Post on 09-Oct-2015
tf iM l I lm iN lu ' t r u l l , MJH
Tliuln orl^lnii! /. Dniuii th In Thihii'lv l.llli'nilinv '/ Sons (.a mm ti ii
1999 dst tniduAo brsiNllelru I clllom Ul'Mti
Este livro on parte dele nflo pode ser reproduzido por
qualquer meio sem autorizao e.scrita do I'd it or
Compagnon, Antoine
C736d O demnio da teoria: literatura e senso comum/ Antoine Compagnon; traduo de Cleonice Paes Barreto Mouro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
305p. - (Humanitas)
Traduo de: Le dmon de la thorie: littrature et sens commun
1. Literatura - Teoria I. Mouro, Cleonice Paes Barreto II. Ttulo III. Srie
CDD: 801 CDU: 82
Catalogao na publicao: Diviso de Planejamento
e Divulgao da Biblioteca Universitria - UFMG
ISBN: 85-7041-184-7
EDITORAO DE TEXTO
Ana Maria de Moraes
PROJETO GRFICO
Glria Campos - Mang CAPA
Paulo Schmidt
ILUSTRAO DA CAPA
Jos Alberto Nemer, sem ttulo, aquarela sobre papel, 110x75cm, 1993,
foto Rui Cezar dos Santos, coleo Helvcio Belizrio
REVISO DE TEXTO E NORMALIZAO
Simone de Almeida Gomes
REVISO DE PROVAS
Lilian Valderez Felcio
Maria Stela Souza Reis
PRODUO GRFICA
Jonas Rodrigues Fris
FORMATAO
Marcelo Belico
EDITORA UFMG
Av. Antnio Carlos, 6627 - Biblioteca Central - sala 405
Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 499-4650 - Fax: (31) 499-4768
E-ma.il: Editora@bu.ufmg.br
http://www.editoras.com/ufmg
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor: Francisco Csar de S Barreto
Vice-Reitora: Ana Lcia Almeida Gazzola
CONSELHO EDITORIAL
Triui-AiuCarlos Antnio Leite Brando, Heitor Capuzzo Filho, lleloisa Maria Murgel Starling, Luiz Otvio
Fagundes Amaral, Manoel Otvio da Costa Rocha, Maria Helena Damasceno e Silva Megale,
Romeu Cardoso Guimares, Silvana Maria Leal Cser, Wander Melo Miranda (Presidente)SliPIJNTIW
Antnio Luiz Pinho Ribeiro, Beatriz Rezende Dantas, Cristiano Machado Gontijo,
Leonardo Barci Castriota, Maria das Graas Santa Brbara, Maurlio Nunes Vieira, Newton
Bignotto de Souza, Relnaldo Martiniano Marques
A G R A 0 I C I M E N T O S
I l alguns anos, na Universidade de Colmbia, em Nova
York, coordenei um seminrio intitulado Some Puzzles for
Tlieory [Alguns Quebra-Cabeas para a Teoria], Em torno de
uma mesa, relemos alguns textos fundadores da teoria lite-
i .1 t ia, textos tidos como definitivos e cuja avaliao j no nos constrange mais. Posteriormente, na Sorbonne, dediquei um
curso teoria da literatura. Desta vez, diante de um pblico
numeroso, foi-me necessrio fazer um discurso magistral, sem
renunciar a uma abordagem aportica. Este livro fruto desse
ii.ihulho, e agradeo aos estudantes que o tornaram possvel.
I )esde a publicao de La Troisime Republique des Lettres
|A Terceira Repblica das Letras] (1983), criticaram-me vrias
vezos o fato de haver interrompido a pesquisa no momento em
(|ue ela se tornara interessante: esperavam pelo fim da histria,
uma Quarta ou uma Quinta Repblica das Letras. Como cles-
rever o momento em que a histria literria foi substituda pela
leoria, e como narrar os episdios seguintes, sem que nossa
prpria histria intelectual neles se integre? Para romper o
fio doutrinal e pr fim s controvrsias, decidi escrever um
outro livro, Les Cinq Paradoxes de la Modernit [Os Cinco *
Paradoxos da Modernidade] (1989), do qual este tambm a
continuao. Sou grato a Jean-Luc Giriboni, que me estimulou
.1 escrev-lo, assim como a Marc Escola, a Andr Guyaux, a 1atrizia Lombardo e a Sylvie Thorel-Cailleteau, que o releram.
I )ois esboos do Captulo II foram publicados com os ttulos
de Allgorie et Philologie [Alegoria e Filologia], em Anna
Doll i e Carla Locatelli, Ed., Retrica e Interpretazione, Roma,
lUilzoni, 199.4, e Quelques Remarques Sur la Mthode des
1assages Parallles [Algumas Observaes sobre o Mtodo
das Passagens Paralelas], Studi di Letteratura Francese, n.22,
1997, assim como um:i prlmelia vei.au do < .ipilulo V, "1 liasse/ le Slyle par la Porte, il Rentrera par la 1'enelie" llxpulseni o Estilo pela Porta, ele Voltar pela JanelaI, l.lltrtiluiv, 11.105, maro 1997, e um fragmento do Captulo VII, Sainte-Beuve
and the Canon [Sainte-Beuve e o Cnone], Modem Language
Notes, t.CX, 1995.
I) M K I O
INTRODUO
O Qim Rkstou dk Nossos Amores? 11
Teoria e senso comum 15
Teoria e prtica da literatura 19
,Al, Teoria, crtica, histria 21
Teoria ou teorias 23
Teoria da literatura ou teoria literria 24
A literatura reduzida a seus elementos 25
CAPTULO 1 A LITERATURA 29
A extenso da literatura 31
Compreenso da literatura: a funo 35
Compreenso da literatura: a forma do contedo 38
Compreenso da literatura: a forma da expresso 39
Literariedade ou preconceito 42
Literatura literatura 44
CAPTULO II O AUTOR 47
A tese da morte do autor 49
Voluntas e adio ' 53Alegoria e filologia 56
Filologia e hermenutica 59
Inteno e conscincia 65
O mtodo das passagens paralelas 68
Straight from the horses mouth 71Inteno ou coerncia 75
Os dois argumentos contra a inteno 79
Retorno inteno 84
Sentido no significao 85
Inteno no premeditao 90
A presuno de intencionalidade 93
CAPTULO III o MUNDO 97Contra a mimesis 99A mimesis desnaturalizada 102O realismo: reflexo ou conveno 106
Iluso referencial e intertextualidade 109
( )N I r i l l l u r t ( III l l lhl l l/lMlII I 1-1
( ' i f l l l l l clil (CMC I I I I I l l I I I I IKMlt .1 1 1 5O arbitrrio il.i Ifii^uii I I
A nilmsis como rcconhticlmcnto 1 20Oh mundos ficcionais 133
O mundo dos livros 137
CAPTULO IV r " O LEITOR 139
A leitura fora do jogo 139
A resistncia do leitor 143
Recepo e influncia 146
O leitor implcito 147
j A obra aberta 153
O horizonte de expectativa (fantasma) 156
O gnero como modelo de leitura 157
A leitura sem amarras 159
_ Depois do leitor 163
CAPTULO V O ESTILO 165
O estilo e todos os seus humores 166
Lngua, estilo, escritura 173
Clamor contra o estilo 176
Norma, desvio, contexto 180
O estilo como pensamento 184
O retorno do estilo 187
Estilo e exemplificao 189
Norma ou agregado 192
CAPTULO VI A HISTRIA 195
Histria literria e histria da literatura 198
Histria literria e crtica literria 201
Histria das jclias, histria social 204
A evoluo literria 207
O horizonte de expectativa 209
A filologia disfarada 214
Histria ou literatura? 218
A histria como literatura 222
CAPTULO VII O VALOR 225
Na sua maioria, os poemas so ruins,
mas so poemas 227
A iluso esttica 231
D/fL. O que um clssico? 234
Da tradio nacional em literatura 239
Salvar o clssico 242
ltima defesa do objetivismo 247
Valor e posteridade 250
Por um relativismo moderado 253
l
i i i Nt I I i s A i
A A vi i nhhi a ' IVi'ihuia 257
Tf( In oil llivOo 258
Teorlu v l)iillnnol
K O D U O
0 QUE RESTOU DE N O S S O S AMORES?
I.ii.1 o pobre Scrates, s havia o Demnio da proibio; o meu um grande afirmador, o meu um Demnio de ao, um
Demnio de combate.
Baudelaire, "Espanquemos os pobres!
Parodiando uma clebre frase: Os franceses no tm a
mente terica. Pelo menos at a exploso dos anos sessenta
e setenta. A teoria literria viveu ento seu momento de glria,
como se a f do proslito lhe houvesse, de repente, permitido
resgatar quase um sculo de atraso num timo cle segundo. Os
estudos literrios franceses no conheceram nada semelhante
.10 formalismo russo' ao crculo de Praga, ao New Criticism anglo-americano, sem falar da estilstica de Leo Spitzer nem
da topologia de Ernst Robert Curtius, do antipositivismo de
lienecletto Croce nem da crtica das variantes de Gianfranco
Contini, ou ainda da escola de Genebra e da crtica da cons
cincia, ou mesmo do antiteorismo deliberado de F. R. Leavis e
de seus discpulos de Cambridge. Para contrabalanar todos
esses movimentos originais e influentes que ocuparam a pri
meira metade do sculo XX na Europa e na Amrica do Norte,
s poderamos citar, na Frana, a Potica de Valry, segundo
o ttulo da ctedra que ocupou no Colgio de Frana (1936)
efmera disciplina, cujo progresso foi logo interrompido
pela guerra, depois pela morte , e talvez as sempre enig
mticas Fleurs de Tarbes [Flores de Tarbes], de Jean Paulhan
(1941), tateando confusamente a definio de uma retrica
geral, no instrumental, da lngua: esse Tudo retrica,
que a desconstruo deveria reclescobrir em Nietzsche, por
volta de 1968. O manual de Ren Wellek e Austin Warren,
Theory o f Literature [Teoria da Literatura], publicado nos
I '.mios I liiklfi'. fin l'M'J, rnronti .1 v.i dl.pi mu e| (uns lins dus a iio.h sessenta ), cm espanhol, |.ipnnt\s, ll.ih.inn, .ilem.io,
coreano, portugus, dinamarqus, servo croata, grego moderno,
sueco, hebreu, romeno, finlands e gujarati, mas nao cm liancs,
idioma no qual s Ibi publicado em 1971, com o ttulo de La
Thorie Littraire [A Teoria Literria], um dos primeiros da
coleo Potique, nas ditions du Seuil, sem nunca ter feito
parte da coleo de bolso. Em I960, pouco antes de morrer,
Spitzer atribua esse atraso e esse isolamento franceses a trs
fatores: um velho sentimento de superioridade ligado a uma
tradio literria e intelectual contnua e eminente; o esprito
geral dos estudos literrios, sempre marcado pelo positivismo
cientfico do sculo XIX, procura das causas; a predomi
nncia da prtica escolar de explicao de texto, isto , de uma
descrio ancilar das formas literrias, impedindo o desen
volvimento de mtodos formais mais sofisticados. Acrescen
taria de bom grado, mas isso evidente, a ausncia cle uma
lingstica e de uma filosofia da linguagem comparveis s
que invadiram as universidades de lngua alem ou inglesa,
desde Gottlob Frege, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein
e Rudolf Carnap, assim como a fraca incidncia da tradio
hermenutica transformada, entretanto, na Alemanha, intei
ramente, por Edmund Husserl e Martin Heidegger.
