Post on 18-Jan-2021
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Carolina Galvão de Oliveira
Práticas de acolhimento e produção do cuidado em um Centro de Atenção
Psicossocial álcool e outras drogas
Mestrado em Psicologia Social
São Paulo
2016
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Carolina Galvão de Oliveira
Práticas de acolhimento e produção do cuidado em um Centro de Atenção
Psicossocial álcool e outras drogas
Mestrado em Psicologia Social
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial
para o título de Mestre em Psicologia Social,
sob a orientação da Profa. Dra. Maria Cristina
Gonçalves Vicentin.
São Paulo
2016
ERRATA
1. Na página 22 onde se lê “Lei 2.216”, o correto é Lei 10.216.
2. Na página 47, onde se lê “acordo”, o correto é o termo lei, pois se trata
da Lei Municipal nº 6.215 de 09 de maio de 1990. Disponível em:
http://candido.org.br/dmdocuments/2013/texto_proposta_decreto_regula
mentacao_lei6215_90.pdf
Oliveira, Carolina Galvão de. Práticas de acolhimento e produção do cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Meus mais sinceros agradecimentos àqueles que me acompanharam,
participaram e contribuíram de alguma forma neste percurso:
À Profa. Cristina Vicentin, obrigada por acolher ideias, palavras, gestos,
intenções, por suas aulas envolventes e suas precisas orientações.
Aos colegas do Núcleo de Lógicas Institucionais e Coletivas, agradeço
imensamente pela leitura dos textos que pouco a pouco se transformaram em
uma dissertação e pelas potentes considerações que me conduziram por novos
caminhos na pesquisa.
À Profa. Mary Jane, por suas valiosas contribuições desde o início deste
percurso e por me lembrar que a escrita é uma atividade prazerosa.
Ao Prof. Ricardo Pena, com quem compartilho de experiências
campineiras no campo da saúde mental, álcool e outras drogas, obrigada pela
disponibilidade em acompanhar este estudo e por me suscitar irreversíveis
inquietações.
À toda a equipe do CAPS ad Antônio Orlando, obrigada por abrir suas
portas me recebendo como pesquisadora e pelo modo leve, receptivo e
interessado com que participaram de todos os momentos desse percurso.
Ao Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, por onde passei, fiquei,
deixei e voltei. Onde aprendi e desaprendi, para então aprender de novo.
Agradeço à instituição que me recebeu em todas as vezes que bati em suas
portas.
Ao Clayton, Sander e Andrea, amigos e primeiros colegas de trabalho
com quem pude experimentar os sabores e os dissabores das indisciplinas
institucionais.
Ao Bruno, pelo auxílio com a leitura e revisão da dissertação e por
caminhar ao meu lado em todos os momentos, até mesmo quando estive na
mais plena solidão.
Finalmente, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq, pela concessão da bolsa de mestrado que
tornou possível financeiramente a realização deste projeto.
Oliveira, Carolina Galvão de. Práticas de acolhimento e produção do cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
RESUMO
Nesta pesquisa buscamos acompanhar as práticas de acolhimento realizadas
no cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas
(CAPS ad) no município de Campinas (SP), e analisar a produção do cuidado
nos encontros entre trabalhadores e usuários. Para isso foram realizadas
observações, conversas, entrevistas e uma oficina com os trabalhadores, ao
longo de nove meses de pesquisa empírica. Nos valemos dos referenciais da
Análise Institucional Francesa ao utilizarmos os diários de campo para a
produção dos dados da pesquisa e para analisar as implicações do
pesquisador, numa perspectiva desnaturalizadora. Nosso campo de análise
percorreu a polissemia das noções de cuidado e de acolhimento em saúde e
seus desdobramentos na articulação com as políticas públicas voltadas para
usuários de álcool e outras drogas. Também nos apoiamos em referenciais do
campo da Saúde Coletiva, que entendem o acolhimento como metodologia de
trabalho e como arranjo organizacional dos serviços, operando as tecnologias
leves de relação. Através das conversas que se dão no cotidiano, pudemos
caracterizar diferentes modos de se acolher os usuários, destacando situações
que põem em análise o potencial dos trabalhadores para criar novas respostas
aos problemas enfrentados no dia a dia do serviço, bem como resquícios do
modelo psiquiátrico tradicional que insistem em se reproduzir. Pudemos
identificar que as práticas de acolhimento, quando acionadas com o foco nas
expressões de vida mais singulares dos usuários, têm o potencial de ampliar o
acesso ao cuidado em saúde na perspectiva da redução de danos, produzindo
mais substâncias para o cuidado e impulsionando processos de
desinstitucionalização no campo da saúde mental, álcool e outras drogas.
Palavras-chave: acolhimento; cuidado; CAPS ad; saúde mental;
desinstitucionalização; Análise Institucional.
Oliveira, Carolina Galvão de. Práticas de acolhimento e produção do cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
ABSTRACT
In this study we intended to follow user embracement practices in the everyday
life of an Alcohol and Drugs Psychosocial Attention Center (CAPS ad) located
in the city of Campinas (SP), and analyze the care assistance produced in
relations between workers and users of the service. To achieve these intentions
in nine months of empirical research, we used observations, everyday
conversations, interviews and one workshop with the CAPS workers. We used
the French Institutional Analysis references and field diaries as a tool for the
production of research data and to analyze the implications of the researcher, in
a denaturalized perspective. To help our analysis, we searched for the
polysemy notions of care and user embracement in the health field and its links
to the drugs public politics. We also used ideas of the Collective Health field,
which refer user embracement as a work methodology and a reorganization
strategy for health services as well, operating soft technologies of relations.
Through everyday conversations we were able to describe different practices of
user embracement and distinguish situations that interrogates the workers
potencial to create new responses to the problems faced, just as traditional
psychiatric vestiges as well. We were able to identify that when user
embracement practices are dedicated to the users most distinctive expressions,
they show potential to increase the access to health care in a Risk and Harm
Reduction perspective, stimulating deinstitutionalization processes at mental
health, alcohol and drugs field.
Keywords: user embracement; care; CAPS ad; mental health;
deinstitutionalization; Institutional Analysis.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ASPA Ambulatório de Substâncias Psicoativas
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CAPS ad Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas
CAPS i Centro de Atenção Psicossocial infantil
CRIAD Centro de Referência e Informação em álcool e outras drogas
CEASA Centrais de abastecimento de Campinas S.A.
CONFEN Conselho Federal de Entorpecentes
FÓRUM ad Fórum da rede álcool e outras drogas
NADeQ Núcleo de Atenção à Dependência Química
PEAD Plano Emergencial de Ampliação e Acesso ao tratamento e Prevenção em álcool e outras drogas
PMC Prefeitura Municipal de Campinas
PNH Política Nacional de Humanização
PRD Programa de Redução de Danos
PTS Projeto Terapêutico Singular
RAPS Rede de Atenção Psicossocial
RD Redução de Danos
SANASA Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S.A.
SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SSCF Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira
SUS Sistema Único de Saúde
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. 1
CAPÍTULO 1 – PERCURSO DA PESQUISA ........................................................... 4
CAPÍTULO 2 – REPERTÓRIOS DO CUIDADO .................................................... 11
2.1 Cuidado em Saúde ........................................................................................................... 13
2.2 Cuidado e Políticas de álcool e outras drogas ................................................................. 19
CAPÍTULO 3 – ACOLHIMENTO: EXPERIÊNCIAS E CONCEITOS .................. 28
3.1 Acolhimento em um ambulatório de saúde mental (RJ) .................................................. 30
3.2 Acolhimento em Betim (MG) ............................................................................................ 32
3.3 Acolhimento em um programa de saúde mental (SP) ..................................................... 35
CAPÍTULO 4 – CAMINHOS DA SAÚDE EM CAMPINAS .................................... 41
4.1 O Projeto Paideia ............................................................................................................. 44
4.2 Reforma Psiquiátrica campineira ..................................................................................... 53
4.3 Rede álcool e drogas em Campinas ................................................................................ 57
CAPÍTULO 5 – ACOLHIMENTO NO CAPS AD ANTÔNIO ORLANDO ............. 66
5.1 Ambiência no CAPS adAO ............................................................................................... 73
5.2 Organização do cotidiano e plantão de acolhimento ....................................................... 75
5.3 Os grupos de acolhimento ............................................................................................... 86
5.4 Acolhimento na rua........................................................................................................... 91
5.5 “Amigão da ambiência” .................................................................................................... 98
5.6 Acolhimento-conversa .................................................................................................... 103
5.7 Acolhimento e indisciplinas ............................................................................................ 110
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 126
ANEXOS ..................................................................................................................... 136
1
APRESENTAÇÃO
Passada mais de uma década desde suas primeiras experiências, os
Centros de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS ad) têm
avançado na consolidação de uma rede de atenção voltada a usuários de
álcool e outras drogas no Brasil, constituindo-se como um modelo de cuidado
em consonância com a Reforma Psiquiátrica e os princípios do Sistema Único
de Saúde (SUS)1.
Inserido no âmbito do SUS, os CAPS ad têm o papel de ampliar o
acesso das pessoas que vivem algum tipo de sofrimento relacionado ao uso de
drogas a um modelo de atenção de base comunitária e territorial. Trata-se de
uma perspectiva focada nas necessidades dos usuários, ofertando projetos
terapêuticos indivualizados e compartilhados com outros setores da sociedade.
Como serviço substitutivo de saúde mental baseado nos princípios da Reforma
Psiquiátrica, deve também atuar na criação de possibilidades “para que os
modos existenciais dos usuários possam comparecer como matéria para o
exercício da clínica e da gestão” (SOUZA, 2013, p. 246).
No entanto, devido à complexidade dos problemas que abrangem, os
CAPS ad encontram uma série de obstáculos para cumprir com seus
compromissos. Envolto por camadas de preconceitos, tabus e interpretações
de senso-comum, o consumo de drogas nas sociedades ocidentais está
atravessado historicamente por um viés moral que impacta os avanços e os
retrocessos na efetivação das políticas públicas.
Atuar em um CAPS ad significa experimentar tensões geradas nos
processos de desinstitucionalização das lógicas de saúde dominantes, por ser
um trabalho orientado por um modelo de cuidado que considera a clínica e a
gestão como lógicas indissociáveis. Nessa perspectiva, equipe, usuários e
comunidade são convocados a se responsabilizar na construção de projetos
em comum. Os CAPS ad propõem uma reorganização da lógica de cuidado
1 O advento do SUS após a Constituição de 1988 concretizou um sistema de saúde público no
Brasil apontando para a democratização nas ações e nos serviços de saúde. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br>. Acessado em: 12.01.2013.
2
tradicional centrado no poder do especialista que opera com a fórmula de
queixa-conduta, buscando qualificar as práticas de atenção sem os imperativos
da abstinência do uso de drogas e da internação psiquiátrica como centro das
ações de cuidado. Em alguns municípios brasileiros este modelo de atenção já
está mais consolidado, entretanto as estratégias de saúde que visam o trabalho
no território e que não têm a abstinência como meta principal ou única, têm
alimentado debates num país que atualmente discute o tema da
descriminalização das drogas.
Com responsabilidades complexas e desafiadoras, os CAPS ad têm
atuado em diferentes territórios junto a singulares populações. Nesta pesquisa,
pretendemos nos aproximar das dimensões mais capilares do cotidiano em um
CAPS ad no município de Campinas (SP), para acompanhar de perto as
práticas de acolhimento dos usuários no cotidiano do serviço e analisar os
múltiplos modos de produzir cuidado nos encontros entre trabalhadores e
usuários. Propomo-nos ainda a adentrar na polissemia das noções de cuidado
e de acolhimento no campo da saúde e seus desdobramentos na articulação
com as políticas públicas voltadas para usuários de álcool e outras drogas.
Tradicionalmente o acolhimento pode estar associado a um tipo de
procedimento burocrático, que se traduz em recepção administrativa e
ambiente confortável, ou como uma ação de triagem visando
encaminhamentos. No campo da Saúde Coletiva, o acolhimento tem sido
discutido como estratégia para a organização assistencial nos serviços públicos
de saúde mental com potencial para operar processos de
desinstitucionalização ao propor uma lógica usuário-centrada, baseada
principalmente nas atitudes de escuta e convivência, buscando transformar as
relações entre trabalhadores, usuários e comunidade. Por abarcar um campo
de múltiplos significados, as práticas de acolhimento que se dão em um CAPS
ad podem colocar em análise os modos de se produzir cuidado e os processos
de desinstitucionalização em curso.
Atualmente Campinas possui uma rede de saúde mental consolidada,
porém dinâmica, que tem se ampliado para atender as pessoas que enfrentam
algum tipo de sofrimento relacionado ao uso de drogas, tendo os CAPS ad
como principais portas de entrada. Em 2015, enquanto realizávamos a
3
pesquisa foram fechados dez leitos de internação psiquiátrica e um novo CAPS
ad estava por ser inaugurado.
Entretanto essa rede vive hoje um contexto político desfavorável em
relação à gestão de seus recursos, o que ameaça a continuidade de seus
projetos e consequentemente os processos de desinstitucionalização em curso.
Diante desse singular cenário, há relevância em acompanhar de perto o
cotidiano de trabalho em um CAPS ad da cidade, no intuito de dar visibilidade
às ações de cuidado que ali se dão, seus múltiplos efeitos e à potência criativa
de uma equipe que aposta em novos avanços ao mesmo tempo em que se vê
atribulada com as disputas institucionais.
Este trabalho foi estruturado da seguinte maneira: no Capítulo 1,
apresentaremos os caminhos percorridos na construção de um método para
este estudo, apoiado por referenciais da Análise Institucional francesa e
algumas pistas do método da cartografia em pesquisa social. No Capítulo 2,
adentraremos em uma discussão conceitual acerca do cuidado em saúde em
articulação com as políticas de álcool e outras drogas. No Capítulo 3,
visitaremos algumas experiências em que a estratégia do acolhimento foi
implementada de modo potente, alinhavando-as com alguns de seus principais
conceitos. No Capítulo 4, iremos percorrer algumas trajetórias no campo da
saúde em Campinas, narradas aqui a partir do final do século XIX, e
destacamos aqueles acontecimentos que consideramos pertinentes aos
propósitos deste estudo. Finalmente, no Capítulo 5 apresentaremos o CAPS ad
Antônio Orlando, onde a pesquisa empírica foi acolhida, e analisaremos alguns
aspectos relacionados às práticas de acolhimento que se dão ali. Por fim, sem
a pretensão de esgotar nossas análises e buscando destacar questões que
não puderam ser mais bem exploradas, traçaremos algumas considerações
finais.
4
CAPÍTULO 1 – PERCURSO DA PESQUISA
Partimos dos pressupostos de que nas práticas de pesquisa social não
há neutralidade do pesquisador no ato de pesquisar e admitimos a não
separação entre sujeito e objeto na produção de conhecimento. Consideramos
que os processos sociais não estão prontos de antemão, mas sempre em
construção e com a interferência de múltiplos fatores. Entretanto,
reconhecemos também a importância de nos dedicarmos a métodos de
pesquisa que articulem o rigor científico às perspectivas ético-políticas que
nossos pressupostos afirmam. A partir de referências da Análise Institucional
francesa nas práticas de pesquisa e com a noção de implicação proposta por
René Lourau (1993) buscamos superar os paradigmas de neutralidade e
objetividade positivistas, colocando em análise também o próprio ato de
pesquisar. Essa perspectiva propõe reconhecermos nossas implicações,
nossas adesões, investimentos, motivações, sendo a análise desses aspectos
considerada uma atitude ética na pesquisa, pondo em jogo todo o conjunto de
condições que circunscrevem o ato de pesquisar. Nesse sentido o diário de
campo foi um instrumento valioso para os questionamentos da posição do
pesquisador diante do campo estudado, ao expor como a pesquisa é feita não
apenas em seus modos oficiais, mas em meio a impasses e controvérsias.
Para o autor, os diários de campo quando utilizados desse modo, podem
reconstituir uma história subjetiva do pesquisador, revelando modos singulares
de pesquisar.
Segundo Medrado, Mello e M. J. Spink (2014), as práticas diarísticas
consistem em registrar com certa frequência informações consideradas
relevantes e que não devem ser facilmente esquecidas. Seu instrumento, o
diário, possui variadas formas e finalidades, desde registrar conteúdos íntimos
para guardá-los como memórias pessoais, até mesmo como modo de anotar
informações que poderão ser publicadas num futuro. Muito comumente
utilizados na pesquisa científica, os diários de campo passaram a ser
discutidos com maior cuidado no campo da antropologia, no que se refere ao
posicionamento do pesquisador diante das relações que estabelece com seu
objeto de estudo, relações tradicionalmente marcadas pela perspectiva de
5
neutralidade e separação entre sujeito e objeto. Tal discussão também se faz
presente nas pesquisas em Psicologia Social, onde é muito comum o
pesquisador estudar temas referentes à sua profissão, ou ainda empreender
pesquisas empíricas no próprio local onde trabalha quando se vê investido de
desejo e num campo de afetações.
Inicialmente, os registros em diário começaram a ser feitos em torno de
questões ou informações consideradas relevantes para o estudo, mesmo antes
da chegada do pesquisador no campo empírico. Tal proposta se apoia na ideia
de campo-tema (P. SPINK, 2003) em que não se considera haver um único
tema a ser pesquisado isoladamente de outros e que o campo não se refere
apenas ao lócus da pesquisa empírica e sim às processualidades que se dão
na construção de um tema, considerando as discussões cotidianas, detalhes
ou desvios que surgem durante um estudo. Tais registros passaram a ser
compartilhados e discutidos junto aos colegas do Núcleo de Lógicas
Institucionais e Coletivas, num processo de coconstrução da pesquisa. Nesse
estudo a prática diarística se deu com maior intensidade durante o período de
outubro de 2014 a junho de 2015 em que estivemos no CAPS ad Antônio
Orlando, na região sudoeste de Campinas (SP), realizando reuniões,
observações, conversas com trabalhadores e usuários, além de entrevistas
com membros da equipe. Entre o período de novembro de 2014 e março de
2015 estivemos no CAPS ad semanalmente às sextas-feiras pela manhã,
acompanhando atividades variadas relacionadas ao acolhimento dos usuários
no serviço.
O compartilhamento dos diários junto aos colegas do Núcleo de
pesquisa possibilitaram importantes análises das implicações no estudo, além
de produzir algumas desnaturalizações, já que se trata de um serviço inserido
em uma rede de saúde onde a pesquisadora autora do projeto trabalhou por
alguns anos. Temos discutido a importância dos registros e do
compartilhamento dos diários de campo como estratégia que possibilita a
abertura ao diálogo com outros pesquisadores ao expor como se deram as
etapas seguidas durante o estudo, seus desvios, as impressões e
argumentações do pesquisador imerso no cotidiano do serviço, possibilitando
discussões no coletivo que produzem desdobramentos e auxiliam a nortear as
6
análises, assim como os próximos passos a serem construídos. Deste modo,
os efeitos da presença do pesquisador eram permanentemente restituídos ao
processo da pesquisa, produzindo inflexões durante todas as etapas deste
estudo.
Nesse período de nove meses, foram realizadas observações no
cotidiano do CAPS ad Antônio Orlando. Para Cardona et al. (2014) as
observações no cotidiano no contexto da pesquisa são um modo de
acompanhar os acontecimentos à nossa volta, a riqueza das manifestações
sociais. Além disso, trata-se de um exercício de participação nas práticas de
pesquisa social, considerando a interferência do pesquisador no campo
observado ao mesmo tempo em que este também será afetado. A ideia de
observar participando (ou vice-versa) vem numa tentativa de superar
concepções puramente positivistas em que o pesquisador sente-se
posicionado fora da experiência observada, não interferindo ou fazendo parte
dos processos que estão acontecendo. Em nossa perspectiva o pesquisador
não apenas interfere em tais processos, é também afetado e apenas dessa
forma pode coproduzir conhecimento.
A observação, embora seja entendida pelo senso-comum como
atividade contemplativa, devido ao seu caráter de movimento assumirá vários
modos de fazer diferentes. Dentre as variações possíveis na atividade de
observação estão em jogo: os registros (muito ou pouco detalhados, frequentes
ou pontuais); observação focada ou desfocada (considerando uma ampla gama
de interações); o reconhecimento pelos outros de que há a presença de um
sujeito na função de observador; quantidade de tempo disponível para
observar, e; utilização de recursos como roteiros, diários ou vídeos (CARDONA
ET AL., 2014).
Neste estudo a atitude de observar se deu em todos os momentos,
sendo pensada e proposta à equipe desde os primeiros dias de visita ao
serviço. Foram feitos registros em diários de campo sempre após as visitas,
nem sempre no mesmo dia e nunca no momento da atividade de observação.
Durante a atividade de observação o foco de atenção variou muito, às vezes
voltado para alguma conversa ou interação, às vezes desfocado sem atentar
durante muito tempo para nada e ninguém em específico. Nesses momentos
7
um aporte conceitual utilizado foi a pista da atenção do cartógrafo articulada à
noção de atenção flutuante utilizada por Freud (1912/2010). Essa pista trata de
pensar o funcionamento da atenção do pesquisador nas práticas de pesquisa
cartográficas que se propõem a acompanhar processos, não representar um
objeto, numa compreensão de que não há coleta de dados e sim produção dos
dados da pesquisa. Nesse sentido, a atenção do cartógrafo diante da tarefa de
se lidar com muitas informações ao mesmo tempo, rejeita até mesmo tomar
notas ou o emprego de outro recurso no momento da experiência. Seria um
exercício que visa a manutenção de uma atenção suspensa (FREUD,
1912/2010), ou atenção à espreita (KASTRUP, 2009), concentrada, porém sem
focar em algo específico, o que incorreria em negligenciar outros conteúdos.
Kastrup (2009) sugere quatro variedades no funcionamento da atenção
do cartógrafo: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento. O
rastreio seria uma exploração assistemática do terreno para onde a atenção
está voltada, visando a produção de um alvo, mesmo que este esteja em
constante variação. A atenção é aberta e sem um foco, mas está concentrada
em um objeto-processo devido à sintonia com o problema de pesquisa. O
toque diz respeito a notar aquilo que se destaca no conjunto dos elementos
observados e que aciona o nível das sensações e não da percepção ou da
representação. O gesto indica a formação de um novo contorno em torno do
qual o campo de atenção se reconfigura, como uma espécie de zoom. Por fim,
o reconhecimento atento seria uma atitude de reorganizar a atenção em torno
do alvo e dos contornos que se fizeram, pois o que está em jogo é a atitude de
acompanhar processos e não representar objetos. Para isso, a autora nos
adverte a não reproduzir perguntas como “o que é isto?”, que reduzem os
processos que estão sendo acompanhados.
Outro conceito utilizado para auxiliar nas atividades de observação foi a
noção de corpo vibrátil elaborada por Rolnik (1989), para dizer de um corpo
que observa não apenas elementos visíveis, mas também os processos
invisíveis que se dão nos encontros, a passagem dos afetos e intuições. Desse
modo foi possível atentar para microdetalhes muitas vezes despercebidos, e
registrar não somente o que era olhado, mas as sensações que algumas vezes
foram provocadas durante o ato de observar. Tais registros foram relevantes
8
para analisar coletivamente momentos de sobreimplicação (LOURAU, 1993)
que colocavam impasses na continuidade do estudo.
Para compor com as outras fontes de informações, foram realizadas
cinco entrevistas durante os nove meses da pesquisa empírica, cinco delas
feitas com trabalhadores da equipe do CAPS ad Antônio Orlando. Seguiu-se
um modelo de entrevista que iniciava com uma frase disparadora: “Conte como
foi o último acolhimento que você realizou”. Foram convidados a participar
qualquer membro da equipe que tivesse interesse e disponibilidade em discutir
individualmente o tema do acolhimento, tendo seus direitos explicitados e
assegurados2 com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. A sexta entrevista foi realizada com Gastão Wagner S. Campos,
médico sanitarista e docente do Departamento de Medicina Preventiva e Social
da UNICAMP, com o intuito de mapear as primeiras experiências com a
estratégia do acolhimento em Campinas na época em que atuou como
Secretário Municipal de Saúde.3
Batista et al. (2014) reconhecem que nos estudos que não pretendem
reificar verdades o uso de conversas é válido, pois elas estão presentes na
produção de conhecimento, uma vez que este não se produz somente no
horário marcado das entrevistas com os sujeitos e nem somente na
universidade. Ao discutirem o uso de conversas nas práticas de pesquisa,
reconhecem não se tratar de um meio ortodoxo na busca por informações,
dentro de uma tradição racionalista. No entanto, está em sintonia com nossos
propósitos de acompanhar processos que se dão no cotidiano, sendo
consideradas em nosso caso um meio de interação predominante, uma vez
que “conversa-se sem cessar nos serviços” (TEIXEIRA, 2008, p. 6).
Foram registradas em diários de campo muitas conversas durante esse
percurso, desde o primeiro encontro com a coordenadora do CAPS ad Antônio
2 Antes de iniciar cada entrevista o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido era
apresentado ao entrevistado. Nesse momento, surgiam dúvidas quanto ao sigilo das
informações, que puderam ser conversadas e melhor elucidadas.
3 O papel de Gastão W. S. Campos durante o período de implantação do acolhimento como
diretriz na cidade de Campinas será discutido mais detalhadamente no decorrer do estudo.
9
Orlando para negociar propostas e cronogramas, conversas com os colegas do
Núcleo, conversas com trabalhadores que não dispunham de tempo (ou
interesse) para participar de entrevistas, conversas com usuários durante um
jogo de truco, conversas durante caronas, entre tantas outras.
