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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Direito
Programa de Ps-Graduao em Direito
MOTIVAO DOS ATOS ADMINITRATIVOS
Claudia Travi Pitta Pinheiro
Porto Alegre, 2006.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Direito
Programa de Ps-Graduao em Direito
MOTIVAO DOS ATOS ADMINITRATIVOS
Claudia Travi Pitta Pinheiro
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Direito, rea de concentrao em Direito do Estado e Teoria do Direito, sob orientao do Professor Doutor Almiro do Couto e Silva.
Porto Alegre, 2006.
AGRADECIMENTOS
A meus pais, por tudo.
Ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em especial o
Professor Almiro do Couto e Silva, pelo exemplo consistente de
excelncia acadmica e profissional.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o material doutrinrio, normativo e
jurisprudencial concernente ao dever de motivao dos atos administrativos, com
vistas a estruturar um quadro terico consistente, apto a servir de diretriz para seus
aplicadores, sejam eles autoridades e agentes do Poder Executivo, no exerccio das
funes de administradores pblicos, sejam eles membros do Poder Judicirio, ao
proceder reviso judicial dos atos administrativos.
Sob uma perspectiva mais ampla, este estudo visa a contribuir para a concretizao
dos princpios jurdicos inerentes ao Estado Democrtico de Direito, notadamente os
de transparncia e controle da atividade da Administrao Pblica, oferecendo
ferramentas teis realizao prtica de seus inegveis benefcios sociedade civil.
ABSTRACT
This paper aims to assess the doctrine, legislation and judicial precedents concerning
the duty of formally stating administrative provisions reasoning, with a view to
structure a consistent theorical framework, which may serve as guideline to its
addressees, wheter they are Executive Branch authorities and agents, acting as public
administrators, or members of the Judicial Branch, proceeding the judicial review of
administrative provisions.
In a broader perspective, this study seeks to contribute to the implementation of the
Rule of Law legal principles, particularly those of transparency and control of Public
Administration activities, ofering useful tools for practical implementation of its
clear benefits for society.
LISTA DE ABREVIATURAS
DJ Dirio de Justia RE Recurso Extraordinrio RESP Recurso Especial RMS Recurso em Mandado de Segurana ROMS Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justia
1
SUMRIO
INTRODUO............................................................................................................2
I ORIGEM E FUNDAMENTOS DO DEVER DE MOTIVAO .......................5
A) FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS ...............................................................5
B) SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO NO DIREITO BRASILEIRO ............19
II NATUREZA, FUNCIONALIDADES E CONTEDO DO DEVER DE MOTIVAO............................................................................................................28
A) NATUREZA..........................................................................................................28
B) FUNCIONALIDADES .........................................................................................41
C) CONTEDO DO DEVER DE MOTIVACAO .....................................................47
C.1) Dimenso formal...........................................................................................47
C.2) Dimenso material: motivos do ato ..............................................................56
III - MBITO DE APLICAO..............................................................................60
IV DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE MOTIVAO CONSEQNCIAS - LIMITES DE APRECIAO DO PODER JUDICIRIO .............................................................................................................93
A) VCIOS FORMAIS DA MOTIVAO............................................................93
A.1) Motivao sucessiva e convalidao ............................................................97
B) VCIOS MATERIAIS DE MOTIVAO: DEFEITOS DOS MOTIVOS............102
B.1) Motivos que no correspondem realidade................................................103
B.2) Motivos inadequados ..................................................................................110
CONCLUSES........................................................................................................115
BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................118
2
INTRODUO
Discorrendo sobre a organizao administrativa no Brasil
colonial, Raimundo Faoro afirmava: A luz do absolutismo infundia ao mando
carter desptico, seja na rea dos funcionrios de carreira, oriundos da corte, no
raro filhos de suas intrigas, ou nos delegados locais, investidos de funes pblicas...
A objetividade e impessoalidade das relaes entre sdito e autoridade, com os
vnculos racionais de competncias limitadas e controles hierrquicos, ser obra do
futuro; do distante e incerto futuro. Agora, o sistema o de manda quem pode e
obedece quem tem juzo, aberto o acesso ao apelo retificador do rei somente aos
poderosos. O funcionrio a sombra do rei, e o rei tudo pode: o Estado pr-liberal
no admite a fortaleza dos direitos individuais, armados contra o despotismo e o
arbtrio.1
Passados cinco sculos e seis Cartas Constitucionais,
finalmente instaurado o Estado Democrtico de Direito, a separao de poderes, a
consagrao ampla dos direitos fundamentais universais, os mesmos males do Brasil-
colnia ainda acometem a Repblica.
A despeito do avano das normas constitucionais, do farto
ferramental legal e das teorias do Direito Administrativo, desenvolvidas por juristas
ptrios ou replicadas de sistemas estrangeiros, ainda encontramo-nos em pleno
estado-maior da autoridade pblica, expresso utilizada por Faoro para sintetizar a
1 Os Donos do Poder Formao do Patronato Poltico Brasileiro, 3 ed., So Paulo: Globo, 2001, p. 198.
3
organizao poltico-administrativa de cunho patrimonialista que permeou a histria
do Brasil, nas suas diferentes roupagens.
Alis, o mesmo Faoro, dissertando sobre a rapinagem
burocrtica e a drenagem de recursos para a metrpole no Brasil colonial,
reproduz as seguintes palavras do Padre Antnio Vieira: Perde-se o Brasil, Senhor
(digamo-lo em uma palavra), porque alguns ministros de Sua Majestade no vm c
buscar o nosso bem, vm c buscar nossos bens... El-Rei manda-os tomar
Pernambuco, e eles contentam-se com o tomar...2. E, precisamente hoje e a despeito
do estruturado aparato legal, assistimos a todas as formas de apropriao privada dos
meios, recursos e cargos pblicos.
Nesse contexto, evidencia-se a atualidade de um tema j h
muito conhecido e caro ao Direito Administrativo Brasileiro, qual seja, o das
limitaes legais ao exerccio da funo pblica, dentre as quais o dever de
motivao, e seus respectivos controles.
Devido preocupao com a realidade brasileira, o presente
trabalho tem por objetivo estabelecer um quadro terico consistente e atual do dever
de motivao, pautando-se no direito comparado, sem dissoci-lo, no entanto, de
uma perspectiva prtica, razo da opo pela anlise crtica da evoluo
jurisprudencial concernente concretizao da norma.
As referncias ao direito estrangeiro no tm por objetivo
transpor para o contexto brasileiro os conceitos do dever de motivao e o alcance
que lhe foram conferidos em outros pases. Pelo contrrio, o contedo dessa norma e
4
seu mbito de aplicao s podem ser compreendidos por sua insero em
determinado sistema jurdico, considerada sua origem histrica e evoluo dentro
daquele ordenamento jurdico particular. As aluses ao direito comparado visam
apenas identificar semelhanas e diferenas com o dever de motivao em outros
sistemas, servindo como instrumento de auxlio na busca de definies vlidas e
consistentes para o direito brasileiro.
Por reconhecer a especificidade das normas que regem o
dever de motivao dos atos administrativos nos diferentes ordenamentos jurdicos,
moldadas por sua origem e desenvolvimento histrico dentro do contexto do
respectivo ordenamento, optamos por iniciar este estudo abordando no apenas os
fundamentos constitucionais do dever de motivar, mas tambm seu surgimento e
desenvolvimento no direito brasileiro. Essa perspectiva estar presente nos captulos
subseqentes, ao investigarmos o contedo da norma (Captulo II), seu mbito de
aplicao (Captulo III) e as conseqncias do descumprimento do dever (Captulo
IV). A mesma premissa imps um constante olhar sobre a jurisprudncia das cortes
brasileiras, que permeia todos os captulos do trabalho.
2 Idem, ibidem.
5
I ORIGEM E FUNDAMENTOS DO DEVER DE MOTIVAO
A) FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS
Como notrio, o dever de motivao no consta do rol de
princpios constitucionais dirigidos atuao da Administrao Pbica, inscrito no
caput do art. 37, embora tenha figurado no primeiro Projeto de Constituio debatido
na Assemblia Nacional Constituinte, com a seguinte formulao: A Administrao
pblica, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes obedecer aos princpios da
legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, exigindo-se, como condio
de validade dos atos administrativos, a motivao suficiente e, como requisito de sua
legitimidade, a razoabilidade.3
Sua existncia produto de um conjunto de dispositivos
constitucionais que compem, em ltima anlise, o sistema consagrado pela
Constituio da Repblica o Estado Democrtico de Direito. De fato, a norma
inscrita no caput do art. 1 da Constituio da Repblica respalda a exigncia de que
os agentes pblicos, no desempenho de sua atividade, justifiquem as decises
tomadas, demonstrando sua conformidade com o interesse pblico.
3 Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituio do Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 338. A nica referncia motivao na Constituio de 1988 diz respeito s decises administrativas dos Tribunais, nestes termos: Art. 93. Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, dispor sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princpios: (...) X as decises administrativas dos tribunais sero motivadas, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros.
6
A vinculao lgica do dever de fundamentar concepo de
Estado Democrtico de Direito recorrente na doutrina estrangeira e em autores
nacionais. Entre os ltimos, o precursor dessa teoria foi provavelmente Carlos
Roberto de Siqueira Castro, que sustentou, em obra publicada imediatamente aps a
promulgao da Constituio de 1988: Tal qual se passou com a evoluo dos
requisitos das decises judiciais nas instncias penais e civis, onde a existncia de
fundamentao legtima e racional erigiu-se em esteretipo da garantia do devido
processo legal, tambm na esfera do Direito Administrativo a existncia de
motivao vista hoje como condio dos atos da Administrao. A bem dizer, a
declinao dos motivos nas manifestaes estatais criadoras, extintivas ou
modificadoras de direitos, que caracterizam os pronunciamentos de carter decisrio
do Poder Pblico, tornou-se por toda parte uma exigncia do Estado democrtico de
Direito.4
A doutrina alem inclinou-se favoravelmente a essa
concluso, apontando o dever de motivao como derivao lgica dos princpios do
Estado de Direito e do acesso via judicial.