Em seguida, as coisas mudaram rapidamente alis, come
aram a se mover, no momento em que Spitzer fazia aquele
diagnstico severo , a tal ponto que, por uma muito curiosa
reverso que leva a refletir, a teoria francesa viu-se, momen
taneamente, alada vanguarda dos estudos literrios no
mundo, um pouco como se tivssemos, at ento, recuado
para saltar melhor, a menos que um tal fosso, subitamente
transposto, tenha permitido inventar a plvora com uma ino
cncia e um ardor tais que deram a iluso de um avano,
durante esses mirficos anos sessenta, que se estenderam, de
fat, de 1963, fim da guerra da Arglia, at 1973, com o pri
meiro choque petroleiro. Por volta de 1970, a teoria literria
estava no auge e exercia um imenso atrativo sobre os jovens
da minha gerao. Sob vrias denominaes nova crtica,
potica, estruturalismo, semiologia, narratologia , ela
brilhava em todo seu esplendor. Quem viveu esses anos fe
ricos s pode se lembrar deles com nostalgia. Uma corrente
poderosa arrastava a todos ns. Naquele tempo, a imagem do
12
A tc< >t i:i I< )i, i.i l;i .ina, um li >g( m li | i.ill i.i, i i i .11ti.iv. I > < 1111* Barthes formulava cm 1969 "a nova crftli.i drvc lomai st*
muito rapidamente um novo adubo, para depois lazei outra
coisa1 parece no ter sido realizada. Os tericos dos anos sessenta e setenta no tiveram sucessores. O prprio Barthes
foi canonizado, o que no a melhor forma de manter viva e
ativa uma obra. Outros mudaram e se entregaram a trabalhos
muito distanciados de seus primeiros amores; alguns, como
Tzvetan Todorov ou Genette, orientaram-se para a tica ou a
esttica. Muitos voltaram-se para a velha histria literria pelo
vis da redescoberta de manuscritos, como revela a moda da
crtica dita gentica. A revista Potique, que existe ainda,
publica essencialmente exerccios de epgonos; o mesmo se
d com Littrature, outra instituio ps-68, sempre ecltica, acolhendo o marxismo, a sociologia e a psicanlise. A teoria
acomodou-se e no mais o que era: est a assim como
todos os sculos literrios esto a, como todas as especiali
dades convivem na universidade, cada uma em seu lugar.
Encontra-se compartimentada, inofensiva, espera os estudantes
hora certa, sem outro intercmbio com outras especialidades
nem com o mundo a no ser por intermdio desses estudantes
que vagueiam de uma disciplina a outra. No est mais viva
que as outras disciplinas, na medida em que no mais ela
que diz por que e como seria necessrio estudar a literatura,
qual a pertinncia, a provocao atual do estudo literrio.
Ora, nada a substituiu nesse papel, alis, no mais se estuda
tanto a literatura.
A teoria voltar, como tudo, e seus problemas sero redes-
cobertos no dia em que a ignorncia for to grande que s
produzir tdio. Philippe Sollers anunciava esse retorno
desde 1980, ao prefaciar a reedio de Thorie d nsembJe
[Teoria do Conjunto] ambicioso volume publicado durante
o outono que se seguiu a maio de 1968 e cujo ttulo foi extrado das matemticas e ao reunir, talvez com uma suspeita de
terrorismo intelectual como Sollers reconheceu posterior
mente ,2 as assinaturas de Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Julia Krisieva e todo o grupo de Tel Quel, o
melhor da teoria ento no seu pice. A teoria ia, ento, de
vento em popa, dava vontade de viver. Desenvolver a teoria-
para no se atrasar na vida, havia decretado Lnine, e Louis
Althusser invocava-o para denominar Teoria coleo que
14
dlrlgla ii.i M.r.prio I * le 11 Mii licxy publicou .11, cm 1966, .mo gula i li i nu i\'lmcnl( c.'.ii 11 ( 111.111 t. i, Tour line 'thorie de la l'rodiK lIon Littraire lloi uma Teoria lia Produo Literria],
i il h . n.i
expostos nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin , mas
isso no motivo para fazer dela uma metafsica nem uma
mstica. No a tratemos como uma religio. A teoria literria
no teria seno um interesse terico? No, se estou certo ao
sugerir que ela tambm, talvez essencialmente, crtica, oposi-
tiva ou polmica.
Porque no do lado terico ou teolgico, nem do lado
prtico ou pedaggico, que a teoria me parece principalmente
interessante e autntica, mas pelo combate feroz e vivificante
que empreende contra as idias preconcebidas dos estudos
literrios, e pela resistncia igualmente determinada que as
idias preconcebidas lhe opem. Esperaramos, talvez, de um
balano da teoria literria, que depois de ter oferecido sua
prpria definio de literatura, como definio contestvel
trata-se, na verdade, do primeiro lugar-comum terico: O
que a literatura? , depois de ter prestado uma rpida
homenagem s teorias literrias antigas, medievais e clssicas,
desde Aristteles at Batteux, sem esquecer uma passagem
pelas poticas no-ocidentais, arrolasse as diferentes escolas
que compartilharam a ateno terica no sculo XX: forma
lismo russo, estruturalismo de Praga, New Criticism americano,
fenomenologia alem, psicologia genebresa, marxismo interna
cional, estruturalismo e ps-estruturalismo franceses, herme
nutica, psicanlise, neomarxismo, feminismo etc. Inmeros
manuais so assim: ocupam os professores e tranqilizam os
estudantes. Mas esclarecem um lado muito acessrio da teoria.
Ou at mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a
caracteriza, na verdade, justamente o contrrio do ecletismo,
seu engajamento, sua vis polemica, assim como os impasses
a que esta ltima a leva sem que ela se d conta. Os tericos
do a impresso, muitas vezes, de fazer crticas muito sensatas
contra as posies de seus adversrios, mas visto que estes,
confortados por sua boa conscincia de sempre, no renunciam
e continuam a matraquear, os tericos se pem tambm eles
a falar alto, defendem suas prprias teses, ou antteses, at o
absurdo, e, assim, anulam-se a si mesmos diante de seus rivais
encantados de se verem justificados pela extravagncia da
posio adversria. Basta deixar falar um terico e contentar-se
em interromp-lo dc vez em quando com um "Ah!" um pouco
debochado, para ve lo desmoronar diante de nossos olhos!
I(i
Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet,
nosso velho professor de latim-francs, que era tambm pre
feito de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada
texto de nossa antologia: Como vocs compreendem essa
passagem? O que o autor quis dizer? Onde est a beleza do
verso ou da prosa? Em que a viso do autor original? Que
lio podemos tirar da? Acreditamos, durante um tempo, que
a teoria literria tivesse banido para sempre essas questes
lancinantes. Mas as respostas passam e as perguntas perma
necem. Estas so mais ou menos as mesmas. H algumas que
no cessam de se repetir de gerao em gerao. Colocavam-se
antes da teoria, j se colocavam antes da histria literria, e
se colocam ainda depois da teoria, cle maneira quase idntica.
A tal ponto que nos perguntamos se existe uma histria da
crtica literria, como existe uma histria da filosofia ou cla
lingstica, pontuada de criaes de conceitos, como o cogito
ou o complemento. Na crtica, os paradigmas no morrem
nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou menos
pacificamente e jogam indefinidamente com as mesmas noes
noes que pertencem linguagem popular. Esse um
dos motivos, talvez o principal motivo, da sensao de repe
tio que se experimenta, inevitavelmente, diante cle um quadro
histrico da crtica literria: nada de novo sob o sol. Em teoria,
passa-se o tempo tentando apagar termos de uso corrente:
literatura, autor, inteno, sentido, interpretao, representao,
contedo, fundo, valor, originalidade, histria, influncia,
perodo, estilo etc. o que se fez tambm, durante muito
tempo, em lgica: recortava-se na linguagem cotidiana uma
regio lingstica dotada de verdade. Mas a lgica formali
zou se depois. A teoria literria no conseguiu desembaraar-se
da linguagem corrente sobre a literatura, a dos ledores e dos
amadores. Assim, quando a teoria se afasta, as velhas noes
ressurgem intocadas. E por serem naturais ou sensatas
que nunca no escapamos delas realmente? Ou, como pensa
de Man, porque s desejamos resistir teoria, porque a
teoria laz mal, contraria nossas iluses sobre a lngua e a
subjetividade? Poderamos dizer, hoje, que quase ningum
11)! locado pela teoria, o que talvez seja mais confortvel.
I n lo , nito restaria mais nada, ou apenas a pequena peda
gogia que desi levlr1 N.iu Inteiramente. Na fase urea, por volta
17
de 1970, a teoria era um contradiscurso que punha em questo
as premissas da crtica tradicional. Objetividade, gosto e
clareza, Barthes assim resumia, cm Critique et Vrit [Crtica
e Verdade], em 1966, ano mgico, os dogmas do suposto crtico universitrio, o qual ele queria substituir por uma
cincia da literatura. H teoria quando as premissas do dis
curso corrente sobre a literatura no so mais aceitas como
evidentes, quando so questionadas, expostas como cons
trues histricas, como convenes. Em seu comeo, tam
bm a histria literria se fundava numa teoria, em nome da
qual eliminou do ensino literrio a velha retrica, mas essa
teoria perdeu-se ou edulcorou-se medida que a histria lite
rria foi se identificando com a instituio escolar e universi
tria. O apelo teoria , por definio, opositivo, at mesmo
subversivo e insurrecto, mas a fatalidade da teoria a de ser
transformada em mtodo pela instituio acadmica, cle ser
recuperada, como dizamos. Vinte anos depois, o que sur
preende, talvez mais que o conflito violento entre a histria
e a teoria literria, a semelhana das perguntas levantadas
por uma e por outra nos seus primrdios entusiastas, sobre
tudo esta, sempre a mesma: O que a literatura?