O registro de conversas possibilitou que aqueles trabalhadores que não
foram entrevistados pudessem participar ativamente da pesquisa, uma vez que
foram informados que conversas corriqueiras também seriam uma fonte de
informações. Entretanto, o fato de os encontros com os trabalhadores
acontecerem uma vez por semana, acabou excluindo profissionais que nunca
se encontravam neste período. Desse modo a estratégia criada para incluir a
voz de todos os trabalhadores foi realizar uma oficina durante o horário da
reunião de equipe, chamada Modos de acolher Antônio Orlando. Nessa oficina,
parte da pesquisa foi restituída aos trabalhadores em forma de fragmentos (em
anexo) retirados dos registros dos diários de campo. Os trechos eram lidos em
voz alta e em seguida abria-se espaço para a equipe desdobrar os assuntos
abordados.
Todas as entrevistas foram transcritas integralmente, assim como a
oficina. Tais transcrições, junto com os registros dos diários de campo, foram o
material utilizado para a análise das práticas de acolhimento e seus efeitos na
produção do cuidado no CAPS ad Antônio Orlando. Diante de um material
extenso, foram eleitos aqueles trechos considerados analisadores (LOURAU,
1993) seja pela sua potência, seja por evidenciar situações naturalizadas no
cotidiano de trabalho em relação ao acolhimento nas ações voltadas ao
acolhimento dos usuários. Desse modo, as análises realizadas buscaram
narrar as experiências observadas ou transmitidas ao pesquisador e interrogar
as práticas acompanhadas a partir dos seus efeitos, numa perspectiva
desnaturalizadora.
Mas o que queremos dizer quando nos propomos a pesquisar no
cotidiano de um CAPS ad? Para P. Spink (2008) o cotidiano é um fluxo de
fragmentos corriqueiros que se dão em microlugares, uma ideia que nos
convoca a reconhecer a importância do que se passa em meio aos acasos e
encontros no dia a dia em todos os lugares por onde passamos, em cada
encontro ou desencontro, em cada conversa. Esses lugares não têm um ponto
10
de origem e nem estão dados de antemão, são construídos no acaso dos
encontros e também participam na construção de processos sociais, assim
como as materialidades e objetos do mundo. Um pesquisador imerso no
cotidiano deve estar posicionado enquanto participante na construção dos
processos sociais, tanto quanto todas as outras pessoas e objetos do mundo.
Foram muitos os que participaram nos encontros cotidianos durante os
nove meses de visitas no campo empírico do CAPS ad Antônio Orlando e que
coproduziram de alguma maneira essa pesquisa, na Universidade ou no
Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira: professores e pesquisadores, gestores,
usuários do serviço, trabalhadores da assistência. Consideramos alguns
elementos materiais como participantes da pesquisa, como os diários de
campo, o carro, que conduzia todas as sextas-feiras de manhã à Campinas, o
aparelho celular que reconstituía nos caminhos de volta para São Paulo cada
encontro gravado, as paredes e muros do CAPS ad Antônio Orlando cujos
desenhos comunicaram mensagens de que o cuidado estava ali presente, os
murais e lousas na sala de equipe que forneceram muitas das informações
institucionais que não puderam obtidas com a equipe, entre outros, que serão
mais bem exploradas nesse estudo.
Para realizar uma pesquisa que envolve a participação de seres
humanos, alguns cuidados éticos devem ser tomados. O projeto deste estudo
foi submetido a dois comitês de ética: o da instituição Serviço de Saúde Dr.
Cândido Ferreira, que responde pela autorização da pesquisa no CAPS ad
Antônio Orlando e o da PUC-SP, através da submissão do projeto à Plataforma
Brasil. Ao apresentar pessoalmente o projeto à coordenadora do CAPS ad
Antônio Orlando, foram esclarecidas as ferramentas metodológicas e
procedimentos que compõem a pesquisa e garantida a devolutiva das análises
ao final do processo em forma de apresentação em uma reunião da Educação
Permanente que a equipe realiza uma vez ao mês.
11
CAPÍTULO 2 – REPERTÓRIOS DO CUIDADO
O tema do cuidado no campo da saúde pode nos sinalizar uma série de
versões distintas para a utilização desta noção, muitas vezes de modos
naturalizados. Tais naturalizações podem ser encontradas também no uso de
outros termos no campo da saúde, como é o caso da integralidade e da própria
noção de Saúde. Tais palavras carregam em si mais de um significado, são
polissêmicas, não compreendidas e utilizadas por todos da mesma maneira.
Nesse estudo não há a pretensão de revelar ou esgotar as diversas
utilizações para a noção de cuidado, pois considerando ser impossível a
apreensão total de seu sentido será mais interessante percorrer alguns
caminhos, para compreendê-la como um conjunto de repertórios linguísticos
que traduzem ações e práticas que se dão durante o ato de cuidar. Propomos
então adentrarmos na polissemia do termo cuidado no campo da saúde e na
articulação com as políticas públicas voltadas para usuários de álcool e outras
drogas no Brasil.
Para M.J. Spink (2010), repertórios linguísticos são os termos, os
conceitos, os lugares-comuns e figuras de linguagem que aprendemos ao
longo da vida em diferentes contextos (livros, filmes, conversas, escola, família,
tradições) e que circulam entre nós das mais variadas maneiras, com os mais
diversos sentidos e que por seu caráter dinâmico estão sempre sujeitos a
transformações.
Em latim, de onde se deriva a língua portuguesa, cuidado significa cura,
utilizada no contexto das relações humanas como o amor e a amizade com um
sentido de preocupação por outra pessoa ou objeto, ou como atitude de
inquietação com relação ao outro. Boff (2005) trabalha com a ideia de cuidado
essencial, de um cuidado como essência e experiência natural a todos os seres
humanos. Já na etimologia anglo-saxã, cuidado também traz em seu
significado a preocupação com o outro, porém no sentido de se tomar uma
12
providência ou responsabilizar-se (care, segundo a Cambridge Dictionaries
Online4).
Ayres (2004) discute a noção de cuidado apoiado na ontologia
existencial de Heidegger com a Fábula de Higino em Ser e Tempo5, que nos
convida a pensar nos modos de ser como contínuas concepções e realizações
de projetos, trazendo a ideia do cuidado como um projeto existencial; tal projeto
é influenciado pelo contexto e está aberto a reconstruções, por nunca ser
inteiramente consciente, controlável ou previsível, tratando-se de um exercício
sobre a própria existência e a de seu mundo. Na compreensão do autor, o
cuidado apresenta algumas características ou princípios: o movimento, já que o
ser humano não se constitui de modo inexorável, definitivo; interação, pois
colocar-se em movimento implica em construir uma série de relações;
plasticidade como capacidade para transformar-se e manifestar-se em
múltiplas formas e encontros; desejo, entendido como expressões da vontade
de existência e que nos dota de possibilidades de escolha.
Outra discussão acerca do tema do cuidado foi trabalhada por Foucault
(2006) acerca do cuidado de si praticado pelos antigos gregos. As práticas de
si foram um fenômeno importante na era greco-romana, eram práticas de auto
formação dos sujeitos, um tipo de exercício de si sobre si mesmo através do
qual procura se elaborar, se transformar e atingir certo modo de ser.
O cuidado de si constituiu no mundo greco-romano o modo pelo qual a
liberdade individual foi pensada como uma prática. Trata-se de um ocupar-se
de si, no sentido de se conhecer para assim praticar adequadamente a
liberdade. O cuidado de si seria, portanto, o conhecimento de si e também o
4 Disponível em: <http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues>. Acessado em: 07.04.2014.
5 Ayres (2004) narra a antiga fábula de Higino a partir de alguns trechos em Heidegger. No
mito, o personagem Cuidado ao atravessar um rio depara-se com um pedaço de argila e
começa a lhe dar forma, quando Júpiter intervém pedindo que lhe dê também um espírito,
culminando em uma disputa de ambos para nomear o tal projeto uma vez que ambos haviam
participado de sua construção. Saturno, ao arbitrar na decisão, designa que Cuidado se torne
responsável pelo projeto até sua morte, por ter sido o primeiro a lhe dar uma forma.
13
conhecimento de certo número de regras de conduta, de princípios de verdade
com os quais se tem afinidade para assim produzir modos próprios de se
conduzir (FOUCAULT, 2006).
Nessa concepção, o cuidado de si seria também o cuidado dos outros
uma vez que implica relações complexas, seja para aprender novas lições, seja
para compartilhá-las. Trata-se de uma prática salutar, pois mesmo quando não
é cuidado dos outros é no mínimo benéfico a todos, fazendo com que o sujeito
possa controlar seu poder, que do contrário poderá arrebatá-lo ou se impor aos
outros abusivamente. Cuidar de si então é também controlar, limitar, se impor o
devido poder, além de se conhecer, saber o que se é e do que se é capaz, seu
lugar em relação aos outros e à vida em comum (FOUCAULT, 2006).
Neste estudo, encontraremos ressonâncias desses diversos sentidos do
cuidado, e para adentrarmos mais um pouco em nosso tema de pesquisa,
focaremos o cuidado em saúde.
2.1 Cuidado em Saúde
O conceito de saúde também varia em diferentes culturas e contextos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde significa um estado
de completo bem-estar físico e não apenas a ausência de sintomas e
enfermidades. Tal definição é um tanto simplificada ao supor a possibilidade de
um bem-estar completo ou total, se mostrando bastante idealizada.
No Brasil, os movimentos sociais que alimentaram a Reforma Sanitária e
a Reforma Psiquiátrica propuseram redefinições para o conceito de saúde,
caracterizando-a não como um estado, mas como um processo dinâmico
atrelado a modos de existência, com dimensões intrapsíquicas, sócio-
históricas, políticas e econômicas. Para Onocko Campos e Campos (2006),
essa definição de saúde está intimamente vinculada à ideia de autonomia,
entendida aqui como um coeficiente dinâmico (às vezes maior, às vezes
menor) a depender da capacidade do sujeito em agir sobre o mundo,
interferindo em sua rede de dependências.
A saúde nessa concepção não se reduz a uma experiência individual,
particular ou humana, mas implica uma rede que se tece entre sujeitos, suas
14
histórias de vida, suas relações e suas condições sociais, podendo se
configurar algumas vezes como uma rede adoecida, outras vezes mais ligada à
potência de vida. Tais mudanças na concepção de saúde produziram variações
também na noção de cuidado, ao por em questão modelos tradicionais de
tratamento e intervenções terapêuticas reducionistas, como a medicina
clássica.
Herdeira do Iluminismo, a medicina que se estruturou na idade moderna
buscou a racionalidade e a objetividade. Os pacientes acometidos por um
sintoma ou enfermidade eram apartados de suas experiências subjetivas e
sociais de adoecimento, sendo considerados apenas como corpos carregando
órgãos, viscosidades, manchas e outras marcas de um mau funcionamento.
Com seu olhar positivista, essa clínica cindiu o sujeito de modo que para se
melhor entender e classificar um conjunto de sintomas era necessário afastar-
se ao máximo do paciente em sua dimensão psicológica e social. Este
paciente, apassivado, não estava autorizado a dizer de seu próprio mal-estar,
lhe cabendo apenas apontar ao médico onde doía. Essa clínica que nasce a
partir do século XIX constituiu-se como um discurso ancorado na anatomia
patológica e na análise objetiva das informações (FOUCAULT, 1977; ONOCKO
CAMPOS, 2001).
A Psicanálise concebida por Freud no início do século XX propôs outro
modo de relação entre o médico e seu paciente, ao privilegiar uma escuta
atenta e flutuante que focava para além das queixas corporais, contemplando
outras vivências que seus pacientes tinham para contar.
O olhar objetivo e a escuta são dimensões da clínica que, quando
exercidas de maneira cindida, reduzem as experiências de saúde ou de
adoecimento. Por isso a ampliação de um exercício clínico depende de
reposicionamentos dessas duas posições a entrarem em contato. (ONOCKO
CAMPOS, 2001).
Para Mehry (1999), o cuidado seria uma dimensão na relação entre o
trabalhador da saúde e o paciente. O cuidado se põe em ato nessa relação
produzindo saúde, aqui entendida também como produção de autonomia.
Nessa lógica, quanto mais distanciada a relação entre o trabalhador e o usuário
de um serviço, acontecerão menos atos cuidadores e consequentemente
15
menos produção de saúde. Nessa perspectiva, o cuidado não se apoia apenas
na utilização de procedimentos médicos ou protocolos burocráticos, devendo
privilegiar um posicionamento do trabalhador na relação com o paciente,
traduzido em atitudes de escuta e acolhimento.
Arendt e Moraes (2013) ao discutirem as contribuições da médica e
filósofa holandesa Ane Marie Mol quanto ao tema do cuidado remetem às
pesquisas da autora sobre as práticas de saúde. Nesse estudo, as autoras
narram algumas experiências da pesquisadora acompanhando pacientes em
tratamento da arteriosclerose e da diabetes, quando formulou suas ideias em
torno da lógica do cuidado e a lógica da escolha. Nessa perspectiva, considera-
se que processos de adoecimento e de saúde têm múltiplas determinações e
são produzidos não apenas na relação entre as pessoas, mas também entre
outras coisas e objetos do mundo que fazem parte da vida do sujeito. Na lógica
do cuidado, o trabalhador de saúde entende que alguém em sofrimento pode
não estar em condições de fazer certas escolhas, necessitando de uma rede
que o ampare em decisões e na transmissão de informações. Já pela lógica da
escolha compreende-se que o paciente é um consumidor e deve
responsabilizar-se inteiramente sozinho, já que pode escolher o que consumir
(ARENDT E MORAES, 2013).
No campo da Saúde Coletiva, o termo cuidado tem uma relevância
particular, pois carrega na produção de seus sentidos as críticas aos modelos
de saúde hegemônicos pautados na tradição biomédica que produz discursos
sobre as doenças, reduzindo as experiências de saúde e adoecimento de
sujeitos e coletivos a fenômenos observáveis e propondo soluções numa lógica
de causa e efeito. As práticas biomédicas põem em ação o saber do
especialista, que se debruça e intervém mecanicamente sobre um corpo, sem
considerar as próprias implicações nos modos de se relacionar com os
pacientes.
A noção de cuidado que gostaríamos de discutir está vinculada ao
conceito de integralidade. Ações integrais são consideradas aquelas que
produzem cuidado e conhecimento entre-relações (PINHEIRO e GUIZARDI,
2013) de usuários, profissionais e instituições, com efeitos de respeito, vínculo,
acolhimento:
16
(...) é possível qualificarmos a integralidade como um
dispositivo político, de crítica de saberes e poderes instituídos,
por práticas cotidianas que habilitam os sujeitos nos espaços
públicos a engendrar novos arranjos sociais e institucionais em
saúde (PINHEIRO e GUIZARDI, 2013, p. 23).
A noção de integralidade, desse ponto de vista, não se trata da soma de
saberes e práticas de cunho terapêutico ou curativo, mas da criação de novos
arranjos, pois é um resultado da participação de outros conhecimentos que não
são somente técnicos ou científicos.
Fazem parte das mudanças na concepção de saúde e de doença que
alimentam as teorias do cuidado as distinções entre conhecimento científico –
que supõe verdades absolutas, leis universais – e conhecimento válido, aquele
que se constrói em meio a práticas cotidianas que nem sempre atualizam os
discursos prescritivos da ciência moderna. Essa perspectiva recusa os
universais acerca dos problemas de saúde da população e tem constituído um
suporte para as teorias do cuidado que buscam ampliar as formas de cuidar em
saúde (CAMARGO JR., 2013). Nesse sentido não recusa os aparatos
reconhecidos pela ciência moderna, mas os utiliza em composição com outros
saberes quando estes se mostram eficazes na produção de saúde, como no
caso da saúde mental:
Não se trata de negar a contribuição possível e real da
farmacologia, da fisiologia cerebral e toda a tecnologia da
pesquisa moderna, mas evitar o reducionismo derivado de suas
aplicações práticas, que procuram comprovar que as emoções
humanas são apenas trocas de neurotransmissores, são
“apenas” reações bioquímicas (AMARANTE, 1999, p. 51).
Mais especificamente, as práticas da psiquiatria positivista foram
contundentemente criticadas nos processos de construção de novos sentidos
para o cuidado em saúde. Criou-se então um tipo de aliança entre os
movimentos da saúde coletiva e da reforma psiquiátrica, que se integraram a
partir dos anos 80 para produzir transformações de caráter teórico-conceitual,
técnico-assistencial, jurídico e sociocultural (AMARANTE, 1999), num esforço
17
contínuo para abalar as rígidas estruturas dos campos dominantes de saber
sobre saúde e loucura, num período favorável de criação do Sistema Único de
Saúde (SUS).
No campo da saúde mental no Brasil o uso do termo cuidado se deu a
partir de questionamentos e críticas quanto às modelagens psiquiátricas
tradicionais, ou o modo asilar de tratamento e suas práticas manicomiais. Mas,
o que são essas práticas e o que o uso do termo cuidado pretende
transformar?
Costa-Rosa (2000) propõe elucidar as duas modelagens: um modo
asilar em contraposição a um modo psicossocial, já que num momento
instituinte das leis e da criação dos novos serviços substitutivos em saúde
mental6, fez-se necessário e estratégico distingui-los em oposições radicais.
Para o autor, o modo asilar se caracteriza pelo aparato tecnológico
biomédico tradicional, com ênfase nas determinações biológicas dos problemas
que almeja tratar, da psicose à drogadicção (entendendo tratamento como
intervenção para remissão de sintomas ou cura definitiva), sempre de maneira
terapêutica medicamentosa; o destinatário das ações é um organismo doente e
não se considera a existência de um sujeito, muito menos há implicação
subjetiva nas relações médico-paciente e produção de vínculos. O especialista
médico, que intervém mecanicamente em “pedaços” doentes (lobo frontal,
neurônios, nervos) tem poder soberano não só em relação ao chamado doente,
mas em relação a toda a equipe do hospital, que seguem de maneira
inquestionável suas prescrições. Seu estabelecimento geralmente é o hospital
fechado, mas não somente: é possível reproduzir a lógica asilar mesmo em
ambientes abertos, fora do regime de internação e até mesmo sob a tutela de
outras disciplinas, como a psicologia e a psicanálise, a depender de como são
operadas nessas situações (COSTA-ROSA, 2000).
6 Conhecida como Lei Paulo Delgado, carregando o nome de seu autor, a lei que dispõe sobre
a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais foi sancionada
somente em 2001. Disponível em: <http://www.paulodelgado.com.br/lei-n%C2%BA-10-216-de-
6-de-abril-de-2001/>. Acessado em: 18.10.2013.
18
No modo psicossocial os determinantes para os problemas de saúde
mental são múltiplos e dinâmicos, são fatores psíquicos, biológicos, políticos,
sociais, históricos e outros tantos a serem considerados por um chamado
sujeito que experimenta um sofrimento intenso e sem possibilidade de
encontrar soluções sem ajuda de uma rede de apoio, não apenas de uma
droga-remédio. Esse sujeito, que pertence a um grupo social, não será isolado
ou responsabilizado individualmente por sua condição. Aqui o trabalho não
será somente da medicação e nem só do indivíduo, mas de um grupo social,
equipe cuidadora, família, escola, comunidade. A equipe é multiprofissional,
reconhece-se que o sujeito em sofrimento psíquico pode falar de si próprio e as
hierarquias de saber são abaladas o tempo todo. A loucura, o sofrimento, as
diferenças, não têm que ser removidas a qualquer custo, pois fazem parte dos
modos de existência; os conflitos são considerados constitutivos, podem ser
acompanhados e até mesmo transformados em potência de vida, em saúde. A
relação com a equipe cuidadora é próxima, há produção de vínculos,
expressão de afetos, respeito às diferenças, acolhimento e não subtrações das
trocas sociais como no modo asilar. O modo psicossocial desdobra-se em um
exercício ético-estético “em que o que é visado é a experimentação de novas
possibilidades de ser...” (COSTA-ROSA, 2000, p. ).
Para Alves e Guljor (2013), o cuidado no campo da saúde mental é um
rompimento com um tipo de tratamento praticado no modo asilar. Por isso a
ruptura com esse modelo propõe um deslocamento do objeto de cuidado da
doença para um sujeito em sofrimento, que está vivenciando um processo
dinâmico e não um estado imutável e impotente. Cuidar nesse sentido pode
assumir várias formas no sentido de ser capaz de acolher as demandas do
sujeito e colocar-se na posição de mediador de sua resolução, propondo
mudanças na relação tradicional médico-paciente, que supõe um especialista
soberano, autoridade inquestionável do saber e do poder, para colocar-se ao
lado, junto, numa proposta de acompanhamento e convivência. Os autores
trabalham com alguns pressupostos do cuidado em saúde mental:
- reconhece-se os diferentes modos de se viver a vida, diferentes modos
de existência que supõe diferentes desejos e diferentes possibilidades de
escolhas.
19
- o cuidado não é somente um ato, mas uma atitude responsável e
acolhedora diante das condições de sofrimento, investindo no potencial dos
sujeitos e dos coletivos em operarem suas próprias singularidades.
- a perspectiva da integralidade, já que considera as necessidades de
saúde compostas por diversos campos que trabalharão na construção de
projetos de vida e não com foco exclusivo na remissão de sintomas.
- trabalha-se com a ideia de risco social, diferente da classificação
diagnóstica tradicional dos manuais de psiquiatria. Trata-se de considerar toda
uma rede de relações que se articulam para produzir processos de
adoecimento.
Para que essas transformações se efetivem, são necessárias outras
formas de organização da assistência, como os CAPS, Residências
Terapêuticas, Programas de trabalho, capacitação profissional e educação,
lazer e cultura, entre outros. Há que cuidar, no entanto, para não se criar um
universo substitutivo que em suas práticas reduzem o acesso de seus usuários
somente aos serviços destinados às suas demandas de saúde não ampliando
a tantos outros espaços da cidade e outras instituições (ALVES e GULJOR,
2013).
2.2 Cuidado e Políticas de álcool e outras drogas
Durante a maior parte do século XX a questão das drogas foi tomada
como responsabilidade pelos campos médico e jurídico (SOUZA, 2012),
produzindo modos de lidar com o uso de drogas numa perspectiva que transita
entre o diagnóstico psiquiátrico e um encaminhamento judicial. O campo
médico-jurídico produziu um saber sobre um sujeito usuário de drogas
esquadrinhando desde o seu mais remoto inconsciente até o seus mais banais
hábitos, costumes, comportamentos e construindo aparatos e conjuntos de
práticas com a promessa de curá-lo ou corrigi-lo.
Para Souza (2012) tais regimes de governamentalidade produzem
polarizações entre a norma da abstinência do uso de drogas como um ideal de
saúde e moralidade, em oposição a uma condição de doença ou de
comportamento criminoso. A binariedade do bem ou mal, do certo e errado,
20
produzem composições em torno do diagnóstico “dependente químico”: doente,
impotente, irresponsável, fora-da-lei. Tais composições seriam também
herdeiras do chamado poder pastoral cristão, que o autor discute a partir de
Michel Foucault, já que antes de se tornar uma norma médica ou jurídica a
abstinência foi uma norma religiosa na qual a relação com a lei implicava além
da obediência, a renúncia das próprias vontades incluindo os prazeres do
corpo (SOUZA, 2012).
Esse modelo que se tornou hegemônico e que pactua com o ideal de um
mundo sem drogas tem sustentado nas sociedades ocidentais capitalistas
políticas de drogas de cunho bélico e proibicionistas, chamadas de Guerra às
Drogas. Tais políticas prometem a erradicação de toda a demanda por
substâncias psicoativas e produzem um tipo de sujeito chamado dependente
químico, híbrido do pecado, da doença e da delinquência. Ao mesmo tempo,
distinguem substâncias entre lícitas ou ilícitas, produzindo aparatos
mercadológicos para regular o consumo de drogas e os tipos de tratamento.
A partir da década de 1970, na esteira dos movimentos institucionais,
esse modelo começou a ser interrogado de maneira mais pública em alguns
países na Europa. Os usuários de drogas que até então foram tomados,
investigados, representados e segregados, começaram a falar por si próprios o
que sentiam e o que queriam: melhores condições de saúde para conviver com
o uso de drogas, investindo todo um campo de lutas para aqueles sobre quem
o poder se exercia com monopólio e como abuso. A experiência holandesa
entre os anos 1970 e 1980 ficou conhecida como uma das primeiras em que
usuários e familiares se organizaram em um movimento social: o
Junkiebonden, com reinvindicações que culminaram num programa de troca de
seringas, protótipo para uma política de redução de danos que serviria
posteriormente como modelo para outros países (SOUZA, 2012).
No Brasil, as primeiras intervenções do poder público com relação ao
consumo de drogas se deram no início do século XX no âmbito da justiça, sob
a justificativa principal de reforçar a segurança pública, pois nessa época o uso
abusivo de drogas era incipiente, não considerado ainda como um problema de
saúde pública. Até a década de 1970 o governo brasileiro estava mais
21
interessado em controlar o comércio de drogas ilícitas do que na criação de
centros de tratamento, por isso nesse período entidades independentes se
organizaram nesse trabalho, como a Liga Brasileira de Higiene Mental e a Liga
Antialcoólica de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambas com concepções
moralistas e higienistas na abordagem da questão do uso de drogas
(MACHADO e MIRANDA, 2007).
A partir da década de 1970, houve um processo de incorporação da
medicina e mais especificamente da psiquiatria nesse campo que era
predominantemente da justiça. A Lei de Entorpecentes de 1976 marcou essa
transição e situou o usuário de drogas numa esfera entre a justiça e a saúde,
sendo reconhecidas as necessidades de assistência para essa população ao
mesmo tempo em que estava criminalizada pelas políticas proibicionistas nas
sociedades ocidentais. Diante dessa configuração, o usuário de drogas era
considerado um indivíduo doente, perigoso e uma ameaça à sociedade,
cabendo à justiça e à psiquiatria julgar sobre seus destinos em prisões ou no
sanatório para toxicômanos (MACHADO E MIRANDA, 2007). A influência da
medicina, no entanto, também abriu caminhos para se começar a pensar
outras abordagens para lidar com o consumo de drogas que não fosse pela via
da punição estrita.
