ 127
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 129
10
INTRODUO
Um nmero de presos sem precedentes, grossa teia de cumpridores de penas e medidas
alternativas, multiplicao incessante de leis para criminalizar, demanda social e midiatizada
de ampla adeso ao rigor penal. Todos esses fatores so fenmenos muito tpicos da histria
recente do Brasil, correspondendo a um sistema punitivo de feio singular na historiografia
nacional.
Tudo indica ser possvel captar nas ltimas duas dcadas (1990 e 2000) uma poltica
criminal brasileira que se destaca de tudo antes visto, justificando uma pesquisa cientfica
particular.
No necessrio muito esforo para saber que tal ocorrncia vem no bojo de um novo
contexto poltico, econmico e social, como no poderia deixar de ser. Tambm fcil
compreender que o quadro local a ressonncia de uma corrente de propores maiores,
correspondncia brasileira a um determinado fluxo internacional.
As cincias sociais convencionaram denominar como Neoliberalismo a nova forma
de organizao de Estado capitalista surgida na dcada de 1980, cujos principais lderes foram
os EUA e a Inglaterra. No caso brasileiro, como se ver posteriormente, tal corrente incidiria
com maior vigor somente na dcada seguinte.
Sendo certo que todo sistema punitivo no passa de uma das facetas do exerccio de
poder estatal, natural que a modificao de estruturas polticas neoliberais tenha remetido a
um sistema punitivo diferenciado, sendo esta precisamente a base da presente investigao.
Se todo estudo possui uma pergunta em seu corao, a do presente certamente seria:
quais so as caractersticas e as reais funes da poltica criminal do Brasil neoliberal?
O trabalho tem a pretenso de detectar quais os pontos que justificam a indicao de
que a partir da dcada de 1990 o Brasil passou a executar uma poltica punitiva diferenciada, a
ponto de merecer olhares atentos a detectar seus traos mais particulares. Mais do que
simplesmente descritiva, a pesquisa visa fornecer subsdios para uma compreenso ampla da
questo, a compreender a verdadeira funcionalidade do Estado penal recente.
Para responder aos questionamentos fundamentais deste trabalho, surgiu uma srie de
outras perguntas imprescindveis. No se quer aqui cometer o mesmo erro de tantos que a
pretexto de um estudo centrado, produziram uma anlise mope do enredo das punies. Se h
uma certeza inicial, a de que jamais se pode entender qualquer sistema punitivo sem olhar
para o que o cerca.
Restou inevitvel elaborar o captulo inicial sobre premissas do saber crtico de
11
Poltica Criminal. H um longo caminho percorrido por dedicados estudiosos que mostra um
conjunto de explicaes sobre a experincia secular do poder punitivo, ensejando uma viso
racional e contextualizada.
O primeiro passo, portanto, deve ser um foco geral sobre esta mecnica das punies.
Visualizando suas rupturas e permanncias, ao fim se abre o mapa sobre a mesa que guiar na
estrada para o entendimento do fenmeno contemporneo. A proposta desta primeira
elaborao frisar os dados estruturais e histricos dos sistemas criminalizantes ocidentais
que so referncia para o Brasil.
A histria demonstra que toda organizao punitiva pode encontrar sua explicao na
demanda por ordem ditada em seu seio social. Longe de com isso se pretender uma
legitimao, em verdade o estudo multifocal sobre essa fsica do poder permite identificar
uma resposta mais idnea para o por que assim est?, e no para o por que assim deve
ser?.
A concentrao na poltica criminal brasileira dependia, logo, de que se captasse a
nova lgica de Estado, cujo grande guia desde sua implantao tem sido inegavelmente os
EUA.
Bem por isso, est mais que explicado o motivo pelo qual se parte para um segundo
captulo denominado O leviat neoliberal norte-americano. Nele se faz justamente esta
tentativa de ressaltar as feies particulares do Estado no contexto sociopoltico recortado,
encabeado pelos Estados Unidos da Amrica. Tal esforo inevitvel diante da meta de uma
explicao minimamente lgica do objeto. H que se perquirir o conflito existente na trama
social da nova forma de governar, a compreender os dados que alimentam a voracidade
criminalizante que passou a predominar naquele pas desde a dcada de 1980.
Tomando tais premissas, surge o terceiro captulo a mergulhar na percepo particular
do Estado neoliberal brasileiro. Nesta altura, de se demonstrar em quais pontos este se
diferencia das polticas anteriores, no que diz respeito s suas prticas e aos seus discursos.
Se neste momento cabe uma advertncia, curiosamente, seria a de que as descries do
sistema criminalizante no Brasil neoliberal correspondem a uma rplica do que se iniciou nos
Estados Unidos da Amrica uma dcada antes. Nesse sentido, a experincia nacional
praticamente um avatar da nova onda punitiva norte-americana.
12
1 INTRODUO CRTICA POLTICA CRIMINAL
O presente captulo possui o condo de laborar em torno da compreenso das
premissas de Poltica Criminal, profundamente necessrias para propiciar uma anlise mais
consciente dos sistemas punitivos.
No primeiro subcaptulo se traz como base os conceitos do que se entende como
Poltica Criminal e poder punitivo. Adiante, h trs aproximaes em torno do que se
considera mais importante para um estudo aprofundado do fenmeno, nesta ordem: punio e
estrutura social, pensamentos criminolgicos, Direito e sistema jurdico.
Entende-se que o corpo de conhecimentos desenvolvido neste captulo um esforo
imprescindvel a fim de se entender os traos primordiais das polticas punitivas.
Concentrando os olhos nesta lente, o que antes parecia desfocado acaba ganhando sentido.
Por meio deste panorama das dinmicas dos sistemas punitivos, ser ento vivel
captar ao fim a essncia da rede de criminalizaes neoliberais no Brasil.
1.1 Poltica Criminal
1.1.1 Organizao das Cincias Criminais
A Poltica Criminal conhecida como um campo do saber independente desde a
originria tripartio gestada Franz Von Liszt (1851-1919). do professor austraco a
primeira e mais difundida organizao das chamadas Cincias Criminais ou Cincia global
do Direito Penal.
Desde ento, a antes imbricada miscelnea penal ganha um direcionamento terico,
uma diviso calculada. Das mos do cientista surge o trip: Criminologia, Poltica Criminal e
Dogmtica/Direito Penal.
Separados os mbitos de incidncia de cada um dos saberes penais, a Poltica Criminal
ganha objeto e metodologia prprios, sendo elevada ao nvel de cincia independente, assim
definida pelo professor:
A Poltica Criminal exige, em geral, que a pena, como meio, seja adequada ao fim, isto , seja determinada quanto ao gnero e medida segundo a
natureza do delinquente, a quem inflige um mal (lesa nos seus bens jurdicos
a vida, a liberdade, a honra e o patriotismo), para impedir que no futuro ele
cometa novos crimes. Nesta exigncia se encontra, de um lado, o seguro
13
critrio para a crtica do direito vigente e, do outro lado, o ponto de partida
para o desenvolvimento do programa da legislao futura. 1
Divorciado dos demais campos, o autor afirma restar ao Direito penal uma atividade
eminentemente prtica e sistemtica, em suas palavras:
Da resulta que este o objeto imediato do Direito Penal: tratar com mtodo tcnico-jurdico, baseando-se na legislao, os crimes e as penas como
generalizaes ideais; desenvolver, elevando-se at aos princpios
fundamentais e s ideias ltimas, as disposies da lei de modo a formar um
sistema completo; expor na parte geral do sistema a ideia do crime e a da
pena em geral, e na parte especial os crimes e as penas que contra eles a lei
tem cominado. 2
Quanto Criminologia, a trilogia anunciada por Liszt guarda abrangncia especfica,
tambm apartada das demais:
A utilizao consciente da pena como arma da ordem jurdica na luta contra o delinquente no possvel sem a indagao cientfica do crime na sua
manifestao exterior material e nas suas causas internas, que se inferem dos
fatos. Para designar essa cincia do crime (causal, naturalstica), pode-se empregar a expresso criminologia, j introduzida tanto na cincia inglesa
como na dos pases latinos. 3
Eis demonstrada a tripartio dos objetos de atuao de cada uma das trs cincias, de
onde brotaram as inaugurais estruturas do que hoje se chama Poltica Criminal.
Neste perodo, foram valiosas tambm as consideraes do italiano Arturo Rocco
(1876-1942) para a formatao do novo campo do saber. Seu enfoque bem prximo ao de
Liszt, descrevendo a Poltica Criminal como La cincia o la arte de la legislacin, pero que
tiene en mira el juicio, la critica y la reforma del derecho penal vigente 4.