Se defensvel a existncia de uma correlao entre o dever
de fundamentao e o Estado Democrtico de Direito, a primeira questo que se
coloca se este dever aplica-se indistintamente aos trs Poderes Pblicos
Legislativo, Executivo e Judicirio ou seja, se pode-se conceber, sob um ngulo
estritamente tcnico, uma teoria geral da motivao dos atos pblicos.
4 Idem, p. 322.
7
primeira vista, a tese parece bastante atraente, em especial
se examinada sob o prisma das modernas teorias de legitimao da ao pblica pelo
procedimento, que, de certa forma, aproximaram as funes legislativa e executiva
da judicial, estendendo s primeiras parte das exigncias procedimentais
historicamente restritas ltima.5
Conquanto os trs Poderes Pblicos submetam-se aos
mesmos princpios nucleares do Estado Democrtico de Direito legalidade,
igualdade, prospectividade, controlabilidade e razoabilidade , inegvel que esses
princpios concretizam-se por meio de frmulas jurdicas peculiares e em diferentes
graus no mbito de cada uma das respectivas funes. Seus traos distintivos
impedem a elaborao de uma teoria comum da motivao dos atos pblicos,
aplicvel indiscriminadamente aos trs Poderes do Estado.6
Atos tipicamente legislativos (leis em sentido material) so
dotados de generalidade e abstrao, praticados dentro de um marco jurdico de
mxima discricionariedade, com liberdade de escolha em relao ao contedo e ao
tempo, sujeitando-se a procedimentos prprios de controle da constitucionalidade.
Atos administrativos e judiciais em sentido material consistem em aplicao concreta
5 Uma sntese dessas teorias e suas implicaes para os direitos fundamentais foi elaborada por Gomes Canotilho e publicada no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1990, sob o ttulo Tpico de um Curso de Mestrado sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organizao. O trabalho cita as importantes palavras de Konrad Hesse sobre o tema: Para os direitos fundamentais poderem desempenhar a sua funo na realidade social eles necessitam no apenas de uma normao intrinsecamente densificadora, mas tambm de formas de organizao e regulamentao procedimentais apropriadas. Por sua vez, os direitos fundamentais influem no direito da organizao e no direito de procedimento. Esta influncia verifica-se no apenas nos direitos especificamente procedimentais, mas tambm nos direitos materiais (Europische Grundrechtszeitszeitschrift: Bestand und Bedeutung in der Bundesrepublik Deutschland, 1978, p. 484). 6 Ressalvado, no particular, o pensamento de Kelsen, para quem o exerccio das funes estatais tem natureza idntica, traduzindo-se em criao de normas jurdicas, que se diferenciam apenas pelo grau de concreo (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 6 ed., So Paulo: Martins Fontes, 1998).
8
da lei a destinatrios especficos e determinados ou determinveis. Assemelham-se,
como atos que visam concreo do direito objetivo, os administrativos e judiciais,
mas o fazem com vistas a finalidades diversas: realizao dos interesses pblicos, no
primeiro caso; soluo de conflitos, no segundo. No exerccio da funo executiva, o
Poder Pblico age de ofcio e com parcialidade na prossecuo do interesse pblico,
sendo os atos praticados no exerccio dessa funo passveis de impugnao judicial,
exceto quanto sua convenincia e oportunidade. Ao investir-se da funo judicial,
em contrapartida, est o Poder Pblico adstrito a agir somente mediante provocao
e com estrita imparcialidade, revestindo-se as decises proferidas no exerccio dessa
funo de fora de coisa julgada.7
A obrigatoriedade de fundamentao expressa das decises
pblicas uma das garantias asseguradas aos cidados no quadro de um Estado
Democrtico de Direito: no a nica, nem a principal, nem historicamente
anterior a outros limites gradativamente impostos ao Estado e tende a esvaziar-se se
no combinada com procedimentos prprios de impugnao dos atos estatais. Sendo
uma garantia da esfera jurdica dos cidados contra ingerncias do Poder Pblico,
sua exigncia justifica-se se e na exata proporo em que essa esfera encontre-se
ameaada pela atividade estatal.
Esse argumento explica, por exemplo, que o princpio da
motivao tenha originalmente destinado-se aos atos judiciais e que a fundamentao
7 precisamente a fora de coisa julgada ou force de vrit lgale que distingue, na teoria de Jze, o ato judicial do ato administrativo. Essa tese foi mote de um acirrado debate entre Jze e Duguit, para quem o trao distintivo do ato judicial era sua natureza de silogismo, definio que, objetava Jze, tambm se prestava ao ato administrativo (Gaston Jze, Droit Administratif, p. 35 e ss., e Lon Duguit, Manuel de Droit Constitutionnel, 4 ed., Paris: E. de Boccard, 1923, p. 117 e ss.). A definio das funes pblicas a partir de critrios materiais ainda hoje controvertida e exorbita os objetivos
9
de decises tomadas no exerccio da funo judicante esteja sujeita a um maior rigor
no que tange sua completude e estruturao lgica. que a motivao do ato
judicial o que permite aferir, in concreto, (i) a imparcialidade do Juiz e (ii) o
respeito ao direito de ao, que inclui a possibilidade da parte de fazer valer suas
razes em Juzo, de modo efetivo.8 O potencial do ato judicial de atingir a esfera
jurdica do indivduo com fora de coisa julgada demanda um dimensionamento
prprio da garantia da motivao desses atos, revestindo-a de exigncias formais
rgidas e mecanismos efetivos de controle de sua observncia. Paralelamente, a
fundamentao de decises judiciais permite o convencimento da parte sucumbente,
j que o exerccio da funo judicante - no que se distingue das demais funes do
Estado - pressupe a existncia de um conflito de interesses. Por outro lado,
justifica-se a exigncia de motivao do ato judicial antecipatrio ou cautelar em
virtude de sua fora coercitiva imediata; atos revestidos de auto-executividade, ou
seja, aptos a impactar imediatamente a esfera dos indivduos, demandam justificativa
expressa.
No obstante relevncia que assume na funo judicial, o
dever de motivao aplica-se, em diferentes medidas, ao exerccio da atividade
administrativa, de acordo e proporcionalmente potencialidade dos diferentes atos
administrativos de afetar a esfera jurdica dos indivduos. Aplica-se tambm funo
legislativa, mas de forma ainda mais branda, haja vista que a lei em sentido material,
genrica e abstrata, no tem o condo de atingir diretamente direitos individuais. No
se pode negar, entretanto, que, cada vez mais, as leis exigem justificativas racionais e
deste trabalho. Para uma sntese das principais doutrinas a respeito do tema, veja Jorge Miranda, Funes do Estado, Revista de Direito Administrativo, n 189, 1992.
10
plausveis, definidas nos projetos submetidos votao, sujeitas que esto ao
controle de proporcionalidade e razoabilidade.
Da depreende-se que, conquanto os trs poderes pblicos
sujeitem-se aos princpios do Estado Democrtico de Direito, nos quais est
implicada a exigncia de justificao racional e razovel de toda a atividade de seus
representantes, uma teoria geral da motivao dos atos pblicos no se sustenta
tecnicamente. Os questionamentos quanto existncia de um efetivo dever de
motivar e a forma como este se concretiza encontram respostas distintas para cada
uma das funes do Estado, restringindo-se o escopo deste trabalho aplicabilidade
desta norma ao exerccio da funo executiva/administrativa. sob este prisma que
ser analisada daqui em diante.
Nas linhas anteriores, referimos que, modernamente, a
frmula Estado de Direito sintetiza uma srie de princpios delimitadores da ao
estatal e, mais especificamente, da atividade administrativa. A idia de motivao
dos atos administrativos relaciona-se, em diferentes medidas, com cada um desses
princpios, sendo, sob certa tica, um canal de confluncia de todos eles.
Nos sistemas jurdicos da famlia romano-germnica a
concepo de Estado de Direito reconduzia-se originariamente ao princpio da
legalidade9. E, ainda hoje, a supremacia da lei trao essencial do Estado de Direito
nesses pases.10
8 Jos Carlos Barbosa Moreira, A motivao das decises judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito, in Temas de Direito Processual, 2 srie, 2 ed., So Paulo, Saraiva, 1988. 9 LEtat, ayant fait la loi, est oblig de respecter cette loi tant quelle existe. Il peut la modifier ou labroger; mais tant quelle existe, il ne peut faire ou un acte de contrainte, ou un acte administratif ou
11
O prprio direito administrativo, como disciplina autnoma,
desenvolve-se a partir da separao de poderes e submisso do Poder Executivo
vontade geral traduzida na lei. A Administrao Pblica s age de acordo com e na
forma prescrita em lei, o que representa o primeiro e mais notvel mecanismo de
conteno do arbtrio do poder pblico e garantia da liberdade dos cidados.