Para Machado e Miranda (2007), a criação do Conselho Federal de
Entorpecentes (CONFEN) em 1980 teve um desdobramento importante para o
avanço das políticas de drogas no país pela via do cuidado e dos debates em
torno das políticas de redução de danos. A princípio, o órgão era destinado às
ações de repressão ao uso e ao tráfico, mas com a redemocratização passou a
tratar das práticas de prevenção, de tratamento e de pesquisa, não orientadas
exclusivamente por uma perspectiva repressiva e seus membros passaram a
se preocupar com os modos de acolhimento dessa clientela nos serviços de
saúde.
Em nossas terras as primeiras experiências de redução de danos
começaram somente no final dos anos oitenta e não se deram sem conflitos.
Em Santos, onde começou o primeiro programa de troca de seringas do Brasil,
embora situado junto aos movimentos da Reforma Psiquiátrica e dos processos
22
de desinstitucionalização, o programa foi impedido pelo Ministério Público de
continuar devido à baixa aceitação popular, mesmo em um contexto de
altíssimos índices de contaminação do HIV por drogas injetáveis na cidade
portuária. Frente a uma explícita recusa política em viabilizar outras formas de
lidar com a questão das drogas, muitos pesquisadores e redutores atuantes
precisaram se lançar em territórios internacionais para estudar e trabalhar em
práticas de redução de danos para retornar com aportes e fundamentações
que sustentassem experiências brasileiras (RUI, 2012).
A Lei 2.216 (BRASIL, 2001) regulamentou o funcionamento dos serviços
substitutivos aos hospitais psiquiátricos e determinou sua articulação em rede
intra e intersetorial, assim como a efetivação dos espaços de controle social7.
Também sinalizou a importância de uma rede específica para o cuidado de
usuários de drogas que desejassem se tratar no âmbito do SUS, sem a
necessidade de permanecerem internados ou necessariamente abstinentes do
uso.
Somente em 2003, com reconhecido atraso, o Ministério da Saúde
lançou um novo documento que dispõe de diretrizes e fundamentações quanto
a uma política pública voltada aos usuários de drogas, orientado pela lógica da
redução de danos numa perspectiva integral e psicossocial, além de distinguir
o consumo de substâncias de casos em que se enfrenta uma experiência de
sofrimento relacionada ao uso de qualquer tipo de droga, lícita ou ilícita
(BRASIL, 2003). Em 2005, o Ministério da Saúde regularizou as ações de
redução de danos, destinando incentivos financeiros para a atuação de
redutores em composição com as equipes dos CAPS ad (ALBUQUERQUE,
2014).
Em 2006 o financiamento público da saúde mental, que vinha sendo
centralizado nos hospitais psiquiátricos, passou a ser destinado para a rede de
atenção extrahospitalar e de bases comunitárias. Este fato foi fundamental para
a consolidação dos CAPS na construção de uma rede de atenção psicossocial
7 Controle Social se refere a uma estratégia de descentralização das ações de gestão, promovendo a autonomia e o protagonismo de usuários e familiares através de espaços como o Conselho Local de Saúde (BRASIL, 2004).
23
e aos poucos, como destaca Ramminger (2015), vai se tornando um consenso
o entendimento de que o sofrimento relacionado ao uso de drogas deveria ser
abordado numa esfera sanitária e não jurídica. Ainda em 2006, a chamada
nova lei de tóxicos pretendeu distinguir usuários e traficantes extinguindo as
penas privativas de liberdade para os primeiros casos. A autora discute como a
lei possui critérios pouco objetivos e, mesmo caminhando para amenizar a
repressão, deixa brechas para que indivíduos de camadas socioeconômicas
menos favorecidas sejam prejudicados, não retirando efetivamente a questão
do consumo de drogas do campo penal.
A partir de 2009, em meio à emergência de um discurso de pânico em
torno da problemática do crack no país, o Ministério da Saúde criou o Plano
Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e
outras Drogas (PEAD). Voltado aos cem maiores municípios brasileiros com
mais de 250 mil habitantes, o plano prevê a viabilização de consultórios na rua,
equipes de redução de danos, leitos de hospitalidade noturna em CAPS ad e
unidades de acolhimento, considerando a lacuna assistencial voltada às
demandas no campo de álcool e drogas no âmbito do SUS e de acordo com
uma Política Nacional de Humanização (ALBUQUERQUE, 2014; BRASIL,
2009).
Nos anos seguintes foram instituídos o Plano Integrado de
Enfrentamento ao Crack e outras Drogas pelo Ministério da Justiça e o
Programa “Crack, é possível vencer”, claramente para responder à
problemática do crack, divulgada como uma epidemia pelos meios de
comunicação e alguns profissionais da área, mesmo sem nenhuma
fundamentação epidemiológica que sustente tal classificação. Tais programas
em alguns de seus aspectos podem ser considerados retrocessos diante dos
avanços conquistados no âmbito da redução de danos e da reforma
psiquiátrica no país, por reforçarem a centralidade do problema no objeto droga
(no caso, o crack), a sensibilização da população pela via do medo e por trazer
à tona os debates em torno das internações compulsórias8 de usuários de
drogas (RAMMINGER, 2015). 8 De acordo com a Lei 10.216, a internação compulsória é uma modalidade de internação
psiquiátrica que se dá sem o consentimento do indivíduo e com a determinação de um juiz,
24
Em 2010, o Ministério da Saúde divulgou a portaria 3.088 que institui a
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, no âmbito do SUS, como parte da Política Nacional de Saúde
Mental. Com a finalidade de integrar os pontos de atenção voltados a essas
demandas, a RAPS está em processo de construção no país e deve ser
composta pela atenção básica, pelos Centros de Atenção Psicossocial,
unidades de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório e
outras estratégias de atenção psicossocial e desinstitucionalização (BRASIL,
2011)9.
No entanto, mais recentemente vem sendo discutido pelo Governo
Federal o financiamento público para Comunidades Terapêuticas10, instituições
privadas que recebem usuários de drogas para internações de longa
permanência. No Estado de São Paulo, a prática da internação compulsória
tornou-se diretriz em 2013, privilegiando as internações como porta de entrada
das ações de cuidado, mesmo sob protestos dos trabalhadores e usuários da
rede de saúde mental. Através do Programa Recomeço11, o Governo do estado
de São Paulo passou a disponibilizar uma bolsa em dinheiro para o
acompanhada de uma avaliação médica (BRASIL, 2001). No Brasil a prática das internações
compulsórias como medida de tratamento para usuários de drogas tem apresentado
sobremaneira caráter punitivo, tendo como efeitos a afirmação da abstinência como meta e
individualizando uma problemática, além de reforçar associações entre consumo de drogas e
criminalidade (SOUZA, 2012).
9 Trata-se da Portaria 3.088 de dezembro de 2011. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html>.
Acessado em: 16.12.2015.
10 Referente ao PLC/2013, que dispõe sobre o financiamento das Políticas sobre Drogas.
Disponível em: <www.senado.gov>. Acessado em: 18.10.2013.
11 Referente às novas atribuições do Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas
(CRATOD) e ao “Cartão Recomeço”. Disponível em: <ftp://ftp.saude.gov.br>. Acessado em:
18.10.2013.
25
financiamento de internações de usuários de crack em clínicas privadas e
comunidades terapêuticas mediante um cadastro feito por aqueles serviços que
escolhem pactuar com esse projeto e encaminhar usuários.
Podemos acompanhar nesse breve histórico que, mesmo com avanços
de novas perspectivas, existem lógicas institucionais bem consolidadas que em
suas capilaridades continuam operando com aparatos médicos-jurídicos que
classificam, confinam e condenam um sujeito reduzido ao diagnóstico de
dependente químico a uma vigilância constante de sua condição. Se a
legitimação oficial da redução de danos como diretriz política não se fez
suficiente para transformar regimes de verdade, será no campo das práticas
que isso irá acontecer, num plano onde operam os saberes locais, as teorias
dos usuários, de seus familiares e dos trabalhadores acerca das experiências
com o uso de drogas, da vida nas ruas, das instituições de tratamento e de
suas próprias necessidades.
Para Foucault (2009), o poder se exerce onde estão os saberes locais,
deslegitimados, construídos e específicos dentro dos grupos e relativos a
pequenos domínios e não a partir das superestruturas institucionais supostas
detentoras do saber universal e original, como o Estado ou a Ciência, pois
mesmo as superestruturas se decompõem em múltiplas regiões onde as ações
e os conhecimentos se descentram e se produzem descontínuos e sem pontos
fixos de origem. O poder, nesse sentido, não é entendido como a força
repressiva e com conotação negativa exercida por estruturas dominantes sobre
dominados, com um começo e um fim, mas uma força que permeia todo um
corpo social e circula entre todos, que “produz coisas, forma saber, induz ao
prazer” (FOUCAULT, 2009, p. 8).
Se a Redução de Danos hoje é um discurso possível é porque ele
funciona ao lado de outros e porque houve condições para que entrasse em
um campo de disputas e não porque se descobriu uma verdade definitiva e
universal que automaticamente substituiria outro regime. Não se trata
simplesmente de postular conceitos, conteúdos imbuídos de verdade, e sim de
nomear as condições de possibilidades para que fossem incluídos os saberes
26
locais e sujeitados de quem usa drogas, ampliando as discussões nesse
campo.
Os discursos produzidos no campo da saúde coletiva também fazem
parte do conjunto de saberes que possibilitam a emergência da redução de
danos, sendo que as políticas de drogas vigentes que orientam o cuidado
integral para usuários de drogas foram elaboradas a partir das políticas de
saúde mental. As implicações do tema das drogas com a questão das
internações e das práticas manicomiais têm sido expostas publicamente após a
pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia, que fiscalizou mais de
sessenta Comunidades Terapêuticas pelo Brasil afora. Foram denunciadas
práticas de tortura, maus tratos, isolamentos, trabalho forçado e outras tantas
com efeitos de violência física e subjetiva, revelando reedições e inovações dos
regimes asilares praticados nos manicômios (CFP, 2011).
Recentes experiências no cenário brasileiro servem de exemplos para
ilustrar um campo de embates entre posicionamentos distintos no nível dos
saberes locais na abordagem a usuários de drogas, como o Programa De
Braços Abertos da Prefeitura Municipal de São Paulo12, que desde 2013 atua
na região central da Luz. O Programa surgiu como novidade após longa
história de repressão policial no local em forma de agressões físicas e
remoções para outros locais da cidade, prisões ou internações. O acesso dos
usuários ao cuidado dependia de ações isoladas de redutores de danos, ONGs
e filantropia. No entanto, quase três anos após sua implementação, mesmo
com reconhecimento internacional e dados concretos que dão visibilidade aos
seus efeitos, ainda são frequentes episódios que ameaçam sua continuidade,
como ações policiais repressivas no local, desarticulação do programa com
outros segmentos sociais impregnados com o imaginário da periculosidade do
12 De acordo com o site da Prefeitura Municipal de São Paulo, o programa oferece trabalhos
remunerados como varrição e zeladoria às pessoas que circulam nos fluxos de uso e comércio
de drogas na região, encaminhamentos para hotéis próximos como oferta de moradia
provisória e atendimento à saúde no próprio local com equipes vinculadas ao programa.
Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br>. Acessado em: 24.06.2015.
27
usuário de drogas e com os programas do Governo do Estado que atuam na
lógica das internações compulsórias e da abstinência do uso.
Com tantas mudanças nas políticas públicas, os modos de atenção
prestados aos usuários de drogas no Brasil são bastante variados quanto a
suas lógicas institucionais, com pressupostos que variam entre salvar,
recuperar, punir ou cuidar. A abstinência do uso e o isolamento do usuário
permanecem como imperativos dominantes, numa abordagem do problema
que recorta o sujeito em suas dimensões desejantes e históricas, tratando-o
como depositário de uma doença e único responsável por sua condição, sem
considerar os processos múltiplos de adoecimento que se produzem em uma
sociedade de consumo.
Os CAPS álcool e outras drogas (CAPS ad) – campo empírico deste
estudo – começaram a existir desde 2002, articulados às políticas públicas de
redução de danos, têm como função serem substitutivos ao modelo
hospitalocêntrico, sendo responsáveis pelos processos de
desinstitucionalização13 das práticas dominantes centradas no discurso da
abstinência e do isolamento. São considerados como porta de entrada para o
atendimento de pessoas em sofrimento relacionado ao uso de drogas,
reguladores do fluxo destes usuários pelos serviços e estratégicos na
construção de uma rede de cuidados numa perspectiva psicossocial no âmbito
do Sistema Único de Saúde.
13 Desinstitucionalização neste estudo é entendida a partir de Rotelli et al.(2001), como a
transformação de um paradigma baseado na racionalidade psiquiátrica, através do desmonte
de aparatos científicos, administrativos e legislativos e de mudanças radicais nos modos nos
quais as pessoas são tratadas em seu sofrimento. Abordaremos mais detalhadamente acerca
da desinstitucionalização no capítulo referente à caracterização do campo deste estudo no
município de Campinas.
28
CAPÍTULO 3 – ACOLHIMENTO: EXPERIÊNCIAS E CONCEITOS
Assim como ocorre com o termo cuidado a noção de acolhimento produz
múltiplas interpretações de acordo com o conjunto de repertórios linguísticos
que constroem determinados campos de práticas e seus discursos. No
Dicionário Aurélio (2004), o verbo acolher indica os sentidos de receber e de se
levar algo ou alguém em consideração. No Dicionário Houaiss14, acolhimento
está relacionado a uma ação ou efeito de acolher, a um modo de receber ou
ser recebido e um lugar onde há segurança.
Matumoto (1998) encontrou algumas abordagens em torno da noção de
acolhimento, uma delas a religiosa. Nesse ponto de vista o acolhimento tem
origem nas palavras de Jesus e aparece como sinônimo de acolher os
excluídos, amor ao próximo e solidariedade. Também segundo a autora, na
perspectiva da organização e planejamento de serviços, o acolhimento tem
sido discutido como parte dos processos de trabalho em saúde e resultado das
práticas de saúde. Tais noções são encontradas nas mais variadas situações
da vida cotidiana e nos ajudam a acompanhar a construção do conceito de
acolhimento no campo da Saúde Coletiva.
A partir da década de 1980, várias experiências em unidades de saúde
para atenção primária serviram de base para o Movimento da Reforma
Sanitária e para a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, ocasião
marcada pela elaboração de diretrizes para um novo sistema público de saúde
que foram legitimadas pela Constituição de 1988 e pela nova Lei Orgânica de
Saúde15, que respaldou a organização de um Sistema Único de Saúde - o SUS
(SILVA JR. E ALVES, 2007). Tendo como principais diretrizes o acesso
universal, a integralidade das ações, a democratização da gestão em saúde e a
humanização das relações entre trabalhadores, usuários e comunidades, o
novo modelo encontrou muitos entraves em sua implantação devido às
tradições de um paradigma hegemônico de saúde baseado no modelo
14 Disponível em:< http://houaiss.uol.com.br/> . Acessado em 13/03/2015.
15 Lei 8.080/90. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm>. Acessado em 19/01/2016.
29
biomédico “anátomo-clínico”16 voltado à produção e reprodução de
procedimentos, centrado nas práticas curativas e na concepção de saúde como
ausência de doença ou sintomas.
Logo nas primeiras experiências nos anos 1990, trabalhadores nos
serviços de saúde sinalizavam uma crescente demanda da população por
atendimentos, longas filas de espera e uma agenda médica sobrecarregada,
impedindo o acesso da população às unidades. Havia também o diagnóstico da
precariedade do trabalho na recepção das unidades de saúde, onde logo na
chegada o acesso dos usuários era barrado causando situações de
desassistência e a degradação na relação entre as equipes e a comunidade
local (FRANCO, BUENO E MEHRY, 1999).
Nesse cenário, o tema da recepção começou ser vislumbrado como
possibilidade para uma reorganização tecnoassistencial necessária na
implantação das diretrizes que dariam materialidade ao SUS. A noção de
acolhimento surgiu nesse contexto, para ampliar as ações no trabalho de
recepção em equipes multiprofissionais, de forma a desburocratizar o
atendimento e garantir o acesso das pessoas aos serviços para oferecer
atendimento humanizado respeitando as necessidades e os direitos de todos
que procuravam as unidades de saúde.
Ao lado do Movimento Sanitário, o movimento da Reforma Psiquiátrica
no Brasil caminhou para reivindicação, planejamento e operacionalização de
novos modos de cuidado em saúde mental que garantissem o resgate de
direitos e transformações na concepção de loucura. Junto com as novas
equipes atuantes na rede de atenção básica à saúde, foram criados
equipamentos substitutivos de saúde mental para possibilitar a
desospitalização, o cuidado integral no território e o acompanhamento
16 Referente ao modelo flexneriano. Abraham Flexner foi um pesquisador social e educador
norte americano que elaborou em 1911 o chamado Relatório Flexner que fundamentou a
reforma das faculdades de medicina no Canadá e EUA, orientando um modelo de hegemonia
biomédica que inspirou a formação médica no Brasil (SILVA JR. E ALVES, 2007).
30
psicossocial de pessoas com diagnóstico de transtornos mentais com
experiências de sofrimento. Até hoje os conhecidos lemas “Saúde não se
vende” e “Loucura não se prende” carregam histórias, interesses e lutas que se
entrecruzam e cujos avanços têm sido conquistados em um plano comum.
Foram várias as experiências que propuseram arranjos em torno do
acolhimento em unidades de saúde de diferentes regiões do país e tomadas
como referências pelo Ministério da Saúde para respaldar o acolhimento como
diretriz operacional do SUS, reforçando uma construção de conhecimento no
campo da Saúde Coletiva que se dá sempre a partir das práticas. Visitaremos
algumas dessas experiências e discutiremos alguns conceitos em torno do
acolhimento em saúde.
3.1 Acolhimento em um ambulatório de saúde mental (RJ)
Tenório (2000) relatou a experiência de um Ambulatório de Psiquiatria
no Rio de Janeiro, onde foram realizadas mudanças nos procedimentos de
recepção e consequentemente no funcionamento do ambulatório como um
todo. Ao discutir o ato de recepção como decisivo para o futuro do tratamento,
o autor destaca sua importância para a transformação geral da assistência em
saúde mental, uma vez que nesse momento são colocadas muitas questões
que servirão para o processo como um todo.
As mudanças no modelo de recepção do ambulatório se deram a partir
do reconhecimento dos seus procedimentos de triagem como insatisfatórios:
longas esperas para atendimento e descaso com a dimensão subjetiva dos
processos de adoecimento. Operava na unidade certo modo de fazer e pensar
a psiquiatria reduzida ao manejo farmacológico dos sintomas, revelando uma
face do modelo de exclusão que a reforma psiquiátrica pretende superar.
Sendo assim, para esse ambulatório foi necessária uma transformação geral
da assistência em seus pressupostos (TENÓRIO, 2000).
Foram então criados grupos de recepção, para enfatizar a ideia de que a
recepção era terapêutica pelo seu caráter de acolhimento e a expressão
31
triagem caiu em desuso, pois dava a conotação de seleção de pessoas. Os
usuários passaram a falar mais de si, para além dos sintomas que sentiam e a
serem incluídos na construção de seus projetos terapêuticos. Alguns efeitos
dessas mudanças repercutiram em menos filas de espera, agenda mais eficaz
e qualificação da escuta dos trabalhadores, para produzir respostas mais
criativas e menos estereotipadas. Posteriormente, com o aumento da
demanda, diversificaram-se as ofertas no ambulatório, que criou novos grupos
terapêuticos e o plantão passou a ser composto por uma equipe
multiprofissional. Quando surgiam conflitos decorrentes dos desafios para a
nova organização, estes eram coletivizados de forma a analisar e rever os
processos de trabalho (TENÓRIO, 2000).
Nesta experiência não bastou mudar apenas o funcionamento
administrativo do serviço, foram necessárias mudanças de pressupostos com
relação ao cuidado, na perspectiva da escuta e da corresponsabilização dos
trabalhadores na construção de projetos com os usuários. Pouco a pouco a
recepção foi deixando de ser uma etapa de um sistema burocrático a ser
vencida pelos usuários e se tornou parte de um processo de acolhimento que
abarca desde sua chegada ao serviço, os encontros que se darão ali, as
negociações, os vínculos que se produzem, até a sua saída.
Parada (2003) reconhece o uso da palavra acolhimento sendo utilizada
há muito tempo no campo da psiquiatria, tendo surgido inicialmente como
instrumento de trabalho elaborado pelo movimento da Psicoterapia
Institucional17 para atualmente servir a uma diferenciação em relação à
Psiquiatria Asilar clássica. A noção do acolhimento como função é discutida
pelo autor a partir do pensamento lógico-matemático, em que as mudanças de
resultado em um processo dependem necessariamente de pelo menos dois
17 A Psicoterapia Institucional pode ser entendida como um movimento que toma a própria
instituição de saúde mental como objeto de tratamento, partindo da constatação de que o meio
no qual se praticam os cuidados pode ser ele próprio responsável pelo adoecimento ou
reabilitação dos pacientes. Sua origem remonta a meados do século XX, no contexto dos
hospitais psiquiátricos da França, e o psiquiatra catalão François Tosquelles é frequentemente
apontado como o principal precursor do movimento (MOURA, 2003).
32
elementos diferentes e variáveis. Assim, o acolhimento seria uma função
operante de modo permanente em uma instituição, não um lugar, tarefa ou
etapa do tratamento.
O autor identifica outras condições que podem estar presentes para se
garantir o acolhimento num serviço de saúde mental, como a gratuidade do
atendimento e a ética do anonimato, normas instituídas pelo Estado ou
organizações profissionais. Existem, no entanto, outras condições mais sutis e
não decretadas, como a disponibilidade dos trabalhadores em lidar com as
situações de angústia e sofrimento que lhe são trazidas. Tal condição
dependerá de cada encontro entre usuário e trabalhador, podendo a
indisponibilidade ser compreendida como uma dentre tantas outras formas de
proteger-se desse encontro. Outros aspectos importantes e que se manifestam
de modo sutil são a escuta, que se qualifica a partir de um interesse qualquer
no outro e também o ambiente, que não se restringe apenas aos elementos
arquitetônicos, mas compreende elementos psíquicos seja de harmonia, seja
de caos e provoca sensações interferindo em como nos comportamos
(PARADA, 2003).
Podemos observar a partir desta experiência, que o acolhimento como
estratégia de transformações nas relações entre trabalhadores e usuários
configura-se como um modo diferenciado de se receber, que desburocratiza o
acesso ao cuidado em saúde e coloca processos de trabalho instituídos em
análise. Dessa maneira poderão repercutir efeitos de desinstitucionalização de
práticas tradicionais com perspectivas curativas que fragmentam processos
complexos de saúde e de adoecimento.
3.2 Acolhimento em Betim (MG)
Entre 1993 e 1996 uma unidade de saúde em Betim (MG) viveu um
processo de implantação do acolhimento como diretriz operacional para
reorganização do serviço, especialmente quanto ao acesso universal, à
resolubilidade e o atendimento humanizado, buscando oferecer sempre uma
resposta positiva quanto ao problema de saúde trazido pelo usuário. Essa
33
unidade trabalhava com um modelo burocratizado de recepção que barrava
muitas pessoas na porta de chegada, excluindo-as do acesso ao cuidado em
saúde e produzindo peregrinações por outros serviços; além disso, os
processos de trabalhos eram todos centrados na figura do médico. Para Franco
et al. (1999) o acolhimento enquanto diretriz operacional consiste em: atender
(entendido como acolher, escutar e dar alguma resposta) a todas as pessoas
que chegam à unidade garantindo acesso; deslocar o eixo central do trabalho
do médico para uma equipe multiprofissional, ampliando o campo de
resolubilidade no cuidado em saúde e; qualificar as relações entre
trabalhadores e usuários com base em parâmetros de solidariedade e
cidadania.
Nessa experiência (que desde o início contou com o suporte e a
participação direta da gerente da unidade) a primeira ação tomada foi definir
uma equipe de acolhimento, encarregada da escuta dos usuários que
chegavam. Com essa mudança já se eliminaram as fichas de recepção e as
filas na porta da unidade, que estava finalmente aberta a todos que ali
procurassem ajuda. Após algum tempo de experiência, essa mesma equipe de
acolhimento passou a ser a principal responsável pelas atividades no
ambulatório, não mais o profissional médico. Todos os protocolos e fluxos
foram reorganizados de forma a potencializar ao máximo a capacidade técnica
de todos os trabalhadores da unidade, aumentando a resolubilidade no
atendimento dos casos. Ao utilizar todo o seu arsenal técnico, os trabalhadores
se viram dotados de maior autonomia, podendo exercer plenamente o saber-
fazer dos procedimentos e atendimentos (FRANCO et al., 1999).
A experiência de Betim produziu indicadores importantes como
ampliação da acessibilidade em comparação a outros períodos, aumento do
rendimento profissional pela utilização de cada trabalhador de seu máximo
potencial para a assistência e qualificação das soluções encontradas pela
equipe para responder aos problemas de saúde na unidade, sem necessidade
de encaminhamentos. Corroboraram para essas transformações discussões de
casos e dos processos de trabalho no coletivo, maior capacitação da equipe,
elaborações de novos protocolos, sempre tendo como base as experiências e
34
situações concretas do cotidiano nas práticas do acolhimento (FRANCO et al.,
1999).
O papel da gestão merece destaque, já que tal reorganização do
trabalho na unidade exigiu também uma participação democrática na
construção e avaliação das práticas de cuidado, havendo necessidade de
adesão dos trabalhadores à nova diretriz. Na experiência de Betim a gestão
participativa produziu um processo no qual os trabalhadores puderam conhecer
melhor os usuários e suas próprias ferramentas de trabalho. O vínculo
apareceu como uma diretriz acoplada ao acolhimento para garantir maior
responsabilização e comprometimento com os problemas de saúde dos
usuários e da comunidade (FRANCO et al., 1999). Mas a principal proposta da
experiência foi a de se aproximar das relações que se davam no serviço para
avaliar o funcionamento do mesmo, com destaque para as relações entre
trabalhadores e usuários, orientadas por certas tecnologias de cuidado.