Atendendo ao programa inicial, restaria Poltica Criminal a argumentao crtica
com relao lei, sua batuta promoveria a atualizao da norma posta com novas opes
legislativas de combate criminalidade, de acordo com a realidade desejada.
A busca dessa diviso de cincias bem tpica do perodo histrico em que se inserem
os citados autores. Classificar e esquematizar eram obsesses dos positivistas, um requisito
obrigatrio para se ganhar status cientfico.
1 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemo. Campinas: Russell Editores, 2003, p. 153.
2 Ibid. p. 71.
3 Ibid. p. 146.
4 Apud. CARAVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil. 5. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010, p. 88.
14
Nesse passo, a diviso organizada pretendia expor campos bem especficos de atuao,
de forma que um no invadisse a seara do outro. Criaram-se muros bem altos a fim de
justificar a independncia pretendida.
Nessa tica rgida, os trs degraus possuem uma ordem pr-estabelecia. Em primeiro
plano, caberia Criminologia o estudo do criminoso e do crime, ou como tradicionalmente se
diz: o estudo das causas do crime. Como se ver em captulo prprio, a Criminologia da
poca marcantemente etiolgica.
Seguindo este direcionamento, a base de dados coletados tecnicamente pela
Criminologia serviria para formar o mbito de atuao da segunda cincia: a Poltica
Criminal. A esta caberia toda a elaborao pr-legislativa dos programas a serem executados
em vista da reduo de crimes, bem como as crticas norma vigente. 5
Percebe-se, desta maneira, que a Poltica Criminal seria o ramo do saber responsvel
por pensar a elaborao das leis penais, uma cincia tipicamente estratgica, voltada para uma
ttica legislativa a fim de conter a criminalidade.
Por fim, o momento da Dogmtica Penal. Uma vez fixados os programas de combate
ao crime, traduzidos em uma legislao apropriada, abre-se a largada para a atuao do
Direito.
O Direito Penal, na viso de Liszt, inicia seu percurso onde termina o trilho da Poltica
Criminal. Nessa arquitetura, a lei tida como divisor de guas, nos dizeres do autor: Direito
Penal a barreira intransponvel da Poltica Criminal. 6
Entendia o autor que, uma vez estabelecida a norma penal, ela deveria figurar como
um freio s pretenses diversas de poltica criminal. A lei, assim, serviria para tornar rgida e
estvel a prtica penal, mantendo-a distante de outros caminhos que no os j albergados pelo
processo legislativo levado a cabo.
Segundo se pensava, caberia ao Direito partir de um dado inquestionvel, qual seja, a
norma instituda. Este o dogma inicial, o ponto de partida limitador da atuao cientfica,
restando apenas a elaborao de tcnicas prprias de se lidar com a interpretao e
sistematizao dos textos j fornecidos pelo legislador.
Est demonstrado o que se pode chamar de isolamento trplice. De alguma forma, o
enfoque estanque destas cincias acabou por criar lgicas bem particulares de produo
acadmica, tudo a pretexto de uma pureza tcnica.
5 DIAS, Jos de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 1. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007,
p. 23. 6 Apud. ROXIN, Claus. Poltica criminal e sistema jurdico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 1.
15
Destarte, dados da realidade social s podiam inspirar a Criminologia e a Poltica
Criminal, no labor de compreender o comportamento criminoso e seus caprichos, a soar sobre
propostas de organizao do poder pblico para combater o desviante.
Do lado contrrio, a tcnica jurdico-penal encontrava-se ilhada no mtodo prprio de
silogismo e exegese, mesmo porque era justamente esse distanciamento que legitimava seu
posto de saber independente.
A Criminologia e a Poltica Criminal eram idealizadas como cincias auxiliares do
saber jurdico-penal. Pode-se visualizar nesta fase uma clara separao entre o discurso do
cientista da sociedade e o discurso do jurista, de forma que ambos no se tocavam. 7
Partindo-se deste conceito de Poltica Criminal deflagrado, natural reconhecer que o
seu objeto j havia sido tocado por ensaios anteriores. Uma larga oferta de obras falava das
estratgias do sistema punitivo direcionadas elaborao/crtica de leis, geralmente
enquadradas nas estantes de Cincia Poltica.
Conforme esclarecido, das mos de Liszt nasceu o reconhecimento da Poltica
Criminal como saber independente, por via de uma definio que influencia fortemente os
penalistas at os dias atuais. Entretanto, diante do desenvolvimento cientfico nestes mais de
cem anos da elaborao inicial, preciso chegar a um conceito contemporneo.
1.1.2 Conceito de Poltica Criminal
No sem alguma afetao, a composio tripartida que deu origem Poltica Criminal
como saber independente permanece at os dias atuais. Portanto, fundamental investigar as
conceituaes alcanadas pelos penalistas nacionais e estrangeiros mais recentes.
Antes de mais nada, preciso esclarecer que h diferena entre o que se pode chamar
de saber Poltica Criminal e os planejamentos concretos direcionados ao sistema punitivo
(poltica criminal com letra minscula). A primeira o saber em si, e a segunda o fruto de
suas elaboraes.
Trabalhando o conceito de Poltica Criminal, o grande jurista alemo Hans-Heinrich
Jescheck (1915-2009) teve a oportunidade, em meio sua longa contribuio acadmica, de
indicar o entendimento:
7 BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e crtica do direito penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.
155.
16
La Poltica criminal se ocupa de cmo deba conformarse el Derecho penal para cumplir mejor su missin de proteger a la sociedad. La Poltica
Criminal conecta con las causas del delito, se ocupa de cmo hayan de
recogerse correctamente los elementos de los tipos penales para responder a
la realidad de aquel, intenta determinar los efectos de las sanciones
empleadas en el Derecho penal, considera hasta qu lmite puede extender el
legislador el Derecho penal para no restringir la esfera de liberdad del
ciudadano ms all de lo absolutamente indispensable, y examina si el
Derecho penal material se encuentra configurado de manera que pueda
realizarse en el proceso penal. Aunque la Poltica criminal sea tambin,
como toda ciencia, libre en su investigacin, y se halle sometida tan slo a la
verdad, hay que contar con ciertos lmites para el logro de las metas
legislativas que propone. 8
Destaque tambm merece, mesmo sem demonstrar muita divergncia com a viso
tradicional, o mestre espanhol Santiago Mir Puig, em suas palavras:
A la poltica criminal correspondera una doble funcin: a) fijar las premisas axiolgicas del derecho penal, b) en base a la contemplacin de las
conclusiones obtenidas por la criminologa acerca de la realidad del delito y
de la pena. 9
O catedrtico de Coimbra, Figueiredo Dias, divergindo do modelo lisztiano, defende
maior amplitude na atuao da Poltica Criminal. Prega ele a superao do Estado de Direito
Formal, para a determinao de uma Poltica Criminal transdogmtica:
A sua funo ltima consiste em servir de padro crtico tanto do direito constitudo, como do direito constituendo, dos seus limites e da sua
legitimao. Neste sentido se dever compreender a afirmao de que a
poltica criminal oferece o critrio decisivo de determinao dos limites da
punibilidade e constitui, deste modo, a pedra angular de todo o discurso
legal-social da criminalizao/descriminalizao. E todavia, apesar da
predominncia que assim se atribui poltica criminal no contexto da cincia
conjunta do direito penal, ela haver em todo o caso de se condicionar
estritamente pelos fundamentos jurdico-polticos da concepo do
Estado.10
Mas na grande obra de Eugnio Ral Zaffaroni e Nilo Batista que, finalmente, se
indica com clareza um conceito de Poltica Criminal vinculado ao poder punitivo, e no mais
lei ou ao Direito:
8 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal: parte geral. Granada: Comares, 1993, p. 18.
9 MIR PUIG, Santiago. Introduccin a las bases del derecho penal. 2. Ed. Buenos Aires: B de F editorial, 2003,
p. 281. 10
DIAS, Jos de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 1. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007, p. 35.
17
Apesar de existirem discursos poltico-criminais legitimantes, que aceitam como verdades meras afirmaes apriorsticas (iguais s que qualquer teoria
positiva da pena contm), tudo se modifica quando, ao basear-se em dados
da realidade, ela construda como uma valorao geral do modo de encarar
a conflitividade criminalizada a partir do poder e, portanto, de exercer o
poder punitivo. 11
O quadro que se apresenta de ntida expanso do objeto da Poltica Criminal,
passando a ser uma abordagem que no apenas se presta produo de legislao penal, mas
como um campo do saber preocupado em compreender o poder punitivo em sua real
complexidade.