O princpio da legalidade, como hoje se projeta no mbito do
direito administrativo, consiste em um conjunto de limites formais e materiais
impostos funo administrativa, conforme elucida Renato Alessi. Sob o prisma
formal, o ato administrativo deve obedecer s prescries legais quanto
constituio, competncia e formalidades de que deve revestir-se; sob o prisma
material, deve fundar-se na existncia concreta do interesse pblico exigido pela
norma de competncia.11
Por conseguinte, a congruncia de determinado ato
administrativo com a lei no depende apenas do cumprimento das prescries
formais, mas da verificao concreta do interesse pblico subjacente norma legal.
Enquanto no ato jurdico privado as razes que inspiraram o autor, bem como o
jurisdictionnel que dans la limite fixe par cette loi, et en cela encore lEtat est un Etat de droit. (Lon Duguit, Manuel de Droit Constitutionnel, cit., p. 33). 10 No sistema anglo-saxnico, a submisso da atividade estatal ao Direito no se processa atravs da primazia da lei (tat Legal francs ou Rechtsstaat alemo), mas atravs da obrigatoriedade da observncia de um processo justo legalmente regulado, quando se tiver de julgar e punir os cidados, privando-os da sua liberdade e propriedade, sistema denominado Rule of Law (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 3a ed., Coimbra, Almedina, 1999, p. 89/90). 11 Questi limiti posti alla potest di azione dellamministrazione consistono, come si disse a suo luogo, in una complessa esigenza di conformit alla legge, intesa questa conformit sia da un punto di vista formale (prescrizioni relative alla costituzione ed alla competenza ad agire dellautorit, nonch alla forma dellazione) e sia da un punto di vista sostanziale: sussistenza in concreto del grado di interesse publico determinato dalla norma contenente il conferimento della potest di azione; onde parimenti in una complessa esigenza di conformit formale e sostanziale, alla legge del provvedimento che della potest di azione dellamministrazione costituisce esplicazione, si concreteranno i requisiti del provvedimento stesso, requisiti, pertanto, che potranno essere qualificati come requisiti di legalit (o legittimit in senso lato) di questultimo. (Renato Alessi, Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano, 2 ed., Milo, Giuffr, 1958, p. 281)
12
objetivo a ser alcanado, so, via de regra, indiferentes validade do ato, o mesmo
no ocorre com o ato jurdico pblico e, especialmente, com o ato administrativo.12
A legalidade imanente ao Estado de Direito, portanto, desdobra-se em legalidade
formal e legalidade substancial.13
A legalidade no direito administrativo abrange, assim, todos
os aspectos do ato: competncia, forma, objeto/contedo, finalidade e motivo. O
motivo em que se baseia a prtica do ato administrativo no livre, como no campo
das relaes interprivados, mas estritamente vinculado lei.14 A norma legal, no
entanto, nem sempre define um nico motivo apto a desencadear determinado ato;
pode contemplar uma srie deles, como ocorre, por exemplo, com a dispensa de
licitao, que pode basear-se em qualquer dos mais de vinte fundamentos distintos
previstos no artigo 24 da Lei n. 8.666/93. Em outras hipteses, a norma no conter
previso expressa do motivo, legando ao administrador uma margem mais larga de
discricionariedade. o caso da deciso de explorao de determinado servio
pblico por via direta ou pelo regime de concesso. Em qualquer dos casos, em
ltima anlise, o dever que se impe ao administrador reportar seus atos a razes de
interesse pblico.15
12 Caio Tcito, O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais, Revista de Direito Administrativo, n 188, 1992. 13 Renato Alessi, Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano, cit., p. 291. 14 Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, 2 ed., Rio de Janeiro, Jos Konfino, 1950 p. 38. 15 Do reconhecimento do interesse pblico como fim da atividade administrativa no se extrai um princpio jurdico-constitucional de supremacia deste sobre o interesse privado. Interesses privados esto includos entre os fins do Estado (ex: direitos fundamentais), de modo que no se sustenta, do ponto de vista lgico, a existncia de uma norma relacional excludente da ponderao entre interesses pblicos e particulares no caso concreto. A relao entre interesses do Estado e dos cidados s pode ser entendida atravs do postulado da unidade da reciprocidade de interesses, que impe a ponderao concreta entre ambos, excluindo a prevalncia, prima facie, de um ou de outro (Humberto Bergmann vila, Repensando o Princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular, in O Direito Pblico em Tempos de Crise, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 99 e ss.).
13
A validade do ato da Administrao no prescinde, assim, da
correspondncia de seus motivos com os motivos abstratamente previstos na lei,
ainda que de forma implcita. E precisamente neste ponto que reside o vnculo
entre o princpio da legalidade e o dever de motivao dos atos administrativos. A
fundamentao explcita do ato demonstra a harmonia concreta entre os motivos
adotados pela Administrao e aqueles previstos na norma de competncia.
Por isso, j asseverou-se que o Estado de Direito aquele em
que a atuao dos Poderes Pblicos se justifica na lei; justifica-se materialmente,
quando existe um fundamento para a interferncia do Estado, e justifica-se
formalmente quando se explicita e divulga tal fundamento.16
A primeira conexo do dever de motivao com o Estado de
Direito, portanto, extrai-se do princpio da legalidade: a Administrao deve
demonstrar a correspondncia dos motivos em que baseia suas condutas com aqueles
abstratamente previstos na norma legal de competncia.
O Estado de Direito, como hoje compreendido, entretanto,
no se exaure no princpio da legalidade. Compreende, como se disse, uma srie de
limites impostos aos Poderes Pblicos para garantia dos cidados.17
A sujeio dos Poderes Pblicos lei, no Estado de Direito,
deve ser, primeiramente, passvel de controle judicial.18 O controle judicial dos atos
16 Jos Carlos Barbosa Moreira, A motivao das decises judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito, in Temas de Direito Processual, 2 srie, 2 ed., So Paulo, Saraiva, 1988. 17 Para um panorama das vicissitudes do Estado de Direito na jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, ver Lus Afonso Heck, O Tribunal Constitucional Federal e o Desenvolvimento dos Princpios Constitucionais, Porto Alegre, Fabris, 1995. 18 Diante dsses conflitos em que so partes, de um lado, a Administrao Pblica, como rgo ativo do Estado, e, de outro, o indivduo, surgem dois problemas complexos no mecanismo estatal. Primeiramente, o da sujeio das atividades da Administrao Pblica ordem jurdica, problema da
14
administrativos, inclusive em face dos princpios constitucionais da moralidade,
legalidade, impessoalidade, razoabilidade e proporcionalidade, depende, na maioria
dos casos, do exame de seus motivos. Por isso, a motivao freqentemente
relacionada ao direito de acesso Justia.19
A par da estreita relao com o princpio da legalidade, viga
mestra do Estado de Direito no sistema continental, nota-se, portanto, que o dever de
motivao dos atos da Administrao Pblica pode ser relacionado com o princpio
correspondente do sistema anglo-saxnico, o due process of Law, integrado ao
direito brasileiro por obra da jurisprudncia e inscrito na Constituio de 1988.
Adotado originalmente pelo direito norte-americano como
norma adjetiva, garantidora do contraditrio e ampla defesa em processos judiciais, o
devido processo legal, atravs da criao jurisprudencial da Supreme Court,
alastrou-se aos procedimentos travados na Administrao Pblica, impondo a esses
rigorosa observncia dos princpios da legalidade e da moralidade administrativas.
Por sua crescente e prestigiosa aplicao, acabou por transformar-se essa garantia
constitucional em princpio vetor das manifestaes do Estado contemporneo e das
relaes de toda ordem entre o Poder Pblico, de um lado, e a sociedade e os
indivduos, de outro.20
esttica do direito. Depois, o do controle poltico-jurdico dessa sujeio, interessando aos fenmenos da dinmica do direito (Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, cit., p. 114). 19 Importante ressaltar que o controle do ato administrativo no se resume ao realizado pelo Poder Judicirio. A motivao do ato administrativo igualmente instrumento de controle interno - fiscalizao hierrquica de ofcio ou atravs de recursos administrativos - e de controle externo exercido pelo Legislativo - diretamente ou atravs dos Tribunais de Contas, alm do controle social. 20 Carlos Roberto de Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituio do Brasil, cit., p. 40-41.
15
Em sua acepo primria de norma instrumental, o due
process of Law sintetizava a idia de que ningum poderia ser privado de sua vida,
liberdade ou propriedade sem a observncia de requisitos procedimentais mnimos.21
Essa acepo traduziu-se no processo administrativo norte-americano como uma
garantia essencial de notice and hearing, de extenso e funcionalidades no
necessariamente idnticas quelas exercidas pelo princpio no processo judicial.22
A jurisprudncia brasileira trilhou caminho anlogo ao da
norte-americana no sentido de transpor as garantias do processo judicial para o
processo administrativo em geral, embora nem sempre mediante invocao expressa
da clusula do devido processo legal.
Em inmeras ocasies, o Tribunal Federal de Recursos
proclamou a extenso das garantias adjetivas do due process of Law ao procedimento
administrativo, notadamente o de carter disciplinar. Aps, as mesmas garantias
foram exigidas em procedimentos administrativos sem finalidades punitivas. Em
1981, o Tribunal proferiu deciso com a seguinte ementa: Direito Administrativo.