Mehry (s/d) discutiu a respeito da existência de uma crise tecnológica
em saúde na qual os próprios usuários diagnosticam posturas de descaso,
desinteresse e desamparo frente à assistência em saúde. Trata-se de uma
crise tecnológica assistencial, produzida no âmbito de um modelo de cuidado
centrado em procedimentos ou tecnologias duras e não usuário-centrado. O
autor compreende as tecnologias de cuidado para além das condições
materiais de um serviço de saúde, como máquinas, aparelhos, instrumentos e
fichas, pois no conjunto das intervenções em assistência o trabalhador também
lança mão de seu repertório de conhecimentos e saberes advindos de sua
formação específica, as chamadas tecnologias leve-duras: leve, pois cada um
adquire e opera os conhecimentos à sua maneira e duras, pois são saberes
estruturados, instituídos e padronizados.
Ao nos aproximarmos da dimensão mais capilar do trabalho em saúde,
em qualquer encontro que acontece num serviço, observamos um tipo de
tecnologia leve (MEHRY, s/d), produzida durante o trabalho vivo em ato. Esses
encontros produzem relações que atualizam um jogo intersubjetivo de desejos,
interesses, escutas e interpretações produzindo efeitos de acolhida quando há
35
momentos de cumplicidade e produção de responsabilização em torno do
problema que vai ser enfrentado além de momentos de confiabilidade nos
quais se produzem vínculos e aceitações. Para o autor as tecnologias leves
seriam as tecnologias das relações, produzidas no trabalho vivo em ato e que
podem ser observadas em alguns momentos. A composição técnica do
trabalho em saúde deve, portanto buscar uma conformação entre os três tipos
de tecnologias sendo que o acolhimento acontece preponderantemente no
plano das tecnologias leves de relação (MEHRY, 1997).
A experiência do acolhimento em Betim interrogou ações clínicas e
encontros que se davam a todo o momento no serviço de saúde, afirmando
que sem acolher e se vincular, não há responsabilização e nem produção de
respostas que possam impactar os processos sociais de saúde e doença, que
são objetivos das práticas de saúde individual e coletiva (FRANCO et al.,
1999).
Para Schmidt e Lima (2004), as noções de campo e núcleo conforme
elaboradas por Campos (2000) ajudam a discutir os papéis dos profissionais
envolvidos no acolhimento e na construção do que é comum a todos em
termos de cuidado em saúde. No campo, estão presentes os saberes e as
responsabilidades comuns a todos os trabalhadores, enquanto nos núcleos
existem as aglutinações, a concentração de saberes e práticas particulares a
cada profissão ou especialidade. Nessa lógica, o acolhimento pensado como
tecnologia leve, está na dimensão do campo de cuidado e todos têm
responsabilidades em seu saber-fazer.
3.3 Acolhimento em um programa de saúde mental (SP )
Schmidt (2013) observou as práticas de acolhimento que acontecem em
torno da recepção e das salas de atendimento em um centro de saúde escola
localizado na zona oeste do município de São Paulo, acompanhando os
itinerários de procura por atendimento por parte dos usuários.
36
A partir de 2001, com a redução das equipes de saúde mental na
atenção básica em São Paulo, houve consequente centralização do cuidado a
essas demandas nos CAPS. Por isso, atualmente, o programa de saúde
mental nesse centro de saúde escola é considerado uma exceção, tendo em
vista a hegemonia da estratégia de saúde da família na atenção primária e a
superação conceitual da organização dos serviços por programas. O
experimento de manutenção da saúde mental como porta de entrada do
sistema ou como atenção primária pode ser visto, nesse contexto, como uma
espécie de resistência em manter o que há de valioso nas experiências de
organização dos serviços (SCHMIDT, 2013).
Nesse estudo, a pesquisadora acompanhou os itinerários de procura por
atendimento por parte da clientela, ouvindo os modos como os usuários se
posicionam ativamente na organização do serviço e observando
afrontamentos aos limites das políticas instituídas. Desse modo, propôs discutir
certas produções dos usuários que normalmente permanecem invisíveis e
silenciosas, mas que afetam a produção do cuidado que se requer. A autora
chamou algumas dessas produções de indisciplinas ou anti-disciplinas, que
aparecem na forma de desobediência às normas ou exigências da instituição
em favor de seus próprios interesses e criando suas próprias exigências a
partir de um conjunto de repertórios particulares.
(...) são formas de tomar posse, temporariamente, de lugares
instituídos sem, contudo, jamais se estabelecerem ou fixarem
legitimamente como partes da instituição: invasões instáveis e
precárias da ordem institucional. Como elas, o texto em que se
abrigam aspira atrair para si a vocação para exibir as franjas do
instituído, na esperança de oferecer instáveis e precárias pistas
de sua existência. (SCHMIDT, 2013, p. 1087)
Trata-se de rasurar ou falsificar receitas para se conseguir uma consulta
médica com maior rapidez, telefonar repetidamente apostando na variação de
posições entre diferentes profissionais até receber uma resposta desejada,
omitir mudanças de endereço para permanecer no serviço ou esconder o
cartão de retorno para omitir a ausência em uma consulta anterior, comparecer
fora do horário agendado. A autora reconhece tais atitudes desobedientes
37
como ações criativas da população diante das limitações do serviço de saúde
(falta de vagas, longas filas, demora no agendamento). Reduzir tais
indisciplinas a meros problemas administrativos, passíveis de punição, teria
provavelmente um significado diverso, servindo ao controle e depreciando o
cuidado.
A flexibilidade dos trabalhadores para lidar com as indisciplinas e
responder às situações que se apresentam pode ser lida como uma autonomia
para a invenção de formas de cuidar para além da rigidez burocrática de regras
que, em geral, excluem usuários que nelas não se encaixam. Essa flexibilidade
pode ser interpretada também como indisciplina: uma indisciplina institucional
decisiva para o acolhimento que a singularidade e a pluralidade dos usuários
requerem (SCHMIDT, 2013). Logo, nessa experiência, o acesso ao cuidado
aparece como resultado da dinâmica micropolítica presente nas negociações
cotidianas, entre o que está institucionalmente organizado e os modos como os
usuários se apropriam das ofertas de cuidado.
Para Souza (2012), é preciso considerar as implicações que atravessam
o fazer cotidiano dos trabalhadores, pois nas ações de acolhimento que
acontecem em um serviço estão presentes disputas de diferentes interesses e
projetos: dos usuários, dos trabalhadores, da instituição entre outros. O autor
desdobra a noção de acolhimento articulada à questão do acesso ao cuidado
narrando um exemplo em que uma equipe de saúde ou um profissional ao
atender uma pessoa usuária de drogas, coloca para si a tensão “sou a favor”
ou “contra as drogas”. Essa situação dentro do serviço será conduzida a partir
de um problema formulado pelo trabalhador de acordo com suas implicações
com relação à questão da experiência com o uso de drogas e não com as
experiências singulares que estão sendo trazidas e narradas pelo usuário,
barrando de algum modo que este acesse o cuidado de acordo com suas
necessidades e escolhas.
As experiências de acolhimento que acabamos de narrar, somadas a
muitas outras no país, vinham se destacando como estratégicas para
mudanças nos modos de cuidar em saúde no campo da saúde coletiva e da
38
saúde mental, no entanto os documentos oficiais de políticas públicas ainda
não apresentavam uma elaboração técnica mais detalhada a seu respeito. Em
2004, a partir do reconhecimento de que o padrão de acolhida dos usuários e
dos trabalhadores assim como outros pontos das transformações
tecnoassistenciais vinham sendo experimentados, o Ministério da Saúde
lançou uma série de materiais e ações para auxiliar as equipes no trabalho de
implantação das diretrizes contidas no SUS, entre elas a cartilha do
Acolhimento com Classificação de Risco, elaborada pelo Núcleo Técnico da
Política Nacional de Humanização18. Nessa edição, o acolhimento é proposto
como uma ação tecnoassistencial que pressupõe mudanças na relação
profissional-usuário a partir do acesso universal e da responsabilização de
todos os envolvidos pelas questões de saúde, tanto através da construção de
vínculos como pela democratização da gestão.
O acolhimento como diretriz implica em mudanças nos modos de fazer
em saúde que envolvem o protagonismo dos sujeitos envolvidos e uma
reorganização dos serviços a partir da problematização dos seus processos de
trabalho. As ações de acolhimento devem buscar respostas aos problemas de
saúde incluindo o saber e a cultura local ou do usuário e avaliar não apenas
sintomas físicos, mas também de ordem psíquica e social. A cartilha traz um
exemplo que ocorreu em uma comunidade indígena quando uma cirurgia em
uma mulher só pôde ser realizada quando a equipe de saúde considerou e
incluiu os saberes locais e seus rituais durante e após o procedimento
(BRASIL, 2004). A cartilha ainda destaca outro caso, desta vez de uma garota
que se queixou várias vezes de dores na barriga em uma sala de espera,
sendo sempre orientada a retornar para a fila e aguardar a sua vez. A garota
18 Lançada em 2003, a Política Nacional de Humanização busca pôr em prática os princípios
do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de gerir e
cuidar. Existe uma série de cartilhas elaboradas para auxiliar as equipes a atuarem em
diversas frentes, entre elas, o acolhimento. Para maiores informações, acessar:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf>.
Acessado em: 27.03.2015.
39
veio a falecer, pois havia ingerido veneno para interromper uma gravidez
indesejada. Por isso há urgência em desburocratizar e humanizar as relações
através da escuta, da mudança do foco da doença para o sujeito em uma
abordagem integral e do aperfeiçoamento do trabalho em equipe para que
exista maior responsabilização dos profissionais e construção de vínculos
(BRASIL, 2004).
Embora a cartilha oriente modos de operar o acolhimento a partir de
pressupostos e diretrizes, deixa claro que se trata de uma série de mudanças
difíceis de realizar, sendo que a sua concretização se dará no cotidiano a partir
das práticas e mesmo quando não se pode resolver algo de imediato pode
haver algum encaminhamento de maneira ética e resolutiva.
Em 2010 o Ministério da Saúde lançou a segunda edição do material
técnico da PNH, desta vez intitulado Acolhimento nas Práticas de Produção de
Saúde, reafirmando o acolhimento como postura e prática que contribuem para
a construção de relações de confiança e compromisso, para a efetivação da
descentralização do cuidado e da gestão e finalmente para efetivar a
implantação do SUS como política pública fundamental da e para a população
brasileira. Reconhece o acolhimento como uma das diretrizes de maior
relevância ético-estética e política da PNH: ética no sentido de acolher e
reconhecer o outro em suas diferenças; estética porque cria estratégias no
cotidiano a partir das relações; política porque implica um compromisso coletivo
para sua implantação e avaliação (BRASIL, 2010).
As experiências que acabamos de visitar trazem questões que
relacionam o acolhimento a noções como acesso, escuta e vínculo, tomando
como ponto de partida os encontros que se dão entre trabalhadores e usuários
num serviço de saúde. Teixeira (2008) destaca que, embora tenha-se um
entendimento de que os processos sociais não possuem um ponto de origem
ou causas naturais, esse binômio trabalhador-usuário se tornou naturalizado no
campo sanitário e por isso é importante de ser analisado.
Na segunda metade do século XX, as ciências sociais assumiram uma
postura critica dos discursos médicos-sanitários vigentes que não perderam,
40
entretanto, sua participação na construção do campo de forma hegemônica. O
Movimento Sanitário trouxe então a preocupação em falar menos do outro e
criar condições para que ele fale diretamente, num movimento que se traduziu
numa série de políticas públicas. A partir de então o campo da saúde se tornou
mais sensível para a questão das alteridades (TEIXEIRA, 2008).
A possibilidade de discutirmos as relações que se dão nos serviços de
saúde no âmbito do SUS implicam a todos na construção de um espírito
democrático onde todos podem ter voz, dizer de si e ser escutados, afirmando
as técnicas de conversa como exercício democrático. As conversas estão
presentes nas relações entre trabalhadores e usuários, assumem várias formas
e funcionam para o bom desempenho tecnoassistencial numa perspectiva
comunicacional. A função do acolhimento nessa lógica comunicacional é tudo
receber e conectar as conversas que se dão, convidando os usuários a
frequentarem outras conversas. Desse modo, ampliam-se as possibilidades de
trânsito pela rede e constitui-se uma rede de conversações interligadas por um
acolhimento-diálogo (TEIXEIRA, 2008).
Por não se restringir à atividade de recepção, o acolhimento-diálogo é
um momento de negociação das necessidades que estão por vir e também de
conectar os pontos de uma rede. Nos encontros entre trabalhadores e usuários
são pautadas o tempo todo negociações das necessidades a serem satisfeitas
e a possibilidade de os usuários realizarem diferentes combinatórias de
atenção, implicando uma plasticidade que favorece as singularizações
possíveis (TEIXEIRA, 2008).
No entanto, tais lógicas não estão dadas e para que tudo isso possa se
efetivar é necessário um conjunto de condições que favoreçam esses
processos. Nas próximas páginas adentraremos no contexto da saúde em
Campinas, os percursos para sua consolidação e cenários favoráveis à
construção de uma rede de saúde mental, álcool e outras drogas.
41
CAPÍTULO 4 – CAMINHOS DA SAÚDE EM CAMPINAS
Localizada a menos de 100 quilômetros da capital, o município de
Campinas em São Paulo possui aproximadamente 1.144.862 habitantes e
como pólo regional da região metropolitana ultrapassa a marca de três milhões,
sendo considerada a terceira cidade mais populosa do estado (JANUZZI et al.,
2014). Encontra-se na região oeste do estado, em uma das rotas de ligação
entre a capital, o interior e outros estados brasileiros.
Vinculada a um passado de produção cafeeira que alavancou o
crescimento econômico da região, Campinas e suas heranças culturais do
tempo da aristocracia rural estão espalhadas em sobrenomes estrangeiros,
grandes fazendas e suntuosas construções. No entanto o rápido
desenvolvimento urbano e o crescimento econômico incessante atraíram
muitas pessoas de outras cidades e estados que pouco ou nada se
reconhecem nas histórias dos barões do café. São pessoas que chegaram em
busca de melhores oportunidades de trabalho, ou para estudar em alguma de
suas universidades.
Atualmente Campinas apresenta uma expansão demográfica
característica das grandes metrópoles, cujas periferias se encontram às
margens geográficas e econômicas para o acesso aos principais recursos da
cidade. Com histórias de efervescentes militâncias em diversos cenários
políticos desde a década de 1960, a cidade também foi palco recente de
acontecimentos dramáticos, como o misterioso assassinato do prefeito em
exercício Antônio da Costa Santos no ano de 2001 e o escândalo de corrupção
na maior empresa de abastecimento de água da cidade, a SANASA, em
201119.
No âmbito da saúde, teve suas primeiras e incipientes politicas sanitárias
no final do século XIX, quando houve um grande surto de febre amarela que se
19Mais informações podem ser encontradas em notícias e reportagens divulgadas pela mídia
na época. Segue um link para acesso ao principal jornal da cidade, o Correio Popular:
<http://correio.rac.com.br/>. Acessado em: 04.06.2015.
42
alastrou rapidamente e dizimou quase um quarto da população. Nesse período
pós-abolição da escravidão e proclamação da República, a região também
recebeu imigrantes europeus e norteamericanos em busca de prosperidade na
produção de café ou nas grandes fábricas que ali se instalaram no início do
século XX. Devido à precariedade no planejamento e implantação de ações
sanitárias, a epidemia ainda se manifestou mais algumas vezes até sua
erradicação sete anos depois (MORAES, 2014). Se a epidemia evidenciou as
precárias condições sanitárias na época, também atraiu a instalação de
diversas instituições ligadas à prática médica e ao conhecimento científico
nesse campo, como o Serviço Sanitário de São Paulo, considerado um dos
marcos da saúde pública para o país; ao mesmo tempo foram criados serviços
privados para atender colônias de imigrantes portugueses e italianos
(CORREA, NASCIMENTO e NOZAWA, 2007).
No início do século XX outras mazelas, como a lepra, afetaram a
população campineira, no período conhecido como “auge da política de
construção de colônias” (AMARAL, 1995, p. 19) para receber as pessoas que
estavam doentes. Estas viriam a ser também os loucos, os bêbados, os
indigentes e todos aqueles que eram julgados uma ameaça para a
prosperidade nesta nova sociedade que se tornava cada vez mais polarizada,
definida pela burguesia de um lado e a população em condições miseráveis de
outro. (CORREA, NASCIMENTO e NOZAWA, 2007; BRAGA CAMPOS, 2000).
Em 1925, foi implantada uma nova abordagem em saúde com base no
modelo norteamericano, enfatizando ações preventivas ou profiláticas voltadas
para a educação e fiscalização sanitária. Na década de 1960 o exercício da
medicina privada e de caráter individual já era predominante, enquanto os
serviços de saúde pública limitavam-se à vacinação e controle de moléstias
infecciosas e contagiosas voltados à população pobre e excluída dos sistemas
previdenciários. A partir da década de 1970, com o aumento da migração,
crescimento das periferias, da desigualdade econômica e impulsionado pelos
movimentos sociais da época que criticavam os modelos de saúde vigentes, o
município criou mais serviços públicos e começou a construir novas políticas
públicas de saúde (CORREA, NASCIMENTO e NOZAWA, 2007).
43
Campinas apresenta um modelo assistencial fundado na Atenção
Primária à Saúde20 desde 1976, que ampliou não só a cobertura, mas criou
novos programas de atendimento que incluíam a saúde mental. Os primeiros
Centros de Saúde e as novas políticas de Atenção Primária desenvolvidas com
participação popular e em parceria com as universidades contribuíram para a
construção coletiva de um sistema de saúde baseado num modelo de Medicina
Comunitária (CORREA, NASCIMENTO E NOZAWA, 2007; BRAGA CAMPOS,
2000). Mas se esses serviços tinham engajamento para a vigilância em saúde
e para programas específicos, não funcionavam efetivamente como porta de
entrada para as demandas de saúde mental, que desde o final do século XX
estavam enclausuradas nos grandes hospitais (BRAGA CAMPOS, 2000;
AMARAL, 1995).
Na década de 1980, com a municipalização da saúde, intensificaram-se
os debates para uma reestruturação do modelo vigente. As mudanças puderam
ser legitimadas após a Constituição de 1988, tendo impulsionado uma grande
reforma entre 1989 e 1993, quando foram criadas novas unidades de saúde e
equipes de saúde mental para atuar na atenção primária. Houve uma
reestruturação organizacional e política para transformar as portas de entrada
das demandas em saúde mental, que eram os grandes asilos, rumo ao
território numa perspectiva psicossocial (MORAES, 2014; BRAGA CAMPOS,
2000).
A complexidade do Sistema de Saúde em Campinas levou à
distritalização, que foi o processo progressivo de descentralização do
planejamento e gestão da Saúde para áreas com cerca de 200.000 habitantes,
que nesse município iniciou-se com a atenção básica, sendo seguido pelos
serviços secundários próprios e posteriormente pelos serviços conveniados ou
contratados. Esse processo exigiu envolvimento e qualificação progressivos
20 De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2008), a Atenção Primária em
Saúde é concebida tanto como estratégia de cuidado à saúde como um modo específico para
organizar os sistemas públicos de saúde, sendo que no Brasil o termo Atenção Básica também
é utilizado (CAMPOS, 2014).
44
das equipes distritais e representou grande passo na consolidação da gestão
plena do sistema no Município, que hoje está dividido em cinco Distritos de
Saúde: Norte, Sul, Leste, Noroeste e Sudoeste21.
4.1 O projeto Paideia
O Movimento Em Defesa da Vida, que em Campinas mobilizou
trabalhadores da saúde mental, pesquisadores e usuários, constituiu as bases
para estruturar novas formas de fazer clínica e gestão. Entre 2001 e 2004 a
Secretaria Municipal de Saúde assumiu a experimentação e implantação do
Programa de Saúde da Família – PAIDEIA22 para toda a rede básica municipal
e introduziu dois integrantes estratégicos visando maior eficácia em seu caráter
comunitário: o médico generalista e o agente comunitário de saúde. O
programa alinhado às produções e experiências no campo da Saúde Coletiva
também propôs novos debates acerca dos pressupostos das políticas públicas
de saúde, preocupando-se para além da ampliação de serviços e equipes, com
a humanização do atendimento e democratização da gestão a partir de
diretrizes como clínica ampliada, equipe local de referência, cogestão,
acolhimento e capacitação das equipes (CAMPOS, 2007). Tais diretrizes foram
posteriormente incorporadas pela Política Nacional de Humanização (PNH) do
Ministério da Saúde e lançadas em forma de cartilhas como forma de auxiliar
as equipes e gestores a implantarem mudanças em seus serviços na direção
dos princípios do SUS.
21 Disponível em: <http://www.campinas.sp.gov.br/>. Acessado em: 04.06.2015.
22 A ideia de nomear o projeto como Paideia foi de Gastão Wagner de Souza Campos, que
assumiu a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas entre os anos de 2001 e 2002. Trata-se
de uma proposta para o exercício coletivo e democrático da gestão a partir do método da roda,
operando de maneira diferente do modelo de administração taylorista hegemônico; foi inspirado
na experiência grega da Paideia, quando os gregos sonhavam com as cidades democráticas e
criavam novos métodos de governar, através de práticas para a formação integral do ser
humano, uma educação para a vida que ampliasse sua capacidade de análise e intervenções
dos coletivos (CAMPOS, 2007).
45
Essas diretrizes se articulam entre si e desdobram outros conceitos
como vínculo, acesso, autonomia, entre outros que serão aqui abordados
separadamente apenas para fins didáticos, pois estão interconectados na
produção de cuidado em saúde na perspectiva da integralidade.
O conceito de Clínica Ampliada foi tomado pela primeira vez como
diretriz em Campinas no contexto da atenção básica e foi trabalhada junto aos
conceitos de Equipe de Referência e Projeto Terapêutico Singular. Trata-se de
considerar todos os trabalhadores envolvidos no cotidiano dos serviços sendo
capazes de fazer clínica, seja pela via do diagnóstico e do tratamento, da
prevenção ou do acompanhamento. A clínica que se propõe ampliada visa
superar o modelo médico tradicional, positivista e reducionista que toma
somente a doença como objeto, para descentrar a produção do cuidado em
saúde em um processo de acompanhamento e compartilhamento do trabalho
em equipe multiprofissional. Tais práticas devem ser assumidas por uma
equipe local de referência que acompanhará e se responsabilizará pelo
cuidado em saúde de uma parcela da população do território atendido
(CAMPOS, 2007). Desse modo a avaliação diagnóstica é situacional, deve ser
feita processualmente incluindo o saber do sujeito e o momento específico da
vida de um grupo a partir do pressuposto de que uma vez atuando em um
serviço de saúde é preciso olhar para os processos de adoecimento que se
dão em múltiplos planos: sociais, históricos, biológicos, psicológicos. Para
viabilizar o cuidado no cotidiano, é necessário construir projetos terapêuticos
para cada grupo ou sujeito levando em consideração o máximo de aspectos
que influenciam a vida das pessoas, de modo que todos os profissionais
possam ajudar a responder situações a partir de seu núcleo de formação
(ONOCKO CAMPOS, 2001).
Essa proposta gera tensões nas barreiras disciplinares, estimulando o
trabalho em equipe, pois considera um sujeito que não é ou social, ou
psicológico ou determinado biologicamente, mas atravessado
sociohistoricamente e com múltiplas possibilidades em seus modos de
existência. As equipes nos serviços de saúde também estão atravessadas por
muitas instituições e saberes que mesmo quando potentes devem ser
46
analisados, de modo a acompanhar processos de saúde e de adoecimento que
não são estáticos, mas dinâmicos (ONOCKO CAMPOS, 2001).
No caso dos equipamentos substitutivos de saúde mental cuja proposta
é justamente recusar as práticas clínicas tradicionais exercidas numa lógica
manicomial, estão presentes diversos saberes e modelagens clínicas, da
psicologia, da enfermagem, terapia ocupacional, psiquiatria, entre outros.
Nesses equipamentos se lida mais cotidianamente com situações de “crise”,
entendidos como momentos de ruptura vividos com enorme angústia por
aquele que os vivencia (ONOCKO CAMPOS, 2001). Dessa forma a equipe
deverá estar preparada não apenas para intervir em situações de crise, mas
também acolhê-las, já que o encaminhamento para intervenções em forma de
internação em hospital psiquiátrico, quando acontece, se torna um analisador23
do modelo psicossocial e dos processos de desinstitucionalização.
A possibilidade de acolher e acompanhar a crise junto com o usuário
possibilita que não se quebrem vínculos construídos no serviço, mas deve
implicar a responsabilização de uma rede de cuidados, não apenas um
equipamento. A clínica ampliada nesse contexto deve buscar a construção de
novos laços e o reconhecimento dos modos singulares de se caminhar na vida,
sem desrespeitar as experiências de sofrimento que cada usuário vivencia.
O conceito de cogestão aborda um exercício de governo que se dá de
forma participativa como forma de democratizar o poder entre todos os
envolvidos, tanto para gerenciar projetos em comum, como também para
produzir subjetividades e educação para a vida, exercendo uma função Paideia
e que tem o método da roda como um tipo de dispositivo que propicia o
exercício da cogestão (CAMPOS, 2007). Colocar em roda, reunir, fazer circular
a palavra, negociar sentidos e reconhecer as tensões são práticas da cogestão,
presentes nas reuniões de equipe, grupos com usuários, discussões de casos
23 Na Análise Institucional Francesa, os analisadores estão presentes nos grupos ou lugares
onde circula a palavra e têm potência de revelar e ao mesmo tempo analisar conteúdos que
estão ocultos ou naturalizados em uma instituição (LOURAU, 2004).
47
clínicos, supervisões clínico-institucionais, assembleias com usuários e
familiares, conselhos locais de saúde, entre outras formas de roda presentes
no cotidiano de muitos serviços de saúde em Campinas.