Permanncia das perguntas, contradio e fragilidade das
respostas: da resulta que sempre pertinente partir das
noes populares que a teoria quis anular, as mesmas que
voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de no s
rever as respostas opositivas que ela props, mas tambm
tentar compreender por que essas respostas no resolveram
de uma vez por todas as velhas perguntas. Talvez porque a
teoria, custa de sua luta contra a Hidra de Lema, tenha
levado seus argumentos longe demais e eles tenham se vol
tado contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes,
preciso recomear com as mesmas figuras de bom senso e
clichs irreprimveis, com o mesmo pequeno nmero de
enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso cor
rente sobre a literatura. Examinarei alguns, os mais resis
tentes, porque em torno deles que se pode construir uma
apresentao simptica da teoria literria com todo o vigor
de sua justa clera, da mesma maneira como ela os combateu
em vo.
IH
TEORIA E PRTICA DA LITERATURA
Algumas distines preliminares so indispensveis. Primei
ramente, quem diz teoria e sem que seja preciso ser mar
xista pressupe uma prtica, ou uma prxis, diante da qual
a teoria se coloca, ou da qual ela elabora uma teoria. Nas
ruas de Gnova, algumas salas trazem este letreiro: Sala de
teoria. No se faz a teoria da literatura, mas ensina-se o
cdigo de trnsito: a teoria , pois, o cdigo oposto direo
de veculos, o cdigo da direo. Qual portanto a direo,
ou a prtica, que a teoria da literatura codifica, isto , organiza
mais do que regulamenta? No , parece, a prpria literatura
(ou a atividade literria) a teoria da literatura no ensina
a escrever romances como a retrica outrora ensinava a falar
em pblico e instrua na eloqncia , mas so os estudos
literrios, isto , a histria literria e a crtica literria, ou
ainda a pesquisa literria.
No sentido de cdigo, didtica, ou melhor, deontologia da
prpria pesquisa literria, a teoria da literatura pode parecer
uma disciplina nova, em todo caso ulterior ao nascimento da
pesquisa literria no'sculo XIX, quando da reforma das univer
sidades europias, e posteriormente clas americanas, segundo
o modelo germnico. Mas se a palavra relativamente nova,
a coisa, em si mesma, relativamente antiga.
Pode-se dizer que Plato e Aristteles faziam teoria da lite-
ratura quando classificavam os gneros literrios na Repblica
na Potica, e o modelo de teoria da literatura ainda , hoje,
para ns, a Potica de Aristteles. Plato e Aristteles faziam
Icoria porque se interessavam pelas categorias gerais, ou mesmo
universais, pelas constantes literrias contidas nas obras parti
culares, como, por exemplo, os gneros, as formas, os modos,
as figuras. Se eles se ocupavam de obras individuais (a Ilada ,
o iulipo liei), era como ilustraes de categorias gerais. Fazer
Icoria da literatura era interessar-se pela literatura em geral,
de um ponto de vista que almejava o universal.
Mas Plato e Aristteles no faziam teoria da literatura,
pois .1 prtica que queriam codificar no era o estudo lite- laiio, ou .1 pesquisa literria, mas a literatura em si mesma. 1iocuiavam formular gramticas prescritivas da literatura, to
uiiiinativa:, que 1latao queria excluir os poetas da Cidade.
Atualmente, cmboia iialc da retrica e da potica, e revalorize
i )
sua tradio antiga e clssica, a teoria da literatura no , em
princpio, normativa.
Descritiva, a teoria da literatura , pois, moderna: supe a
existncia de estudos literrios, instaurados no sculo XIX, a
partir do romantismo. Tem uma relao com a filosofia da
literatura como ramo da esttica que reflete sobre a natureza
e a funo da arte, a definio de belo e de valor. Mas a
teoria da literatura no filosofia da literatura, no espe
culativa nem abstrata, mas analtica ou tpica: seu objeto so
o/os discursos sobre a literatura, a crtica e a histria literrias,
que ela questiona, problematiza, e cujas prticas organiza. A
teoria da literatura no a polcia clas letras, mas de certa
forma sua epistemologia.
Nem nesse sentido verdadeiramente nova. Lanson, o
fundador da histria literria francesa, na virada do sculo
XIX para o XX, j dizia de Ernest Renan e de mile Faguet, os
crticos literrios que o precederam embora Faguet fosse
seu contemporneo na Sorbonne, Lanson o julgava ultrapas
sado , que no tinham teoria literria.5 Era uma maneira polida de lhes dizer que, a seus olhos, eram impressionistas
e impostores, no sabiam o que faziam, faltava-lhes rigor,
esprito cientfico, mtodo. Quanto a Lanson, este pretendia
ter uma teoria, o que mostra que histria literria e teoria
no so incompatveis.
O apelo teoria responde necessariamente a uma inteno
polmica, ou opositiva (crtica, no sentido etimolgico do
termo): a teoria contradiz, pe em dvida a prtica de outros.
til acrescentar aqui um terceiro termo teoria e prtica,
conforme o uso marxista, mas no apenas marxista, dessas
noes: o termo ideologia. Entre a prtica e a teoria, estaria
instalada a ideologia. Uma teoria diria a verdade de uma pr
tica, enunciaria suas condies de possibilidade, enquanto a
ideologia no faria seno legitimar essa prtica com uma men
tira, dissimularia suas condies de possibilidade. Segundo
Lanson, alis bem recebido pelos marxistas, seus rivais no
tinham teoria, seno ideologias, isto , idias preconcebidas.
Assim, a teoria reage s prticas que julga atericas ou anti-
tericas. Agindo assim, ela as institui como bodes expiatrios.
Lanson, que pensava possuir, com a filologia e o positivismo
histrico, uma teoria slida, entregava-se ao humanismo
tradicional dc seus adversrios (homens de cultura ou de bom
gosto, burgueses). A teoria se ope ao senso comum. Mais
recentemente, depois de uma volta da espiral, a teoria da
literatura levantou-se ao mesmo tempo contra o positivismo na
histria literria (representado por Lanson) e contra a simpatia
na crtica literria (que havia sido representada por Faguet),
assim como se levantou contra a associao freqente dos
dois (primeiro o positivismo na histria do texto, depois o
humanismo na interpretao), como ocorre nos austeros fillo
gos que, depois de um estudo minucioso das fontes do romance
de Prvost, passam sem problemas a julgamentos ntimos
sobre a realidade psicolgica e sobre a verdade humana de
Manon, como se ela estivesse a nosso lado, uma jovem de
carne e osso.
Resumamos: a teoria contrasta com a prtica dos estudos
literrios, isto , a crtica e a histria literrias, e analisa
essa prtica, ou melhor, essas prticas, descreve-as, torna
explcitos seus pressupostos, enfim critica-os (criticar separar,
discriminar). A teoria seria, pois, numa primeira abordagem,
a crtica da crtica, ou a metacrtica (colocam-se em oposio
uma linguagem e a metalinguagem que fala dessa linguagem;
uma linguagem e a gramtica que descreve seu funciona
mento). Trata-se de uma conscincia crtica (uma crtica da
ideologia literria), uma reflexo literria (uma dobra < rillc ii,
uma self-consciousness, ou uma auto-referencialidadc), trao.,
esses que se referem, na realidade, modernidade, desde
Baudelaire e, sobretudo, desde Mallarm.
Apresentemos logo o exemplo: empreguei uma serie de
termos que convm definir em si mesmos, ou elaborar melhor,
para tirar deles conceitos mais consistentes, para alcanar essa
conscincia crtica que acompanha a teoria: literatura, depois
crtica literria e histria literria, cuja distino c enunciada
pela teoria. Deixemos a literatura para o prximo captulo c
examinemos mais de perto os dois outros termos.
TEORIA, CRTICA, HISTRIA
loi < u iica literria compreendo um discurs sobre as obras
literrias que acentua .1 experincia da leitura, que desi ieve, Interpreta, avalia o sentido e o eleito que as obt.is excium
\
sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores no necessaria
mente cultos nem profissionais. A crtica aprecia, julga; procede
por simpatia (ou antipatia), por identificao ou projeo: seu
lugar ideal o salo, do qual a imprensa uma metamorfose,
no a universidade; sua primeira forma a conversao.
Por histria literria compreendo, em compensao, um
discurso que insiste nos fatores exteriores experincia da
leitura, por exemplo, na concepo ou na transmisso das
obras, ou em outros elementos que em geral no interessam ao
no-especialista. A histria literria a disciplina acadmica
que surgiu ao longo do sculo XIX, mais conhecida, alis, com
o nome cle filologia, Scholarship, Wissenschaft, ou pesquisa.
s vezes opem-se crtica e histria literrias como um
procedimento intrnseco e um procedimento extrnseco: a
crtica lida com o texto, a histria com o contexto. Lanson
observava que se faz histria literria a partir do momento
em que se l o nome do autor na capa do livro, em que se d
ao texto um mnimo cle contexto. A crtica literria enuncia
proposies do tipo A mais belo que B, enquanto a histria
literria afirma: C deriva de D. Aquela visa a avaliar o texto,
esta a explic-lo.
A teoria da literatura pede que os pressupostos dessas
afirmaes sejam explicitados. O que voc chama de literatura?
Quais so seus critrios de valor?, perguntar ela aos crticos,
pois tudo vai bem entre leitores que compartilham das mesmas
normas e que se entendem por meias palavras, mas, se no
o caso, a crtica (a conversao) transforma-se logo em dilogo
de surdos. No se trata de reconciliar abordagens diferentes,
mas de compreender por que elas so diferentes.
O que voc chama de literatura? Que peso voc atribui a
suas propriedades especiais ou a seu valor especial?, pergun
tar a teoria aos historiadores. Uma vez reconhecido que os
textos literrios possuem traos distintivos, voc os trata como
documentos histricos, procurando neles suas causas factuais:
vida do autor, quadro social e cultural, intenes atestadas,
fontes. O paradoxo salta aos olhos: voc explica pelo contexto
um objeto que lhe interessa precisamente porque escapa a
esse contexto e sobrevive a ele.