Administrao pode anular os seus prprios atos contaminados de vcios que os
tornem ilegais. Quando, porm, do ato inquinado resultar situao subjetiva ou
21 So os exatos termos da quinta emenda Constituio dos Estados Unidos da Amrica: No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous, crime, unless on a presentment or indictment of a grand jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the militia, when in actual service, in time of war, or public danger; nor shall any person be subject, for the same offence, to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled, in any criminal case, to be a witness against himself; nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation. 22 Uma conhecida sntese da aplicabilidade do due process aos procedimentos administrativos foi formulada por Mr. Justice Brandeis, em deciso proferida pela Supreme Court em 1936, nos seguintes termos: The inexorable safeguard which the due process clause assure is not that a court may examine whether the findings are...correct, but that the trier of facts shall be an impartial tribunal; that no findings shall be made except upon due notice and opportunity to be heard; that the procedure at the hearings shall be consistent with the essentials of a fair trial, and that it shall be conducted in such a way that there will be opportunity for a court to determine whether the applicable rules of law and
16
estado de fato em favor de uma pessoa, antes de proferir a nulidade deve assegurar a
esta a oportunidade de defesa com o imperativo do devido processo legal.23 E, j em
1986, assentou: A garantia do due process of law tem aplicao no
procedimento administrativo. Destarte, quando a administrao tiver que impor
uma sano, uma multa, ou de fazer um lanamento fiscal, ou de decidir a respeito de
determinado interesse do administrado, dever faz-lo num processo regular, com
possibilidade de defesa.24
Com essa conotao, o princpio do devido processo legal foi
inscrito na Constituio de 1988.25 Conquanto o texto constitucional utilize o termo
litigantes ao consagrar a clusula do devido processo administrativo, hoje
inquestionvel sua aplicao tanto aos processos administrativos punitivos, como
queles em que no se objetiva a imposio de qualquer espcie de sano, mas to-
somente a prtica de um ato administrativo ensejador de conseqncias na esfera
jurdica do administrado, individual ou coletivamente considerado.
Em um segundo momento, e tambm por obra da
jurisprudncia da Suprema Corte norte-americana, o devido processo legal adquiriu
feio substantiva, revestindo a funo de controlador do prprio contedo das
decises adotadas pela Administrao Pblica26 e possibilitando a expanso do
procedure were observed (St. Joseph Stock Yards Co. V. United States, 298 U.S. 38, apud Bernard Schwartz, American Administrative Law, London: Sir Isaac Pitman & Sons Ltd, 1950, 70). 23 Apelao em mandado de segurana n 86.453-SP, Relator Ministro Torreo Braz, julgado em 31/03/1981, citado por Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituio do Brasil, cit., p. 341. 24 Remessa ex officio n 92.653-CE, Relator Ministro Carlos Velloso, julgado em 16 de abril de 1986, citado por Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituio do Brasil, cit., p. 341. 25 Art. 5, LIV: ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. 26 Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituio do Brasil, cit., p. 43.
17
judicial review ao controle da razoabilidade e racionalidade dos atos dos Poderes
Pblicos em geral27.
Observe-se que o princpio da motivao dos atos
administrativos encontra justificativa em ambas as dimenses adjetiva e
substantiva - do devido processo legal.
Na primeira, porque a possibilidade de defesa da parte
depende do conhecimento do ato da Administrao, bem como de seus fundamentos.
O sigilo sobre as circunstncias que induziram a prtica de determinado ato dificulta
ou inviabiliza sua impugnao, seja na via judicial, seja na via administrativa. o
que ocorre, por exemplo, nos casos de reprovao em entrevistas de concursos
pblicos, em que no so divulgadas as razes pelas quais o candidato foi
considerado inapto para a funo.
Vista sob esse prisma, a motivao no consiste em uma
garantia apenas das partes, mas, sobretudo, da sociedade, que detm interesse em
toda a atividade administrativa, ainda quando diga respeito a direitos individuais.
Pode-se transpor, para a motivao do ato administrativo, o que j foi dito sobre a
motivao das sentenas: A garantia compreende no s o enunciado das escolhas
do juiz em relao individuao das normas aplicveis ao caso concreto e s
correspondentes conseqncias jurdicas, como os nexos de implicao e coerncia
entre esses enunciados, com vistas a possibilitar o controle do pronunciamento
judicial pelas partes e pela sociedade. (...) Devendo ser exercitvel pelos
jurisdicionados in genere, tal controle constitui inestimvel fator de coeso
27 Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituio do Brasil,
18
social e da solidez das instituies, apresentando-se, assim, como garantia
poltica inerente ao prprio Estado de direito.28
J em seu vis substantivo, o princpio do devido processo
legal exerce funo correspondente ao princpio de interdio arbitrariedade dos
Poderes Pblicos, desenvolvido no direito constitucional Europeu. Intervenes
estatais injustificadas na esfera jurdica dos particulares atentam contra uma
concepo geral de interdio arbitrariedade, seja ela assentada na teoria do due
process of Law ou no princpio da razoabilidade.
arbitrrio, segundo Toms-Ramon Fernndez, todo
aquello que es o se presenta como carente de fundamentacin objetiva, como
incongruente o contradictorio con la realidad que ha de servir de base a toda
decisin, como desprendido de o ajeno a toda razn capaz de explicarlo29. O
conceito de arbitrariedade vincula-se, em sua essncia, idia de motivao.
Enfim, o dever de motivao dos atos administrativos
concretiza os fins almejados pelo Estado de Direito, interagindo com seus
subprincpios da legalidade, da controlabilidade e da razoabilidade dos atos dos
Poderes Pblicos.
cit., p. 55. 28 Carlos Alberto lvaro de Oliveira, Do Formalismo no Processo Civil, So Paulo: Saraiva, 1997, p. 88-89. Grifou-se. 29 Tomz Ramon Fernadez, citado por Fbio Medina Osrio, O princpio constitucional da motivao dos atos administrativos: exame de sua aplicabilidade prtica aos casos de promoo e remoo de membros do Ministrio Pblico e Magistratura por merecimento nas respectivas carreiras, Revista de Direito Administrativo, n 218.
19
B) SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO NO DIREITO BRASILEIRO
Segundo noticia Florivaldo de Arajo Cintra, um dos
primeiros julgados referentes ao princpio da motivao data de 1915. poca, o
STF assentou que a demisso de funcionrios no-vitalcios prescindia de
motivao.30 Entretanto, conforme afirma o autor, j nesse perodo registravam-se
posies contrrias a esse entendimento, como a do Ministro Pedro Lessa, que, em
voto proferido no mesmo caso, asseverou: Demitir um funcionrio que procedeu
corretamente, que o prprio governo demitente no o acusa de ato algum censurvel,
no , por certo, usar do prudente arbtrio que devem ter os governos.31
A doutrina nacional, de longa data, realava a importncia do
motivo como elemento do ato administrativo, reconhecendo-o, inclusive, como
determinante para a manuteno do ato, como ilustram as palavras de Francisco
Campos: ...quando um ato administrativo se funda em motivos ou pressupostos de
fato, sem a considerao dos quais, da sua existncia, da sua procedncia, da sua
veracidade ou autenticidade, no seria o mesmo praticado, parece-me de boa razo,
uma vez verificada a inexistncia dos fatos ou a improcedncia dos motivos, deva
deixar de subsistir o ato que neles se fundava... Desaparecido, por verificar a sua
improcedncia, o motivo determinante do ato, motivo sem a convico do qual a
Administrao no teria agido como o fez, claro que a conseqncia lgica,
30 Motivao e Controle do Ato Administrativo, So Paulo: RT, 1979, p. 173. O autor refere-se Apelao Cvel n 2.091. 31 Idem.
20
razovel e legtima deva ser, com a queda do motivo, a do ato que nele se originou
ou que teve como causa declarada e suficiente32.
A Lei da Ao Popular, em 1965, consagrou a ausncia de
motivos como vcio do ato administrativo. O artigo 2 elenca os vcios dos atos
administrativos, que correspondem ausncia, falha ou insuficincia dos elementos
dos atos (competncia, forma, objeto, motivos e finalidade). De acordo com o
dispositivo mencionado, so nulos os atos nos casos de: (a) incompetncia, (b) vcio
de forma, (c) ilegalidade do objeto, (d) inexistncia de motivos, (e) desvio de
finalidade.
J nessa poca, ento, a necessidade de existncia e
adequao dos motivos dos atos administrativos - assim como a possibilidade de seu
controle judicial era amplamente reconhecida. A obrigatoriedade de externao
desses motivos, entretanto, permanecia uma questo sem resposta. Por isso, houve
quem afirmasse que os motivos do ato podem no ficar explcitos, mas devem
existir e ser provados quando necessrio.33
A necessidade de controle dos motivos do ato administrativo,
contudo, impunha, em ltima anlise, a exigncia de sua explicitao. Se o motivo
submetia-se a controle judicial, a quem incumbia sua revelao e prova (
Administrao ou aos terceiros interessados)? Qual o momento apropriado para sua
divulgao (simultaneamente ou posteriormente prtica do ato, atravs de recurso
judicial ou administrativo)? Como saber se os motivos apresentados em Juzo foram
32 Francisco Campos, Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Revista Forense, 1942, p. 122. 33 Mrio Masago, Curso de Direito Administrativo, citado por Antnio Carlos de Arajo Cintra, Motivo e Motivao do Ato Administrativo, So Paulo: RT, 1979, p. 121.
21
efetivamente considerados pelo agente administrativo ou forjados posteriormente,
a fim de sustentar a legitimidade do ato?
Em busca de respostas a essas indagaes, o STF passou a
exigir, de forma assistemtica, a fundamentao explcita dos atos da Administrao,
invocando, via de regra, o princpio da judicial review34, ou outros, como o do
contraditrio, do acesso universal aos cargos pblicos35, da legalidade36, igualdade
etc.