A cogestão pôde ser experimentada como diretriz e também como
política pública de saúde mental a partir do acordo firmado entre a Secretaria
Municipal de Saúde e o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira em 1990, uma
instituição que funcionava como sanatório em moldes asilares tradicionais, de
caráter filantrópico e que não tinha como se sustentar com recursos próprios.
O acordo que estabeleceu um regime de convênio entre as instituições
permitiu um exercício de cogestão da saúde mental no município em vários
níveis; foram criados colegiados gestores, parcerias com as universidades e o
fortalecimento dos espaços de controle social. No entanto, outras
administrações municipais que vieram posteriormente passaram
gradativamente a se distanciar das políticas de saúde mental e hoje essa rede
vive um período crítico com o desmonte de muitos de seus projetos. Mesmo
em meio a essa conjuntura, um exercício da cogestão opera em muitos
serviços, nas formas de construção de projetos terapêuticos compartilhados, na
inclusão dos saberes dos usuários na organização dos serviços e o
fortalecimento contínuo dos espaços de controle social com participação
popular, produzindo um modelo de clínica-política com experiências inovadoras
e emancipatórias, como a Gestão Autônoma da Medicação (GAM-BR)24.
Embora as experiências de acolhimento a partir de um modelo de
humanização e cuidado integral já estivessem acontecendo em algumas
cidades brasileiras, Campinas foi o primeiro município a transformá-las em
diretriz a partir do Projeto Paideia. Havia um diagnóstico acerca da
precariedade das práticas de recepção nos serviços de saúde que produziam
24 O GAM-BR foi um estudo avaliativo e participativo realizado em Campinas (SP), Rio de
Janeiro (RJ) e Novo Hamburgo (RS) que teve como objetivos adaptar e testar nos CAPS
dessas três regiões um instrumento canadense chamado de Guia Pessoal de Gestão
Autônoma da Medicação e que teve efeitos emancipatórios junto aos usuários participantes
(PRESSOTO et al., 2013).
48
longas filas de espera, burocratização das relações e iatrogenia, por isso o
acolhimento foi tomado primeiramente como estratégia para transformação do
protocolo de recepção, como modos de receber bem, ouvir as demandas dos
usuários e se responsabilizar por elas numa postura acolhedora. Em entrevista
concedida para este estudo, Gastão Wagner S. Campos, que assumiu na
época a função de Secretário Municipal de Saúde e protagonizou ao lado de
outros atores o Projeto Paideia e as mudanças no SUS Campinas. Nesta
oportunidade, contou-nos algumas histórias e primeiras experiências com o
acolhimento como diretriz na cidade, que podem elucidar os processos de
mudança na gestão dos processos de trabalho numa dimensão local, dos
saberes construídos no caso a caso das intervenções.
Embora seja uma concepção tomada muito amplamente, na prática foi
pensada e estudada a partir de experiências internacionais, principalmente o
modelo do Sistema Nacional Inglês e seu protocolo de avaliação de risco, no
qual o atendimento é feito conforme as necessidades dos usuários e não por
ordem de chegada:
Aí nós fomos estudar e vimos que no Canadá, em alguns hospitais dos
EUA, São Francisco, na Inglaterra no sistema nacional, faziam uma
avaliação de risco com técnicos de enfermagem, com enfermeiros, às
vezes com médicos, na porta mesmo, classificava em três níveis de
risco, vermelho entrava direto, nível dois amarelo espera de dez a
quinze minutos e três ficava na fila, quatro orientava, enfim e a gente
levou isso como proposta pros hospitais para evitar que alguém
enfartasse e ficasse lá esperando duas três horas, que alguém com dor
ficasse lá esperando. (Entrevista com Gastão W. Campos, realizada
em 05/05/2015).
A lógica do acolhimento no município, assim como as outras diretrizes
do projeto Paideia, foi construída a partir de um grande processo de
intervenção institucional25 junto aos centros de saúde e hospitais, já que
25 Caracterizado também como socioanálise, foi realizada por uma equipe de sanitaristas e
analistas institucionais que, em duplas, trabalharam junto às equipes dos serviços de saúde a
partir das demandas dos trabalhadores nos serviços (CAMPOS, 2007).
49
implicavam em mudanças na organização dos processos de trabalho ali
existentes. É importante destacar que o Acolhimento com Avaliação de Risco
em seu modelo protocolar, dividido em categorias de gravidade avaliadas pelo
exame clinico se aplicavam bem no contexto do hospital, diferentemente da
realidade dos centros de saúde, que pedia justamente uma organização menos
burocrática, mais acessível para a comunidade e com caráter multiprofissional.
Por isso a estratégia do acolhimento na esfera da atenção básica foi tomada na
perspectiva da desburocratização do acesso ao cuidado em saúde a partir do
atendimento à demanda espontânea e do vínculo entre usuários e sua
respectiva equipe local de referência:
Então na verdade se criou uma forma muito burocratizada de lidar com
a população com os usuários, que deslegitimava o centro de saúde.
(...) Aí o pessoal aproveitou esse problema pra também reconhecer
que as pessoas eram muito mal recebidas, fazia fila de madrugada,
marcava uma vez por mês pra pegar vaga nova, os critérios de acesso
eram ou esse filtro ou uma fila, uma espera muito desrespeitosa. Então
fazer uma recepção humanizada, personalizada que avaliasse riscos
das pessoas e não apenas a ordem de chegada e ao mesmo tempo o
centro de saúde trabalhar também com o atendimento programado,
que a equipe dizia o que era prioritário, mas quanto ao atendimento
que a população trazia, a demanda da população, aí a gente botou
tudo isso nessa noção de acolhimento, que vem dessas teorias de
cuidado, de humanização, a gente pegou daí. Então acolhimento como
hospitalidade mas também como mudança da relação das equipes de
saúde da atenção básica com os usuários. (Entrevista com Gastão W.
Campos, realizada em 05/05/2015)
Nos serviços de Saúde Mental, as práticas de acolhimento se deram a
partir de referências que partem dos pressupostos de um modo psicossocial de
atenção, que envolve uma escuta atenta e ampliada e processos de vinculação
que possibilitam acompanhar cada usuário no dia-a-dia. O acolhimento nesse
caso não é uma etapa do tratamento, mas uma estratégia para os processos
de desinstitucionalização dos modos manicomiais de tratamento, para produzir
relações mais lateralizadas entre trabalhadores, usuários e comunidade e para
lidar com as situações de crise no cotidiano.
50
O acolhimento foi implantado em Campinas de formas distintas no
contexto do Pronto-Socorro, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e nos
equipamentos substitutivos de saúde mental, tendo efeitos específicos para
cada caso: se no hospital e nos CAPS o acolhimento, mesmo realizado em
realidades tão diferentes (o primeiro rigidamente protocolar e o segundo como
um processo de vinculação e acompanhamento) pôde ser considerada uma
estratégia exitosa, na atenção básica tal mudança nos processos de trabalho
produziu alguns “efeitos colaterais”:
Foi um efeito colateral da nossa estratégia (...). Se formou uma
sobrecarga porque a cobertura de atenção básica no Brasil de
estratégia de saúde da família é baixa.(...) E isso acontecia de fato
porque se tornou uma norma e você tinha que atender todo mundo só
que em vez de ter 4 mil pessoas vinculadas a equipe você tinha 8 mil,
10 mil. Então o programado, o seguimento, a educação em saúde, a
visita domiciliar, tudo isso ficou prejudicado em função (Entrevista com
Gastão W. Campos, realizada em 05/05/2015).
Apesar desses efeitos colaterais, outros aspectos dessas experiências
indicaram mudanças nos modos de produzir cuidado em saúde no contexto da
atenção básica, pois se por um lado as equipes estavam sobrecarregadas, por
outro houve um processo de responsabilização das equipes locais de
referência para com o território atendido, que envolveu a construção de
vínculos e um acompanhamento mais próximo dos usuários.
Devido aos desdobramentos problemáticos do acolhimento na atenção
básica, essa estratégia não é praticada por todas as equipes de maneira
uniforme. Existem diferentes concepções que vão desde o entendimento do
acolhimento como atividade, consulta sem agendamento e pronto-atendimento
produzindo efeitos de medicalização social (com excesso de procedimentos
médicos), até como uma atitude ou postura diante dos usuários e suas
necessidades (CAMPOS, 2010; TAKEMOTO e SILVA, 2007).
No caso do Hospital Dr. Mario Gatti, onde o Acolhimento com
Classificação de Risco foi implantado na mesma época, os impactos foram
mais prósperos, se tornando um modelo para outras experiências brasileiras de
transformação do modelo de recepção hospitalar:
51
(...) na urgência e emergência foi muito efetivo, as
investigações que a gente tem, avaliação de risco melhora,
diminui a mortalidade, diminui o tempo de espera de que tem
problema de dor, ou tem algum risco ali. (Entrevista com
Gastão W. Campos, realizada em 05/05/2015).
Nos equipamentos de saúde mental, que estavam começando a surgir
em Campinas também nessa época, o acolhimento foi praticado a partir de
outros referenciais, mas que estavam alinhados às propostas do SUS e das
políticas de humanização do atendimento. Os CAPS como porta de entrada
para as demandas de saúde mental também tiveram um papel de organizar o
fluxo dos usuários pela rede de cuidados e garantir que o acesso se desse
numa perspectiva acolhedora e processual, lançando mão de dispositivos de
aproximação entre as equipes dos serviços para compartilhamento dos casos:
Então o CAPS assumiu uma avaliação de risco devagar e não
médica (...) o acolhimento não era um momento de 5 minutos,
15 minutos, meia hora. Era uma entrada no sistema e até uma
avaliação se era ali mesmo. (...) De processo, de
desburocratização na relação com os problemas da população,
de acolher o problema mesmo se não estivesse claro se era lá
ou se não era lá, quando devolvia, devolvia com orientação,
com projeto terapêutico encaminhado (...) os CAPS juntaram o
conceito de acolhimento com o apoio matricial né. Quer dizer
eles faziam uma transferência, uma devolutiva responsável,
compartilhada (Entrevista com Gastão W. Campos, realizada
em 05/05/2015).
O tema do acolhimento em Campinas foi muito presente nesse momento
de intervenção institucional do Projeto Paideia, com experiências muito
diferentes, nas quais o acolhimento não pôde ser tomado como diretriz política
sem se levar em consideração as realidades dos serviços e territórios onde
estava sendo implementado. A reorganização dos modos de atendimento não
se deu de maneira igual nos hospitais, centros de saúde e CAPS, assim como
também não se deu de maneira similar em diferentes bairros e comunidades.
Uma dessas experiências aconteceu em um bairro considerado
vulnerável, por ser um local de consumo e comércio de drogas, muito distante
da região central, com incipiente sistema de saneamento básico, precárias
52
escolas e um centro de saúde refém de uma comunidade reconhecida como
hostil:
O São Marcos é uma região de alta vulnerabilidade social,
território do narcotráfico e a violência tem reflexo no centro de
saúde, nas escolas públicas. (...) E a história do Centro de
Saúde São marcos antes de eu entrar era uma história de
guerra civil, conflito entre os profissionais que tinham um
modelo tradicional bem fechado, bem burocratizado e a
comunidade era muito agressiva, lá a dificuldade de pronto-
socorro é muito grande. (...)E a população ficou muito irritada,
agredia, arranhava carro, sujava o centro de saúde, quebrava
coisas e o centro de saúde foi se enchendo de grade. A
recepção tinha grades, você falava com os funcionários com a
grade no meio, só entrava quem ia ser atendido, as janelas
tudo com grade, portas com grades, um negócio assim, parecia
um presídio todo engradeado (Entrevista com Gastão W.
Campos, realizada em 05/05/2015).
Diante de uma situação em que a unidade básica, praticamente único
recurso de saúde disponível para os moradores da região, não conseguia
atender seus usuários e frente a uma onda de revoltas por parte da
comunidade que, diante de um cenário insalubre, adoecia em dimensões
físicas, subjetivas e sociais, o acolhimento foi pensado como estratégia de
reaproximação e trégua, proposta como “moeda de troca” para que as relações
pudessem se dar de maneira respeitosa entre todos:
Então eles (equipe do centro de saúde) iam oferecer o
acolhimento, inclusive esse de atendimento imediato e a gente
se propunha tirar as grades, mas a população, os líderes
comunitários, as líderes, pastores, Ongs, representantes do
conselho local, tinham que fazer com a gente uma campanha
de respeito ao servidor público, que o servidor público era
aliado da população (...) a gente fez uma grande campanha e a
moeda de troca, no bom sentido, foi o acolhimento e arrancar
as grades, as gente arrancou todas as grades. Fizemos uma
campanha lá de cartaz, na escola, nas igrejas (...) fizemos uma
festa de reinauguração, tinha 1000 pessoas, foi num sábado de
manhã, com pipoca, com criança, com palhaço, cachorro
quente. Então foi um conjunto de atividades e de fato até hoje o
53
pessoal mantém o acolhimento (Entrevista com Gastão W. S.
Campos, realizada em 05/05/2015).
No caso do Hospital Geral, o Acolhimento com Classificação de Risco se
mantém operante, com menos variações em sua compreensão, já que se trata
de um protocolo. Nos CAPS, o acolhimento embora seja entendido como um
processo, na prática corre o risco de se tornar burocratizado e esvaziado de
sentidos, exigindo um constante exercício crítico por parte das equipes através
de supervisões clínico-institucionais e discussões de casos.
4.2 Reforma Psiquiátrica Campineira
Após a Constituição de 1988 e influenciados principalmente pelo
movimento da Psiquiatria Democrática Italiana e os processos de
desinstitucionalização em Gorizia e Trieste, trabalhadores e pesquisadores do
campo da saúde mental em Campinas estavam mobilizados para mudar o
modelo asilar de assistência de modo a transformar as relações de poder entre
os pacientes e as instituições, construir no território uma rede substitutiva ao
hospital psiquiátrico e modificar todo um aparato institucional não apenas em
suas estruturas físicas, mas principalmente quanto aos modos de lidar com a
loucura e as diferenças. Ao lado dos movimentos de São Paulo e Santos, as
experiências em Campinas se tornaram primeiras referências de transformação
desse modelo no país, em sintonia com os avanços da Reforma Sanitária
(BRAGA CAMPOS, 2000; AMARAL, 1995).
Desde a década de 1970 existiam três Centros de Saúde na cidade
compostos com equipes mínimas de saúde mental e a partir de 1989 houve
uma ampliação destas equipes nas unidades básicas de saúde a partir da
redução dos leitos e do tempo de duração das internações psiquiátricas. No
entanto havia um diagnóstico de pouca oferta em outros serviços após a alta
dos pacientes, com escassas possibilidades para um acompanhamento em
saúde numa perspectiva integral que evitasse a criação de um circuito de
reinternações, havendo cada vez mais a necessidade de uma rede de cuidados
que respaldasse as ações de desospitalização (AMARAL, 1995).
54
Para Rotelli et al. (2000) a desospitalização é somente uma etapa de um
processo mais complexo, sem garantias de que práticas de segregação,
violência e exclusão não se reproduzirão mesmo fora do ambiente do hospital.
Os processos de desinstitucionalização têm facetas sociais, com implicações
referentes não só ao hospital como também para toda a organização sanitária
local e para a comunidade que ali convive. Quando isso não acontece há o
risco de se reproduzir a lógica manicomial de outras formas como nos casos
em que se formam circuitos de reinternações e a rede se torna apenas uma
porta-giratória para o retorno ao hospital (ROTELLI et al., 2001). No caso de
Campinas, a desospitalização das centenas de pacientes moradores de
Hospitais Psiquiátricos foi uma etapa necessária, no entanto insuficiente para
concretizar as transformações vislumbradas.
Campinas contava com dois ambulatórios de saúde mental, 46 leitos de
internação em hospital geral e 1.461 leitos em Hospitais Psiquiátricos privados
quando foi realizado um seminário de planejamento organizado pela Secretaria
Municipal de Saúde. Nesta ocasião, foi constatada a necessidade de
reorganização do modelo de assistência vigente e houve uma intervenção no
município com a criação de 17 unidades básicas de saúde com equipe mínima
de saúde mental para garantir atenção integral (AMARAL, 1995). Até então o
antigo Hospício para Dementes Pobres do Arraial de Sousas, era o principal
equipamento de execução daquela politica de saúde mental e recebia dos
ambulatórios, centros de saúde e hospitais, os encaminhamentos para
internação de pacientes. Em 1990, com a assinatura do convênio de cogestão,
a Prefeitura Municipal de Campinas assumiu o antigo hospício, que passou a
se chamar Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, inaugurando o primeiro
hospital-dia da cidade para atender “psicóticos, alcoolistas e drogaditos
egressos de hospitais psiquiátricos” (AMARAL, 1995, pg.19).
Os profissionais que chegaram para trabalhar nesse novo equipamento
vinham dos ambulatórios de saúde mental, que foram desmontados. Os
trabalhadores do antigo hospício não foram considerados qualificados para
operacionalizar tais processos que envolviam não apenas regular as demandas
de internação psiquiátrica no município, mas também criar novas alternativas,
55
pautadas nas perspectivas de atenção integral de caráter comunitário e
atendimento à demanda espontânea, de forma a acompanhar as diretrizes do
SUS e abolir o modelo de enclausuramento (AMARAL, 1995).
O número de leitos psiquiátricos foi reduzido para 46 com o fechamento
de dois grandes manicômios e nessa época foram criados outros
equipamentos para dar sustentabilidade ao novo projeto de Saúde Mental,
como o Núcleo de Oficinas e Trabalho (NOT), com a proposta de uma
associação para geração de renda composto por oficinas de artesanato,
culinária e jardim; também foi criada a Unidade de Reabilitação de Moradores,
um projeto inicial para as futuras Residências Terapêuticas, um Centro de
Atenção ao Alcoolista e o Drogadicto e o Centro de Referência e Informação
sobre Alcoolismo e Drogadição, conhecido como CRIAD (BRAGA CAMPOS,
2000).
Em estudo desse período, Amaral (1995) buscou avaliar a continuidade
do tratamento no pós-internação desses pacientes em alguns desses
equipamentos recém-inaugurados e principalmente junto às equipes de saúde
mental na atenção básica. Além dos usuários diagnosticados como psicóticos,
os pacientes diagnosticados como alcoolistas foram considerados grupos
estratégicos para a consecução das politicas de desinstitucionalização, devido
ao alto grau de reincidência à internação, sendo considerados pelos
trabalhadores como “casos de maior gravidade psíquica e social” (p. 40).
Um dos eixos analisados para avaliação dos processos de
desinstitucionalização em Campinas foi a estrutura de recepção, e o
acolhimento para esses usuários passou a ser entendido como o “grau de
respeito aos direitos do cidadão doente mental e a preocupação em mantê-lo
vinculado ao serviço” (AMARAL, 1995, p.42). No entanto, mesmo com a
contínua ampliação da rede substitutiva, não foi possível modificar
efetivamente a lógica da internação psiquiátrica como porta de entrada para o
tratamento em saúde mental naquele momento.
Para Braga Campos (2000) o projeto de saúde mental no município se
conformou em meio a dois movimentos: a rigidez e a forte resistência das
equipes na rede básica em efetuar as mudanças e as novas práticas e as
56
demandas geradas pelo Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira que
tensionavam para que o tratamento e cuidado desses usuários pudessem
acontecer no território. A autora considerou o novo projeto de saúde mental
como um modelo híbrido, pois embora influenciado pelos processos italianos
no que tange ao trabalho junto à comunidade, não começou a reformar a partir
do hospital e sim do território, com as equipes de saúde mental na atenção
primária. Esse processo, no entanto não foi totalmente acordado e os centros
de saúde tinham muita resistência para se responsabilizar pelo cuidado das
demandas de saúde mental. Desse modo, projeto apresentou baixa
resolutividade com alto índice de recidivas, transformando-se em um modelo
de porta giratória para reinternações (AMARAL, 1995).
Nessa época ainda não havia diretrizes operacionais claras e
específicas para a área de saúde mental pela Secretaria Municipal de Saúde,
que apenas reconhecia o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira como a
referência para a rede básica e os ambulatórios especializados (AMARAL,
1995). Para Braga Campos (2000), a reforma da saúde mental campineira teve
dois propósitos: a desinstitucionalização pela via da reabilitação psicossocial e
a implantação de um modelo de cogestão. Entretanto, no nível das práticas no
cotidiano dos serviços, a operacionalização dessas transformações
encontraram maiores entraves entre algumas equipes na atenção básica e os
vários outros equipamentos substitutivos criados posteriormente, no que se
refere ao compartilhamento dos casos de saúde mental, álcool e outras drogas.
Atualmente essas demandas não têm mais o Hospital Psiquiátrico como
principal porta de entrada e o município de Campinas já possui uma rede de
saúde mental ampla e consolidada. No entanto ainda são muito frequentes os
encaminhamentos para internações e cotidianamente é realizado um trabalho
complexo envolvendo os CAPS como organizadores do fluxo dos usuários, em
articulação constante com a atenção básica, os hospitais e uma Central de
Regulação de Vagas com a qual as equipes podem discutir caso a caso com
um médico plantonista os encaminhamentos de usuários para internação ou
hospitalidade noturna – os leitos noite.
57
4.3 Rede álcool e outras drogas em Campinas
Tradicionalmente, assim como em outros lugares no Brasil, os recursos
disponíveis no município de Campinas para atender aos usuários de drogas
quando necessitavam de ajuda para enfrentar seus problemas em relação ao
uso, eram principalmente as internações em Comunidades Terapêuticas (que
existem em grande número até os dias de hoje) e os Hospitais Psiquiátricos,
além dos conhecidos grupos de ajuda mútua como os Alcoólicos Anônimos
(AA) e os Narcóticos Anônimos (NA) com seu Manual dos Doze Passos. Tais
abordagens geralmente pretendem em seus pressupostos conduzir o usuário
de drogas a uma vida abstêmia do uso e para um estado de eterna vigilância
de sua condição.
Esse cenário começou a mudar junto com as mudanças oriundas da
Reforma Psiquiátrica, pois havia um grande contingente de pessoas confinadas
nos asilos psiquiátricos devido ao diagnóstico de Dependência Química,
principalmente em relação ao álcool (AMARAL, 1995). A partir dos anos 1990
houve uma discreta ampliação de ofertas voltadas para essas demandas, com
a criação do CRIAD em 1993 e o início das ações do Programa de Redução de
Danos para fins de prevenção das DST-AIDS em 1998. Em 2001, o SSCF
inaugurou o Núcleo de Atenção à Dependência Química (NADeQ), ambulatório
que funcionava dentro da unidade de internação psiquiátrica com o mesmo
nome e em 2002 surgiu o Ambulatório de Substâncias Psicoativas (ASPA), na
UNICAMP. Até esse momento não existia efetivamente um trabalho em rede,
os serviços funcionavam cada um de acordo com uma lógica de cuidado e com
articulação incipiente ou inexistente entre eles. Não se deu uma reorientação
de modelo ao mesmo tempo em que aconteceu para os casos de transtornos
mentais, principalmente após a criação dos CAPS, com a aprovação da lei
10.216 (BRASIL, 2001). A internação ainda permaneceu como porta de entrada
para o tratamento e havia um diagnóstico de baixa adesão e pouca
acessibilidade nos ambulatórios e no CRIAD:
Quando começou (o CRIAD) ele era uma casa parecida com
um CAPS, aí as pessoas chegavam, um usuário novo (...) aí no
CRIAD eu notei que o pessoal reclamava muito assim, poxa
não tem adesão, eles não ficam aqui.(...) Esse período eu
58
discutia os casos, discutia modelo e a conclusão que a gente
chegava era que tinha que ser um acolhimento ampliado, sem
ter muita regra, muito horário e a equipe tem que ser plástica, o
modelo também. E a gente improvisava ao longo do dia, se
ficasse marcando hora pra tudo... a grade (de atividades) como
o povo chama, a grade é uma grade. Expulsava o usuário.
(entrevista com Gastão W. Campos, realizada em 05/05/2015)
Uma nova politica pública do Ministério da Saúde voltada para usuários
de álcool e outras drogas foi lançada apenas em 2003, trazendo o
reconhecimento da Redução de Danos como estratégia ético-política para o
cuidado das pessoas em sofrimento com relação ao uso de drogas. O
documento enfatiza também a abordagem psicossocial de caráter territorial e
em rede, com o cuidado centrado no usuário e não na droga (objeto inerte) e
nem tendo como foco principal a abstinência do uso (BRASIL, 2003). A partir
desse marco institucional, a questão das drogas passou a não ser mais um
problema exclusivo da justiça ou restrito ao poder médico, mas
responsabilidade do Sistema Único de Saúde. Embora seja um documento de
inegável relevância por impulsionar uma corrente de ampliações políticas e
institucionais, precisa revezar-se com outros modos de discurso (práticas,
experiências, pesquisas) para dar materialidade às suas propostas. Desse
modo tem sido possível sustentar a criação de novas políticas capazes de
produzir embates frente a um modelo hegemônico criminalizante e
patologizante na forma de lidar com a questão das drogas no Brasil, que se
refletem até mesmo em lugares que se propõem a produzir cuidado por outras
vias:
Quando começou (o CRIAD) ele era uma casa parecida com
um CAPS (...) a pessoa chegava e tinha uma sala logo na
entrada assim à esquerda com uma máquina de escrever
ainda, não era computador e tactactac, sentava o paciente
ficava o administrativo lá: “nome, endereço, qual a sua queixa,
usa droga proibida, já foi preso?” tactactac. Aí quando eu dei
esse retorno o pessoal começou a discutir, nossa é mesmo,
mas como é que a gente faz, tem que ter essas coisas no
prontuário, eu falei, faz uma semana depois. Quinze dias
depois, sai dessa agonia, tá parecendo escrivão de polícia, a
59
gente tá aqui reproduzindo o clima como o Brasil lida com
drogas né. Inconscientemente, inconsciente institucional, mas
tá reproduzindo um ambiente de delegacia, até a maquininha
velha tactactactac. (Entrevista com G.W S Campos, realizada
em 05/05/2015).