A teoria prolcsta sempre contra o implcito: incmoda, ela
o protorvus (o proiesiante) da velha escolstica. Ela pede
contas, no adola i opluio de Proust em Le TempsRetrouv
[O Tempo Redescoberto], pelo menos naquilo que diz respeito
aos estudos literrios: Uma obra onde h teoria como um
objeto no qual se deixa a marca do preo.6 A teoria quer saber o preo. No tem nada de abstrato, faz perguntas, aquelas
perguntas sobre textos particulares com os quais historia
dores e crticos se deparam sem cessar, mas cujas respostas
so dadas de antemo. A teoria lembra que essas perguntas
so problemticas, que podem ser respondidas cle diversas
maneiras: ela relativista.
TEORIA OU TEORIAS
Empreguei, at aqui, a palavra teoria no singular, como se
s houvesse uma teoria. Ora, todo mundo j ouviu falar que
h teorias literrias, a teoria do senhor fulano de tal, a teoria
da senhora fulana de tal. Ento, a teoria ou as teorias seriam
um pouco como doutrinas ou dogmas crticos, ou ideologias.
I l tantas teorias quanto tericos, como nos domnios em que
a experimentao pouco praticvel. A teoria no como a
lgebra ou a geometria: o professor de teoria ensina sua teoria,
o que lhe permite, como a Lanson, pretender que os outros no
tm nenhuma. Perguntar-me-o: qual a sua teoria? Respon
derei: nenhuma. E isto que d medo: gostariam de saber
qual a minha doutrina, a f que preciso abraar ao longo
deste livro. Estejam tranqilos, ou ainda mais preocupados.
Eu no tenho f o protervus sem f e sem lei, o eterno
advogado do diabo, ou o diabo em pessoa: Forse tu non
pensavi ch'io lico fossil Como Dante lhe faz dizer, Talvez
no pensasses que eu fosse um lgico (Inferno, canto XXVII,
v. 122-1 2 3 ) , nenhuma doutrina, seno a da dvida hiperblica diante de todo discurso sobre a literatura. teoria da
literatura, vejo-a como uma atitude analtica e de aporias, uma
aprendizagem ctica (crtica), um ponto de vista metacrtico
visando interrogar, questionar os pressupostos de todas as
prticas crticas (em sentido amplo), um Que sei eu? perptuo.
Evidentemente, h teorias particulares, opostas, diver
gentes, conflitantes o campo, afirmei, polmico , mas
no vamos aderii a esta ou quela teoria; vamos refletir de
maneira analtica e retira sobre a literatura, sobre o estudo
literrio, ou seja, sobre todo discurso crtico, histrico, terico
a respeito da literatura. Tentaremos ser menos ingnuos.
A teoria da literatura uma aprnuli/agem da no-ingenuidade.
Em matria de crtica literria", escrevia Julien Gracq, todas
as palavras que conduzem a categorias so armadilhas .7
TEORIA DA LITERATURA O lJ TEORIA LITERRIA
Uma outra pequena distino preliminar. Falei, nos ltimos
pargrafos, de teoria da literatura, no de teoria literria. Seria
pertinente essa distino? Segundo, por exemplo, o modelo
da histria da literatura e da histria literria (a sntese versus
a anlise, o quadro da literatura em oposio disciplina
filolgica, como o manual de Lanson, Histoire de la Littrature
Franaise [Histria da Literatura Francesa], de 1895, frente
Revue d Histoire Littraire de la France, fundada em 1894). A
teoria da literatura, como no manual de Wellek e Warren que
traz o ttulo em ingls, Theory of Literature [Teoria da Litera
tura] (1949), geralmente considerada um ramo da literatura
geral e comparada: designa a reflexo sobre as condies da
literatura, da crtica literria e da histria literria; a crtica
cia crtica, ou a metacrtica.
A teoria literria mais opositiva e se apresenta mais como
uma crtica da ideologia, compreendendo a a crtica cla teoria
da literatura: ela que afirma que temos sempre uma teoria e
que, se pensamos no t-la, porque dependemos cla teoria
dominante num dado lugar e num dado momento. A teoria
literria se identifica tambm com formalismo, desde os forma-
listas russos do incio do sculo XX, marcados, na verdade,
pelo marxismo. Como lembrava de Man, a teoria literria passa
a existir quando a abordagem dos textos literrios no mais
fundada em consideraes no lingsticas, consideraes, por
exemplo, histricas ou estticas; quando o objeto de discusso
no mais o sentido ou o valor, mas modalidades cle produo
de sentido ou de valor.8 Essas duas descries cla teoria literria (crtica da ideologia, anlise lingstica) se fortalecem
mutuamente, pois a crtica da ideologia uma denncia da
iluso lingstica (da idia de que a lngua e a literatura so
evidentes em si mesmas): a teoria literria expe o cdigo e a
conveno ali onde a teoria postulava a natureza.
Infelizmente, essa distino (teoria da literatura versus
teoria literria), clara em ingls, por exemplo, foi obliterada
em francs: o livro de Wellek e Warren, Theory o f Literature,
foi traduzido tardiamente, como dissemos com o ttulo
La Thorie Littraire, em 1971, enquanto a antologia dos forma-
listas russos, de Tzvetan Todorov, foi publicada, alguns anos
antes, pelo mesmo editor, com o ttulo Thorie de la Littrature
(1966). preciso examinar esse quiasmo para melhor nos situar.Como j se ter compreendido, utilizo-me das duas tradies.
Da teoria da literatura: a reflexo sobre as noes gerais, os
princpios, os critrios; da teoria literria: a crtica ao bom
senso literrio e a referncia ao formalismo. No se trata,
pois, de fornecer receitas. A teoria no o mtodo, a tcnica,
o mexerico. Ao contrrio, o objetivo tornar-se desconfiado
de todas as receitas, de desfazer-se delas pela reflexo. Minha
inteno no , portanto, em absoluto, facilitar as coisas, mas
ser vigilante, suspeitoso, ctico, em poucas palavras: crtico
ou irnico. A teoria uma escola de ironia.
A LITERATURA REDUZIDA A SEUS ELEMENTOS
Sobre que noes exercer, aguar nosso esprito crtico? A
relao entre a teoria e o senso comum naturalmente confli
tuosa. , pois, o discurso corrente sobre a literatura, desig
nando os alvos da teoria, que permite colocar melhor a teoria
prova. Ora, todo discurso sobre a literatura, todo estudo
literrio est sujeito, na sua base, a algumas grandes questes,
isto , a um exame de seus pressupostos relativamente a um
pequeno nmero de noes fundamentais. Todo discurso
sobre a literatura assume posio implicitamente o mais das
vezes, mas algumas vezes explicitamente em relao a estas
perguntas, cujo conjunto define uma certa idia de literatura:
O que literatura?
Qual a relao entre literatura e autor?
Qual a relao entre literatura e realidade?
Qual a relao entre literatura e leitor?
Qual a relao entre literatura e linguagem?
Quando falo de um livro, eonstruo forosamente hipteses
,oli
pu i !'. e o eterno combate entre a teoria e o senso comum que d
i teoria seu sentido. Quem abre um livro tem essas noes
m mente. Reformulados um pouco mais teoricamente, os
quatro primeiros ttulos poderiam ser os seguintes: literarie-
dade, inteno, representao, recepo. Em relao aos trs
ltimos estilo, histria, valor , parece que no h motivo
para distinguir a fala dos amadores da dos profissionais: uns
e outros recorrem s mesmas palavras.
Para cada pergunta, gostaria de mostrar a variedade de
respostas possveis, no tanto o conjunto daquelas que foram
iladas na histria, mas das que se fazem hoje: o projeto no
i > de uma histria da crtica, nem o de um quadro das doutrinas
literrias. A teoria da literatura uma lio de relativismo,
no de pluralismo: em outras palavras, vrias respostas so
possveis, no compossveis; aceitveis, no compatveis; ao
invs de se somarem numa viso total e mais completa, elas
se excluem mutuamente, porque no chamam de literatura,
no qualificam como literria a mesma coisa; no visam a
diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes objetos.
Antigo ou moderno, sincrnico ou diacrnico, intrnseco ou
extrnseco: no possvel tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa
literria, mais menos, motivo pelo qual devemos escolher.
Alm disso, se amo a literatura, minha escolha j foi feita.
Minhas decises literrias dependem de normas extraliter-
rias ticas, existenciais , que regem outros aspectos da
minha vida.
1or outro lado, e.v.as sete questes sobre a literatura no :.;lii Independente:. I tiim.im um sistema. Em outras palavras,
a resposta que dou a uma delas restringe as opes que se
abrem para responder s outras: por exemplo, se acentuo o
papel do autor, possvel que no d tanta importncia
lngua; se insisto na literariedade, minimizo o papel do leitor;
se destaco a determinao da histria, diminuo a contribuio
do gnio etc. Esse conjunto de escolhas solidrio. por
isso que qualquer questo permite uma entrada satisfatria
no sistema, e sugere todas as outras. Uma nica, a inteno,
por exemplo, talvez seja suficiente, para tratar de todas elas.
por isso tambm que a ordem de anlise dessas questes
, no fundo, indiferente: poder-se-ia tirar uma carta ao acaso
e seguir a pista. Escolhi percorr-las fundamentando-me numa
hierarquia que corresponde, tambm ela, ao senso comum, o
qual, em relao literatura, pensa mais no autor do que no
leitor, na matria mais do que na maneira.
Todos os lugares da teoria sero assim visitados, salvo,
talvez, o gnero (trataremos dessa questo brevemente, quando
falarmos da recepo), porque o gnero no foi uma causa
clebre da teoria literria dos anos sessenta. O gnero uma
generalidade, a mediao mais evidente entre a obra indivi
dual e a literatura. Ora, por um lado, a teoria desconfia das
evidncias, por outro, visa aos universais.
Essa lista tem qualquer coisa de provocao, visto que
nela constam, simplesmente, as ovelhas negras da teoria lite
rria, moinhos de vento contra os quais ela se esfalfou para
forjar conceitos salutares. Que no se veja a, entretanto,
nenhuma malcia! Inventariar os inimigos da teoria parece-me
o melhor, o nico meio, em todo o caso o mais econmico,
de examin-los com confiana, de traar seus passos, teste
munhar sua energia, torn-la viva, assim como ainda indis
pensvel, depois de mais de um sculo, descrever a arte
moderna atravs das convenes que a negaram.
Enfim, talvez sejamos levados a concluir que o campo lite
rrio, apesar das diferenas de posio e de opinio, s vezes
exacerbadas, para alm das querelas interminveis que o
animam, repouse sobre um conjunto de pressupostos e de
crenas partilhados por todos. Pierre Bourdieu julgava que
a.s posIAcs assumidas com relailo ) arte e literatura [...]
organizam m* cm parcN ilc oposl^cs, muitas vezes herdados
de um passado polm ico e concebidos como antinomias intransponveis, alternativas absolutas, em termos de tudo ou nada, que estruturam o pensamento, mas tambm o aprisionam numa srie de falsos dilemas.9
Trata-se de arrombar essas falsas janelas, essas contradies
traioeiras, esses paradoxos fatais que dilaceram o estudo
literrio; trata-se de resistir alternativa autoritria entre a
teoria e o senso comum, entre tudo ou nada, porque a verdade
est sempre no entrelugar.