Em 1963, ao apreciar hiptese de reviso da classificao dos
candidatos em concurso para Oficial de Justia, pelo Conselho Superior da
Magistratura do Rio Grande do Sul, o Plenrio da Corte concluiu: No tendo sido
motivada a reviso da classificao dos candidatos aprovados no concurso, outro
julgamento deve ser proferido, no qual se observe essa formalidade.37
O Ministro Lus Gallotti, em voto proferido na ocasio
asseverou incisivamente: O Tribunal j tem seu o critrio, assentado e pacfico,
sobre decises no motivadas. Decises no motivadas anulam-se. Nunca vi, neste
Tribunal prevalecer outro critrio, que no este. O Ministro Hermes Lima indagava:
Onde est o dispositivo de lei que obriga o Conselho a justificar sua reviso?, ao
que o Ministro Victor Nunes Leal respondia: A motivao que nos permite
34 RE n 111400-2 35 RMS n 17999, Primeira Turma, Relator Ministro Victor Nunes, julgado em 12/02/1968, DJ 15/03/68. 36 RE n 76601, Primeira Turma, Relator Ministro Antonio Neder, julgado em 12/09/1978, DJ 06/10/78. 37 RMS n 11792/63
22
distinguir entre o arbtrio e o julgamento. A lei concedeu arbtrio; deu competncia
para julgar. Quem julga deve motivar suas decises....
Em deciso posterior, reportando-se ao princpio do acesso
universal aos cargos pblicos, a mesma Corte abrandou esse posicionamento,
estabelecendo que, conquanto a divulgao dos motivos fosse necessria, no
precisaria ser contempornea ou anterior ao ato, desde que apresentada
posteriormente perante o Judicirio: Concurso para Delegado de Polcia (SP). Os
motivos do atestado negativo de boa conduta devem ser revelados ao Judicirio, pois
est em causa o direito constitucional de acesso competitivo aos cargos pblicos, no
podendo prevalecer o puro arbtrio da Administrao.38
Em outro precedente importante, julgado em 1974, o STF
asseverou uma vez mais que em princpio, o ato administrativo deve ser
motivado.39
Na linha da jurisprudncia em construo, Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello lecionava, em 1969: Os atos jurdicos pblicos, levados a efeito
pelo Estado, ou por quem faa suas vezes, e mesmo pelos particulares, provocando
os atos daquele ou completando-os, em princpio, cumprem ser motivados, a fim de
que se possa efetivar controle externo sobre eles, seja para verificar se houve
38 RMS n 17999, Primeira Turma, Relator Ministro Victor Nunes, julgado em 12/02/1968, DJ 15/03/68. 39 MANDADO DE SEGURANA. MOTIVAO. 1. Em princpio, o ato administrativo deve ser motivado. 2. Mas a motivao, mormente em se tratando de julgamento de recursos administrativos pelo Presidente da Repblica, pode resultar de exposio de motivos, ato ou parecer existente no processo e oriundo dos rgos auxiliares do Governo. 3. Se a autoridade era a competente, houve inqurito com a cincia e defesa do interessado, foi legal a sano aplicada, e no ocorreu abuso ou desvio de poder, no h cabimento para mandado de segurana que tem como condio sine qua non a existncia de direito subjetivo lquido e certo (MS n 20012, Tribunal Pleno, Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 11/12/1974, DJ 11/04/75).
23
infrao frontal ao texto da lei, no caso de exerccio de poderes vinculados, seja para
verificar se inexistiu abuso de direito, no caso de exerccio de poderes
discricionrios.40
Na maior parte dos sistemas jurdicos, a origem da exigncia
de motivao dos atos administrativos essencialmente jurisprudencial.
Na Alemanha, o princpio desenvolveu-se a partir de uma
deciso histrica do Tribunal Constitucional Federal, proferida em 1957, em que a
Corte definiu: o cidado cujos direitos sejam atingidos pela deciso administrativa
tem o direito de conhecer as suas razes. S a partir desse momento, ele poder
razoavelmente defender os seus direitos.41
Na Itlia, doutrina e jurisprudncia, h muito, consolidaram o
entendimento de que os atos administrativos devem ser fundamentados por fora de
lei ou de sua natureza peculiar.42 A mesma orientao foi adotada na Grcia,
conforme se depreende do texto de Stassinopoulos: ...la jurisprudence du Conseil
dtat hellnique a dej admis un autre principe selon lequel, mme dfaut dune
telle disposition de la loi, les motifs dterminants doivent tre mentionns si la nature
spciale de lacte limpose.43
Em Portugal, ainda no perodo anterior edio do Decreto-
Lei n 256-A/77, que consagrou o dever de motivao, o Supremo Tribunal
40 Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princpios Gerais de Direito Administrativo, Vol. I, Rio de Janeiro, Forense, p. 469. 41 Aresto de 13 de janeiro de 1958, in BVeriGe 6, 32 (44) (Jos Osvaldo Gomes, Fundamentao do Acto Administrativo, 2 ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1981, p. 31). 42 Luciano Vandelli, Osservazioni sullobbligo di motivazione degli atti amministrativi, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Ano XXVII, n 4, 1973. 43 Stassinopoulos, Michel D. Trait des Actes Administratifs, Paris, LGDJ, 1973, p. 126.
24
Administrativo exigia a justificao de determinados atos administrativos, como
decises disciplinares punitivas ou revogao de atos fundamentados por imposio
legal.44
O Conselho de Estado francs trilhou caminho distinto:
ateve-se estritamente, durante muito tempo, ao princpio pas de motivation sans
texte, exigindo fundamentao expressa apenas dos atos em relao aos quais a
legislao impusesse esse dever.45
A partir da dcada de 50, contudo, ampliou o controle
exercido sobre os motivos de determinadas decises administrativas, obrigando a
Administrao a justificar seus atos em sede jurisdicional, se assim desejasse o
interessado.46 O primeiro marco nesse sentido o clebre Arrt Barel, de 1954.47 Na
espcie, o Conselho de Estado, face verossimilhana do requerimento formulado
pelos interessados, cuja inscrio no concurso para a E.N.A. fora indeferida, imps
Administrao o nus da prova dos motivos de indeferimento, atravs da
apresentao de documentos que sustentassem o ato. Diante da negativa do Ministro
em prestar as informaes requisitadas, o Conselho de Estado concluiu que as razes
44 Jos Osvaldo Gomes, Fundamentao do Acto Administrativo, cit.. 45 A primeira consagrao legal do dever de motivar, no direito francs, data de 1908 e dirigia-se aos atos suspensivos e revogatrios dos prefeitos. Posteriormente, estendeu-se a outras reas, como o direito disciplinar de funcionrios, urbanstico, indeferimento de pretenses etc (Idem, p. 29). 46 que labsence de rgle de motivation obligatoire dun acte ne peut en aucun cas emporter labsence dobligation pour lAdministration devoir rendre compte des raison et fondements de ss dcisions (Bernard Pacteau, Le juge de lexcs de pouvoir et les motifs de lacte administratif, Travaux e Recherches de la Faculte de Droit et de Science Politique de lUniversite de Clermont I, 1977, p. 48), 47 Tratava-se de recusa de cinco candidaturas para concurso de ingresso na Ecole Nationale dAdministration. Alguns dias aps o indeferimento, um membro do gabinete do secretrio de Estado responsvel pelo concurso declarou imprensa que o Governo no aceitaria nenhum candidato comunista E.N.A.. Os prejudicados, ento, interpuseram recurso de anulao perante o Conseil dtat, sob o argumento de que foram recusados unicamente em razo de suas opinies polticas (28 mai 1954 - Barel - Rec. Lebon p. 308). Para uma anlise completa do acrdo, veja Analyse des grands arrts em http://www.conseil-etat.fr/ce/jurisp/index_ju_la35.shtml)
25
da recusa das candidaturas eram estranhas ao interesse pblico, anulando o ato
impugnado.
A jurisprudncia que se construiu a partir desse precedente
criou para a Administrao a obrigao de fundamentar quaisquer atos que
importassem prejuzos a terceiros, mas somente na esfera contenciosa.
Essa orientao prevaleceu at a dcada de setenta, quando o
Conselho de Estado passou a reconhecer, a partir dos arrts Agence Maritime
Marseille-fret e Lang, a necessidade de motivar determinados atos em virtude da
natureza, composio e atribuio dos rgos que os expedissem, independentemente
de lei expressa.
As normas gerais sobre o dever de motivao dos atos
administrativos foram editadas na Frana apenas em 1979, atravs da Lei n 79-587
de 11 de julho.
No Brasil, diplomas legais mais recentes passaram a
contemplar dispositivos de carter geral concernentes ao dever de motivar, sobretudo
no campo da atividade regulatria, como, por exemplo, a Lei n 9.472/97, que
instituiu a Agncia Nacional de Telecomunicaes - ANATEL, determinando, em
seu artigo 40, que os atos da agncia devero ser sempre acompanhados de
exposio formal de motivos que os justifiquem.
Contudo, foi a Lei n 9.784/99, que regulou o processo
administrativo no mbito da Administrao Pblica Federal, que consagrou o dever
de motivar como princpio orientador de toda a atividade administrativa, nos
26
seguintes termos: Art. 2. A Administrao Pblica obedecer, dentre outros, aos
princpios da legalidade, finalidade, motivao, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditrio, segurana jurdica, interesse pblico e
eficincia.