O leque de atuao da poltica se abre. Logo, um novo conceito de Poltica Criminal
h de ser mais dilatado e com objetivos diversos do inicialmente idealizado, considerando as
estruturas de poder que envolvem o fenmeno do sistema punitivo. Ensina:
O campo da poltica criminal tem hoje uma amplitude enorme. No cabe mais reduzi-la ao papel de conselheira da sano penal, que se limitaria a indicar ao legislador onde e quando criminalizar condutas. Nem se pode
aceitar a primitiva frmula lisztiana de sua relao com a poltica social: esta
se ocuparia de suprimir ou limitar as condies sociais do crime, enquanto a
poltica criminal s teria por objeto o delinquente individualmente
considerado. 12
Indo um pouco alm, Nilo Batista toma o novo conceito de Poltica Criminal a assumir
expressamente todas as atuaes punitivas de responsabilidade do Estado, inclusive as aes
no oficiais:
Para evitar distores idealistas, no presente estudo a expresso poltica criminal no se referir apenas, como no conceito de ZIPF, obteno e realizao de critrios diretivos no mbito da justia criminal, nela se incluindo o desempenho concreto das agncias pblicas, policiais ou
judicirias, que se encarregam da implementao cotidiana no s dos
critrios diretivos enunciados ao nvel normativo, mas tambm daqueles
outros critrios, silenciados ou negados pelo discurso jurdico, porm
legitimados socialmente pela recorrncia e acatamento de sua aplicao.
Assim, por exemplo, quando a polcia mensalmente executa (valendo-se de
expedientes encobridores os mais diversos, da simulao de confronto ao
chamamento autoria de gangues rivais) um nmero constante de pessoas,
verificando-se ademais que essas pessoas tm a mesma extrao social, faixa
etria e etnia, no se pode deixar de reconhecer que a poltica criminal
11 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 274. 12
BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro. 5. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 35.
18
formulada para e por essa polcia contempla o extermnio como ttica de
aterrorizao e controle do grupo social vitimizado mesmo que a Constituio proclame coisa diferente. Por outro lado, como pioneiramente
entre ns observava HELENO FRAGOSO, a poltica criminal parte da poltica social, e essa conexo melhor diramos continuidade -, pode ser um importante expediente metodolgico para o esclarecimento de seus
programas e objetivos. Retomando o exemplo anterior, a complacncia,
indiferena ou mesmo o aplauso para com rotinas policiais de aterrorizao e
extermnio sinaliza para a incorporao desses instrumentos por parte da
poltica social desenvolvida por mais que indignaes oportunistas ou o sacrifcio peridico de bodes expiatrios procurem sugerir coisa diversa. 13
Nada mais natural concluir que as ditas prticas subterrneas, quando reincidentes,
encontram campo aberto de reproduo incentivada por um silncio eloquente das agncias
estatais de punio. Consequentemente, est no objeto de estudo.
Tudo isto vem inaugurar o entendimento de que o conceito buscado deve atentar para
a coao lcita e a ilcita, o discurso oficial e a atuao mimetizada, ou seja, deve albergar um
objeto amplo, pois s assim se pode compreender o fenmeno real. A proposio de
Zaffaroni:
Em sntese, e levando-se em conta a programao legal, deve-se concluir que o poder configurador ou positivo do sistema penal (o que cumpre a
funo de disciplinarismo verticalizante) exercido margem da legalidade,
de forma arbitrariamente seletiva, porque a prpria lei assim o planifica e
porque o rgo legislativo deixa fora do discurso jurdico-penal amplssimos
mbitos de controle social punitivo. 14
Nesse compasso, o objeto da Poltica Criminal deixa de ser meramente a elaborao e
questionamento de leis penais, para ento englobar todos os conhecimentos relativos s
agncias punitivas e suas funcionalidades.
Poltica Criminal deve ser uma ferramenta de compreenso da mecnica das atuaes
punitivas estatais, o seu currculo deve compreender as incidncias oficiais (declaradas em lei)
e aquelas extraoficiais ( margem da lei), sob pena de no trabalhar com a realidade. 15
Parece lgico que uma cincia com pretenses de avaliar o sistema punitivo e fazer
proposies s agncias oficiais no pode ignorar qualquer das ocorrncias que se
demonstram verdadeiras. Bem por isso, interessa saber as diretrizes formais e as prticas
cotidianas.
13 BATISTA, Nilo. Poltica criminal com derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e
Sociedade, 1 e 2 semestres de 1998, ano 3, n. 5-6, p. 77-78. 14
ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 25. 15
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertao. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2005, p. 44.
19
Esquentar o debate sobre as ilicitudes dos agentes estatais igualmente no serve para
legitimar as licitudes. No se parte aqui do pressuposto de que a poltica criminal adequada
aquela que condiz com as diretrizes legais, bem porque j se perdeu h tempos a iluso de que
a lei corresponde ao justo. Alis, difcil falar em justia quando se trata de dor e sofrimento
artificialmente impostos pelo Estado.
Um conceito diferenciado e abrangente tambm a proposta de Louk Hulsman (1923-
2009) para compreender o objeto da Poltica Criminal, conforme anota:
A poltica criminal , de um lado, parte da mais ampla poltica social, mas, de outro lado, deve conservar certa autonomia em relao a este campo
mais amplo. Uma aproximao prtica neste sentido considerar poltica criminal como uma poltica relativa aos sistemas de justia penal. Uma poltica como esta, em relao ao sistema de justia criminal, deve ser multi-focal: 1. Deve dirigir-se ao desenvolvimento das organizaes que
formam a base material do sistema (a polcia, os tribunais, as prises etc.) e
os sistemas de referncia que elas usam; 2. Deve dirigir-se a questes como:
que tipos de eventos poderiam ser tratados pelo sistema, sob que condies e
de que maneira (sob esta categoria a funo de vigia de porteira da poltica criminal requereria especial ateno). 3. Pode emitir recomendaes sobre a
reorganizao social em outras reas da sociedade em relao a situaes
problemticas que se tenham tornado objeto de debate da poltica
criminal.16
Cabe Poltica Criminal traar anlises e propostas sobre a atuao do poder punitivo,
sendo seu dever se concentrar sobre quaisquer fenmenos que sejam pertinentes a este sistema
irremediavelmente degradante.
A elaborao de uma lei penal, o modo de ao real da polcia e seus desvios do papel
traado, a organizao do poder judicirio e os passos processuais rumo a uma condenao, os
estabelecimentos prisionais e as prestaes de servio comunidade, tudo isso e muito mais
deve ser do interesse de estudo.
Em suma, h de se assumir que a Poltica Criminal no pode mais ser uma fbrica de
idealizao de leis penais, mas um saber direcionado compreenso de todas as
caractersticas do fenmeno punitivo, propondo no apenas modificaes legislativas, mas
direcionando outras tantas atividades estatais que tenham ligao com o poder penal e o
fenmeno crime.
Logo, como ignorar as funes latentes (no declaradas) das penas? Como fechar os
olhos para a seletividade do Direito Penal? Como esquecer as mortes e torturas nos presdios
16 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questo. Niteri:
Luam, 1993, p. 150.
20
to relacionadas gesto do sistema?
Ligar a Poltica Criminal aos estudos e proposies sobre o sistema punitivo permite
tambm reconhecer a presena de trabalhos que bem antes de Liszt j se ocupavam dessas
estratgias. Impossvel negar que o Malleus Maleficarum (1487), em defesa da inquisio, ou
as obras de Nicolau Maquiavel (1469-1527), Jean Bodin (1530-1596), Thomas Hobbes (1588-
1679) e Jacques Bossuet (1627-1704), esses em defesa do absolutismo, j trabalhavam
ensaios de Poltica Criminal, embora no exclusivamente.
Por sua vez, os primeiros e mais destacados autores iluministas a tratarem de tticas
para o poder punitivo foram Cesare Beccaria (1738-1794) e Paul Johann Anselm Ritter von
Feuerbach (1775-1833), quando ento produziram um planejamento de preveno do delito,
pensando a busca de solues reais para conter a criminalidade por meio da punio.
Conclui-se, divergindo do padro tradicional, que o campo da Poltica Criminal deve
ser aquele a recair sobre todas as expresses do largo sistema punitivo, e o primeiro passo
para tanto desconfiar da programao legal. A rotina das perverses punitivas fornece um
traado de condescendncia impronunciada.
Uma anlise de Poltica Criminal somente com base na lei oficial, por exemplo,
levaria concluso de que nos regimes de ditadura militar na Amrica Latina no houve
execues sumrias nem opositores torturados. Este no seria um estudo srio, alis, seria
contraproducente.
1.1.3 Poder punitivo
Tendo-se definido que o objeto da Poltica Criminal passa ser a compreenso real dos
sistemas punitivos, urge consequentemente esclarecer o contedo de tal expresso.