Nessa época o CRIAD estava cadastrado como um CAPS, mas na
prática funcionava como um ambulatório que privilegiava consultas individuais
num modelo de queixa-conduta, mesmo já tendo sido efetuadas algumas
mudanças no seu modo de funcionamento (ALBUQUERQUE, 2014). Em 2007
a equipe do ambulatório do NADeQ após grande mobilização junto aos
usuários e enfrentando resistências de alguns trabalhadores da instituição, saiu
do ambiente do hospital rumo ao território, inaugurando o CAPS ad
Independência na região sul da cidade. Pouco tempo depois, o CRIAD passou
por uma reestruturação e passou a funcionar também com um modelo de
atenção psicossocial e mudou seu nome para CAPS ad Reviver, funcionando
na região leste.
Nesta época, frente às novas perspectivas de cuidado e buscando
sustentar a construção de uma rede álcool e drogas no município, os CAPS ad
passaram a realizar Apoio Matricial26 nas unidades básicas de saúde e criaram
o Fórum da Rede Álcool e Drogas, junto à equipe do Programa de Redução de
Danos. O objetivo desse fórum durante sua criação foi buscar a consolidação
de uma rede de cuidados para a população usuária de drogas da cidade e
discutir de maneira crítica os pressupostos hegemônicos existentes e os novos
modelos de atenção para o tratamento dessas demandas. Para oxigenar os
debates, elaborar propostas concretas e fazer o papel de controle social, pouco
a pouco houve a participação de outros atores, como trabalhadores e gestores
da atenção básica, dos hospitais, dos CAPS III, CAPS i, Centros de
Convivência e universidades.
26 De acordo com a Política Nacional de Humanização, o Apoio Matricial é caracterizado como
um rearranjo na organização dos serviços, no qual os serviços de referência ou especialidades
oferecem apoio a outras equipes do mesmo território, através de reuniões, discussões,
compartilhamento dos casos e seminários (BRASIL, 2004).
60
As ações de Redução de Danos começaram a acontecer em Campinas
a partir de 1998, no contexto de altos índices de contaminação pelo vírus HIV
sendo que os usuários de drogas injetáveis estavam entre os grupos mais
expostos á contaminação nessa época. As ações começaram discretamente no
Ambulatório Municipal de DST-AIDS, primeiro através de programas de troca
de seringas e em seguida com as abordagens nas ruas, quando começaram a
chegar para compor com esse trabalho os próprios usuários do ambulatório.
Em 2001 a Redução de Danos foi oficializada como diretriz política no
município durante implantação do Projeto PAIDEIA e em 2002 foi criado o
Programa Redução de Danos (PRD). Com respaldo da gestão municipal, as
ações se ampliaram nos territórios e o programa recebeu novos redutores para
compor os trabalhos, em sua maioria, pessoas da própria comunidade onde as
abordagens eram realizadas, muitos usuários e ex-usuários de drogas. Além
do trabalho de distribuição de insumos, a construção de vínculos passou a ser
um objetivo a ser alcançado (ALBUQUERQUE, 2014; JANUZZI, et al., 2014).
Um importante efeito de a RD ter estendido seu escopo de atuação se
aproximando do campo da Saúde Mental foi quanto à ampliação do objeto de
intervenção que antes era muito focado na prevenção, passando a ser
considerado um “dispositivo em potencial para trabalhar a dimensão subjetiva
dos usuários de drogas, escutando suas histórias, desejos e necessidades,
pois o núcleo desse trabalho é a abordagem e a conversa” (SOUZA, 2013, p.
254). No entanto há o reconhecimento de que a rede de atenção a usuários de
álcool e outras drogas não se restringe ao campo da saúde mental e deve ser
construída em articulação com outras lógicas de cuidado.
Enquanto os serviços se articulavam coletivamente na construção de
modos de cuidado alternativos à internação a partir da qualificação do acesso,
em 2009 a Prefeitura Municipal de Campinas junto com a Secretaria de
Segurança Pública lançou o Programa Bom Dia Morador de Rua, que consistiu
em ações da Guarda Civil Metropolitana para retirar as pessoas que estavam
morando nas ruas do centro de Campinas e encaminhá-las involuntariamente
para internações nos hospitais da cidade. Durante esse processo conforme
acabavam as vagas de internações, os CAPS eram convocados para emitir
61
avaliações diagnósticas e ceder seus leitos de hospitalidade noturna para o
programa. As ações geraram indignação em muitos trabalhadores da rede que
se mobilizaram para responder de outras maneiras, resistindo à arbitrariedade
das intervenções e participando das ações junto com a Guarda Civil. A partir
desse momento, trabalhadores dos CAPS se aproximaram daqueles que
estavam sendo alvos das ações higienistas, para escutá-los e propor outras
respostas. Para Albuquerque (2014), esse evento, embora tenha revelado uma
tendência da gestão municipal para tratar temas relacionados ao campo social
de maneira reducionista, e nesse caso patologizante, foi um catalisador para a
qualificação dos debates no campo das drogas no município, resultando na
ampliação da rede de cuidados que aconteceu nos anos seguintes:
O descontentamento dos profissionais e gestores de saúde fez
transparecer que não se havia, de fato, alternativas, naquele
momento, de políticas de saúde efetivamente focadas nessa
população. Havia apenas o programa “Bom dia Morador de
Rua”, para acessar as populações vulneráveis em uso de
crack. (...) A partir dessa realidade, a Secretaria Municipal de
Saúde, junto à Câmara Técnica de Saúde mental, decidiu pela
ampliação da rede de serviços de álcool e drogas.
(ALBUQUERQUE, 2014, p.106)
Até 2010 o município contava com dois CAPS ad e o NADeQ, com 10
leitos de internação e 10 leitos de hospitalidade noturna (leito-noite), além do
ASPA. Com o acúmulo das experiências, compartilhamentos no Fórum ad e
com o lançamento do PEAD em 2009, houve uma expressiva ampliação dos
dispositivos de cuidado voltados a essa demanda nos anos seguintes. Em
2012 foram inaugurados o CAPS ad Antônio Orlando na região sudoeste, o
Consultório na rua e a escola de Redução de Danos; o CAPS ad Reviver
passou a funcionar 24 horas e houve também a criação de leitos para acolher
usuários de drogas em situação de urgência e emergência em Hospital Geral.
Além disso, cada CAPS ad e o Consultório na Rua passaram a operar também
com um trio de redutores de danos, na perspectiva de ampliação de ofertas de
cuidado dos serviços nos territórios de maior fragilidade quanto ao acesso aos
serviços de saúde (JANUZZI et al., 2014).
62
Na cidade de Campinas, as políticas de redução de danos têm dado o
aporte necessário para as transformações no cuidado em saúde à população
usuária de drogas, nas ruas ou nos serviços públicos desde os anos 90 e até
hoje luta para manter-se como diretriz. O primeiro serviço a funcionar como
CAPS ad na cidade em 2007 precisou mobilizar-se em equipe e junto aos
usuários de um ambulatório psiquiátrico que funcionava dentro do hospital em
moldes tradicionais de internação, para desmontá-lo e ir para o território
oferecer apoio psicossocial pela via da redução de danos. O movimento teve
grande resistência por parte da direção do ambulatório e nesse período, em
que também atuei como psicóloga no serviço foram necessárias pequenas
lutas diárias, micro-conversas, assembleias, muitas reuniões e estudos para
que o novo projeto se materializasse: um CAPS ad funcionando com as portas
abertas, próximo às comunidades e com articulação direta com outros serviços
de forma a convocar a construção de uma rede álcool e drogas.
Com a criação do novo serviço, todos os dias novos usuários chegavam
pedindo por internações psiquiátricas ou em comunidades terapêuticas
religiosas, ou encaminhadas por outros serviços de atenção básica que não
aceitavam compartilhar o cuidado dos casos de dependência química. As
novas propostas de cuidado eram desconhecidas para muitos trabalhadores e
também para os usuários que na maioria das vezes nunca haviam sido
escutados para além do uso de drogas. Conversas cotidianas, o acolhimento
como processo e eixo norteador do cuidado, pequenas intervenções diárias e a
prática do Apoio Matricial contribuíram para mudanças nas práticas de cuidado
no território e avanços na construção de uma rede. Batalhas diárias foram
vivenciadas e tomadas como possibilidades para operar transformações nos
modos de se lidar no campo de álcool e drogas: crises de fissura, discursos de
impotência, ameaças e agressões desesperadas pelo confinamento da
internação, foram pouco a pouco se transformando em escuta, acolhimento,
conversas, consultas, assembleias, grupos e passeios pela cidade.
Programas como o Bom Dia Morador de Rua não foram os únicos a
ameaçar as transformações que vinham sendo construídas no sentido da
desinstitucionalização no campo de álcool e drogas. Assim como ocorre em
63
outros lugares, a construção e a consolidação de uma “rede ad” no município
de Campinas não ocorreram de maneira uniforme e sem conflitos, pois sofreu
interferências de fatores políticos, instituições e outros segmentos sociais.
Existem diferentes modelos e diferentes artes de governo que articulam
discursos sobre o usuário de drogas e disputam pela produção de verdades
(SOUZA, 2013).
Em 2012, sem passar pelas instâncias de controle social como o
Conselho Municipal de Saúde, chegou a Campinas o Programa Recomeço27,
que na cidade de São Paulo já havia enfrentado grande resistência por parte
dos trabalhadores da rede álcool e drogas. O programa que tem como objetivo
o encaminhamento do dependente químico para internações compulsórias (ou
seja, reguladas judicialmente) criou um recurso financeiro chamado de bolsa
crack a ser utilizado para o custeio de intervenções em clínicas e comunidades
terapêuticas, fora do circuito do cuidado na rede psicossocial. Embora em
Campinas o anúncio da chegada do Programa tenha sido recebido com
manifestações de rejeição por parte dos trabalhadores, foi implementado de
maneira desarticulada e conflitando com as equipes que trabalham com a
logica da redução de danos:
Se do ponto de vista de efetivação da cura a internação
compulsória é um fracasso, do ponto de vista do
esquadrinhamento e da normalização do socius esta medida
continua a ser potente, servindo como regime de visibilidade e
dizibilidade sobre as experiências com as drogas. Abstinência
como meta, dependente químico como diagnóstico e
internação compulsória como medida são acionados como um
círculo vicioso que individualiza o fracasso e ao mesmo tempo
27 Referente às novas atribuições do Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas
(CRATOD) e ao “Cartão Recomeço”, cujo edital publicado em maio de 2013 pelo Governo do
Estado de São Paulo, propõe entre outras ações, uma bolsa em dinheiro para o financiamento
de internações de usuários de crack em clínicas privadas. Disponível em:
<www.senado.gov.br>. Acessado em 06/06/2015.
64
possibilita uma intervenção de corte populacional (SOUZA,
2013, pg. 103).
Ao reafirmar a norma da abstinência das drogas como promessa de cura
tais programas contribuem para a manutenção de um circuito de internações
de longa permanência em hospitais psiquiátricos ou Comunidades
Terapêuticas, solicitadas mesmo por aqueles usuários que já passaram
diversas vezes por esses locais sem vivenciar mudanças em seu padrão de
consumo ou em seus processos subjetivos. Tais locais acabam funcionando
apenas como um momento de separação física entre o sujeito e um objeto
droga, simplesmente tamponando provisoriamente o desejo do uso ao
desconsiderar outros discursos que não dizem da abstinência (SANTOS,
2005).
Mais recentemente, a rede de saúde de Campinas enfrentou uma
votação na Câmara dos Vereadores que decidiu pela terceirização de seus
serviços, o que tem provocado novas mobilizações de usuários e trabalhadores
no sentido de acompanhar a garantia da qualidade da assistência que se
reflete no cuidado à população, incluindo os usuários de drogas28.
Estes são alguns dos cenários que ao lado de outros, possibilitaram nas
últimas décadas, a criação de equipes, programas e serviços voltados para o
cuidado e acolhimento das pessoas em sofrimento com relação ao uso de
drogas, a depender das relações singulares que cada um vivencia com o
consumo, com suas dores e com seus prazeres. Abordar essas questões de
maneira humanizada, atentando às singularidades de cada história e situação
têm sido um compromisso e uma responsabilidade tomada pela rede ad na
cidade de Campinas, que mesmo em meio a cortes e crises resiste, mantém-se
potente e terreno fértil de práticas e pesquisas.
Contar estas experiências e situações é um modo de dar visibilidade às
pequenas lutas diárias nos serviços, nas ruas, na comunidade, na
universidade, vivenciadas por aqueles que se interessam em atuar no campo
da saúde mental, álcool e drogas de alguma maneira. São pequenas batalhas 28 Disponível em: < http://www.portalcbncampinas.com.br/?p=48542> . Acessado em 04/04/2015.
65
não em seu tamanho, mas em seus detalhes, nas ações que se desdobram em
um mar de possibilidades no campo micropolítico, com potência para
desnaturalizar saberes instituídos, práticas dominantes e produzir outros
modos de cuidado pela via do acolhimento às diferenças.
Mas como nos lembra Teixeira (2008), não basta saber o que faz o
acolhimento e sim como é feito. Os modos de conhecimento como as práticas
de pesquisa auxiliam a desdobrar este debate. Convidamos a visitar nas
próximas páginas as diversas situações em que acompanhamos as práticas de
acolhimento em um CAPS ad de Campinas (SP) e observamos mais de perto
os modos como o cuidado vai se produzindo nas relações que aí se
engendram.
66
CAPÍTULO 5 - ACOLHIMENTO NO CAPS AD ANTÔNIO ORLANDO 29
Localizado a aproximadamente vinte quilômetros de distância do centro
da cidade fica a região do Campo Grande, um dos seis distritos de Campinas,
que possui em torno de 190 mil habitantes e noventa bairros. Trata-se de uma
área muito populosa, longe dos principais recursos do município e conhecida
por concentrar os habitantes com menor renda e dependentes de serviços
públicos de Campinas. Seus moradores, em sua maioria, são de famílias que
não conseguiram se instalar ou permanecer na região central, restando como
alternativa seguir para as regiões mais periféricas, onde também há um grande
contingente de ocupações30.
Seguindo de carro pela estrada do Campo Grande, ficam para trás as
universidades, os shoppings, hospitais, a paisagem se enche de verde de
ambos os lados da pista onde carroças andam no meio dos carros. Somente
depois de alguns quilômetros é possível avistar de novo as construções
urbanas, prédios baixos, muros de concreto. Virando à esquerda na placa “Jd.
Lisa”, logo depois da cinzenta Praça da Concórdia, fica o CAPS adAO31, no
meio de uma avenida árida com alguns estabelecimentos comerciais: padaria,
banco, academia de artes marciais, borracharia, oficina mecânica, outra oficina
mecânica.
Mesmo com o muro pintado de verde pode ser difícil localizar a discreta
casa, embaixo de uma árvore que faz sombra para os fumantes. É ali, nessa
calçada e embaixo dessa árvore, onde alguns usuários e trabalhadores do
serviço se encontram entre uma atividade e outra para fumar um cigarro (ou
29 Neste capítulo os destaques com fonte em itálico indicam trechos registrados em diários de
campo.
30 Disponível em <http://correio.rac.com.br/_conteudo/2014/10/capa/campinas_e_rmc/212099-
come-a-apura-o-que-define-cria-o-de-distritos.html> Acessado em 02/10/2015.
31 O CAPS ad Antônio Orlando é também chamado de CAPS adAO (diz-se “CAPS adão”) na
rede de saúde em Campinas. Utilizaremos esse apelido como forma de abreviação no texto.
67
dois) e jogar conversa fora, já que não se pode fumar dentro das dependências
do CAPS.
Entrando por esse portão sempre aberto, há uma área descoberta do
tamanho de uma garagem para dois carros, com algumas plantas ao redor e
uma porta de vidro à frente que dá acesso ao balcão da recepção de um lado e
a janela da farmácia do outro. No meio, rente à parede nesse corredor estreito
ficam algumas cadeiras, onde alguns aguardam atendimento, outros
descansam, outros param para conversar. Em volta, cartazes informativos com
os temas da redução de danos, prevenção de doenças, notícias recortadas de
jornais tratando de algum tema de saúde, a grade de atividades do CAPS
adAO e um pôster grande com a foto de um homem chamado Antônio Orlando,
um filantropo que foi um dos responsáveis pela cogestão entre Cândido e
Prefeitura, era uma figura bastante querida32. (Oficina “Modos de acolher
Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
Ao final desse corredor, há outro acesso para uma sala de espera maior,
com várias cadeiras, mesinhas com revistas e preservativos espalhados e uma
televisão ligada em algum programa matinal de variedades, além de um
banheiro masculino e outro feminino. É nesse ambiente onde ficam algumas
salas de atendimento mais reservadas e também onde fica o posto de
enfermagem. Este, possui dois leitos de observação, cadeira de aferir pressão
arterial e outros instrumentos utilizados em procedimentos pelo núcleo de
32 O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira ainda era uma instituição filantrópica quando foi
firmada a lei municipal de cogestão em 1990. A partir desse acontecimento foi formado um
Conselho Diretor composto por representantes da Secretaria Municipal de Saúde,
trabalhadores do SSCF, de universidades, do Governo do Estado, da associação filantrópica
mantenedora e familiares de usuários. Antes de receber a homenagem póstuma da equipe do
CAPS ad, Antônio Orlando também foi lembrado no prefácio de “A reforma psiquiátrica no
cotidiano” que descreve os primórdios do processo de desinstitucionalização no Serviço de
Saúde Dr. Cândido Ferreira: “Antônio Orlando, parceiro de todos esses anos, sempre disposto
a colaborar, anunciando que vai dar tudo certo” (HARARI E VALENTINI, 2001).
68
enfermagem, podendo também servir eventualmente para se ter uma simples
conversa quando não há mais salas vazias para atender.
Do ponto de vista arquitetônico, todo esse ambiente interno tem
características comumente presentes em um serviço de saúde tradicional:
cores claras, ar asséptico, filtro de água, piso frio, revistas antigas. Entretanto
uma estreita porta revela a modesta varanda com vista bucólica que
proporciona a sensação de se estar em um lugar entre a cidade e a zona rural.
É aí o caminho que dá acesso à sala da equipe, também sempre de portas
abertas.
A casa ainda tem um segundo piso, entrando pelo portão à direita,
aonde se chega através de uma rampa de acesso ao ar livre que beira um
muro inteiro grafitado com desenhos e mensagens coloridas. No final da
rampa, uma grande sala à esquerda é destinada às atividades em grupo que
acontecem no CAPS e também às reuniões gerais da equipe às terças-feiras
de manhã. Quando ela não está sendo utilizada em nenhuma atividade é um
espaço aberto à circulação e, nos dias de festa, é lá onde todos se reúnem
para comer e cantar ao som de um violão.
Nesse piso ainda, fica outra pequena casa com duas salas, uma maior
com um computador e impressora, utilizada para fins administrativos ou
quando algum usuário solicita usar a internet; a outra, menor, geralmente é
utilizada às sextas-feiras de manhã para a reunião de uma das miniequipes,
momento em que se discutem projetos terapêuticos e situações que ocorreram
durante a semana. Há também aí o refeitório, que comporta de 15 a 18
pessoas durante o almoço, além da cozinha, onde há sempre alguém tomando
um café ou preparando algo para ser servido.
69
Rampa de acesso ao o piso inferior da casa
Nos fundos dessa casa há uma área externa como um pequeno quintal,
iluminado e arejado, cujos muros comunicam com grafites e desenhos,
mensagens com as temáticas do cuidado, do acolhimento, liberdade e
criatividade. Diferente do muro ao lado da rampa de acesso, que foi pintada
durante oficina com os usuários, o trabalho feito nessa pequena área dos
fundos foi realizado pela própria equipe, pouco tempo depois que o CAPS foi
inaugurado:
A gente já tinha essa pintura lateral do grupo Geração Futuro
com os usuários, era um grupo que tinha na época que fazia
atividades com o público mais jovem do CAPS. Enquanto eles
estavam fazendo eu percebi que ficaram bastante mobilizados
(...) eu lembro que na ocasião nós estávamos discutindo o
tema do cuidado com os próprios trabalhadores e daí eu falei
pra equipe que tinha essa possibilidade e se topariam fazer
alguma coisa e o pessoal sugeriu de a gente fazer no quintal lá
no fundo. (Oficina “Modos de acolher Antônio Orlando”,
realizada em 09/06/2015).
70
O CAPS adAO tem quatro anos de existência e passou por um singular
processo de criação. O município já tinha dois CAPS ad, um na região sul e
outro na região leste, ambos atendendo um contingente enorme de pessoas.
Evidenciou-se então a importância de se criar um novo CAPS ad. O território
do Campo Grande foi escolhido devido à alta incidência de casos de usuários
de álcool e drogas que acionavam unidades de saúde e uma escassez de
recursos públicos e de equipes de saúde na região. Uma trabalhadora da rede
de saúde mental, que atualmente é coordenadora do CAPS adAO, foi
contratada junto com dois profissionais através da cogestão entre SSCF e a
Prefeitura Municipal de Campinas (PMC) para iniciar as atividades do novo
serviço, com a promessa de que logo seriam contratados mais profissionais
para compor uma equipe e que teriam uma própria casa para começar a
receber os usuário das região. Esse processo, no entanto, não foi ágil como os
trabalhadores desejavam e o novo CAPS foi inaugurado somente um ano
depois.
Durante todo esse período essa pequena equipe de três profissionais
realizou um notável trabalho para conhecer o território, as demandas para os
casos de álcool e drogas, as equipes que atuam nos centros de saúde,
conhecer os trabalhos dos outros CAPS ad em pleno funcionamento, além de
uma aproximação junto ao Conselho Local, para abrir diálogo com a população
a respeito do novo serviço. Houve ainda participação ativa em outros espaços
como Fórum da rede ad e Conselho Municipal de Saúde para pressionar a
inauguração. Foi nesse período também que surgiu a ideia para o nome do
CAPS:
O nome do nosso CAPS foi decidido de forma coletiva, mas
infelizmente sem os usuários, porque a gente tinha que
inaugurar e foi complicado pra equipe iniciar. Então levamos
pro distrito de saúde, fizemos rodas nos centros de saúde, e na
semana convidamos usuários, foi uma roda grande e eu fui lá
contar pra os usuários no conselho distrital quem era (Antônio
Orlando) e ter o aval de um coletivo pra batizar. (...) O seu
Antônio Orlando foi um filantropo e um dos responsáveis pela
cogestão entre Cândido e prefeitura, era uma figura bastante
querida, eu tive a oportunidade de conhecê-lo e ele ajudou a
71
instituição num momento de crise33 no início da década de 90,
foi presidente do Conselho Diretor até o seu falecimento e ele
sempre era reeleito. (Oficina “Modos de Acolher Antônio
Orlando”, realizada em 09/06/2015)
Em diversos momentos durante a pesquisa empírica as relações entre o
SSCF e a PMC apareceram de modo conflituoso. Alguns trabalhadores
relataram viver uma situação incerta quanto à preservação e continuidade da
cogestão, que mesmo firmada como lei em 1990, há alguns anos tem sido
tratada como um convênio dispensável pela administração municipal. Desse
modo muitos projetos da saúde vêm sofrendo cortes em seus recursos
materiais e humanos, além de vivenciarem constantes ameaças de ruptura
definitiva entre ambas instituições. Para os trabalhadores, tal rompimento pode
significar mais cortes nos projetos de saúde mental, redução de danos e nas
equipes, ocasionando um desmonte gradual da rede hoje consolidada.
Por isso, a oficina realizada pelos trabalhadores na área externa no
CAPS adAO funcionou com um modo de cuidar de um período crítico que os
trabalhadores estavam vivendo no início de suas atividades em meio a
incertezas quanto ao seu futuro. Ao mesmo tempo, novos usuários chegavam
sem parar todos os dias e a oficina também fez com que os trabalhadores
despertassem um olhar para os cuidados com a própria casa e o ambiente do
CAPS que estava nascendo:
Eu acho que foi um momento de cuidado que a gente
conseguiu fazer, eu lembro que todos se envolveram eu fiquei
até olhando algumas pessoas (...) e isso que ela falou da
preocupação com a casa, de ter um olhar pra casa e eu acho
importante ter esse olhar para a estética do lugar. De tanto os
profissionais quanto os usuários se sentirem bem no local (...).
(Oficina “Modos de acolher Antônio Orlando”, realizada em
09/06/2015)
33 A crise referida foi inerente ao próprio processo de rompimento com um modelo asilar de
tratamento para construção de um novo modelo psicossocial de cuidado em saúde mental
72
Tanto esse espaço, como a região descoberta da rampa de acesso, a
área do tamanho de uma garagem, a calçada em frente ao portão e os
corredores são consideradas pela equipe como espaço da ambiência, que
definem como aquilo que acontece quando se está fora das salas de
atendimento, ou então o que se passa fora das atividades estruturadas nos
grupos e oficinas. Enquanto as outras instalações da casa têm nomes que
remetem claramente às suas funções (recepção, sala de equipe, posto de
enfermagem, refeitório), a ambiência tem sido pauta frequente para a equipe
por não se tratar apenas de um espaço físico, mas também uma prática que
acontece fora dos espaços instituídos de cuidado.
As pinturas e os grafites nas paredes da casa
73
5.1 Ambiência no CAPS adAO
A ideia de ambiência forjada no campo da Psicoterapia Institucional,
propõe a noção de um meio cultural particular constituído por um espaço físico,
mas que possui ao mesmo tempo um tipo de clima, uma atmosfera em uma
relação direta com aquilo que se passa entre as relações que ali se dão, seus
efeitos e com uma aposta de que “é no encontro com o outro que emergem
sentimentos vitais” (MOURA, 2003, p.64).