28
C A I I T U L O
A LITERATURA
Os estudos literrios falam da literatura das mais diferentes
maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo
estudo literrio, qualquer que seja seu objetivo, a primeira
questo a ser colocada, embora pouco terica, a da definio
que ele fornece (ou no) de seu objeto: o texto literrio. O
que torna esse estudo literrio? Ou como ele define as quali
dades literrias do texto literrio? Numa palavra, o que para
ele, explcita ou implicitamente, a literatura?
Certamente, essa primeira questo no independente das
que se seguiro. Indagaremos sobre seis outros termos ou
noes, ou, mais exatamente, sobre a relao do texto literrio
com seis outras noes: a inteno, a realidade, a recepo,
a lngua, a histria e o valor. Essas seis questes poderiam,
portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma o
epteto literrio, o que, infelizmente, as complica mais do que
as simplifica:
O que inteno literria?
O que realidade literria?
O que recepo literria?
O que lngua literria?
O que histria literria?
O que valor literrio?
Ora, emprega-se, freqentemente, o adjetivo literrio, assim
como o substantivo literatura, como se ele no levantasse
problemas, como se se acreditasse haver um consenso sobre
o que literrio e o que no o . Aristteles, entretanto,
j observava, no incio de sua Potica, a inexistncia de um
termo genrico para designar ao mesmo tempo os dilogos
socrticos, os textos em prosa e o verso: A arte que usa apenas
a linguagem em prosa ou versos [...] ainda no recebeu um
nome at o presente (I447a28-b9). H o nome e a coisa.
i > iH mir lllciiiltini c, i cil.imrnW , iiuvt i (i l.il.i li > liifrli> d(> mViiIo
XIX; anlerlormenle, a literatura, conforme a climologia, ciam
as inscries, a escritura, a erudio, ou o conhecimento cias
letras; ainda se diz literatura), mas isso no resolveu o
enigma, como prova a existncia de numerosos textos intitulados
Q u Est-ce que l Art?[0 que Arte?] (Tolsto, 1898), QuEst-ce
que la Posie? [O que Poesia?] (Jakobson, 1933-1934),
Q u Est-ce que la Littrature? [O que Literatura?] (Charles Du
Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947). A tal ponto que Barthes
renunciou a uma definio, contentando-se com esta brinca
deira: A literatura aquilo que se ensina, e ponto final.1 Foi uma bela tautologia. Mas pocle-se dizer outra coisa que
no Literatura literatura?, ou seja, Literatura o que se
chama aqui e agora de literatura? O filsofo Nelson Goodman
(1977) props substituir a pergunta O que arte? (What is
art?) pela pergunta Quando arte? (When is art?) No seria
necessrio fazer o mesmo com a literatura? Afinal de contas,
existem muitas lnguas nas quais o termo literatura intradu
zvel, ou no existe uma palavra que lhe seja equivalente.
Qual esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual a
sua diferena especfica? Qual a sua natureza? Qual a
sua funo? Qual sua extenso? Qual sua compreenso?
necessrio definir literatura para definir o estudo literrio,
mas qualquer definio de literatura no se torna o enunciado
de uma norma extraliterria? Nas livrarias britnicas encontra-se,
de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Fico-,
de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para o
lazer, como se a Literatura fosse a fico entediante, e a Fico,
a literatura divertida. Seria possvel ultrapassar essa classifi
cao comercial e prtica?
A aporia resulta, sem dvida, da contradio entre dois
pontos de vista possveis e igualmente legtimos; ponto de
vista contextuai (histrico, psicolgico, sociolgico, institu
cional) e ponto de vista textual (lingstico). A literatura, ou
o estudo literrio, est sempre imprensada entre duas abor
dagens irredutveis: uma abordagem histrica, no sentido
amplo (o texto como documento), e uma abordagem lings
tica (o texto como fato da lngua, a literatura como arte da
linguagem). Nos anos sessenta, uma nova querela entre antigos
e modernos despertou a velha guerra de trincheiras entre
30
| >. i i I l i l . l i l( i ' . i l i h u m ( li I I n l i , ,l< i n / r i i / j i | >ii 1 1 l i l ; h l < r . i l> u i n . i
i li I m i l , . I l i l l l l t l l l l l I la I II I -1.1111 l ' i l , Il 1 -Il .1 Vi I . .1 < ( l t l . 1 ' 1 , I I I . i m i l I I
l l l l i l l . l t I . i . ( i e n e t l e , q u e 1 1 1 1 > >. l " l o l . i " .1 p e i g u n t . l ' ( ) q u e e l l l i i ,i
lmai'" - cia c mal colorada , sugeriu, entretanto, dlstinguii
dois rgimes literrios complementares: mu regime constltiiliro,
garantido pelas convenes, logo fechado uni sonclo, mu
romance pertencem de direito literatura, inesmo que ninguem
os leia , c um regime condicional, logo aberto, dependente
de uma apreciao revogvel a incluso, na literatura, dos
Penses [Pensamentos] de Pascal ou de La Sorcire |A hei ti
ceira] de Michelet depende dos indivduos e das pocas.*
Descrevamos a literatura sucessivamente: do ponto de vista
da extenso e da compreenso, depois da Juno e da form a ,
em seguida, da forma do contedo e da form a da expresso.
Avancemos dissociando, seguindo o mtodo familiar da dico
tomia platnica, mas sem demasiadas iluses sobre nossas
chances de sucesso. Como a questo O que literatura?" c
insolvel dessa maneira, o primeiro captulo ser o mais curto
deste livro, mas todos os captulos seguintes continuaro a
busca de uma definio satisfatria de literatura.
A EXTENSO DA LITERATURA
No sentido mais amplo, literatura tudo o que impresso
(ou mesmo manuscrito), so todos os livros que a bibliotec a
contm (incluindo-se a o que se chama literatura oral, dora
vante consignada). Essa acepo corresponde noo clssica
de belas-letras as quais compreendiam tudo o que a retrica
e a potica podiam produzir, no somente a fico, mas tambm
a histria, a filosofia e a cincia, e, ainda, toda a eloqncia.
Contudo, assim entendida, como equivalente cultura, no
sentido que essa palavra adquiriu desde o sculo XIX, a lite
ratura perde sua especificidade: sua qualidade propriamente
literria lhe negada. Entretanto, a filologia do sculo XIX
ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura, da
qual a literatura, na acepo mais restrita, era o testemunho mais
acessvel. No conjunto orgnico assim constitudo, segundo
a filologia, pela lngua, pela literatura e pela cultura, unidade
identificada a uma nao, ou a uma raa, no sentido filolgico,
31
n.in 11|(>l(>glci> do icimo, .i lliri,iliua reinava absoluta, c o estudo da literatura era a via r-gia para a compreenso de
uma nao, estudo que os gnios no s perceberam, mas no
qual tambm forjaram o esprito.
No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literrio
e o no literrio) varia consideravelmente segundo as pocas
e as culturas. Separada ou extrada das belas-letras, a litera
tura ocidental, na acepo moderna, aparece no sculo XIX,
com o declnio do tradicional sistema de gneros poticos,
perpetuado desde Aristteles. Para ele, a arte potica a
arte dessa coisa sem nome, descrita na Potica compreendia,
essencialmente, o gnero pico e o gnero dramtico, com
excluso do gnero lrico, que no era fictcio nem imitativo
uma vez que, nele, o poeta se expressava na primeira pessoa
vindo a ser, conseqentemente, e por muito tempo, julgado
um gnero menor. A epopia e o drama constituam ainda os
dois grandes gneros da idade clssica, isto , a narrao e a
representao, ou as duas formas maiores da poesia, enten
dida como fico ou imitao (Genette, 1979; Combe). At
ento, a literatura, no sentido restrito (a arte potica), era o verso.
Mas um deslocamento capital ocorreu ao longo do sculo XIX:
os dois grandes gneros, a narrao e o drama, abandonavam
cada vez mais o verso para adotar a prosa. Com o nome de
poesia, muito em breve no se conheceu seno, ironia da
histria, o gnero que Aristteles exclua da potica, ou seja,
a poesia lrica a qual, em revanche, tornou-se sinnimo de
toda poesia. Desde ento, por literatura compreendeu-se o
romance, o teatro e a poesia, retomando-se trade ps-'
aristotlica dos gneros pico, dramtico e lrico, mas, dora
vante, os dois primeiros seriam identificados com a prosa, e o
terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre e o poema
em prosa dissolvessem ainda mais o velho sistema de gneros.
O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia)
inseparvel do romantismo, isto , da afirmao da relativi
dade histrica e geogrfica do bom gosto, em oposio
doutrina clssica da eternidade e da universalidade do cnone
esttico. Restrita prosa romanesca e dramtica, e poesia
lrica, a literatura concebida, alm disso, em suas relaes
com a nao e com sua histria. A literatura, ou melhor, as
literaturas so, antes de tudo, nacionais.
32
(;< )MI'KI I NSA( > I )A I I I I KA I I IRA: A I IIN AO
( lontlnurmos .1 proceder, imitando Plato, por dicotomia, c distingamos Juno e forma, atravs de duas questes: O
que a literatura faz? Qual o seu trao distintivo?
As definies de literatura segundo sua funo parecem
relativamente estveis, quer essa funo seja compreendida
co m o individual ou social, privada ou pblica. Aristteles falava de katharsis, de purgao, ou de purificao de emoes
como o temor e a piedade (1449b 28). uma noo difcil de
determinar, mas ela diz respeito a uma experincia especial
das paixes ligada arte potica. Aristteles, alm disso,
colocava o prazer cle aprender na origem da arte potica
( 1448b 13): instruir ou agradar (prodesse aut delectar), ou ainda
instruir agradando, sero as duas finalidades, ou a dupla fina
lidade, que tambm Horcio reconhecer na poesia, qualifi
cada de dulceet utile (Ars Potica [Arte Potica], v.333 e 343).
Essa a mais corrente definio humanista de literatura,
enquanto conhecimento especial, diferente do conhecimento
filosfico ou cientfico. Mas qual esse conhecimento lite
rrio, esse conhecimento que s a literatura d ao homem?