Em linhas gerais, indicam Nilo Batista e Zaffaroni que a coero estatal possui 3 tipos
diferenciados: 1) coero reparadora, ou restitutiva; 2) coero direta, ou policial; e 3) coero
punitiva. 17
Atuar mediante coero reparadora ou restitutiva seria a prpria essncia do poder
estatal nas demandas de natureza cvel. Assim, exemplificando, a fora exercida para impor a
satisfao de uma dvida, tal como a penhora e retirada no consentida da propriedade do ru,
seriam tpicas aes contra a vontade do cidado amplamente aprovadas pelo ordenamento
jurdico.
17 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 101.
21
Como o nome bem indica, tal fora pressupe que o Estado tenha ali apenas a inteno
de devolver o que devido ou ressarcir na justa medida. Permite-se a soluo de um conflito.
J a coero direta, ou policial, trata dos casos em que a fora do Estado reclamada
para deter uma injustia iminente ou que esteja em curso. Tal ocorre classicamente com a
priso em flagrante, quando ento as mos impositivas do agente pblico incidem para conter
um crime em vias de execuo ou que acabou de acontecer. Outra hiptese seria a apreenso
de mercadorias deterioradas expostas ao consumo.
Nestas situaes tem-se o uso da fora contra a vontade do cidado com o objetivo de
frear um mal injusto imediato, uma situao de risco que deve ser contida. um dever
urgente do funcionrio pblico.
Interessa, ao fim, a coero punitiva. Esta sim evoca a fora estatal com um objetivo
bem peculiar: impor sofrimento em funo de um fato pretrito.
Desta feita, toda e qualquer ao das agncias pblicas que vise gerar meramente uma
sano, seja qual for o discurso justificador para tanto, enquadra-se no largo espectro do que
se pode intitular por poder punitivo.
O conjunto de prticas dos rgos estatais na direo da coero punitiva forma
precisamente a definio de sistema punitivo, englobando as aes lcitas (programadas) ou
ilcitas. Da parte a Poltica Criminal.
1.2 Punio e estrutura social
A Histria tem a capacidade de dissolver falsos discursos e devolver o carter poltico
das formaes sociais. A marcha que se inicia agora tem em vista trazer a lume registros do
passado que capacitam uma compreenso esclarecida do presente.
Como flutua evidente em seu prprio nome, o presente subcaptulo segue o
ensinamento de uma das obras mais marcantes de todos os tempos sobre o poder punitivo.
Est-se falando de Punio e estrutura social 18, livro publicado pela primeira vez no ano de
1939. 19
George Rusche (1900-?) e Otto Kirchheimer (1905-1965) foram representantes da
Escola de Frankfurt. A proposta que foi levada a cabo pelos dois, traduzida na grande obra,
representou um ensaio inaugural sobre a correspondncia entre sistema punitivo e meio
18 RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
19 Vide prefcio da obra traduzida para o portugus, foi esta a primeira obra publicada pela Escola de Frankfurt
no perodo de exlio em Nova Iorque, em funo da perseguio nazista.
22
socioeconmico.
No seria muito dizer que o enfoque dos autores abriu um novo campo de pesquisa,
em cujas guas navegariam famosos autores, tais como Michel Foucault (1926-1984),
Alessandro Baratta (1933-2002), Dario Melossi e Massimo Pavarini. Praticamente uma escola
se inicia, sobretudo aps a reedio da obra em 1969.
O vis marcante fora uma abordagem das penas despida de qualquer ideologia,
encarando-as frente a frente em sua manifestao real e situada em seu tempo. Como
decorrncia natural de tal enfoque comprometido, chegou-se a uma concluso:
A transformao em sistemas penais no pode ser explicada somente pela mudana das demandas da luta contra o crime, embora esta luta faa parte do
jogo. Todo sistema de produo tende a descobrir formas punitivas que
correspondem s suas relaes de produo. , pois, necessrio pesquisar a
origem e a fora dos sistemas penais, o uso e a rejeio de certas punies e
a intensidade das prticas penais, uma vez que elas so determinadas por
foras sociais, sobretudo pelas foras econmicas e, consequentemente,
fiscais. 20
Por decorrncia lgica, fica pronunciada a lente por meio da qual todos os registros
histricos passaro. O poder punitivo s se torna compreensvel diante da viso da trama de
poder que o Estado viabiliza.
Antes, porm, bem advertir que a denominao estrutura social no afasta o carter
dinmico constante das disputas de poder que ocorrem em qualquer seio social. As subidas e
descidas, os movimentos cclicos que se apoderam do trono, nada disso esquecido por esta
epistemologia.
O enquadramento socioeconmico dos sistemas penais reforado neste tipo de
estudo. Restam aqui fundamentais todas as foras de trabalho e riqueza, todo esse complexo
mecanismo de controle e distribuio de bens. Explica Vera Andrade:
Trata-se ento de romper com este enfoque jurdico abstrato, no qual a pena concebida como epifenmeno do crime (seja como retribuio
proporcionada a ele ou como sua preveno) para recoloc-la no marco da
relao histrica entre os diversos sistemas punitivos e os sistemas de
produo em que se efetuam, desde a escravido, passando pelo feudalismo
e, em especial, a relao entre o modo de produo capitalista e a afirmao
da priso, a partir do final do sculo XVIII, como mtodo punitivo central. A
20 RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p.
20.
23
pena, superestrutura punitiva, vinculada estrutura econmica da
sociedade e a partir dela explicada. 21
Situar a atuao da gramtica punitiva no campo de batalha material um toque
crucial deste ramo da investigao. Controlar o crime, em outras palavras, tambm uma
metfora para conformar sditos a uma condio de poder socioeconmico. 22
Veja-se que estes registros no tratam de uma nica passagem histrica, so, antes,
afirmaes de um dado estrutural, uma mecnica permanente de qualquer local onde haja um
aparato de imposio de punies pblicas. 23
As lgicas econmicas, produtoras que so de subjetividade, tambm carregam
consigo demandas sociais de incidncia penal. A variar com os ciclos de fartura ou recesso,
sucedem-se altos e baixos na constituio de moralidades pr-punio, fornecendo aquela
adeso social to importante dinmica das criminalizaes.24
As lgicas punitivas
acompanham as estruturas sociais de poder de seu tempo, que por sua vez sempre esto
amalgamadas com os modelos econmicos especficos.
Contribui para tal compreenso a obra mais famosa de Foucault sobre os sistemas
penais: Vigiar e Punir (1975). Tal trabalho foi redigido sob forte influncia das linhas de
Rusche e Kirchheimer, complementando a base precedente com um mergulho especfico a
partir do iluminismo. Urge transcrever um trecho a despontar correlaes rpidas que
traduzem o ritmo necessrio:
Assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mo-de-obra suplementar e constituir uma escravido civil ao lado da que fornecida pelas guerras ou pelo comrcio; com o feudalismo, e
numa poca em que a moeda e a produo esto pouco desenvolvidas,
assistiramos a um brusco crescimento dos castigos corporais sendo o corpo na maior parte dos casos o nico bem acessvel; a casa de correo o Hospital Geral, o Spinhuis ou Rasphuis o trabalho obrigatrio, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de
comrcio. Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mo-de-obra
livre, a parte do trabalho obrigatrio diminuiria no sculo XIX nos
mecanismos de punio, e seria substituda por uma deteno com fim
corretivo. 25
21 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A iluso de segurana jurdica: do controle da violncia violncia do
controle penal. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 193. 22
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. Ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008, p. 125. 23
BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e crtica do direito penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.
161. 24
GIORGI, Alessandro de. A misria governada atravs do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 59. 25
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da priso. 38. Ed. Petrpolis: Vozes, 2010, p. 28.
24
Faz-se, doravante, uma breve investigao contextualizada das penas ocidentais a
partir da Idade Mdia, em cujo apagar das luzes despontou o derradeiro poder punitivo.
1.2.1 O confisco do conflito
Se a histria da humanidade estivesse filmada em todos os seus detalhes, certamente
tais lentes teriam registrado um acontecimento marcante na Europa da baixa Idade Mdia: o
confisco do conflito.
Apesar da divergncia sobre o exato acontecimento que representa o nascimento da
Inquisio26
, h uma constante referncia ao sculo XIII como o perodo de deflagrao de
uma nova lgica sobre o tratamento dos conflitos humanos:
Desde o sculo XIII, quando, definitivamente, deixou de ser um julgamento de partes com mediao da autoridade para converter-se em um exerccio de
poder no qual a autoridade suprimiu uma das partes (a vtima), e mais ainda,
desde sua reformulao moderna a partir de sculo XVIII, o discurso
jurdico-penal sempre se baseou em fices e metforas, ou seja, em
elementos inventados ou trazidos de fora, sem nunca operar com dados
concretos da realidade social. 27
Nesta poca se espalha na Europa o modelo de abordagem de conflitos que se
direciona contra a prtica de interao imediata entre as partes. A conciliao havia sido o
modelo tpico da Idade Mdia, por grande influncia do mtodo de disputa direta advinda do
velho Direito Germnico.