No plano estadual, algumas Constituies j haviam includo
o princpio da motivao de forma expressa em seus textos. Assim, as Constituies
dos estados de So Paulo e Minas Gerais.48 Tambm na Constituio do estado do
Rio Grande do Sul o princpio da motivao foi introduzido atravs da Emenda
Constitucional n 7/95, juntamente com os princpios da legitimidade, da
participao, da razoabilidade e da economicidade.49
Como visto, a exigncia de motivao dos atos
administrativos surgiu na jurisprudncia brasileira, conquanto de forma
assistemtica, como elemento necessrio ao controle judicial da Administrao. Na
linha da orientao consolidada em outros pases, o Brasil no adotou o princpio pas
de motivation sans texte, impondo o dever de fundamentar determinados atos em
razo de sua prpria natureza, independentemente de lei.
48 Veja, respectivamente: Art. 111. A administrao pblica direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivao e interesse pblico; Art. 13. A atividade de administrao pblica dos Poderes do Estado e da entidade descentralizada se sujeitaro aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e razoabilidade. (...) 2 O agente pblico motivar o ato administrativo que praticar, explicitando-lhe o fundamento legal, o ftico e a finalidade. 49 Art. 19. A Administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municpios, visando promoo do bem pblico e prestao de servios comunidade e aos indivduos que a compe, observar os princpios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participao, da razoabilidade, da economicidade, da motivao e o seguinte: (...)
27
Nos captulos subseqentes, sero examinadas as
conseqncias da evoluo histrica do princpio no direito brasileiro e as dimenses
de sua inscrio em textos legislativos recentes.
28
II NATUREZA, FUNCIONALIDADES E CONTEDO DO
DEVER DE MOTIVAO
A) NATUREZA
No primeiro captulo, afirmamos que a motivao no
consiste em uma garantia apenas das partes diretamente envolvidas, mas sobretudo
da sociedade, que detm interesse em toda a atividade administrativa, ainda quando
diga respeito a direitos individuais.
Se a assertiva verdadeira, qual a natureza jurdica do
imperativo de fundamentao? Consiste em norma de ao dirigida Administrao
Pblica qual correspondem interesses jurdicos dos particulares ou ser possvel
conceber-se um direito subjetivo dos cidados motivao dos atos administrativos?
Classificando-se como direito subjetivo pblico, estaria alado categoria de direito
fundamental a despeito da ausncia de previso constitucional (direito fundamental
material)?
Interesses jurdicos ou legalmente protegidos so interesses
dotados de um grau intermedirio de tutela jurdica, situado entre os interesses
simples, desprovidos de qualquer espcie de proteo, e os direitos subjetivos. De
fato, na dico de Pontes de Miranda, h interesses protegidos, sem que a regra
29
jurdica protectiva faa exsurgirem direitos50. Correspondem ao que Ruy Cirne
Lima denominava reflexos de direitos51.
O direito subjetivo no se define, como pregou Jhering, como
interesse humano objeto de proteo jurdica. Interesses humanos podem
transformar-se em direitos subjetivos sob a incidncia direta de normas jurdicas ou
simplesmente em interesses juridicamente protegidos, se alcanados pela norma de
forma reflexa. A maior parte dos interesses, entretanto, no sofre influxo do direito
objetivo e no adquire, por conseguinte, qualquer relevncia para o mundo jurdico.
O direito subjetivo resulta, em realidade, da incidncia de
uma norma objetiva dirigida a um conjunto de destinatrios com o escopo imediato
de proteger seus interesses individuais, como ocorre com a maior parte das normas
de direito privado. Nasce o direito subjetivo, dessa forma, com a ocorrncia
simultnea de todos os elementos previstos no suporte ftico da norma jurdica
abstrata.
As normas de direito pblico, em oposio ao direito privado,
visam primordialmente tutela do interesse geral. No obstante, podem atingir, por
via oblqua, interesses individuais, sem al-los, com isso, categoria de direitos
subjetivos. A proteo do interesse individual, nesses casos, s existe enquanto parte
integrante do interesse coletivo. Na sntese de Zanobini: Traverso la norma dettata
50 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, 3 ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 230. 51 Na Constituio e nas leis, encontra, algumas vezes, o indivduo o reconhecimento de particulares intersses seus; ora sse reconhecimento resulta de uma relao puramente de fato (p. ex. a organizao legal de um servio de transporte mais adequado a um gnero de comrcio, do que a outros); ora dimana da indireta eficcia da disposio constitucional ou legal, que, prescrevendo para os poderes pblicos, lhes cria, perante a Constituio ou a lei, seno uma obrigao, ao menos, a abstrata imagem dela (p. ex.o art. 32, b, Const. Fed.). Desta ltima modalidade de reconhecimento incidente, por via objetiva, de intersses individuais, procedem os assim chamados reflexos de
30
per garantire linteresse generale, si realizza in tal modo la tutela di un interesse
individuale che non costituisce, come nel diritto soggettivo, loggetto immediato
della norma stessa, ma la conseguenza di una garanzia che dalla norma stabilita per
un interesse diverso.52
As normas de direito administrativo, por exemplo, visam a
regular a organizao da Administrao Pblica, os procedimentos por meio dos
quais desenvolve sua atividade, a forma como exterioriza seus atos. Essas
disposies dirigem-se Administrao Pblica, impondo-lhe limitaes e deveres
aos quais no correspondem direitos subjetivos de particulares, tendo como
contrapartida apenas o interesse dos cidados coletivamente considerados. o que
tambm ocorre, via de regra, com o direito urbanstico, econmico, regulatrio,
ambiental e da concorrncia, os quais, ao regularem o exerccio de atividades
privadas como a empresarial, as edificaes urbanas e a prestao de servios
pblicos atravs de concesses, causam impactos na esfera jurdica de outros
particulares, sem com isso conferir-lhes direitos subjetivos. Pense-se, por exemplo,
nas metas de universalizao das telecomunicaes vis a vis a posio jurdica dos
indivduos que habitavam regies com dficit de infra-estrutura de telecomunicaes
ou na vedao de prticas como o dumping (underselling) em face do consumidor.
O dever de motivao como norma de direito pblico que
compele o administrador a externar as razes de seus atos gera efeitos reflexos na
esfera jurdica de todos os cidados, indiscriminadamente, na medida em que
assegura um maior grau de racionalidade, transparncia e controlabilidade da ao
direito. (Ruy Cirne Lima, Princpios de Direito Administrativo Brasileiro, Porto Alegre: Livraria do Globo, 1939, p. 93) 52 Corso de Diritto Amministrativo, 1 vol., 8 ed., Milo, Giuffr, 1958, p. 184-185.
31
pblica. O interesse jurdico que da projeta-se coletivo: os indivduos dele
participam no uti singuli, mas uti universi, no dispondo de meios para
individualmente buscar sua tutela.53
No menos verdadeiro, por outro lado, que o cidado
individualmente atingido pelo provimento administrativo imotivado encontra-se em
posio jurdica distinta daquela detida pelo restante da coletividade, posio que,
todavia, tambm no decorre de uma tutela legal direta e, por isso, no constitui
direito subjetivo.54
A obrigao de fundamentar os atos administrativos no
corresponderia, nessa linha, a um direito subjetivo dos administrados, uma vez que
se trata de norma dirigida Administrao Pblica, refletindo apenas indiretamente
na esfera jurdica daqueles.
No seria possvel, no entanto, considerar a exigncia de
motivao como implicao necessria das garantias fundamentais do contraditrio e
da ampla defesa ou mesmo da garantia de acesso justia e, portanto, um direito
subjetivo fundamental?
A Constituio portuguesa de 1976, por exemplo, atribuiu-
lhe status de garantia anloga aos direitos fundamentais (direitos, liberdades e
garantias), o que provocou uma adeso massiva, por parte da doutrina e da
jurisprudncia, tese de que o cidado titular de um direito subjetivo fundamental
53 Ressalvadas as hipteses de legitimidade ativa extraordinria em aes judiciais previstas na Constituio e legislao ordinria, em especial a ao popular. O tema merece abordagem prpria, que exorbita os limites deste trabalho, motivo por que nos limitamos a aludi-lo en passant. 54 Guido Zanobini, Corso de Diritto Amministrativo, 1 vol., 8 ed., Milo: Giuffr, 1958, p. 189.
32
motivao dos atos administrativos que lhe afetem direitos ou interesses legalmente
protegidos.55
A doutrina alem atingiu resultado semelhante por uma linha
de raciocnio distinta: relacionou a fundamentao ao postulado de mxima proteo
dos direitos fundamentais, incluindo-a entre as garantias procedimentais necessrias
proteo desses direitos, tese que ganhou relevo num momento em que o direito
pblico encontrava-se permeado das teorias de legitimao pelo procedimento
inauguradas por Peter Hberle.56
Contrapondo as teorias portuguesas e germnicas, Jos
Carlos Vieira de Andrade afirmou categoricamente que os preceitos relativos ao
dever de fundamentao formal so afinal aquilo que parecem ser: normas de aco
que regulam o comportamento administrativo em funo de um conjunto multipolar
de interesses, incluindo interesses dos administrados, que nessa medida so
juridicamente protegidos57. Na tica desse autor, o dever de motivao no tem
como contrapartida um direito subjetivo, mas um interesse juridicamente protegido
do administrado.
Sem embargo da relevncia das doutrinas estrangeiras
comparadas, o fato que a posio jurdica do administrado diante do dever de
fundamentao deve ser estudada no contexto particular de cada sistema jurdico.
Sua incluso no texto constitucional portugus, com status de garantia anloga aos
55 O art. 268, n 3, e o art. 17 da Constituio portuguesa dispem, respectivamente: Os actos administrativos esto sujeitos a notificao aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentao expressa e acessvel quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos e o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no ttulo II e aos direitos fundamentais de natureza anloga. 56 Vide nota de rodap n 5.