Segundo Aristteles, Horcio e toda a tradio clssica, tal
conhecimento tem por objeto o que geral, provvel ou
verossmil, a dxa, as sentenas e mximas que permitem
compreender e regular o comportamento humano e a vida
social. Segundo a viso romntica, esse conhecimento diz
respeito sobretudo ao que individual e singular. A continui
dade permanece, no entanto, profunda: de Paolo e Francesca
que nA Divina Comdia, descobrem estarem apaixonados
lendo juntos os romances da Table Ronde a Dom Quixote
que pe em prtica os romances de cavalaria e Madame
Bovary intoxicada pelos romances sentimentais que devora.
Essas obras, claramente pardicas, so prova da funo de
aprendizagem atribuda literatura. Segundo o modelo huma
nista, h um conhecimento do mundo e dos homens propiciado
pela experincia literria (talvez no apenas por ela, mas princi
palmente por ela), um conhecimento que s (ou quase s) a
experincia literria nos proporciona. Seramos capazes de
paixo se nunca tivssemos lido uma histria de amor, se
35
C( )MI*KI I NSA< ) I >A I I I I KA I l UMA FORMA 1)0 C O N TIlII X )
Da Antigidade metade do sculo XVIII, a literatura
sei que a palavra anacrnica, mas suponhamos que ela
designe o objeto da arte potica foi geralmente definida
como imitao ou representao (mimsis) de aes humanas
pela linguagem. como tal que ela constitui uma fbula ou
uma histria (muthos). Os dois termos (mimsis e muthos)
aparecem desde a primeira pgina da Potica de Aristteles e
fazem da literatura uma fico traduo de mimsis s vezes
adotada, por exemplo, por Kte Hamburger e Genette ou,
ainda, uma mentira, nem verdadeira nem falsa, mas verossmil:
um mentir-verdadeiro, como dizia Aragon. O poeta, escrevia
Aristteles, deve ser poeta de histrias mais que de metros,
pois que em razo da mimsis que ele poeta, e o que ele
representa ou imita (mimeisthai) so aes (1451b 27).
F.ni nome dessa definio de poesia atravs da fico,
Aristteles exclua da potica no apenas a poesia didtica
ou satrica, mas tambm a poesia lrica, que pe em cena o
eu do poeta, e no preservava seno os gneros pico (narra
tivo) e trgico (dramtico). Genette fala de uma potica
essencialista ou, ainda, constitutivista na sua verso temtica.
Segundo essa potica, a maneira mais segura para a poesia
escapar do risco de dissoluo, no emprego corrente da
linguagem, e se fazer obra de arte a fico narrativa ou
dramtica.4 O qualificativo temtico parece-me que deve ser evitado, pois no h temas (contedos) constitutivamente
literrios: o que Aristteles e Genette visam ao estatuto onto
lgico, ou pragmtico, constitutivo dos contedos literrios,
, pois, a fico como conceito ou modelo, no como tema (ou
como vazio, no como pleno); e Genette, alm disso, prefere
cham-la ficcionalidade. Referindo-me s distines do lingista
Louis Hjelmslev entre substncia do contedo (as idias),
form a do contedo (a organizao dos significados), subs
tncia da expresso (os sons) e forma da expresso (a organi
zao dos significantes), direi que, para a potica clssica, a
literatura caracterizada pela fico enquanto forma do con
tedo, isto , enquanto conceito ou modelo.
38
i l . i i |i l u l . i lllri.lil.i i l . l u r .1 lllci.iliii.i, n i . r . .1 l l l e i ariedade, o u seja, o que l . i / ( l i i i i n . i determinada obra uma obra liter
ria";111 ou, muito tempo depois, cm I960: o que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte." A teoria da literatura, no
sentido de crtica da crtica, e a teoria literria, no sentido de
formalismo, parecem se encontrar nesse conceito, que tambm
r ttico e polmico. Os formalistas tentavam, graas a ele,
tornar o estudo literrio autnomo sobretudo em relao
ao historicismo e ao psicologismo vulgares aplicados litera
tura atravs da definio da especificidade de seu objeto.
I les se opunham abertamente definio de literatura como
documento, ou sua definio atravs da funo de repre
sentao (do real) ou de expresso (do autor) e acentuavam
os aspectos da obra literria considerados especificamente
literrios e distinguiam, assim, a linguagem literria da lin
guagem no literria ou cotidiana. A linguagem literria
motivada (e no arbitrria), autotlica (e no linear), auto-
referencial (e no utilitria).
Qual , entretanto, essa propriedade essa essncia que
torna literrios certos textos? Os formalistas, segundo Viktor
Chklovski, em LArt comme Procd [A Arte como Procedi
mento] (1917), tomavam como critrio de literanedade a desfa-
miliarizao, ou estranhamento (ostrannie): a literatura, ou
a arte em geral, renova a sensibilidade lingstica dos leitores
atravs de procedimentos que desarranjam as formas habi
tuais e automticas da sua percepo. Jakobson explicar, em
seguida, que o efeito de desfamiliarizao resulta do domnio
de certos procedimentos (Jakobson, 1935) que, tomados do
conjunto das invariveis formais ou traos lingsticos, carac
terizam a literatura como experimentao dos possveis da
linguagem, segundo expresso de Valry. Mas certos proce
dimentos, ou o domnio de procedimentos, tornam-se tambm
eles familiares: o formalismo desemboca (ver Captulo VI)
numa histria da literariedade como renovao do estranha
mento por meio da redistribuio dos procedimentos literrios.
A essncia da literatura estaria, assim, fundamentada em
invariantes formais passveis de anlise. O formalismo, apoiado
pela lingstica e revigorado pelo estruturalismo, libera o
estudo literrio dos pontos de vista estranhos condio
verbal do texto. Quais so os invariantes que ele explora? Os
41
li - In, ui.r. iiili.i icdc iiic-i.il >i ic.i iii.ir. i ei i.kI.i , ,i (|ii;il relegaria
.1 segundo plano ;is outras funes lingsticas. As formas lllci.lrlas nao sao diferentes das formas lingsticas, mas sua
organizado as toma (pelo menos algumas delas) mais visveis.
I nfim, a literariedade no questo de presena ou de au
sncia, de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropos,
por exemplo): a dosagem que produz o interesse do leitor.
Infelizmente, mesmo esse critrio flexvel e moderado de
literariedade refutvel. Mostrar contra-exemplos fcil. Por
um lado, certos textos literrios no se afastam da linguagem
cotidiana (como a escritura branca, ou behaviorista, a de
I Icmingway, a de Camus). Sem dvida, possvel reintegr-los,
acrescentando que a ausncia de marca , ela mesma, uma
marca, que o cmulo da desfamiliarizao a familiaridade
absoluta (ou o cmulo da obscuridade, a insignificncia), mas
a definio de literariedade no sentido restrito, como traos
especficos ou flexveis, como organizao especfica, no
menos contraditria. Por outro lado, no somente os traos
considerados mais literrios se encontram tambm na lingua
gem no literria, mas ainda, s vezes, so nela mais visveis,
mais densos que na linguagem literria, como o caso da
publicidade. A publicidade seria ento o mximo da literatura,
o que no , entretanto, satisfatrio. Seria, pois, toda a lite
ratura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou
somente um certo tipo de literatura; a literatura por excelncia,
de seu ponto de vista, isto , a poesia, e ainda no toda
poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obs
cura, difcil, desfamiliarizante? A literariedade definiu o que se
chamava outrora licena potica, no a literatura. A menos que
Jakobson, quando descreveu a funo potica como nfase na
mensagem, tenha pensado no somente na forma da mensagem,
como de um modo geral compreendemos, mas tambm no seu
contedo. O texto de Jakobson sobre A Dominante deixava
bastante claro, entretanto, que a idia da desfamiliarizao
era sria, que suas implicaes eram tambm ticas e polticas.
Sem isso, a literariedade parece gratuita, decorativa, ldica.
A literariedade, como toda definio de literatura, compro
mete-se, na realidade, com uma preferncia extraliterria.
Uma avaliao (um valor, uma norma) est inevitavelmente
includa em toda definio de literatura e, conseqentemente,
em todo estudo literrio. Os formalistas russos preferiam,
43
evidentemente, os textos ;ios qual-. mellioi se adequava sua
noo de literariedade, pois essa noo resultava de um
raciocnio indutivo: eles estavam ligados vanguarda da
poesia futurista. Uma definio de literatura sempre uma
preferncia (um preconceito) erigido em universal (por exemplo,
a desfamiliarizao). Mais tarde, o estruturalismo em geral,
a potica e a narratologia, inspirados no formalismo, deviam
valorizar do mesmo modo o desvio e a autoconscincia
literria, em oposio conveno e ao realismo. A distino
proposta por Barthes, em S/Z, entre o legvel (realista) e o
escriptvel (desfamiliarizante), tambm abertamente valo-
rativa, mas toda teoria repousa num sistema de preferncias,
consciente ou no.
Mesmo Genette devia finalmente reconhecer que a litera
riedade, segundo a acepo de Jakobson, no recobria seno
uma parte da literatura, seu regime constitutivo, no seu regime
condicional, e, alm disso, do lado da literatura dita consti
tutiva, somente a dico (a poesia), no a fico (narrativa
ou dramtica). Da inferia, renunciando s pretenses do
formalismo e do estruturalismo, que a literariedade, sendo
um fato plural, exige uma teoria pluralista .13 literatura constitutiva ela prpria heterognea e justaposta poesia
(em nome de um critrio relativo forma da expresso), fico
(em nome de um critrio relativo forma do contedo) ,
acrescenta-se ainda, desde o sculo XIX, o domnio vasto e
impreciso da prosa no ficcional, condicionalmente literria
(autobiografia, memrias, ensaios, histria, at o Cdigo
Civil), anexada ou no literatura, ao sabor dos gostos indi
viduais e das modas coletivas. O mais prudente, conclua
Genette, , pois, aparente e provisoriamente, atribuir a cada
um sua parte de verdade, isto , uma poro do campo lite
rrio .14 Ora, esse provisrio tem tudo para durar, porque no h essncia da literatura, ela uma realidade complexa,
heterognea, mutvel.
LITERATURA LITERATURA
Ao procurar um critrio de literariedade, camos numa aporia
a que a filosofia da linguagem nos habituou. A definio de
um termo como literatura no oferecer mais que o conjunto
44
entre a norma e desvio, on da loima e do contedo, ou
seja, ainda dicotomias (|uc visam a destruir (desacreditar,
eliminar) mais o adversrio do que os conceitos. As variaes
estilsticas no so descritveis seno como diferenas de
significao: sua pertinncia lingstica, no propriamente
literria. Nenhuma diferena de natureza entre um slogan publi
citrio e um soneto de Shakespeare, a no ser a complexidade.
Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura uma inevi
tvel petio de princpio. Literatura literatura, aquilo que
as autoridades (os professores, os editores) incluem na litera
tura. Seus limites, s vezes se alteram, lentamente, modera
damente (ver Captulo VII sobre o valor), mas impossvel
passar de sua extenso sua compreenso, do cnone
essncia. No digamos, entretanto, que no progredimos,
porque o prazer da caa, como lembrava Montaigne, no
a captura, e o modelo de leitor, como vimos, o caador.
46
0 AUTOR
> I >1 min in.iis controvertido dos estudos literrios o lugar |Hi i 11>< .ui autor. O debate to agitado, to veemente, que............lis penoso de ser abordado (ser tambm o captulo
mi ii longo), Sob o nome de inteno em geral, o papel do
nii'ii que nos interessa, a relao entre o texto e seu autor, a
I"iir.abilidade do autor pelo sentido e pela significao
I" ii lo Podemos partir de duas idias correntes, a antiga e
i moderna, para op-las e elimin-las, ou conservar ambas,
in iv .mienle procura de uma concluso aportica. A antiga
iili i,i corrente identificava o sentido da obra inteno do
mii ii, circulava habitualmente no tempo da filologia, do posi-
11v r.mo, do historicismo. A idia corrente moderna (e ademais miillo nova) denuncia a pertinncia da inteno do autor para
ili i' i minar ou descrever a significao da obra; o formalismo
nr.'.o, os New Critics americanos, o estruturalismo francs . Ii \ iilgaram-na. Os New Critics falavam de intentional fallacy,
"ii de iluso intencional, de erro intencional: o recurso
uin .lo de inteno lhes parecia no apenas intil, mas prejudicial aos estudos literrios. O conflito se aplica ainda aos
I i.i11idrios da explicao literria como procura da inteno lo autor (deve-se procurar no texto o que o autor quis dizer),
los adeptos da interpretao literria como descrio das '.ignificaes da obra (deve-se procurar no texto o que ele
ili/, independentemente das intenes de seu autor). Para
'.capar dessa alternativa conflituosa e reconciliar os irmos
Inimigos, uma terceira via, hoje muitas vezes privilegiada,
.i ponta o leitor como critrio da significao literria: uma
Ideia corrente contempornea a que voltarei no Captulo IV, mas
lenlarei tanto quanto possvel deix-la de lado no momento.
Uma introduo teoria da literatura pode limitar-se a
explorar um pequeno nmero de noes em torno das quais a
teoria literria (os formall.sUts e m i l< Mrudenlcs) polemizou
o autor foi, claramente, o bodr expiatrio principal das
diversas novas crticas, no somente porque simbolizava o
humanismo e o individualismo que a teoria literria queria
eliminar dos estudos literrios, mas tambm porque sua proble
mtica arrastava consigo todos os outros anticonceitos da
teoria literria. Assim, a importncia atribuda s qualidades
especiais do texto literrio (a literariedade) inversamente
proporcional ao atribuda inteno do autor. Os proce
dimentos que insistem nessas qualidades especiais conferem
um papel contingente ao autor, como os formalistas russos e
os New Critics americanos, que eliminaram o autor para asse
gurar a independncia dos estudos literrios em relao
histria e psicologia. Inversamente, para as abordagens que
fazem do autor um ponto de referncia central, mesmo que
variem o grau de conscincia intencional (de premeditao)
que governa o texto, e a maneira de explicitar essa conscincia
(alienada) individual para os freudianos, coletiva para os
marxistas , o texto no mais que um veculo para chegar-se
ao autor. Falar da inteno do autor e da controvrsia da
qual nunca deixou de ser o objeto antecipar em muito as
outras noes que sero examinadas em seguida.
No vejo melhor iniciao a esse delicado debate do que
apresentar alguns textos guias. Citarei trs. O prlogo bem
conhecido de Gargntua, no qual Rabelais parece primeiro
nos encorajar a procurar o sentido oculto (o mais alto sen
tido, altior sensus) de seu livro, segundo a antiga doutrina
da alegoria, depois zombar dos que acreditam nesse mtodo
medieval que permitiu decifrar sentidos cristos em Homero,
Virglio e Ovdio a menos que Rabelais remeta o leitor
sua prpria responsabilidade por suas interpretaes, even
tualmente subversivas, do livro que tem em mos. Nem sempre
houve acordo sobre a inteno desse texto capital sobre a
inteno, prova de que a questo sem sada. Em seguida,
o Contre Sainte-Beuve [Contra Sainte-Beuve], de Proust, porque
esse ttulo deu seu nome moderno ao problema da inteno
na Frana: nele Proust defende a tese, contra Sainte-Beuve,
que a biografia, o retrato literrio, no explica a obra, que
o produto de um outro eu que no o eu social, de um eu
profundo irredutvel a uma inteno consciente. Veremos, no
Captulo IV, sobre o leitor, que as teses de Proust abalariam
48
I .1 mm ui, t|iir li ii levado ;i niodei ai Mia doutrina da explicao ili irxio l.iilim, o aplogo de Uorges, "Pierre Mnard, Auteur
ilti (.hilcliotte" iPierre Mnard, Autor do Quixote], uma dentre as
1.11 >111.i-. tericas de IHcciones [Fices]: o mesmo texto foi es-i rito por dois autores distintos, h vrios sculos de distncia;
lo, pois, dois textos diferentes, cujos sentidos podem mesmo
,c opor, pois os Contextos e as intenes no so as mesmas.
A teoria que denunciava o lugar excessivo conferido ao
autor nos estudos literrios tradicionais tinha uma ampla
aprovao. Mas ao afirmar que o autor indiferente no que
se refere significao do texto, a teoria no teria levado
longe demais a lgica, e sacrificado a razo pelo prazer de
uma bela anttese? E, sobretudo, no teria ela se enganado
de alvo? Na realidade, interpretar um texto no sempre fazer
conjeturas sobre uma inteno humana em ato?
A TESE DA MORTE DO AUTOR
Partamos de duas teses em presena. A tese intencionalista
conhecida. A inteno do autor o critrio pedaggico ou
acadmico tradicional para estabelecer-se o sentido literrio.
Seu resgate , ou foi por muito tempo, o fim principal, ou
mesmo exclusivo, da explicao de texto. Segundo o precon
ceito corrente, o sentido de um texto o que o autor desse
texto quis dizer. Um preconceito no necessariamente despro
vido de verdade, mas a vantagem principal da identificao
do sentido inteno a de resolver o problema da interpre
tao literria: se sabemos o que o autor quis dizer, ou se
podemos sab-lo fazendo um esforo e se no o sabemos
porque no fizemos esforo suficiente , no preciso
interpretar o texto. A explicao pela inteno torna, pois, a
crtica literria intil (era o sonho da histria literria). Alm
disso, a prpria teoria torna-se suprflua: se o sentido inten
cional, objetivo, histrico, no h mais necessidade nem da
crtica, nem tampouco da crtica da crtica para separar os
crticos. Basta trabalhar mais um pouco e ter-se- a soluo.
A inteno, e mais ainda o prprio autor, ponto de partida
habitual da explicao literria desde o sculo XIX, consti
turam o lugar por excelncia do conflito entre os antigos (a
49
I ).i('lngli', ui.r. d m t J e 11 o da enunciai, ao que no preexiste a aia enum laao mas se produz com ela, aqui e agora. Donde
segui*, ainda, que a escritura no pode representar, pintar
absolutamente nada anterior sua enunciao, e que ela,
tanto quanto a linguagem, no tm origem. Sem origem, o
texto e um tecido de citaes: a noo de intertextualidade
'.e inlere, tambm ela, da morte do autor. Quanto explicao,
ela desaparece com o autor, pois que no h sentido nico,
original, no princpio, no fundo do texto. Enfim, ltimo elo
do novo sistema que se deduz inteiramente da morte do autor:
o leitor, e no o autor, o lugar onde a unidade do texto se
produz, no seu destino, no na sua origem; mas esse leitor
no mais pessoal que o autor recentemente demolido, e ele
se identifica tambm a uma funo: ele esse algum que
mantm reunidos, num nico campo, todos os traos de que
constituda a escrita.5Como se v, tudo se mantm: o conjunto da teoria literria
pode ligar-se premissa da morte do autor, como a qualquer
outro de seus itens; mas a morte do autor o primeiro, porque
ele mesmo se ope ao primeiro princpio da histria lite
rria. Quanto a Barthes, ele lhe confere ao mesmo tempo
uma tonalidade dogmtica: Sabemos agora que um texto..., e
poltica: Agora no somos mais vtimas de.... Como previsto,
a teoria coincide com uma crtica da ideologia: a escritura ou
o texto libera uma atividade que poderamos chamar de
contrateolgica, propriamente revolucionria, pois recusar
deter o sentido , finalmente, recusar Deus e suas hipstases,
a razo, a cincia, a lei.6 Estamos em 1968: a queda do autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistemtico ao
ps-estruturalismo desconstrutor, acompanha a rebelio anti-
autoritria da primavera. Com a finalidade de, e antes de exe
cutar o autor, foi necessrio, no entanto, identific-lo ao indi
vduo burgus, pessoa psicolgica, e assim reduzir a questo
do autor da explicao do texto pela vida e pela biografia,
restrio que a histria literria sugeria, sem dvida, mas que
no recobre certamente todo o problema da inteno, e no
o resolve em absoluto.
Em O que um Autor?, o argumento de Foucault parece
depender, tambm ele, da confrontao conjuntural entre a
histria literria e o positivismo, donde lhe vieram crticas
51
sobre a maneira como tratava os muni . prprios e os nomes
de autor em Lcs Mots et les Cboses |As Palavras e as Coisasl,
identificando ali formaes discursivas" bem mais vastas e
vagas que a obra de fulano ou beltrano (Darwin, Marx, Freud).
Assim, apoiando-se na literatura moderna, que teria visto
pouco a pouco o desaparecimento, o enfraquecimento do autor,
de Mallarm admitido que o volume no traz nenhum
signatrio7 a Beckett e a Maurice Blanchot, ele define a funo autor como uma construo histrica e ideolgica,
como a projeo, em termos mais ou menos psicologizantes,
do tratamento que se d ao texto. certo que a morte do
autor traz, como conseqncia, a polissemia do texto, a pro
moo do leitor, e uma liberdade de comentrio at ento
desconhecida, mas, por falta de uma verdadeira reflexo sobre
a natureza das relaes de inteno e de interpretao, no
do leitor como substituto do autor de que se estaria falando?