Pontua-se tal expropriao da vtima como trao fundamental do modelo de inqurito,
que no era exatamente uma novidade da poca. Como se sabe, houve mtodos parecidos na
Grcia antiga, os quais ficaram esquecidos por muitos sculos. 28
Diferentemente do mtodo grego, a nova inquisio criaria um conhecimento racional
mais elaborado, ganhando expanso progressiva a abraar propores nunca antes vistas,
atuando amplamente nas relaes sociais.
Nesse mpeto, a figura da vtima teria sido excluda no trato das contendas sociais, de
maneira que um poder acima das pessoas envolvidas avocava para si o papel determinante na
imposio de consequncias advindas da desavena. Um terceiro elemento toma a cadeira na
26 BATISTA, Nilo. Matrizes ibricas do sistema penal brasileiro - I. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2002, p.
245. 27
ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 48. 28
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. 3. Ed. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002, p. 55.
25
disputa.
O papel secundrio dado vtima a marca forte de tal passagem histrica, sua
excluso interpretada como um confisco, uma retirada forada de quem foi afetado,
entrando no seu lugar a organismo que est acima dos sditos.
Em A verdade e as formas jurdicas, Michel Foucault colabora dando quatro pontos
cruciais para descrever a grande mudana operada no incio do sculo XIII. Segundo ele,
surgem ali: 1) um rgo de justia que impe do alto, submetendo os indivduos sua forma
de regular os litgios; 2) o procurador, figura representante do poder que substitui a vtima;
3) a noo de infrao; e 4) a demanda do soberano por reparao (multa). 29
Elevava-se uma instituio central com poder hierarquicamente superior aos cidados,
s comparvel extinta Roma. H uma organizao crescente nesta direo, construindo o
que se pode chamar de poder punitivo. Segue o registro:
Por isso, a Europa, para iniciar o processo de mundializao do poder, teve antes de reordenar suas sociedades com base numa forte hierarquizao,
muito semelhante a uma organizao militar (corporativizao das
sociedades), para o que retomou um exerccio de poder interno que fora
praticado pela grande potncia conquistadora precedente (Roma) e que, com
o fim daquele imprio, havia desaparecido: isto , o poder punitivo. 30
A pessoa lesada na contenda passa logo a figurar como mero dado justificador de um
processo punitivo, o silncio imposto vem no compasso de um ente que precisava se afirmar
sobre os cidados. Via-se ali o embrio dos Estados absolutos, o ressurgimento do poder de
punir.
A retirada de cena da vtima foi fundamental, portanto, para criar condies ao Estado
de afirmar que essa conduta me afeta mais do que afeta ao indivduo particular 31. A est o
enredo que carrega toda uma nova atitude para determinar a verdade, agora legitimada pela
suposta proteo geral.
Estava sendo gestado o Estado Absoluto, carregado por novas instituies e
burocracias. Esta centralizao do poder proporcionaria a ascenso dos futuros aparatos
penais especializados, tais como os juzos criminais.
A nova forma de lidar com os embates humanos aglutinava poderes, tal cartada
pressupunha igualmente formas especficas de conhecimento da verdade, vinculadas a certos
29 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. 3. Ed. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002, p. 65-66.
30 ZAFFARONI, Eugenio Ral. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 30.
31 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 24.
26
mtodos e crenas. O inqurito possua seus prprios meios de alcanar a verdade.
A nova soberania logo aprendeu que para impor autoridade seria fundamental o uso da
mquina punitiva. Um poder nico demandava a superao das justias locais, era preciso
controlar de forma ampla. Assim se construiu um monoplio crescente.
A marcha poltica ditada no perodo compreende um caminhar (no isento de disputas)
entre a Igreja e o rei. No custa lembrar que a caa de hereges igualmente forneceu bases
para uma constante afirmao do controle sobre a vida alheia. deste sculo o famoso IV
Conclio de Latro (1215), mediante o qual a Igreja espalhava sua rede ao impor a todos a
confisso secreta com o sacerdote. Saber poder, sobretudo quando se sabe a intimidade de
toda a populao.
Igualmente impossvel negligenciar a fora da Igreja Catlica expressada na
perseguio das bruxas. Como ensina a melhor escola, o modelo absoluto inquisitorial
consolidou-se na baixa Idade Mdia mediante a discriminao e represso da metade da
espcie humana. 32
A figura do herege forjava o inimigo interno contra o qual todos lutavam. O pecador
podia ser qualquer transeunte, o poder estava armado e habilitado a alcanar seus clientes. Ter
em mos essa figura elstica de oposio ao novo regime foi uma ferramenta fundamental ao
despejar controlador das penas estatais, ningum poderia ir em sentido contrrio.
Anota-se ainda a fabricao de um novo funcionrio estatal, determinante na lgica
das punies pblicas. Ao apagar da vtima no conflito, ascende-se a figura do acusador,
aquele responsvel pela voz dos ofendidos.
Conhecido como procurador do rei, esta semente dos primrdios do Ministrio
Pblico traduz uma novidade do absolutismo:
Desde ento, e at hoje, a justia no ser mais a luta entre indivduos e a livre aceitao da resoluo por parte daqueles, mas sim a eles ser imposta
uma resoluo de um poder exterior, judicial e poltico. Surge ento uma
figura totalmente nova, que no tinha precedentes nem no Imprio Romano:
o procurador do rei. 33
A investigao e o processo no mais dependem da vontade do ofendido. O ru,
doravante, enfrenta o acusador em evidente posio de subalterno, um objeto a ser
32 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 512. 33
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 44.
27
desvendado, podendo-se para tanto utilizar amplamente dos mtodos mais especiais de
tortura. Na lide processual, se que assim pode ser denominada, o trato verticalizado, longe
de um debate entre iguais.
Cabe registrar, ainda, que a figura do procurador veio substituir no apenas a vtima na
resoluo dos conflitos, pois sua atuao ao mesmo tempo exclua outros personagens
historicamente portadores de poder punitivo, tais como a figura do pater familia, os senhores
de escravos, bem como os senhores feudais.
Anitua lembra que faz parte dessa nova malha do poder o surgimento das
universidades europeias. As cincias logo dariam sua contribuio para selar a novel
estrutura, brotam os cursos de Direito por todo canto do velho continente. Dentre as mais
destacadas, registra-se a partir deste perodo as universidades de Bolonha, Pdua, Roma,
Palncia, Salamanca, Lrida, Paris, Oxford, Cambridge, Viena, Praga, Colnia. 34
O conhecimento acadmico, a pretexto de desenvolver mtodos de racionalidade,
preparou legitimaes do poder rigoroso pelo qual escoaram penas atrozes e mtodos
violentos de extrao da verdade, numa arbitrariedade mascarada de legalidade ou de
publicidade da ao penal. 35
Retomando a sequncia foucaultiana, o terceiro marco fulcral do mtodo de confisco
do conflito foi a noo de infrao. fcil compreender que tal formao pblica das
punies promoveria uma tentativa de padronizao moral, vrias condutas isoladas passam
ento a ser marcadas como possuidoras de relevncia geral.
Mais do que uma ofensa a um cidado, a conduta criminosa considerada uma ofensa
soberania como um todo. Isto gera a funcionalidade de se vincular certas aes a uma
necessria atuao das mos do soberano.
Detectam-se novos conceitos de culpa e inocncia, tudo no ensejo de uma
imposio de valores bem interessantes ao poder. Cometer um crime aviltar a ordem, a
sociedade e a lei.
Por fim, completa o ciclo de apropriao do conflito a inveno da necessidade de
reparao do soberano como consequncia necessria do crime. Os confiscos e as multas
esto no conjunto das novidades, vertendo numerosas fatias da riqueza privada para os bolsos
do Estado, engordando os palcios.
34 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 47. 35
ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 501.