33
direitos fundamentais, certamente altera a perspectiva de anlise doutrinria naquele
pas, assim como a tradio germnica de ampliao mxima do mbito de proteo
dos direitos fundamentais.
Voltando o foco de anlise ao sistema brasileiro, de imediato
impe-se a constatao de que nossa Constituio no consagrou um direito
fundamental motivao. No plano infra-constitucional, as normas que
estabeleceram o dever de fundamentao dirigem-se efetivamente Administrao
Pblica e correspondem a interesses jurdicos dos cidados, no caracterizando
direitos subjetivos seus.
No se pode ignorar, entretanto, a ntida interface existente
entre a fundamentao e as garantias constitucionais do contraditrio e ampla defesa
- assegurados aos litigantes em processo judicial e administrativo - e tambm da
judicial review, ambas consagradas na Constituio da Repblica, artigo 5, incisos
LV e XXXV, respectivamente. Essas conexes, alis, marcam a origem do dever de
motivao no direito brasileiro, conforme demonstrou-se no Captulo I, item B.
Embora no tenha seguido uma trajetria linear, a
jurisprudncia do STF invocou reiteradamente essas garantias como fundamentos do
dever de motivar. Em 1951, a Corte declarou que os motivos do ato administrativo
sujeitam-se ao controle judicial, o que pressupunha sua motivao, que, na maioria
dos casos, no pode ser simplesmente deduzida pelo Juiz.58 Anos aps, Oswaldo
Aranha Bandeira de Mello afirmava que os atos pblicos deveriam ser motivados a
fim de que se pudesse efetivar controle externo sobre eles, seja para verificar se
57 Ob. cit., p. 214.
34
houve infrao frontal ao texto da lei, no caso de exerccio de poderes vinculados,
seja para verificar se inexistiu abuso de direito, no caso de exerccio de poderes
discricionrios.59
Se o dever de fundamentar pode ser reconduzido ao direito de
acesso ao Poder Judicirio controle dos atos administrativos no menos
correto, do ponto de vista tcnico, vincul-lo s garantias do contraditrio e ampla
defesa. A motivao interage com estas garantias em dois momentos: (i) como
condio para uma reao eficaz, uma vez que a impugnao de fatos e argumentos
jurdicos que embasaram determinada deciso s vivel se e ser to eficiente
quanto melhor esses dados forem conhecidos por parte daquele que pretende
contradita-los60; (ii) como pressuposto que permite fiscalizar se a autoridade
administrativa efetivamente tomou cincia e sopesou as manifestaes dos
sujeitos61.
Essas relaes entre o dever de fundamentao e as garantias
do controle dos atos administrativos e do contraditrio implicam que, toda vez que a
exposio dos motivos seja condio necessria para a impugnao efetiva do ato
pelo interessado e para a conseqente judicial review, o dever de fundamentao
passar a integrar o contedo dessas garantias. A prpria Lei n 9.784/99 refora esse
entendimento ao exigir expressamente que sejam observadas, nos processos
administrativos, as formalidades essenciais garantia dos direitos dos
58 RE n 17.126, Rel. Min. Hahnemann Guimares. Esta deciso ser abordada mais detidamente no Captulo IV. 59 Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princpios Gerais de Direito Administrativo, Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, p. 469. 60 conhecida a frmula segundo a qual o contraditrio desdobra-se em dois momentos: informao e possibilidade de reao (Ada Pelegrini Grinover, Defesa, contraditrio, igualdade e par condicio, in Novas Tendncias do Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense, 1990).
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administrados. Conseqentemente, nesses casos, o administrado ser titular de um
direito subjetivo fundamental motivao, direito fundamental este desprovido de
autonomia, mas derivado das garantias de acesso ao Judicirio e do contraditrio.
Note-se que nem sempre a fundamentao expressa ser
indispensvel para o exerccio do contraditrio e da ampla defesa e/ou para o
controle judicial do ato administrativo. Excepcionalmente, os fundamentos do ato
podem ser inequivocamente deduzidos ainda que no explcitos, como ocorre com os
atos estritamente vinculados a apenas um motivo previsto no suporte ftico da norma
de competncia e o interessado reconhece a sua existncia.
Compreendido que o dever de motivao no corresponde a
um direito fundamental autnomo, mas que, freqentemente, configurar condio
necessria para o exerccio das garantias do contraditrio e acesso ao Judicirio,
elevando-se, com isso, categoria de direito fundamental, importante determinar
quem so seus titulares. Sero titulares do direito motivao todos aqueles que, no
caso concreto, tenham direito impugnao do ato em procedimento contraditrio.
Essa delimitao, aparentemente simples, ganha complexidade em um cenrio de
ampliao da participao popular na Administrao Pblica.
J frisou-se, no Captulo I deste trabalho, que a garantia
constitucional do contraditrio e ampla defesa em processos administrativos aplica-
se tanto aos procedimentos punitivos, como queles em que no se objetiva a
imposio de qualquer espcie de sano, mas to-somente a prtica de um ato
administrativo ensejador de conseqncias na esfera jurdica do administrado, de
61 Odete Medauar, A Processualidade no Direito Administrativo, So Paulo: RT, 1993, p. 107.
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onde infere-se que a motivao necessria ao contraditrio no se restringe a atos de
carter sancionatrio.
So legitimados como interessados no processo
administrativo, segundo o artigo 9 da Lei n 9.784/99: I - pessoas fsicas ou
jurdicas que o iniciem como titulares de direitos ou interesses individuais ou no
exerccio do direito de representao; II - aqueles que, sem terem iniciado o
processo, tm direitos ou interesses que possam ser afetados pela deciso a
ser adotada; III - as organizaes e associaes representativas, no tocante a direitos
e interesses coletivos; IV - as pessoas ou as associaes legalmente constitudas
quanto a direitos ou interesses difusos.
Aos titulares de direitos ou interesses individuais em jogo
confere-se o direito de instaurao do processo administrativo contraditrio. Em
relao a estes, pode-se falar, por conseguinte, de um direito subjetivo fundamental
motivao, restrito aos casos em que a fundamentao expressa afigure-se necessria
para o exerccio efetivo do contraditrio e da ampla defesa. Para todos os demais
sujeitos, o dever de motivao far nascer interesses jurdicos difusos, insuscetveis
de exerccio individual. A reside a distino entre a posio jurdica do particular
individualmente afetado pelo ato imotivado e o restante da coletividade: ambos so
titulares de interesse jurdico fundamentao do ato administrativo; o primeiro,
porm, tem seu interesse elevado categoria de direito subjetivo fundamental pela
fora atrativa das garantias constitucionais do contraditrio, ampla defesa e acesso
Justia.
37
Como visto, os procedimentos que envolvem interesses
coletivos e difusos so igualmente protegidos pelas garantias do contraditrio e
ampla defesa, como inclusive refora o artigo 2 da Lei 9.784/9962, e os atos
impugnados pela via coletiva passveis de reviso judicial. No obstante, o dever de
motivao no se transforma, de antemo, em direito (fundamental) para toda a
coletividade. O que se depreende da norma inscrita no referido artigo 2 um reforo
normativo da motivao: sempre que sua omisso impedir ou dificultar a defesa de
interesses coletivos ou difusos, a Administrao Pblica ou o Poder Judicirio
devero determinar a motivao posterior, ou anulao do ato imotivado.63
importante referir, neste ponto, que o direito administrativo
moderno consagra uma srie de mecanismos de participao dos cidados na
atividade administrativa, que vo alm da instaurao de processos administrativos
em defesa de direitos ou interesses individuais ou coletivos lato sensu.64
Atendo-se a anlise ao direito brasileiro, as referncias
bsicas participao popular no exerccio da funo administrativa encontram-se na
Constituio da Repblica. A redao promulgada em 1988 j assegurava, no artigo
5, inciso XXXIV, a, o direito de petio aos Poderes Pblicos em defesa de
direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, constituindo um embrio da
garantia de participao.