Para Oury (1991), trata-se de um modo particular de habitar um espaço
e estar com os outros, que visa preservar uma qualidade na percepção de
detalhes e micro eventos que se dão no cotidiano. Não se trata de um
ambiente que propõe a igualdade entre todos, mas uma prática a considerar o
que se produz como processos singulares, acolhendo as diferenças. Por isso a
postura da equipe de um CAPS nesse sentido não será passiva, mas ativa com
escuta e disponibilidade permanentes dos movimentos que se dão. A
ambiência não está diretamente relacionada a espaços físicos específicos, pois
como prática pode estar presente em qualquer ambiente e está relacionada à
função de acolhimento.
No Brasil, a ambiência tem sido tomada como diretriz para o cuidado
realizado nos CAPS (BRASIL, 2013) em conformidade à proposta de cuidado
integral, considerando que há produção do cuidado mesmo fora dos espaços
instituídos para isso. No município de Campinas está presente como prática no
dia a dia dos serviços de saúde mental, sendo também relacionada àquilo que
se passa nos ambientes externos às salas de atendimentos. No CAPS adAO
são também chamados de espaços de convivência, como a sala de espera, a
recepção, a calçada em frente ao portão, ou qualquer outro lugar onde há
circulação livre e onde se encontram usuários e trabalhadores sem orientações
de nenhuma atividade específica.
Nos períodos em que a pesquisa empírica foi realizada, observou-se a
casa sendo habitada da seguinte maneira: atendimentos individuais e
pequenas reuniões aconteciam dentro das salas; grupos e reuniões maiores
aconteciam na sala grande do piso inferior. O refeitório tinha picos de ocupação
74
de seu espaço nos horários do café da manhã, do almoço ao meio-dia e à
tarde. O piso superior estava sempre mais movimentado, havia maior
circulação de pessoas principalmente entre a calçada e a recepção e às vezes
havia pessoas jogando truco numa mesinha de plástico ao ar livre. Na sala de
espera cada usuário passivamente aguardava pelo atendimento. Alguns
adormeciam ali, outros assistiam televisão, outros apenas observavam o
movimento. Sempre estava acontecendo algo no posto de enfermagem,
alguma avaliação, alguma intercorrência e a porta da sala de equipe era
mantida sempre aberta, mesmo quando não havia profissionais lá dentro. Era
comum ver usuários batendo papo na recepção com a assistente
administrativa, ou com a assistente de farmácia no parapeito de sua janela.
Aquele espaço nos fundos da casa, arejado, agradável, com pinturas
coloridas nas paredes, raramente era ocupado por alguém: como é uma região
mais isolada da casa, já aconteceu de usuários virem até aqui para usar
(drogas), então a gente tem que ficar mais atento (trecho do diário de campo,
05/11/2014).
No período inicial de suas atividades, a equipe do CAPS adAO optou por
trabalhar com um sistema de revezamento, no qual em todos os períodos
haveria um trabalhador específico responsável pelo cuidado dos usuários na
ambiência. No entanto, como este trabalhador atuava em composição com
uma dupla de profissionais responsáveis pelo plantão do período, acabava
sendo engolido pelas demandas e não conseguia estar disponível para circular
pela casa e conviver com as pessoas que ali estavam. Atualmente, após
conversas em reunião de equipe e planejamentos, não há mais esse rodízio e
é esperada uma postura ativa na ambiência por parte dos trabalhadores
quando estes não estão envolvidos em nenhuma atividade específica.
Entretanto reconhece-se que os técnicos de enfermagem e os redutores
são aqueles que mais conseguem estar nessa função, sendo que outros
profissionais podem sentir maiores dificuldades para habitar esses momentos
de convivência:
75
Quando eu cheguei no CAPS eu conseguia muito mais estar
próxima dos usuários, jogando truco, conversando e hoje eu
percebo que em alguns momentos eu me preservo na sala de
equipe (...) é um ambiente que a gente fica muito exposto, acho
que o que acontece na ambiência é justamente o inesperado e
acho que a gente fica com um pouco de dificuldade de lidar
com o inesperado e não saber o que fazer, acho que é uma
maneira de se defender e de ficar meio protegido (Oficina
“Modos de acolher Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
Parada (2003) e Schimidt (2013) ao falarem do acolhimento como
função e a postura de disponibilidade discutem o quanto a indisponibilidade
pode estar relacionada a um modo de lidar com a angústia mobilizada pelo
trabalho na instituição de saúde mental, seja pelas sensações de impotência
diante de situações em que não se sabe como lidar, imprevistos e até mesmo
pelas próprias condições de miséria social com que se deparam
cotidianamente.
São estes os espaços aonde de segunda a sexta- feira usuários do
serviço, familiares, trabalhadores da equipe ou de outras partes se encontram,
conversam e compõem um cotidiano, que às vezes é mais organizado e
previsível, outras vezes se mostra surpreendente e caótico. Por ora, nos
detivemos nas características espaciais e nos princípios que sustentam a
ambiência no CAPS adAO. Mais adiante desdobraremos a discussão acerca
das práticas de acolhimento que aí se dão. É importante destacar que todos os
recintos da casa, mesmo aqueles espaços com funções pré-definidas são
multiuso. Uma sala de atendimento pode servir a uma atividade em grupo, o
refeitório pode dar lugar a um momento de acolhida individual e assim por
diante. Mas como está organizado o cotidiano no CAPS adAO e até que ponto
ele se torna previsível? Quais as suas formas instituídas?
5.2 Organização do cotidiano e plantão de acolhime nto
O CAPS adAO configura-se como um CAPS II, não funciona 24 horas e
não possui leitos próprios de retaguarda noturna, por isso fecha aos finais de
76
semana e possui uma equipe com menor número de profissionais se
comparado a um CAPS III. Atualmente é composto por uma equipe com uma
coordenadora, psicólogos, terapeutas ocupacionais, uma médica psiquiatra,
uma médica clínica, redutores de danos, técnicos de enfermagem, enfermeiras,
assistente social, farmacêutica e assistente de farmácia, auxiliares de higiene,
assistente administrativa, um monitor e seis vigias, sendo um feirista, num total
de 33 trabalhadores34. Esses trabalhadores estão subdivididos de acordo com
suas funções em duas miniequipes, cada uma delas responsável por
referenciar uma parte do território de abrangência do serviço, atendendo
usuários, familiares, realizando apoio matricial em centros de saúde e visitas
domiciliares (com exceção das funções de vigia, auxiliar de higiene, assistente
administrativa e coordenação, que não estão inseridos em nenhuma das
miniequipes). A produção do cuidado tem sido norteada pelo modelo
psicossocial, a clínica ampliada e a redução de danos.
As atividades que estão previstas para acontecer durante a semana
ficam expostas em uma tabela na sala de equipe cuja última atualização foi
feita em fevereiro de 2015 e contemplam: Lian Gong, Grupo de sentimentos,
ateliê, reunião de equipe, assembleia geral, grupo de música, grupo de
esportes, grupo de terapia ocupacional, grupo verbal, grupo de gestão
autônoma da medicação (GAM), grupo de mulheres, oficina de saúde e beleza,
grupo de culinária, grupo de prevenção de recaída, grupo de família, grupo de
alcoolistas, os grupos de acolhimento, uma reunião geral de equipe e uma
assembleia35 às terças-feiras. Existem outras atividades que não estão
expostas, no entanto também acontecem com periodicidade semanal, como as
reuniões de miniequipe. Existem ainda atividades pontuais que foram
mencionadas ou que aconteceram durante o período da pesquisa, como o
Intercaps (campeonato de futebol) uma vez ao ano, acompanhamento de
34 Informações registradas em junho de 2015.
35 Atividade aberta para a participação de trabalhadores, usuários, familiares e comunidade em
geral que visa abrir espaço para circulação democrática da palavra ampliando o protagonismo
dos usuários e o controle social, conforme previsto pelas diretrizes do SUS (BRASIL, 2013).
77
usuários em atividades de algum centro de convivência (existem dois na
região) e duas festas (despedida de profissionais e aniversário do CAPS).
Conforme as diretrizes do Ministério da Saúde, os CAPS devem
funcionar num modelo de “portas-abertas” (BRASIL, 2013) e proporcionar
acesso irrestrito ao atendimento a toda e qualquer pessoa que procure o
serviço durante seu período de funcionamento, encaminhada por outro
equipamento ou por procura espontânea.
No caso desta pesquisa, trata-se de um CAPS ad que atende pessoas
com algum tipo de sofrimento relacionado ao uso de drogas, moradoras em um
distrito muito extenso, contando com a cobertura de 13 centros de saúde, um
CAPS III voltado ao atendimento de pessoas com transtornos mentais e uma
unidade de Pronto Atendimento, sendo que recentemente foi criada uma base
móvel para o SAMU na região. Atualmente existem 400 usuários considerados
“ativos”, ou em “processo de acolhimento”, como refere a equipe, e chegam
todos os dias em média três usuários novos por período (manhã e tarde). Para
que as atividades previstas possam acontecer durante a semana e ao mesmo
tempo se garanta o acesso e o modelo de portas abertas, a rotina do CAPS
adAO está estrategicamente organizada em torno do plantão de acolhimento.
O plantão de acolhimento tem sido considerado pela equipe como uma
estratégia na organização do cotidiano de trabalho diante da tarefa de receber
uma grande demanda de usuários novos todos os dias ao mesmo tempo em
que é preciso cuidar dos usuários que já estão frequentando o serviço. Tal
atividade se apresenta como uma prática nos CAPS em Campinas, com
variações de nomeação (como “Acolhimento do dia”) e não há uma
padronização em seus modos de fazer. Antes de o CAPS adAO ser
inaugurado, parte de sua equipe fez visitas e acompanhou o trabalho realizado
nos outros CAPS ad já em funcionamento para auxiliar no planejamento de seu
próprio plantão de acolhimento.
A equipe do CAPS adAO discute o tema do plantão de acolhimento
desde o início de suas atividades e contou que este sempre funcionou em
sistema de rodízio de trabalhadores por período, mas já teve diversas caras.
78
Inicialmente os trabalhadores escalados para atuar no plantão eram divididos
em duplas, cada uma responsável por um período fixo na semana. Dessa
forma era sempre a mesma dupla que cobria o plantão na segunda-feira de
manhã, outra na segunda- feira à tarde e assim por diante. Num determinado
momento a equipe planejou outra configuração, desta vez não mais em duplas,
mas trios:
Quando a gente mudou para um trio a gente teve um plano de
que a terceira pessoa pudesse estar no acolhimento, mas na
ambiência, então tinha uma proposta de estar mais na frente,
recebendo os pacientes, podendo estar mais nos espaços de
convivência, só que aí depois de um tempo a gente avaliou que
esse terceiro membro do acolhimento também era engolido
pela demanda e que acabava não conseguindo estar. Que a
gente tinha uma proposta de um rodizio dentro do trio né. Então
por exemplo, segunda de manhã eram três pessoas e a cada
semana uma de nós estaria na ambiência. (Oficina “Modos de
acolher Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
A equipe então voltou a operar o plantão de acolhimento em duplas.
Todos os anos têm acontecido uma reunião geral de planejamento das
atividades e nessas ocasiões podem acontecer mudanças nos dias em que
cada trabalhador realiza o plantão. Portanto essa escala possui certa
flexibilidade de acordo com as necessidades do serviço ou até mesmo dos
trabalhadores, havendo um reconhecimento de que as outras atividades do
CAPS são tão importantes quanto o que acontece no plantão, podendo ser
motivo suficiente para alterar uma escala:
Eu faço parte do grupo de esportes e tem um certo período do
ano que tem um campeonato e era no dia do meu acolhimento,
então eu desfalcava muito porque priorizava a atividade com
os pacientes e alguém acabava ficando no meu lugar. Por
conta disso mudaram o dia. (...) Aí tem o lado pessoal dos
profissionais, que ás vezes tem outro emprego ou às vezes
querem fazer algum curso e precisa mudar o horário aqui no
serviço. (trecho de entrevista realizada em 09/02/2015)
79
Atualmente o plantão de acolhimento acontece em duplas com exceção
da segunda-feira (considerado um dia mais movimentado) que funciona com
um trio. As responsabilidades e tarefas que envolvem essa atividade são
muitas e diversas: avaliar usuários que estão em processo de acolhimento em
leito-noite36, receber usuários novos, evoluir prontuários, acolher situações de
crise, avaliar quais usuários almoçarão no serviço, articular vagas de
internação e leitos-noite com a central de regulação de vagas, além de estar de
prontidão para lidar com todo tipo de intercorrências e situações imprevistas.
As atribuições dos plantonistas são bastante amplas e pode-se dizer que os
modos de se fazer o plantão de acolhimento darão o tom de como o serviço
funcionará durante todo um período do dia:
(...) você vai resolver as demandas daquele dia, o que
está fora da agenda é o acolhimento que resolve (...)
claro que tem certas decisões que a gente acaba
recorrendo ao resto da equipe, mas cabe ao
acolhimento organizar isso. A gente já teve uma
supervisão que foi discutida a questão da autoridade do
acolhimento, de que o acolhimento é soberano, porque
ele tá organizando e tem inclusive o poder num grupo
de falar assim: olha tá difícil, tem como só um fazer o
grupo hoje? (Oficina “Modos de acolher Antônio
Orlando”, realizada em 09/06/2015).
Devido às numerosas atribuições relativas ao plantão de acolhimento, é
necessário haver certa administração do tempo que se gasta em cada tarefa,
pois ao término de cada período acontece a passagem de plantão, onde a
equipe da manhã discute com a equipe da tarde os acontecimentos que se
desenrolaram durante o período, para que a nova dupla possa dar continuidade
a algumas ações já iniciadas pela manhã e cumprir com outras demandas que 36 Os chamados “leito-noite” são leitos de retaguarda noturna para usuários em crise ou que a
equipe avalia fazer sentido dentro do projeto terapêutico de um usuário. Como se trata de um
CAPS II, tais leitos de retaguarda ficam na sede do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, no
mesmo ambiente da internação psiquiátrica. Atualmente existem 10 leitos-noite para a rede
álcool e drogas do município e os encaminhamentos são feitos após discussão de caso com
um profissional médico da Central Municipal de Regulação de Vagas.
80
surgirão. Durante o período de observações no CAPS adAO, houveram muitas
demandas relativas aos leitos-noite que eram sempre discutidas durante a
passagem de plantão. Como o CAPS permanece fechado aos finais de
semana, tal recurso de retaguarda noturna tem sido utilizado também para o
acolhimento de alguns usuários nesse intervalo.
Lista elaborada por trabalhador da equipe contendo suas atribuições no plantão de acolhimento
O plantão de acolhimento no CAPS adAO exige uma atitude de
prontidão para se lidar com uma diversidade de tarefas, mas não está
caracterizado por um agir automático ou por um funcionamento burocratizado.
Os modos de fazer ou de se lidar com cada situação devem ser guiados por
uma postura de acolhimento que foi definida da seguinte maneira:
(...) é a postura de acolher e de escutar, de estar junto
com os pacientes e familiares (...) a gente fica
disponível, com uma abertura na escuta pra ouvir
demandas não programadas necessariamente... Acho
que uma disponibilidade para estar no encontro e ver
qual é a questão da pessoa, às vezes nem é algo que
tem que resolver, é mais um estar junto e ter uma
empatia por ela, tentar entender o sofrimento e pensar
numa estratégia de cuidado. (...) a forma como a gente
81
se aproxima tanto no olhar, no gesto, na fala, faz muita
diferença, se a gente escuta o que a pessoa tem a
dizer ou se escuta já querendo dar uma resposta, se
escuta com empatia... É bem sutil. (trecho de entrevista
realizada em 30/01/2015)
Se quisermos decompor esta definição, teremos que para a equipe do
CAPS adAO, uma postura de acolhimento é se apresentar disponível não
somente para ouvir, mas para estar junto de maneira implicada na experiência
de sofrimento do outro e sentir-se responsável pelo seu cuidado, que não se
traduzirá unicamente em procedimentos ou intervenções técnicas, mas
também na forma de pequenos gestos, como um olhar, um sorriso, uma
palavra. Durante a pesquisa empírica foi possível observar algumas situações
onde uma postura acolhedora por parte da equipe no encontro com os usuários
durante o plantão de acolhimento se apresentou em sutis detalhes:
(...) ela tinha um tom de voz calmo, voz baixa e falava
demonstrando afeto e preocupação (...) as perguntas
foram sobre suas condições físicas, mas também
perguntou sobre o que estava sentindo falta, seus
planos, aspectos mais subjetivos (trecho do diário de
campo, 05/11/2014).
(...) ela deixava as pessoas falarem sem interrompê-
las, dava orientações com calma e linguagem acessível
(trecho do diário de campo, 05/11/2014).
(...) ele ficava mais em silêncio, deixando o usuário
falar e expressar suas emoções que vieram em forma
de choro (trecho do diário de campo, 05/11/2014).
Tais gestos e pequenos detalhes revelaram uma forma de atenção
prestada ao que o usuário tem a dizer sobre si próprio, suas trajetórias, seus
planos, suas redes de relações, não reduzindo a escuta apenas a aspectos
relativos ao uso de drogas e nem impondo um tipo de saber técnico
especializado que anula o conhecimento que usuário traz de si. Implicam em
reconhecer cada sujeito em sua histórica única e particular, seus modos
singulares de lidar com o sofrimento. No entanto há o reconhecimento da
82
importância de se também perguntar ao usuário e estar sempre atento às
questões relativas aos seus padrões no consumo de drogas, uma vez que
cuidar de alguns sintomas clínicos também é responsabilidade da equipe
desde a primeira vez que um usuário se apresenta:
(...) ela estava com sinais de abstinência e depois da
conversa acompanhei a aferição de seus sinais vitais
(trecho do diário de campo, 05/11/2014).
(...) o último uso é importante de a gente saber por
causa da abstinência né. Porque senão a gente manda
uma pessoa pra casa porque ela não falou que usa
álcool diariamente e o último uso faz 24 horas, ela vai
ter uma crise de abstinência grave no caminho e isso é
uma responsabilidade nossa (oficina Modos de acolher
Antônio Orlando, realizada em 09/06/2015).
A equipe tem organizado seu cotidiano de maneira que tal postura deve
estar presente desde a chegada de cada usuário no serviço, sendo
responsabilidade da equipe do plantão receber usuários novos, numa ação
chamada pela equipe de primeiro acolhimento. Trata-se do momento em que
uma pessoa chega ao serviço pela primeira vez e é recebida primeiramente
para uma escuta inicial dos motivos que a levaram até ali, seguida de outras
perguntas que a equipe considera importantes de serem feitas: se a pessoa já
realizou tratamentos anteriores, quais as suas expectativas, se tem alguma
rede social de apoio (família, amigos), se possui um trabalho ou outra
atividade, como é sua história com relação ao uso de drogas, entre outras.
Embora as perguntas sejam abertas e exista espaço para o usuário contar sua
história como quiser, a equipe reconhece que existe uma série de perguntas
que sempre são feitas nesse momento. Por isso é um processo em que a
escuta se dá a partir de perguntas feitas pelo profissional e que visam não
somente acolher, mas também colher informações e avaliar uma situação a
83
partir de um saber técnico, tendo como objetivo ao final desse processo o
planejamento de um projeto de cuidado inicial:
(...) ela disse que se considera mais acolhedora
quando não está na escala do plantão e que acaba
fazendo esse acolhimento inicial segundo um
protocolinho com perguntas básicas e gerais ligadas ao
seu núcleo profissional. (trecho do diário de campo,
05/11/2014)
(...) acho que todo mundo faz quase as mesmas
perguntas de sempre: por que você está aqui, seu
vínculo com a família tem umas quinze perguntinhas
que todo mundo faz (trecho de entrevista realizada em
23/01/2015).
O primeiro acolhimento de um usuário também envolve explicar o que é
um CAPS ad e qual é a proposta de cuidado no CAPS adAO. Segundo a
equipe muitas pessoas ainda não conhecem esse modelo de cuidado e
chegam lá com pedidos de internação. Por isso, essa conversa inicial pode ter
a função de desmistificar alguns aspectos do tratamento, por exemplo, de que
não é necessário abster-se do uso para começar a frequentar o serviço,
informação que surpreende muitos usuários como contaram algumas pessoas
da equipe. No entanto, diante da insistência de uma usuária durante seu
acolhimento inicial, um profissional com postura acolhedora pôde lidar com as
escolhas e os desejos de quem insiste na internação como via para o cuidado:
(...) a usuária começou a insistir para ser internada novamente,
disse que ainda não estava se sentindo totalmente segura.
Diante de sua insistência, a psicóloga problematizou a questão
da internação, dizendo que não avaliava tal necessidade, que
ela havia acabado de ter alta e que agora poderia ser cuidada
no CAPS. Mas a usuária foi irredutível e a psicóloga explicou
que ela tinha o direito de procurar o Padre Haroldo
(Comunidade Terapêutica que a usuária citou na conversa) se
quisesse e as portas do CAPS continuariam abertas para
recebê-la. Então a usuária começou a chorar e disse estar
sentindo raiva, pois perdeu a guarda de ambos os filhos por
84
conta do uso de drogas (trecho do diário de campo,
27/02/2015).
Nessa situação, a usuária pedia por um tipo de tratamento que
garantisse sua abstinência do uso de drogas e acreditava que sua internação
anterior havia tido uma duração insuficiente, cerca de um mês. A psicóloga que
conduziu a conversa buscou problematizar que a internação pode fazer parte
de um processo para algumas pessoas, mas que não tem funcionado
isoladamente como garantia para abstinência do uso. A profissional ponderava
a questão da internação, porém sem impor outros métodos, sem invalidar o
desejo da usuária e nem tentar convencê-la a desistir de seu plano para tentar
uma internação mais prolongada em uma comunidade terapêutica. Com
postura acolhedora, respeitou suas escolhas nesse momento e ofertou a
possibilidade de a usuária frequentar o CAPS enquanto procura outras
maneiras de ser cuidada, o que visivelmente tranquilizou a mesma e deu
abertura para que contasse seu sofrimento com relação à retirada de seus
filhos e que na verdade seu tratamento era uma condição do Conselho Tutelar
para que pudesse tê-los de volta.
A proposta de cuidado chamada Projeto Terapêutico Singular37 ou PTS,
além de ser esclarecida logo no primeiro acolhimento, é planejada também já
nesse momento, ainda que de forma incipiente como forma de esboçar os
próximos passos do usuário e da equipe envolvida na produção de seu
cuidado. Tal projeto inicial geralmente envolve um encaminhamento para um
grupo de acolhimento, além de outras ações em paralelo se houver
necessidade, como conversas individuais ou visita domiciliar. Nomear como
singular um projeto de cuidado aponta para uma proposta de olhar o sujeito em
sua história única, participante em uma sociedade e uma cultura, com desejos
37 Conjunto de ações de cuidado voltadas para um sujeito individual ou coletivo (grupos,
famílias e outros) planejadas e discutidas em equipe interdisciplinar a partir dos processos
singulares (diferenças) que se destacam em cada caso, sempre considerando a produção de
saúde como um processo dinâmico. (BRASIL, 2007). Disponível em <
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/clinica_ampliada_2ed.pdf>. Acessado em
22/09/2015.
85
particulares e possibilidades de produzir mudanças. Também aponta para os
modos como a equipe pretende conduzir e manejar as situações em cada
caso. Todas as semanas as miniequipes se reúnem para discutir mudanças
que alguns usuários têm vivenciado e assim pensar também em novas
formulações para seus projetos terapêuticos.
No caso apresentado acima, após a conversa realizada durante seu
acolhimento inicial, a psicóloga ajudou a usuária a planejar seus próximos dias,
quem poderia lhe ajudar quando estivesse em sua casa, o que ela poderia
fazer caso sentisse muita vontade de usar drogas e quem poderia lhe ajudar a
administrar sua medicação durante o final de semana. Assim, foi possível
pensar em um PTS inicial para essa usuária no CAPS adAO, levando em
consideração para além do uso de drogas, o sofrimento que estava
vivenciando com a retirada de seus filhos e sua sensação de incapacidade
para se cuidar sozinha.
Após alguns períodos de observação e conversas acompanhando
equipe e usuários em situações ocorridas durante o plantão de acolhimento, foi
possível perceber que no CAPS adAO essa prática está marcada por ações
complementares: a palavra “plantão” indica uma disponibilidade para responder
às diversas demandas que estão planejadas e também aquelas que acontecem
de maneira imprevista. A palavra “acolhimento” indica uma postura, ou um tipo
de atitude esperada por parte do trabalhador que realça a importância da
escuta implicada das experiências singulares trazidas por cada usuário,
respeitando suas escolhas e se corresponsabilizando pelo seu cuidado. Pode-
se dizer ainda que as ações de cuidado produzidas durante o plantão de
acolhimento, embora tenham um acento nas tecnologias leves (MEHRY, s/d)
como a escuta, a conversa, o olhar e o tom de voz, lançam mão do saber
técnico especializado e de procedimentos burocráticos quando é preciso
avaliar algum sintoma clínico ou quando é exigido o registro de cada
atendimento para fins de faturamento. No entanto durante a pesquisa empírica,
tais ações sempre apareceram associadas a alguma ação de cuidado que
destacava os aspectos dinâmicos e singulares em cada caso.
86
A administração do tempo durante um período de plantão também
apareceu como uma responsabilidade para os plantonistas. Nem sempre é
possível passar mais do que quinze ou vinte minutos dentro de uma sala
escutando um usuário recém-chegado, pois existem muitas outras tarefas a
serem transpostas pela equipe do plantão. Foi possível observar em alguns
períodos um acúmulo de pessoas aguardando na sala de espera e uma alta
circulação de profissionais na sala de equipe procurando por algum plantonista
que pudesse lhe auxiliar em alguma situação.
5.3 Os grupos de acolhimento
Atividade realizada também nos outros CAPS ad de Campinas, o grupo
de acolhimento é uma oferta de cuidado voltada aos usuários que chegaram
recentemente, estão começando a frequentar esse serviço e cujo objetivo
principal é dar continuidade ao processo de acolhimento iniciado no plantão,
mas num espaço grupal. No início das atividades do CAPS adAO, os grupos de
acolhimento aconteciam diariamente e já apresentaram diversas configurações
que sempre são discutidas nas reuniões anuais de planejamento para adequar
a atividade às demandas do serviço e dos usuários. Atualmente acontecem em
três períodos na semana, sendo cada um deles coordenados por uma dupla de
profissionais que não se rodiziam.