28
Segundo Nilo Batista, diante de todo esse quadro originrio, estava dado o incio do
milnio do poder punitivo moderno. A fonte primria seria propriamente a expropriao do
conflito:
Todos sabemos que o segundo milnio foi o milnio do poder punitivo, que se desenvolveu em seus primeiros sculos como resultado do confisco das
vtimas, ou seja, com a pena pblica com que o Estado assumiu ou usurpou o lugar da vtima. 36
No h como negar que a costura do poder inquisidor, na infncia dos Estados
Nacionais, deixa fios aparentes no sistema de justia penal contemporneo. A despeito da
extino oficial dos julgamentos religiosos, h uma permanncia incontestvel:
No entanto, embora as prticas inquisitoriais sejam formalmente erradicadas no sculo XIX, quando os Tribunais do Santo Ofcio so
definitivamente abolidos em Portugal (1821) e Espanha (1834), sua matriz
material e ideolgica predominar na legislao laica, orientando a tessitura
dos sistemas penais da modernidade. 37
O giro proporcionado por tais aspectos do confisco do conflito certamente um dado
que atravessa os sculos, sendo fundamental tal visualizao histrica para se compreender os
caminhos estruturais do poder punitivo.
1.2.2 Sucesso histrica das punies
A economia em largo perodo medieval foi predominantemente agrria. O regime de
feudos e a produo em vistas do autossustento foi o que ditou as relaes materiais, at sofrer
choques sucessivos na baixa Idade Mdia.
O xodo rural e o crescimento dos centros urbanos gerou uma massa de despossudos
como nunca se tinha visto; tal fenmeno j era realidade na Europa no sculo XIV e sua
ocorrncia no se paralisou to cedo.
Tal caminhar para as cidades encontra uma srie de justificativas histricas, dentre
elas, cita-se um aparente esgotamento do solo e o decrscimo das colheitas. O aumento
populacional tambm foi fator presente nessa mudana, j no havia novas terras a serem
36 BATISTA, Nilo. Matrizes ibricas do sistema penal brasileiro - I. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2002, p.
13. 37
CARAVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 57.
29
ocupadas e o sistema rotativo de plantao parecia no dar conta da demanda.
A progressiva escassez de terras e o mercado de consumo alargado nas cidades tornou
a terra um bem mais valioso, que no estava acessvel a todos. Esta valorizao ainda
cresceria com o cercamento dos campos e a cultura pecuarista por volta do sculo XV.
O aumento populacional urbano aqueceu obviamente o mercado. O comrcio se
tornou uma atividade mais intensa, as manufaturas ganharam relevo e proporcionaram a
ascenso de um novo grupo seleto de pessoas enriquecidas nos burgos. Com uma multido de
desocupados, foi fcil se apropriar da mo de obra.
A misria alastrada e o aprofundar das desigualdades sociais indicou um crescimento
da rapina, bem como uma massa populacional disponvel formao dos exrcitos to
importantes ao fortalecimento do poder central. 38
No tocante ao sistema de punies, cabe guardar em mente que at o surgimento da
Inquisio, a histria da Europa medieval registrou um poder altamente capilarizado. A rede
de suserania e vassalagem, a servido, a organizao em feudos, tudo isso conduzia
predominncia de relaes mais horizontais.
Interessante lembrar que antes do sculo XIII o foco estava na conciliao, em vista da
reconstruo da paz alterada. O objetivo era apenas trazer novamente a convivncia tranquila,
ainda no se via a figura do crime como smbolo pblico. Vigia o sistema de reparao39
, de
mtodos compensatrios40
.
As relaes humanas medievais remetiam predominncia da resoluo de conflitos
mediante fiana e indenizao; tais modalidades comearam a ser substitudas quando
surgiram maiores dificuldades materiais aos indivduos menos abastados. 41
O acentuar das diferenas sociais no findar da Idade Mdia remeteu incapacidade de
alguns cidados arcarem com as ditas fianas, o que teria gerado campo frtil para o
crescimento das punies corporais. Como no podiam mais pagar com a produo, teriam
que pagar com o corpo.
S se consegue entender a passagem do regime de conciliao entre partes e
ressarcimentos pecunirios para o modelo de punies pblicas quando se recordam os passos
38 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 74. 39
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e fbrica: as origens do sistema penitencirio (sculos XVI
XIX). Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006, p. 22. 40
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questo. Niteri:
Luam, 1993, p. 120. 41
RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p.
25.
30
para a centralizao do poder.
Conforme se esboa nestas poucas linhas, as reconfiguraes econmicas e sociais
conduzem reduo do poder privado, ao mesmo tempo em que os reis ganhavam na Igreja,
na burguesia e na nobreza os adeptos suficientes para esta acumulao de fora.
Como est registrado em Punio e Estrutura Social, trs aspectos foram
predominantes para uma mudana na organizao do poder no final da Idade Mdia: 1)
elevado crescimento do exerccio da disciplina do senhor feudal sobre seus servos,
substituindo a arbitragem privada; 2) fortalecimento das autoridades centrais para ganhar
influncia por meio do Direito; 3) interesse do Estado na receita fiscal advinda dos conflitos.42
A Idade Moderna se principia nos ares do sculo XV, e com ela uma nova lgica de
Estado. Uma engenharia poltica e econmica diferenciada se desenvolve a partir deste ponto,
o capitalismo comea a delinear definitivamente sua face.
Na compreenso deste perodo, no se pode fugir dos escritos de Karl Marx (1818-
1883), cuidando detalhadamente das reviravoltas sociais empreendidas numa lgica de
mercado, ao ensejo da dita acumulao primitiva do capital:
Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas, e a populao vadia ficou finalmente sem ter outra coisa para vender alm da prpria pele. Temos a o
pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa pobre e,
apesar de se esfalfar, s tem para vender a prpria fora de trabalho,
enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora tenham esses
poucos parado de trabalhar h muito tempo. 43
O modelo assalariado se fixa nas cidades, eis que o desequilbrio econmico e a
misria haviam se instalado de forma normalizada. A produo aumentava e os custos se
reduziam com um grande contingente de empregados em potencial.
O volumoso incremento do comrcio propiciou expanso do mercado e da busca de
matrias primas, explorar outras fronteiras virou a programao do capital. O fortalecimento
dos Estados Nacionais viabilizaria em definitivo este empreendimento conhecido como
capitalismo mercantil, que j vinha delineando seus traos iniciais na baixa Idade Mdia.
Nesta fase est o princpio das grandes navegaes, aparecendo o colonialismo como
42 RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p.
25. 43
MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica livro I. 23. Ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009, p. 827.
31
selo de principalmente duas grandes monarquias europeias: Portugal e Espanha.44
A Amrica
e as ndias orientais se tornaram campo frtil de fornecimento de produtos valorizados na
Europa.
Passo a passo, o sistema de penas pblicas acompanha tais inovaes. Pode-se pontuar
duas modalidades de punio diretamente relacionadas com o advento das navegaes para as
colnias: as gals e o degredo.
A exploso do nmero de embarcaes cujo motor humano era o combustvel
principal despertou o desejo das monarquias em aproveitar o campo de criminalizados que se
expandia. Logo, massas de condenados eram despejadas nos pores dos navios oficiais a
fortalecer o ritmo nas mars. 45
Ainda, a medida das conquistas e a necessria colonizao para explorar igualmente
aguou a caneta real na direo das penas de degredo. Nesses termos, expulsar do reino em
direo s colnias foi uma penitncia economicamente fundamental para o sucesso da
incorporao de novas terras e o verter de suas riquezas. Mais uma vez, as palavras abalizadas
nos conduzem a compreenses amplas do fenmeno:
A histria da deportao inglesa d-nos um quadro claro e direto dos efeitos da mudana social e das condies econmicas sobre a poltica criminal. O
ponto de partida era a impossibilidade de acomodar o crescimento do
nmero de criminosos nas prises existentes numa poca em que o mercado
de trabalho estava saturado. Se os prisioneiros no seriam executados hiptese no mais aceita pela opinio pblica, antes mesmo do que por
motivos humanitrios -, a nica soluo para eles era o banimento do pas.
Por um tempo, esta soluo coincidiu com a necessidade de fora de trabalho
nas colnias. 46
Ao mesmo tempo, o rigor dos suplcios fazia a funo de esplendor do poder do
soberano. A exposio pblica de horror como mensagem multido de sditos foi uma
constante durante todo o perodo de pena pblica at a revoluo burguesa.
Foucault bem registra que, de alguma forma, neste perodo todo delito era considerado
como portador de certo grau de regicdio. 47
Por isso, era preciso reafirmar nas praas o terror
de quem ousara subverter a ordem.
Os espetculos de excesso dos suplcios encontraram vrias formas mais agudas, todas
44 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 394. 45
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 120. 46
RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p.
172. 47
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da priso. 28. Ed. Petrpolis: Vozes, 2004, p. 46.
32
com traos de tortura, dentre elas: os aoites, as queimaduras, a roda, o desmembramento e a
forca.