H sempre um autor: se no Cervantes, Pierre Mnard.
Para que a ps-teoria no seja um retorno pr-teoria,
preciso tambm sair da especularidade da nova crtica e da
histria literria que marcaram essa controvrsia, e permi
tiram reduzir o autor a um princpio de causalidade e a um
testa-cle-ferro, antes de elimin-lo. Liberado desse confronto
mgico e um pouco ilusrio, parece mais difcil guardar o
autor numa loja de accessrios. Do outro lado da inteno
do autor h, na verdade, a inteno. Se possvel que o
autor seja um personagem moderno, no sentido sociolgico,
o problema cla inteno do autor no data do racionalismo,
do empirismo e do capitalismo. Ele muito antigo, sempre
esteve presente, e no facilmente solucionvel. No topos
da morte do autor, confunde-se o autor biogrfico ou socio
lgico, significando um lugar no cnone histrico, com o
autor, no sentido hermenutico de sua inteno, ou intencio
nalidade, como critrio da interpretao: a funo do autor
de Foucault simboliza com perfeio essa reduo.
Depois de termos lembrado como a retrica tratava a inten
o, veremos que essa questo foi profundamente renovada
pela fenomenologia e pela hermenutica. Se h uma tal conso
nncia na crtica dos anos sessenta sobre o tema da morte do
autor, ela no seria o resultado da transposio do problema
hermenutico da inteno e do sentido, nos termos muito
simplificados e mais facilmente negociveis, cla histria literria?
52
m /7w v:- i.v r u r n o
() debale sobre* a inteno do autor sobre o autor
i'ii
ambigidades eram In ie ipn l.u fr . r u m o Indfelo.s de lima voluntas distinta do scriptum. () autor enquanto inteno e o
autor enquanto estilo eram multas vezes confundidos, e uma
distino jurdica voluntas e script um foi ocultada por
uma distino estilstica sentido prprio e sentido figurado.
Mas sua coincidncia na prtica no deve nos deixar ignorar
que se trata de dois princpios diferentes em teoria.
Santo Agostinho repetir essa diferena de tipo jurdico
entre o que querem dizer as palavras que um autor utiliza
para exprimir uma inteno, isto , a significao semntica,
e o que o autor quer dizer utilizando essas palavras, isto , a
inteno dianotica. Na distino entre o aspecto lingstico e
o aspecto psicolgico da comunicao, sua preferncia recai,
conforme todos os tratados de retrica da Antigidade, na
inteno, privilegiando assim a voluntas de um autor, por
oposio ao scriptum do texto. Em A Doutrina Crist (I, XIII,
12) Agostinho aponta o erro interpretativo que consiste em
preferir o scriptum voluntas, sendo sua relao anloga
da alma {animus'), ou do esprito (spiritus), e do corpo do
qual so prisioneiros. A deciso de fazer depender herme-
neuticamente o sentido da inteno no , pois, em Santo
Agostinho, seno um caso particular de uma tica subordi
nando o corpo e a carne ao esprito ou alma (se o corpo
cristo deve ser respeitado e amado, no por ele mesmo).
Agostinho toma o partido da leitura espiritual do texto, contra
a leitura carnal ou corporal, e identifica o corpo com a letra
do texto, a leitura carnal com a da letra. Entretanto, assim
como o corpo merece respeito, a letra do texto deve ser preser
vada, no por si mesma, mas como ponto de partida da inter
pretao espiritual.
A distino entre a interpretao segundo a carne e a inter
pretao segundo o esprito no prpria de Agostinho, que
assumiu o binmio paulino da letra e do esprito a letra
mata, mas o esprito vivifica , que de origem e de natureza
no estilsticas, mas jurdicas, como na tradio retrica. So
Paulo no faz seno substituir o par retrico grego rheton e
dianoia, equivalente do par latino scriptum e voluntas, pelo
par gramma e pneuma, ou letra e esprito, mais familiar aos
judeus aos quais se dirige.9 Mas a distino entre a letra e o esprito, em So Paulo, ou ainda entre a interpretao corporal
e a interpretao espiritual, em Santo Agostinho, que tendemos
54
i ii iiH ici i c-iilli:.ik'.i, tl, c*m principio, .1 transpo.slo crista i|i 11111.1 111 . 1 In.ii' (IU( respeito :i retrica judiciria, a da .11. .ui c .1 da inteno. Sua finalidade, no cristianismo primitivo,I permanecer sempre igual, pois que se trata de justificar a l.el nova contra a Lei mosaica.
A dificuldade est, entretanto, no fato de que Agostinho,
como os outros retricos, no hesitou em aplicar o mtodo
i NlIlstico para extrair a inteno da letra, procedimento que
levou muitos de seus sucessores e comentadores, at ns, a
((infundir interpretao espiritual, de tipo jurdico, procurando
II esprito sob a letra, e interpretao figurativa, de tipo estilstico, procurando o sentido figurado ao lado cio sentido
prprio. Entretanto, mesmo se empiricamente o cruzamento
da interpretao espiritual e da interpretao figurativa
muitas vezes realizado em Agostinho, teoricamente, e contr
rio a ns, ele no reduz um tipo de interpretao ao outro,
no identifica nunca a interpretao espiritual com a inter-
I iretao figurativa; no confunde a distino jurdica entre a
letra e o esprito adaptao crist de scriptum e voluntas, ou
ticlio e intentio com a distino estilstica entre o sentido
literal (significatioprpria) e o sentido figurado {significatio
translat). Somos ns que, utilizando a expresso sentido
literal de maneira ambgua, ao mesmo tempo para designar o
sentido corporal oposto ao sentido espiritual, e o sentido prprio
oposto ao sentido figurado, confundimos uma distino jur
dica (hermenutica) e uma distino estilstica (semntica).
Agostinho, como Ccero, mantm pois uma firme separao
entre a distino legal do esprito e da letra (ou carne), e a
distino estilstica do sentido figurado e do sentido literal
(ou prprio), mesmo que sua prpria prtica hermenutica
misture com freqncia os dois princpios de interpretao.
A tradio retrica situa as duas principais dificuldades da
interpretao dos textos, por um lado, na distncia entre o
texto e a inteno do autor, por outro, na ambigidade ou
obscuridade da expresso, seja ela intencional ou no. Pode
ramos ainda dizer que o problema da inteno psicolgica
(letra versus esprito) refere-se mais particularmente primeira
parte da retrica, a invetttio, enquanto que o problema da
obscuridade semntica (sentido literal versus sentido figurado)
refere-se mais particularmente terceira parte da retrica, a
elocutio.
55
ALKGOIUA I' l'l l,() 1.()(;IA
Tendo perdido de vista as nuanas da antiga retrica,
tendemos, na interpretao das dificuldades dos textos, a reduzir
o problema da inteno ao do estilo. Ora, essa confuso no
o que chamamos tradicionalmente de alegoria? A interpre
tao alegrica procura compreender a inteno oculta de um
texto pelo deciframento de suas figuras. Os tratados de ret
rica, de Ccero a Quintiliano, no sabiam nunca onde colocar
a alegoria. Ao mesmo tempo figura de pensamento e tropo,
mas tropo em muitas palavras (metfora prolongada segundo
a definio habitual), ela equvoca, como se flutuasse entre
a primeira parte da retrica, a inventio, remetendo a uma
questo de inteno, e a terceira parte, a elocutio, remetendo
a um problema de estilo. A alegoria, por intermdio da qual
toda a Idade Mdia pensou a questo cla inteno, repousa,
na realidade, na superposio de dois pares (e de dois prin
cpios de interpretao) teoricamente distintos, um jurdico e
outro estilstico.
A alegoria, no sentido hermenutico tradicional, um
mtodo de interpretao dos textos, a maneira de continuar a
explicar um texto, uma vez que est separado de seu contexto
original e que a inteno do seu autor no mais reconhecvel,
se que ela j o foi.10 Entre os gregos, a alegoria tinha por nome hyponoia, considerada como o sentido oculto ou subter
rneo, percebido em Homero, a partir do sculo VI, para dar
uma significao aceitvel quilo que se tornara estranho, e
para desculpar o comportamento dos deuses, que parecia
doravante escandaloso. A alegoria inventa um outro sentido,
cosmolgico, psicomntico, aceitvel sob a letra do texto: ela
sobrepe uma distino estilstica a uma distino jurdica.
Trata-se de um modelo exegtico que serve para atualizar
um texto do qual estamos distanciados pelo tempo ou pelos
costumes (de qualquer forma, pela cultura). Ns nos reapro-
priamos dele, emprestando-lhe um outro sentido, um sentido
oculto, espiritual, figurativo, um sentido que nos convm
atualmente. A norma da interpretao alegrica, que permite
separar boas e ms interpretaes, no a inteno original,
o decorum, a convenincia atual.
A alegoria uma interpretao anacrnica do passado,
uma leitura do antigo, segundo o modelo do novo, um ato
56
responsabilidade, negar sua Inteno, Kabelais desfaz .1 confuso habitual e reencontra a antiga distino retrica entre
o jurdico e o estilstico. Aqueles que decifrarem alegorias
em Gargntua respondero por si mesmos. Nessa mesma
direo, Montaigne evocar logo depois o leitor suficiente",
que encontra nos Ensaios mais sentido do que o escritor quis
ali deixar. Alis, relendo-se, ele acaba descobrindo sentidos
que ele mesmo desconhecia.
Mas se Rabelais e Montaigne, como os antigos retricos,
entre eles Ccero e Agostinho, desejavam, ainda que cum grano
salis, que a inteno fosse distinguida cla alegoria, esta ainda
viveria belos dias, at o momento em que Spinoza, o pai da
filologia, pedisse, no Tratado Teolgico-Poltico (1670) que
a Bblia fosse lida como um documento histrico, isto , que
o sentido do texto fosse determinado exclusivamente pela
relao com o contexto de sua redao. A compreenso em
termos de inteno, como j era o caso quando Agostinho
alertava contra a interpretao sistemtica pela figura, funda
mentalmente contextuai, ou histrica. A questo cla inteno
e a do contexto se confundem, desde ento, em boa parte. A
vitria sobre os modos de interpretao crist e medieval no
sculo XVIII, com as Luzes, representa assim uma volta ao
pragmatismo jurdico da retrica antiga. O alegorismo ana
crnico parece inteiramente eliminado. Do ponto de vista
racional, uma vez que Homero e Ovdio no eram cristos,
seus textos no podiam ser legitimamente considerados como
alegorias crists.11 A p