62 A Administrao Pblica obedecer dentre outros aos princpios da legalidade, finalidade, motivao, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditrio, segurana jurdica, interesse pblico e eficincia (Grifou-se). 63 As conseqncias do descumprimento do dever de motivar sero objeto de anlise no Captulo IV deste trabalho. 64 Vide, a respeito do tema, Carlos Horbach, Administrao Pblica e Democracia Participativa, Dissertao de Mestrado, UFRGS, 2001, e Adriana da Costa Ricardo Schier, A Participao Popular na Administrao Pblica: o Direito de Reclamao, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
38
Foi em 1998, no entanto, com a edio a Emenda
Constitucional n 19, que se introduziu um preceito geral de participao popular na
Administrao Pblica, atravs de modificaes no 3 do artigo 37 da Constituio,
que passou a vigorar com a seguinte redao: " 3 - A lei disciplinar as formas de
participao do usurio na administrao pblica direta e indireta, regulando
especialmente: I - as reclamaes relativas prestao dos servios pblicos em
geral, asseguradas a manuteno de servios de atendimento ao usurio e a avaliao
peridica, externa e interna, da qualidade dos servios; II - o acesso dos usurios a
registros administrativos e a informaes sobre atos de governo, observado o
disposto no art. 5, X e XXXIII; III - a disciplina da representao contra o exerccio
negligente ou abusivo de cargo, emprego ou funo na administrao pblica".65
Embora a lei aludida no 3 do artigo 37 da Constituio
ainda no tenha sido editada, normas legais tm disposto sobre diversas formas de
participao popular, como as consultas e audincias pblicas66; participao por
65 Uma srie de outros dispositivos constitucionais tambm asseguram a participao dos administrados, por exemplo, no controle das contas pblicas (arts. 31, 3, e 74, 2) e na gesto do sistema de seguridade social (art. 194, pargrafo nico, inciso VII). 66 Veja-se, por exemplo: O processo decisrio que implicar afetao de direitos dos agentes econmicos do setor eltrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possvel, por via administrativa, ser precedido de audincia pblica convocada pela ANEEL (Lei n 9.427/96, art. 4, p. 3); As iniciativas de projetos de lei ou de alterao de normas administrativas que impliquem afetao de direito dos agentes econmicos ou de consumidores e usurios de bens e servios da indstria do petrleo sero precedidas de audincia pblica convocada e dirigida pela ANP (Lei n 9.478/97, art. 19). Na Lei de Processo Administrativo, Lei n 9.784/99: Quando a matria do processo envolver assuntos de interesse geral, o rgo competente poder, mediante despacho motivado, abrir perodo de consulta pblica para manifestao de terceiros, antes da deciso do pedido, se no houver prejuzo para a parte interessada (art. 31); Antes da tomada de deciso, a juzo da autoridade, diante da relevncia da questo, poder ser realizada audincia pblica para debates sobre a matria do processo (art. 32). E, mais recentemente, no texto do Projeto de Lei das Agncias Reguladoras: Sero objeto de consulta pblica, previamente tomada de deciso, as minutas e propostas de alteraes de normas legais, atos normativos e decises da Diretoria Colegiada e Conselhos Diretores de interesse geral dos agentes econmicos, de consumidores ou usurios dos servios prestados; assegurado s associaes constitudas h pelo menos trs anos, nos termos da lei civil, e que incluam, entre suas finalidades, a proteo ao consumidor, ordem econmica ou livre concorrncia, o direito de indicar Agncia Reguladora at trs representantes com notria especializao na matria objeto da consulta pblica, para acompanhar o processo e dar assessoramento qualificado s entidades e seus
39
meio de rgos pertencentes prpria estrutura administrativa, tais como conselhos,
comits, comisses, com carter consultivo ou deliberativo; ombudsman,
encarregado de receber denncias, propostas, protestos etc.. A Lei do Processo
Administrativo, alm de consagrar algumas dessas formas de participao, abre a
possibilidade de que os rgos e entidades administrativas estabeleam outros meios
de participao de administrados, diretamente ou por meio de organizaes e
associaes legalmente reconhecidas.
O cidado que participa da atividade administrativa no o faz
enquanto titular de direitos prprios, mas como representante dos interesses de
grupos, classes ou de toda a sociedade. "A participao do cidado na
Administrao Pblica no uti singulis, como parte em um procedimento, isto ,
como titular de interesses ou direitos prprios, seno como membro da comunidade,
uti socius, uti cives, como simplesmente afetado pelo interesse geral. A distino
material clara em um plano abstrato; menos, no obstante, em um terreno
aplicativo. Quem 'luta por seu direito' defende com isso a ordem jurdica geral, e
ainda mais, especialmente, quando invoca os tipos de direitos subjetivos pblicos
(...), que lhe permite impor Administrao a observncia de todo seu ordenamento
objetivo. Por sua vez, quem atua como cidado, como membro da sociedade a quem
associados, cabendo Agncia Reguladora arcar com as despesas decorrentes, observadas as disponibilidades oramentrias, os critrios, limites e requisitos fixados em regulamento e o disposto nos arts. 25, inciso II, e 26 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993; As Agncias Reguladoras, por deciso colegiada, podero realizar audincia pblica para formao de juzo e tomada de deciso sobre matria considerada relevante; As Agncias Reguladoras podero estabelecer outros meios de participao de interessados em suas decises, diretamente ou por meio de organizaes e associaes legalmente reconhecidas.
40
a res publica no alheia, o faz com freqncia (a doutrina marxista da ideologia
pretende que sempre) com a ateno posta em seu prprio interesse singular".67
Resta saber, assim, se essas modalidades de participao
popular geram para o cidado ou entidade partcipe um direito motivao e, em
caso positivo, se esse direito tem status de garantia fundamental.
Mantendo-se a premissa de que ao dever de fundamentao
correspondem apenas interesses jurdicos dos administrados, exceto quando tais
interesses sejam imantados pelas garantias constitucionais do contraditrio, ampla
defesa e acesso ao Poder Judicirio, a indagao que se coloca se essas formas de
participao (consulta pblica, audincia pblica etc) se processam em contraditrio
e conferem para ao cidado participante legitimidade para impugnao judicial do
ato imotivado.
Em realidade, tais modalidades de interveno nos processos
administrativos no transformam, de per si, os partcipes em interessados na forma
do artigo 9 da Lei n 9.784/99. o que estabelece textualmente a primeira parte do
artigo, 31, 2, da mesma lei, ao tratar das consultas pblicas: O comparecimento
consulta pblica no confere, por si, a condio de interessado no processo. Isso
significa que o participante s se classificar como interessado se enquadrar-se em
uma das categorias do artigo 9 (aqueles que, sem terem iniciado o processo, tm
direitos ou interesses que possam ser afetados pela deciso a ser adotada; as
organizaes e associaes representativas, no tocante a direitos e interesses
coletivos; as pessoas ou as associaes legalmente constitudas quanto a direitos ou
67 Eduardo Garca de Enterra & Tomaz Ramn Fernndez, Curso de Direito Administrativo, So
41
interesses difusos). Apenas a estes (interessados) esto garantidos os direitos ao
contraditrio e ampla defesa de direitos ou interesses individuais, coletivos ou
difusos, respectivamente, donde se infere que as novas formas de participao no
resultam, por si, em um direito fundamental motivao do ato. No obstante,
conferem, sim, o direito de obter da administrao resposta fundamentada, conforme
dispe a segunda parte do artigo 31, 2, da Lei n 9.784/9968, de tal modo que o
participante, especificamente quanto s suas contribuies, deixa de ser titular de
simples interesse jurdico, passando a deter direito subjetivo pblico
fundamentao do ato administrativo.
Em sntese do que se exps acerca da posio jurdica dos
administrados perante o dever de fundamentao, pode-se afirmar que este
corresponde: (i) a um direito fundamental para os titulares de direitos ou interesses
individuais objeto de processo administrativo, sempre que a motivao seja
indispensvel para assegurar o contraditrio, ampla defesa e a judicial review; (ii) a
um direito subjetivo para aqueles que participem da atividade administrativa na
qualidade de interessados, inclusive como representantes de interesses coletivos ou
difusos, na forma do artigo 9 da Lei n 9.784/99; (iii) a um interesse legalmente
protegido para o restante da coletividade.
B) FUNCIONALIDADES
Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 799.
42
Ao tratarmos, no Captulo I e no item A do presente Captulo,
dos fundamentos constitucionais do dever de motivao dos atos administrativos e de
sua natureza, respectivamente, citamos algumas das principais funcionalidades dessa
norma, todas derivadas dos princpios fundamentais do ordenamento jurdico. A
exigncia de motivao dos atos administrativos, vale reiterar, no meramente
formal; ao contrrio, atende a diversas finalidades prticas colimadas pelo Estado
Democrtico de Direito. Neste item, pretendemos apenas sistematiza-las para fins
didticos.
Conforme sustentamos no incio do trabalho, a primeira
conexo do dever de fundamentar com o Estado Democrtico de Direito, estabelece-
se a partir do princpio da legalidade, tanto em seu vis formal quanto em seu vis
material: no primeiro, por ser a motivao um dos requisitos formais de boa parte
dos atos da Administrao Pblica; no segundo, por ser dever da Administrao
justificar seus atos naqueles motivos abstratamente previstos em lei e, em ltima
anlise, no interesse pblico subjacente norma de competncia.
H quem afirme, inclusive, que a fundamentao dos atos
funciona como reforo da legalidade, na medida em que uma forma prtica de
impor o atendimento do imprio da lei em todos os seus aspectos, sobretudo, no que
interessa aos fins deste trabalho, em relao aos motivos.69
68 O comparecimento consulta pblica no confere, por si, a condio de interessado no processo, mas confere o direito de obter da administrao resposta fundamentada, que poder ser comum a todas as alegaes substancialmente iguais (Grifou-se). 69 Para Garca de Enterra e Toms-Ramn Fernandez, o controle dos motivos do ato administrativo erige-se assim em um dos pontos centrais do controle da legalidade da Administrao (Curso de Direito Administrativo, cit., p. 478).
43
Outra importante funo da norma, tambm mencionada no
Captulo I, assegurar a publicidade e a transparncia da ao pblica. Isso porque a
gesto pblica, na lio de Ruy Cirne Lima, atividade do que no senhor
absoluto70, e que, portanto, tem o dever de prestar contas.
Modernamente, poucos so os atos da Administrao Pblica
que podem legitimamente realizar-se em sigilo.71/72 A Administrao, no Estado de
Direito, deve agir de forma transparente, de sorte a nada ocultar e, para alm disso,
suscitando a participao fiscalizatria da cidadania, na certeza de que nada h, com
raras excees constitucionais, que no deva vir a pblico. O contrrio soaria como
negao do Poder em sua feio pblica. De fato e no plano concreto, o Poder
somente se legitima se apto a se justificar em face de seus legtimos detentores, mais
do que destinatrios.73
Dentre os fins a que se destina a exigncia de publicidade
est o de possibilitar o mximo controle interno e externo (parlamentar, judicial e
70 Princpios de Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 21. 71 Constituio, art. 37, caput; art. 5o, XXXIII, LX e LXXII. As concepes de publicidade e transparncia, segundo Odete Medauar, encontram-se associadas reivindicao