A expresso do rigor para governar largas populaes ficaria evidenciada em vrios
trechos da secular obra de Maquiavel (1469-1527). Lembre-se a defesa do necessrio temor
social como ltima sada:
Chegamos assim questo de saber se melhor ser amado do que temido. A resposta que seria desejvel ser ao mesmo tempo amado e temido, mas
que, como tal combinao difcil, muito mais seguro ser temido, se for
preciso optar. 48
O Estado absoluto ganhava vida como nunca49
, a centralizao do poder vai no
compasso do amplo apoio das classes mais favorecidas e capitalizadas. O apogeu desta forma
de organizao se deu com o tratado de Westflia (1648), quando houve o reconhecimento
definitivo dos Estados Nacionais.50
O crescimento da burguesia e dos grupos econmicos advindos da mecnica da Idade
Moderna foraria um novo movimento a desaguar no que os historiadores chamam de Idade
Contempornea (a partir do sculo XVIII), e com ela uma nova forma de Estado.
A marca da Idade Contempornea a ascenso triunfal da burguesia. A revoluo
industrial promove caminhos que no podiam mais sustentar monarcas autoritrios e
privilgios da nobreza, a nova ordem social vinha junto a uma reformulada organizao
poltica.
Consolidada a chamada acumulao primitiva, a economia ganha novos donos e
nova determinao. As fbricas promovem um amplo rearranjo nas relaes de trabalho, em
verdade, nas relaes humanas como um todo. Definitivamente, o capitalismo se torna o
timbre desse materialismo contemporneo, e a burguesia a dona da voz.
Com a inovao dos maquinrios e o desenvolvimento da energia a vapor, conjugado
com o crescimento dos mercados mundiais e dos grandes centros urbanos, estava suplantado o
sistema da pequena manufatura pelos exrcitos industriais modernos. Um antagonismo se
instala: proletrios X proprietrios dos meios de produo. 51
O novo tipo de riqueza, no tanto representado por terras, espcies monetrias ou
48 MAQUIAVEL, Nicolau. O prncipe. So Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 102.
49 Recorde-se a figura de Luiz XIV (1638-1715) da Frana e sua suposta afirmao a traduzir imponncia:
"L'tat c'est moi" (o Estado sou eu). 50
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 90. 51
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. So Paulo: Boitempo, 2005, p. 40.
33
letras de cmbio, mas por mercadorias, estoques, mquinas, matrias-primas, sugere um
renovado controle sobre a populao. A incurso criminalizante liberal tem ligao direta com
a nova distribuio espacial e social da riqueza industrial. 52
Com o sistema capitalista devidamente instalado, no difcil imaginar a concentrao
de riquezas potencializada, gerando mais misria e explorao. Preservar tal sistema s seria
possvel, obviamente, com o apoio das mos pesadas do Estado, como efetivamente ocorreu.
Tal conjugao est na essncia deste tipo de organizao social.
O Estado relacionado a esta nova lgica socioeconmica de produo alinhou um
sistema punitivo peculiar, que agora precisaria buscar tcnicas de domesticao do proletrio,
pois ele a pea fundamental na extrao de mais valia e gerao de riquezas. Conforme se
explica:
O industrialismo no precisava conquistar, mas sim explorar, e as guerras recrudesceram como efeito direto da disputa pela obteno de mercados ou
matrias-primas. Seu disciplinamento mais sutil em relao ao da
revoluo mercantil: no se centra na programao da seleo de inimigos
para elimin-los, mas na submisso de massas e naes para incorpor-las
sua tecnologia e torn-las funcionais para o poder industrial. Seu principal
objetivo no matar, mas domesticar para explorar. Isso tende a criar uma
humanizao das penas: do corpo se passa alma, e a pena privativa de
liberdade se expande. 53
Precisando de seu exrcito reserva de mo de obra, as punies declinam dos
suplcios para uma forma traduzida em penas humanitrias, cuja funcionalidade era
contribuir com a disciplina necessria para a indstria.
Se por um lado a guilhotina de Maria Antonieta foi o simblico instrumento de
execuo pblica da revoluo francesa, por outro a priso foi a pena eleita pela burguesia
para manter seu controle social, controle de subjetividade. 54
Historicamente, o crcere representava uma medida cautelar, a conter o sujeito
investigado por determinado crime apenas enquanto no houvesse sentena definitiva.
As primeiras referncias priso como sano remetem ao Direito Cannico, quando
ento o recolhimento imposto aos clrigos desviantes era tido como uma forma de penitncia
at que o culpado se arrependesse. certo que, ainda neste perodo, a priso no possua um
52 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. 3. Ed. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002, p. 100.
53 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 395. 54
Neste ponto, vale destacar que o surgimento da pena de priso representou um avano na humanizao das
punies pblicas, comparadas aos suplcios at ento vigentes.
34
carter pblico e ignorava qualquer correlao com o trabalho intramuros. 55
As casas de correo so os mais importantes referenciais de como a priso e o
capitalismo possuem uma gnese ladeada, o que j se via antes mesmo da Idade
Contempornea. Cita-se a Bridewell inglesa (sc. XVI), o Hpital Gnral francs (sc. XVII)
e a Rasp-huis holandesa (sc. XVII) como locais de internao com trabalho compulsrio que
influenciaram na posterior definio das prises do perodo iluminista. De fato, essas casas
tinham o condo de introduzir a disciplina capitalista de produo. 56
Dentre as vrias obras que explicam a compreensvel correlao entre o
desenvolvimento industrial e o uso das prises, de se apontar Crcere e Fbrica como das
mais completas e profundas que os estudos de Poltica Criminal j conheceram. A obra
conjunta de Dario Melossi e Massimo Pavarini aborda a gnese e o desenrolar do sistema
penitencirio, deflagrando a interessante correlao entre prender e regular o mercado de
trabalho. Sob ntida influncia de Pashukanis, os autores destacam:
A ideia da privao de um quantum de liberdade, determinado de modo abstrato, como hiptese dominante de sano penal, s pode realizar-se de
fato com o advento do sistema capitalista de produo, ou seja, naquele
processo econmico em que todas as formas da riqueza social so devolvidas
forma mais simples e abstrata do trabalho humano medido no tempo. 57
O desuso dos suplcios tambm significava evitar aquela perniciosa identificao da
populao com o criminalizado. Tais espetculos pblicos desapareceram no incio do sculo
XIX, o que Foucault chamou de poca da sobriedade punitiva. 58
Nos dizeres do filsofo francs, era o tempo da sociedade disciplinar. O momento
estava para um controle mais minucioso, de forma que o alvo agora era a alma do condenado,
criando uma mecnica de sujeies mais til aos interesses das classes poderosas do capital. A
gesto da pena deve funcionar como um treinamento do corpo: Pois no mais o corpo, a
alma. expiao que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue,
profundamente, sobre o corao, o intelecto, a vontade, as disposies. 59
Desenha-se o giro dos suplcios para a priso, ao passo em que a formao da nova
55 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e fbrica: as origens do sistema penitencirio (sculos XVI
XIX). Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006, p. 24. 56
RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p.
136. 57
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e fbrica: as origens do sistema penitencirio (sculos XVI
XIX). Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006, p. 262. 58
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da priso. 38. Ed. Petrpolis: Vozes, 2010, p. 16. 59
Ibid., p. 18.
35
subjetividade social capitalista permite uma estratgia to silenciosa quanto eficaz. A priso
se torna o centro dos castigos, como se passa at os dias correntes (mais do que nunca).
A tecnologia minuciosa de dominao do tempo do prisioneiro o grande alvo do
crcere. exemplar outra passagem da obra de Foucault, onde se deixa bem claro que o
empreendimento das prises nada mais do que uma forma mais inteligente de gerir as
infraes pblicas, o panoptismo social:
Deveramos ento supor que a priso e de uma maneira geral, sem dvida, os castigos, no se destinam a suprimir as infraes; mas antes a distingu-
las, a distribu-las, a utiliz-las; que visam, no tanto tornar dceis os que
esto prontos para transgredir as leis, mas que tendem a organizar a
transgresso das leis numa ttica geral das sujeies. 60
Tambm Alessandro Baratta acentua a necessidade que o sistema capitalista tem de
permanentemente manter uma quantidade de marginais e de desempregados. Portanto, cai por
terra a ideologia de superao/preveno dos crimes por meio das penas. 61
Para arrematar esta explicao sobre a parceria vitoriosa entre a priso e o capital,
lembrem-se as frases finais de Melossi e Pavarini: E finalmente: a fbrica para o operrio
como um crcere (perda da liberdade e subordinao): o crcere para o interno como uma
fbrica (trabalho e disciplina). 62
Tem-se, assim, aps esta sucinta passagem sobre as espcies de punio nas Idades
Mdia, Moderna e Contempornea, um quadro de correlao entre sistema punitivo e
estrutura social, fator este que se afigura como imprescindvel para uma compreenso racional
dos caminhos da Poltica Criminal.
Em outras palavras, desde a dita apropriao do conflito, os sistemas punitivos
compem um dos pilares fundamentais da composio dos Estados.
1.3 Pensamentos criminolgicos
1.3.1 Etiologia legitimante
A organizao dos Estados e seus sistemas punitivos nunca desprezou a necessidade
60 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da priso. 38. Ed. Petrpolis: Vozes, 2010, p. 226.
61 BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e crtica do direito penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.
190. 62
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e fbrica: as origens do sistema penitencirio (sculos XVI
XIX). Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006, p. 266.
36
de ocultar sua real funcionalidade em relao s suas vtimas. Logo, a lgica da submisso
imposta tambm necessita produzir seus discursos de ocultao da engenharia de poder, a
perpetuao da dominao demanda renegar ideologicamente sua essncia poltica.
Os dois maiores mecanismos despolitizantes dos sistemas criminais so: a
Criminologia etiolgica e o Direito Penal legitimador. O presente item visa trabalhar o
primeiro deles.
Uma adequada compreenso de Poltica Criminal pressupe a verificao de todos os
argumentos que legitimam suas prticas e tradicionalmente encobrem sua real funo. Nesse
sentido, pode-se apontar a atuao da Criminologia como uma primeira pea importante neste
jogo de cartas marcadas.
O termo Criminologia foi utilizado pela primeira vez como ttulo de um livro em
1885, cuja autoria remete a Raffaele Garofalo (1851-1934). Entretanto, atribui-se ao francs
Paul Topinard (1830-1911) o primeiro uso da palavra como representao de uma cincia, em
1889, como afirma Rosa del Olmo. 63
Buscando bem antes sua origem, famoso o posicionamento de Zaffaroni e Batista ao
indicar que o primeiro discurso de cunho criminolgico consiste no Malleus Maleficarum
(Martelo das feiticeiras), obra produzida pelos inquisidores Heinrich Kraemer e James
Sprenger em 1487. 64
No livro mencionado, havia um longo desenvolvimento de como se identificar os
traos diablicos65
das bruxas, classe esta que seria o grande alvo do sistema punitivo da
poca. Nesse sentido, sua verdadeira meta era autorizar as torturas e as fogueiras que
perseguiam as mulheres hostis ao rgido padro de poder do Santo Ofcio.
Diversamente, merece ateno o posicionamento de Lola Aniyar de Castro, segundo a
qual o surgimento da criminologia foi realizado pelos penalistas ilustrados do sculo XVIII,
em suas prprias palavras:
Como dissemos, esta funo legitimadora comea com a escola clssica do direito penal. Essa escola, como se sabe, afasta-se da considerao
particularizada do homem delinquente e limita-se a tarifar ou a pr um preo
na conduta definida como delitiva, sobre a base de um livre-arbtrio que
justificaria, por si s, a responsabilidade legal, e portanto o direito de
punir.66
63 OLMO, Rosa del. A Amrica Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004, p. 38.
64 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 510. 65
A se lembrar o punto diablico, marca no corpo por onde o mal havia entrado, comprovao da heresia. 66
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertao. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2005, p. 44.
37
A referncia mais comum da origem dos pensamentos criminolgicos, entretanto, est
na obra Luomo delinquente (O homem delinquente), do mdico italiano Cesare Lombroso
(1836-1909), publicada pela primeira vez em 1876. 67
Estava dado o impulso primordial da chamada Antropologia criminal, sinnimo da
criminologia positivista no perodo inaugural. Focava-se a perseguio das origens do crime
em dados biolgicos, o que explica a atuao da frenologia68
nesta primeira fase.
Alm de Garofalo e Lombroso, j citados, um terceiro representante da famosa
Escola Positiva italiana foi Enrico Ferri (1856-1929), cujos estudos indicavam que o delito
era um sintoma de periculosidade. A trade de escritores constitua um ncleo de pensamentos
direcionados para as explicaes cientficas das inclinaes criminosas, tudo isto com uma
forte marca da influncia do discurso mdico. 69
A fuso entre Direito e Medicina foi o mtodo exordial dos criminlogos positivistas.
Como igualmente acentuou Anitua:
A linguagem criminolgica se constituiu sobre uma matriz mdica e, dessa maneira, o criminoso se converteria no germe ou agente patolgico contra o qual a sociedade deveria desenvolver a sua defesa para controlar os focos da infeco e contgio. 70
A configurao toda calcada no que se pode chamar de um discurso de Criminologia
etiolgica, em outras palavras, um discurso que foca nas pretensas causas do crime. Este
trao congnito da nova cincia se traduzia inegavelmente numa opo poltica.
Ao atrelar a realizao do crime a uma expresso interior e quase inevitvel da
personalidade criminosa, o positivismo criminolgico cirurgicamente se apartava do
pensamento clssico de livre-arbtrio, para assumir uma postura determinista. Promovia-se
assim uma naturalizao do crime, oportuna ao poder do Estado.
Se o foco dos iluministas estava na preveno geral, para os positivistas o objetivo era
corrigir, moldar, adequar sociedade. A est a famosa ortopedia social. No toa que
Salo de Carvalho identifica esta tica inovadora que estava em curso da seguinte forma:
67 Nesse sentido: SHECAIRA, Srgio Salomo. Criminologia. 2. ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2008, p. 82. MUOZ CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. Introduo Criminologia. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008, p. 24. 68
Cincia calcada no estudo das medidas do crnio humano, buscando correspondncias com a personalidade. 69
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma histria. Rio de
Janeiro: Revan, 2003, p. 162. 70
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histrias dos pensamentos criminolgicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008, p. 379.
38
O papel da criminologia tradicional, ao longo da histria do direito penal moderno, foi justificar as prticas punitivas sob a perspectiva do falso
humanismo representado pelo discurso ressocializador. A criminologia
etiolgica incorporou-se, subliminar e invisivelmente, como discurso
orientador das fases legislativa, judicial e executiva, fixando a ideia da pena
clnica e correcional. 71
Tal dispositivo correspondeu ao mtodo ideal de encobrir uma intencionalidade
interessante ao controle dos miserveis. bom avisar que todo o paradigma criminolgico
clssico trazido ao ensejo das pretenses polticas das corporaes hegemnicas de seu
tempo, segundo interesses de classe. 72
Para comear, quadra resgatar o foco racista presente em tais saberes. Esta
peculiaridade se moldava s pretenses do etnocentrismo europeu em sua novel expanso
para o alm-mar, tambm conhecida como Neocolonialismo. Nestes termos:
A burguesia industrial, assumindo o poder hegemnico nas sociedades centrais, lanou-se expanso neocolonialista de seu poder por todo o
planeta. O etnocentrismo foi consequncia inevitvel da necessidade de
identificar a prpria cultura como superior para legitimar o domnio mundial,
do mesmo modo que para verticalizar o controle social dentro das prprias
sociedades centrais (reprimindo a dissidncia poltica e a coalizo dos
segmentos subalternos). 73
As elites lanavam mo do status cientfico (saber-poder) de grandes expoentes para
confirmar a suposta inferioridade fsica e moral dos que no pertenciam ao seu meio. Deste
jeito eram moldadas as figuras do inimigo, e com elas as adequadas solues (penas) para
cada caso.
No gera surpresa lembrar que tais discursos efetuaram justificativas para perseguio
de opositores do sistema74
. Como esquecer o livro de Lombroso que em tese descobria traos
criminosos nos anarquistas? 75
A vala comum das teorias era focar nos esteretipos criminais dos pobres como
tradutores de uma mala vita. Toda e qualquer prtica das classes baixas quase
automaticamente se transforma num pretexto de criminalizao: mendicncia, alcoolismo,
71 CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 127.
72 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 277. 73
Ibid., p. 553. 74
Lembre-se que no Brasil escravocrata foram criminalizadas as manifestaes africanas. Ver em: MALAGUTI
BATISTA, Vera. O realismo marginal: Criminologia, sociologia e histria na periferia do capitalismo. In:
MELLO, Marcelo (org.) Sociologia e Direito: explorando intersees. Niteri: PPGSD/UFF, 2007, p. 6. 75
Gli anarchisti, de 1895.
39
prostituio, etc. 76
Mas a identidade das teorias etiolgicas justamente sua distncia da essncia poltica
do sistema punitivo, mascarando contextos econmicos e sociais que permeiam a lgica de
Estado.
A linguagem cientfica legitimante , via se consequncia, instrumento fundamental na
realizao da hegemonia dos grupos que esto no poder. No tocante ao poder punitivo, a
passagem da Criminologi