Geralmente, após o acolhimento inicial de um usuário, este será
encaminhado para um grupo de acolhimento, onde irá encontrar outras
pessoas recém-chegadas e será convidado a falar um pouco mais de si. Para a
equipe do CAPS adAO trata-se de um momento privilegiado onde o usuário
pode conhecer outras pessoas que compõem equipe, compartilhar com outros
usuários um pouco de sua história, bem como escutar ou apenas tirar dúvidas
caso tenha. Também é uma oportunidade para a equipe conhecer um pouco
mais deste usuário, ouvir suas histórias, interrogar seus interesses e
expectativas, de modo que o acolhimento inicial não se perca como apenas
uma etapa do tratamento, mas perdure num processo que passará a envolver
outros trabalhadores e também outros usuários.
87
A dinâmica de um dos grupos de acolhimento que pôde ser observado
começou já na sala de espera. Alguns usuários começaram a chegar e
apresentar na recepção um cartão de retorno onde estava anotado o dia e
horário do grupo de acolhimento. Chegada a hora, os profissionais
responsáveis pela coordenação neste dia convidaram todos a descer e sentar
em forma de roda. Primeiramente ambos coordenadores se apresentaram e
explicaram que o grupo de acolhimento é um momento para se conhecerem
melhor. Depois, abriram a palavra para que todos pudessem se apresentar e
em seguida começaram a surgir temas variados para serem discutidos:
(...) dependendo dos pacientes que estão, do assunto que
surge, a gente tenta abordar alguns temas, como o que é
projeto terapêutico singular, o que é referência, mas
dependendo do grupo outras coisas são mais importantes do
que isso né, às vezes surge o tema da internação, ou da
medicação. (Oficina “Modos de acolher Antônio Orlando”
realizada em 09/06/2015).
Trata-se de um espaço onde a palavra pode circular livremente e a
equipe também procura escutar e observar cada usuário para assim começar a
ter algumas ideias para seu PTS. Após cada grupo, que dura em média uma
hora, os coordenadores registram nos prontuários de cada usuário as suas
impressões: se estavam falantes ou não, alguns conteúdos que trouxeram,
tudo o que consideram relevante e que possa auxiliar as miniequipes no
planejamento dos PTS. Geralmente, enquanto um usuário frequenta grupos de
acolhimento, ele não frequentará outras atividades e após três ou quatro
grupos, algum trabalhador com quem ele se vinculou ou que foi decidido em
reunião de miniequipe, o convida para uma conversa onde serão discutidos
mais alguns passos de seu projeto terapêutico. A partir desse momento, este
trabalhador será nomeado como a “referência” do usuário e deverá cuidar de
maneira mais próxima da construção de seu PTS.
Os grupos de acolhimento estão instituídos no conjunto das atividades
do CAPS adAO como parte do processo de acolhimento dos usuários recém
chegados, entretanto, existem casos em que a equipe avalia não haver a
necessidade desse encaminhamento, como casos de usuários que apenas
88
interromperam o acompanhamento no CAPS por algum tempo e quando
retornam ainda possuem vínculos e solicitam participar das atividades que
participavam anteriormente. Estes, são chamados casos de reacolhimento,
muito frequentes no CAPS adAO como pôde ser observado durante os quatro
meses da pesquisa empírica.
No CAPS adAO quando um usuário deixa de frequentar o serviço por
alguns meses e retorna basta localizar seu prontuário e dar continuidade a um
processo já iniciado ou se for necessário discutir novamente seu PTS. Quando
se trata de um reacolhimento de alguém que frequentou o CAPS por menos
tempo e não chegou a se vincular a alguém da equipe ou a alguma atividade,
ele poderá frequentar os grupos de acolhimento.
Existem ainda outros casos em que os coordenadores avaliam durante o
andamento de um grupo que algum participante seria mais bem acolhido
individualmente, quando então a função do segundo coordenador ganha
destaque:
Então chegou no grupo e ele estava bastante desorganizado,
com um discurso que não condizia com o grupo, eu estava
fazendo o grupo em dupla e ele estava muito
descontextualizado então saí com ele da sala.(...)Eu saí e fiz
uma conversa individual, continuei o que a gente estava
fazendo em grupo mas fiz individualmente numa sala. (trecho
de entrevista realizada em 30/01/2015)
Nesta situação o segundo coordenador surgiu como alguém que pôde
cuidar de alguma situação pontual, sem que o grupo inteiro precisasse acabar
ou ser interrompido. Ao sair da sala com o usuário e acolhê-lo individualmente,
o mesmo não precisou ir embora sem que essa situação fosse mais bem
cuidada. Este usuário, que segundo a equipe estava sob o efeito do uso de
crack, não participou do grupo naquele dia, mas foi cuidado de outro modo.
Outra função observada do segundo coordenador é o de registrar em
forma de anotações alguns conteúdos que apareceram durante o grupo, bem
como outras informações que auxiliem na hora de escrever a respeito da
participação de cada usuário no seu prontuário.
89
A equipe percebe que o grupo de acolhimento auxilia na organização do
cotidiano de trabalho quando estrategicamente propõe dar continuidade às
ações de acolhimento inicial, pois devido ao grande número de pessoas
atendidas e a quantidade de tarefas a serem transpostas pelos plantonistas
nem sempre é possível passar muito tempo junto a um usuário dentro de uma
sala. No entanto, também consideram outros aspectos relativos a essa maneira
de realizar um acolhimento inicial mais rápido, que se referem aos modos como
cada usuário se relaciona com a ideia de tratamento, numa dinâmica que a
equipe nomeia como clínica ad:
Acho que isso diz também da clínica que a gente tá falando,
acho que na clinica ad o timing é outro, as coisas são muito
rápidas, a questão da ambivalência está presente nos usuários
constantemente né e às vezes eu sinto que em alguns casos
até com dificuldade de suportar esse atendimento mais longo.
(Oficina dos “Modos de acolher Antônio Orlando”, realizada em
09/06/2015).
O desejo de se tratar também é bem volátil. Ás vezes durante a
mesma conversa você vê que tem movimentos, discursos que
trazem uma motivação, e ao mesmo tempo fala não, tchau, já
vou indo, depois eu volto, não tô querendo permanecer mais.
(Oficina dos “Modos de acolher Antônio Orlando”, realizada em
09/06/2015).
Nesse sentido os grupos de acolhimento aparecem como forma de
oferecer mais oportunidades para o usuário frequentar o CAPS sem um
imperativo de dar o máximo de informações sobre si e decidir a respeito de um
projeto terapêutico logo num primeiro encontro.
A equipe reconhece alguns desafios que o grupo de acolhimento
apresenta. Não são todos os trabalhadores que realizam os grupos de
acolhimento, alguns não se sentem seguros para conduzir um trabalho em
grupo e isso tem sido respeitado. Outros trabalham com uma carga horária
menor e coordenam outras atividades. Por isso um dos efeitos do grupo de
acolhimento incide sobre a distribuição do número de usuários entre alguns
profissionais de referência, pois os usuários que frequentam grupos de
90
acolhimento muitas vezes acabam se vinculando mais com os coordenadores
destes do que com alguém de sua miniequipe; deste modo quem coordena o
grupo acaba ganhando uma referência, enquanto aqueles trabalhadores que
não participam dos grupos poderão ter menos oportunidades de construir
relações de vínculo com esses usuários nesses momentos iniciais.
Há também o reconhecimento de que nem sempre é possível discutir
nas reuniões de miniequipe a respeito dos projetos terapêuticos de todos os
usuários que estão frequentando os grupos e definir algum profissional de
referência, o que pode transformar o grupo de acolhimento em uma espécie de
porta-giratória para onde ele deve retornar a cada semana mesmo quando ele
já poderia frequentar outras atividades. Nesse sentido o grupo de acolhimento
corre o risco de deixar de ser parte de um processo e se tornar apenas uma
etapa a ser vencida pelo usuário:
Perguntei se os usuários questionam o motivo de
retornarem três ou até quatro vezes no grupo de acolhimento e
a psicóloga disse que sim, às vezes questionam. Disse que
como nem sempre dá tempo de discutir os casos que estão
passando pelos grupos, acabam marcando um retorno, mesmo
sabendo que é alguém que já poderia ser encaminhado para
outra atividade mais de acordo com seus interesses. (trecho de
diário de campo, 27/02/2015).
Embora essa atividade seja planejada constantemente pela equipe, os
sentidos que ela terá para os usuários serão construídos ao longo do processo.
Muitos usuários nunca participaram de espaços que enfatizam a importância
das relações entre usuários e equipe num contexto de tratamento e é comum
durante um grupo de acolhimento surgirem dúvidas como: que horas vai
começar meu tratamento? Por isso nesses momentos a equipe identifica a
importância de conversar a respeito dessa atividade com os usuários:
(...)eu acho que o grupo causa esse estranhamento, “por que
eu tô aqui, por que eu tenho que estar aqui, que eu tenho que
estar passando por isso, que horas vai começar o tratamento?”,
não entende que já é tratamento. Então quando eu tenho
oportunidade eu falo que o acolhimento inicial já é o início do
91
tratamento e que o grupo é a continuidade dessa conversa
inicial num processo de aproximação da pessoa com a equipe
e da equipe com a pessoa. (trecho de entrevista realizada em
30/01/2015).
Estes foram alguns dos desafios observados ou descritos pela equipe
em torno dos grupos de acolhimento no CAPS adAO. Para discutirem esses
efeitos e estudarem outras possibilidades para essa atividade, no ano de 2015
os grupos de acolhimento foram um dos temas trabalhados na reunião anual
de planejamento. Além disso, tem sido um tema presente também em algumas
reuniões semanais da equipe, onde a partir de um exercício de cogestão, todos
podem expor suas ideias, dificuldades e elaborarem juntos novos desenhos
para as práticas que se dão no cotidiano do serviço.
5.4 Acolhimento na rua
Atualmente a equipe do CAPS adAO conta com o trabalho de quatro
redutores de danos, uma dupla em cada miniequipe. São profissionais que
auxiliam na construção dos projetos terapêuticos dos usuários que frequentam
o serviço, coordenam grupos, participam de reuniões de equipe e assembleias,
acompanham usuários em atividades externas e são reconhecidos pela equipe,
ao lado dos técnicos de enfermagem, como aqueles que mais habitam a
ambiência. No entanto, é nas ruas onde esses trabalhadores têm atuado com
maior protagonismo e autonomia, durante as abordagens que realizam nos
arredores do Campo Grande.
Práticas próprias ao campo da redução de danos, as chamadas
“abordagens” consistem em seguir pistas da itnerância dos locais de uso de
drogas para distribuição de insumos e construção de vínculos com os usuários
de maneira respeitosa, sem julgamento de valor acerca dos hábitos de
consumo presentes em um local e sem impor qualquer método de tratamento
(JANUZZI et al., 2014). De acordo com essa proposta, os redutores de danos
que compõem a equipe do CAPS adAO têm realizado de maneira sistemática
ações de cuidado junto a usuários ou grupos de usuários de drogas nos
92
próprios locais de uso, de forma a se aproximar das pessoas que ali convivem,
construir vínculos de confiança e se colocar à disposição caso apareça alguma
demanda de cuidado por parte de um usuário.
Para esses trabalhadores, promover ações nos locais de uso junto a
usuários de drogas enquanto estes estão consumindo envolve um tipo de
atuação mais atenta às movimentações da polícia e do tráfico. Eles presenciam
ameaças de brigas e de tiroteios e contaram que faz parte da lógica da redução
de danos nunca fazer uma abordagem sozinho, mas no mínimo em duplas. No
entanto essa atmosfera incerta não tem sido um obstáculo para realizar as
abordagens:
Então são demandas que a gente tá acostumado e a gente tá
lá na rua pra isso. A gente sabe lidar com isso. (...) A gente é
capacitado na rua. (trecho de entrevista realizada em
23/01/2015)
Ser capacitado na rua também envolve estudo, debate e
compartilhamento de experiências em coletivo. Os redutores de danos no
CAPS adAO frequentam o Fórum da rede ad de Campinas e o Fórum Estadual
de Redução de Danos de São Paulo, que recentemente publicou um caderno
produzido coletivamente a partir dos temas debatidos, contendo experiências
de redução de danos em várias cidades38. Além disso, a equipe de redutores
tem seu próprio espaço de supervisão no CAPS adAO, que vem acontecendo
com periodicidade quinzenal e é dedicada às demandas relativas às suas
atividades.
Os redutores de danos no CAPS adAO consideram que as abordagens
nas ruas tem uma função de acolhimento, mas apontaram diferenças quanto
aos modos de acolher que se dão dentro das dependências do serviço e as
que acontecem nos locais de uso de drogas, onde o encontro com usuários
tende a ser menos mediado por instituições e por isso apresentará outras
peculiaridades. Uma das diferenças relatadas apareceu nos modos de se
conversar. Quando um usuário novo chega ao CAPS, entende-se que ele
38 Disponível em: http://edelei.org/pag/ferd. Acessado em 22/09/2015.
93
procurou o serviço voluntariamente e deseja se engajar em um projeto de
cuidado em saúde. Na rua isso não é tão claro, já que muitas pessoas não
manifestam imediatamente um desejo de se cuidar. Por isso a abordagem
envolve outros modos de conversar, que não usarão dos repertórios técnicos
especializados das áreas da saúde:
(...) lá na rua a gente fala do nosso jeito, do jeito da rua mesmo,
usando gíria, falando palavrão, aqui dentro se eu falar um
palavrão com o usuário... (...) não é tão aceito quanto na rua.
(trecho de entrevista realizada em 23/01/2015)
Os redutores de danos no CAPS adAO não fazem parte da escala do
plantão de acolhimento e não realizam os acolhimentos de usuários novos.
Algumas vezes são chamados pela equipe, quando o profissional que está
conversando com um usuário avalia que há uma demanda de redução de
danos. Os redutores podem, no entanto realizar um reacolhimento de um
usuário que já conhecem e têm um vínculo, enquanto na rua as abordagens
são feitas independentemente se existe algum tipo de vínculo com um usuário
ou grupo de usuários. A justificativa para isso remete a uma situação ocorrida
em que um trabalhador da equipe de redução de danos realizou o primeiro
acolhimento de um usuário, que em seguida fez algumas reclamações a
respeito de sua atuação. Essa situação nos ajuda a pensar que no CAPS adAO
o primeiro acolhimento de um usuário envolve fazer perguntas a partir de um
núcleo profissional específico, a respeito de sua história, seus interesses e
suas necessidades, sua família, seus vínculos de trabalho, suas condições
socioeconômicas. Trata-se de um momento de escuta e de conversa, mas
apresenta também um caráter de entrevista, pautada num modelo tradicional
de anamnese técnica, na qual é requerido certo saber especializado e
organizado em um conjunto de repertórios linguístico próprios.
Na rua isso não acontece da mesma forma e respeita-se o fato de que
não foram os usuários que procuraram os redutores, que por sua vez se
aproximam de maneira cuidadosa num território onde a princípio não foram
convidados a se apresentar:
94
(...) a abordagem a gente já não chega perguntando as coisas
que se perguntam no primeiro acolhimento aqui dentro da sala,
porque aqui na salinha um profissional pode falar “por que você
veio, qual a sua demanda, como que tá sua família?”, pega um
histórico completo. (...) Lá na rua não, você tá vendo a pessoa
pela primeira vez, sua primeira abordagem, você não vai
chegar perguntando “por que você saiu da sua casa? Que você
tá fazendo na rua?”. Então é construindo vinculo que a gente
vai fazer isso. Na hora que a pessoa se sentir mais vinculada
com a gente, aí sim ele vai liberando. (trecho de entrevista
realizada em 23/01/2015)
Outra diferença está nos modos de se estar com os usuários, já que na
maioria das vezes durante as abordagens, os redutores se dispõem a
conversar enquanto aqueles fazem uso de drogas, dinâmica menos tolerada
dentro das dependências do CAPS adAO:
(...) já teve usuário que na hora que eu cheguei ele tava com
cachimbo, ele falou, “não não, não quero conversar, agora eu
tô usando”, eu falei “meu, não tem problema nenhum, a gente
pode conversar, você pode tá usando” e ele falou, “ah de boa
pra você?” Eu falei “de boa”, e ele fumando o cachimbo lá e eu
conversando com ele entendeu, super tranquilo, normal, coisa
que aqui dentro nunca que ia acontecer. (trecho de entrevista
realizada em 23/01/2015)
Encontrar-se com um usuário que vive nas ruas também pode dar
visibilidade para as maneiras como alguns estabelecimentos de saúde
recebem pessoas que ali chegam e como o acesso não é apenas uma questão
de recepção ou de se manter as portas de um serviço abertas, conforme um
caso relatado pelo redutor de danos:
Foi assim “e aí beleza”, aí a gente foi se apresentando,
falando um pouco do serviço, falando um pouco do SUS, que a
gente trabalha no SUS e ele falando “ah eu não vou muito pra
hospital que eu to meio encacado, eu to sujo, eu tenho medo
que eles não me recebam direito, então por isso que eu fico
mais aqui na rua”, aí a gente vai conversando, aí ele vai
95
sentindo a liberdade de contar pra gente: “olha eu tô ficando
aqui nessa região, eu tomo tantos corotes por dia” e assim a
gente vai estabelecendo vinculo. Aí uma vez por semana eu
vou naquela região e sempre agora a gente tá conversando,
ele tá se interessando pelo serviço e a gente tá construindo
isso com ele, da vinda dele pra cá. (trecho de entrevista
realizada em 23/01/2015)
Nessa situação, o usuário estava sem moradia e vivendo nas ruas do
bairro. Ele contou ao redutor temer que o hospital não o recebesse devido às
suas condições sociais, por ele estar sujo e meio encacado. Conforme narrado
pelo redutor, o usuário pareceu trazer também um saber a respeito do acesso
ao cuidado em saúde: ele sabia que poderia ir ao hospital, mas sabia também
que poderiam não lhe receber “direito”. Ao escutar isso podemos
apressadamente concluir que existe um modo certo de receber, um modelo
exato a ser cumprido e que significaria “receber direito”. Propomos, no entanto,
escutar tais palavras de outra maneira, pensando se existe um modo de se
receber que também é um direito.
Podemos nos lembrar do que já discutimos nos capítulos anteriores e a
partir desse caso exemplar, que receber um usuário na perspectiva da redução
de danos e de acordo com diretrizes de uma política de humanização em
saúde é também um direito que deve ser garantido a qualquer cidadão de
acordo com as políticas públicas vigentes. Conversar, vincular-se, construir
juntos, são modos de se receber alguém que tem o direito de ser escutado, de
se sentir mais à vontade, de se sentir acolhido. No mesmo trecho, o redutor
contou como se apresentou àquele usuário com uma linguagem informal e que
a partir dessa conversa este começou a se sentir mais à vontade para falar de
si. Um tipo de vínculo começou a se estabelecer e juntos foi possível começar
a construir um projeto de cuidado, mesmo quando esse usuário ainda não
havia atravessado os portões do CAPS adAO.
Durante os períodos em que acompanhamos as práticas de acolhimento
no CAPS adAO foi possível participar de momentos em que o trabalho dos
redutores de danos se articularam com outros serviços da rede e com outros
trabalhadores da equipe, como no caso de uma usuária que estava
96
consumindo crack junto de outras pessoas em uma praça da região. Durante
uma reunião realizada numa das salas do CAPS e na qual estavam presentes
um redutor de danos, uma enfermeira e dois trabalhadores de um serviço de
assistência social, foi discutida e planejada uma intervenção compartilhada:
(...) falaram muito da questão do vínculo, de que essa
abordagem tem que ser feita de forma a respeitar o vínculo que
tem sido construído a duras penas com os agentes e com os
redutores. Todos reconhecem, no entanto que esse é um
momento muito crítico e que talvez ela não tenha condições de
perceber seu estado de saúde, por isso discutem chamar o
SAMU para uma intervenção involuntária. Pensam em fazer
isso sempre a acompanhando, explicando para ela o que está
acontecendo e porque estão fazendo aquilo, etc... Planejaram
conversar com os usuários que estão na rua também no
sentido de se cuidarem, de buscarem ajuda se precisarem, pois
tem outros que também estão muito adoecidos. Os redutores
ficaram preocupados em ficarem associados com a intervenção
involuntária. (trecho de diário de campo, 30/11/2014).
Essa situação pode também ilustrar um desafio enfrentado pelos
redutores de danos ao trabalharem vinculados a uma instituição de tratamento.
A usuária em questão já havia passado pelo CAPS adAO e a equipe já se
sentia responsável pelo seu cuidado. No entanto ela se recusava a ir para o
serviço ou para um hospital, mesmo estando com ferimentos no corpo e
infecções. Por isso a equipe considerou uma abordagem involuntária e os
redutores de danos manifestaram sua preocupação com isso, mesmo que
fosse feito de maneira cuidadosa, estando junto da usuária o tempo todo. A
preocupação dos redutores era com relação ao risco de se ferir o vínculo que
essa usuária e os trabalhadores haviam construído o que poderia inviabilizar
ações futuras dos redutores, já que a redução de danos trabalha a partir do
vínculo que se pode construir e tem como princípio não impor nenhum método
de tratamento ou intervenção.
Outro aspecto observado nessa situação foi o olhar para os outros
usuários que frequentam a mesma cena de uso da usuária em questão. Nas
abordagens em que ela não se encontrava, antes dessa reunião, os redutores
97
conversavam com as outras pessoas que frequentam o local para se colocar
de maneira presente e disponível, já que também estavam numa situação
parecida com a de sua colega. Começou a se produzir então um movimento no
qual os próprios usuários começaram a conversar entre eles e a dizer para ela
ir ao CAPS, pois estavam vendo suas feridas e que percebiam que poderia
piorar, que deveria se cuidar e aceitar ajuda dos redutores de danos. Essa
abordagem involuntária nunca aconteceu, pois quando chegaram ao local ela
não se encontrava mais lá. Na semana seguinte, um dos redutores contou
como a própria usuária ligou para o SAMU e pediu ajuda, foi encaminhada para
um hospital onde permaneceu alguns dias internada sendo referenciada após
sua alta para o CAPS.
Para os redutores de danos no CAPS adAO, abordar nas ruas também
é um modo de acolher e podemos pensar a partir do casos apresentados que
trata-se se uma prática realizada mesmo quando não se demanda acolhida,
caracterizada por uma postura de prontidão e disponibilidade mais discreta. A
discrição característica desses modos de acolher está presente, por exemplo,
nos repertórios linguísticos diferentes nas ações de acolhimento realizadas
dentro do CAPS e nas ruas, onde a linguagem é menos técnica e mais
informal, assim como as pessoas conversam corriqueiramente.
Podemos pensar também o que a disponibilidade para estar com
usuários enquanto estes fazem uso pode dizer a respeito das possibilidades de
se conversar com alguém que está sob efeito de alguma substância. Pudemos
observar nos casos apresentados que não era necessário os usuários estarem
abstinentes do uso de drogas para participarem de uma conversa e falarem de
si num encontro com um trabalhador de saúde. Foi possível construir vínculos
de confiança, acolher e cuidar nessas situações, sem o imperativo da
abstinência como condição para que alguma mudança pudesse se produzir.
Observamos como os caminhos de alguém que está num local de uso
para frequentar o CAPS adAO será construído em alguns casos, sendo que em
outros não chegará nunca a acontecer, de modo que muitos usuários
continuarão sendo visitados pelos redutores ainda que nunca cheguem a ir até
98
o serviço. É importante destacar que os redutores estão em articulação com
outros serviços e outros redutores de diversas regiões, de modo que se um
usuário não estiver frequentando um CAPS não significa necessariamente que
ele não está sendo cuidado por uma rede.
5.5 “Amigão da ambiência”
Das atividades que acontecem diariamente no CAPS adAO, três
possuem em seu nome uma palavra em comum: plantão de acolhimento,
reacolhimento e grupos de acolhimento. Há um nítido destaque para as
atividades que se dão em torno das ações de acolhimento. No entanto, para a
equipe, essas ações não devem acontecer somente nos espaços instituídos
para esses fins, sendo o acolhimento para além de uma atividade, uma postura
e um modo de estar no encontro com os usuários. Durante os períodos
observados, a partir das entrevistas e conversas realizadas, foi possível
acompanhar ações de acolhimento acontecendo durante festas, jogos de truco
ou em conversas pelos corredores. Encontros que acontecem do lado de fora
das salas de atendimento revelaram preciosos momentos de convivência, em
que trabalhadores do CAPS, usuários e seus familiares conversavam os
assuntos mais variados. A equipe também contou perceber diferenças entre os
modos de se conversar dentro das salas de atendimento e fora destas, nos
espaços que chamam de ambiência:
Aconteciam algumas coisas no final de semana ou na família
que ele contava pra mim e dentro da sala pra outro profissional
acabava não contando. E a equipe vendo essa relação que eu
tinha com ele sugeriu que eu fosse referência dele, junto com
outro profissional. A partir desse momento nem tudo o que ele
solicitava dava pra atender (...) então teve muitas negativas pra
ele então eu senti que a partir desse momento ele recuou um
pouco. Ás vezes ia conversar e ele se calava, falava pra outro
profissional, então acabei perdendo um pouco dessa relação.
(...) tanto que ele me chamava de amigão e daí ele viu que eu
não era mais o amigão da ambiência (trecho de entrevista
realizada em 09/02/2015).
99
Para a equipe do CAPS adAO, a ambiência é o espaço onde há
convivência entre todos que circulam pelo serviço, onde acontecem encontros,
conversas informais e onde as situações se tornam mais imprevisíveis. Todos
participam da ambiência em algum momento, sendo que alguns trabalhadores
se sentem mais à vontade para conviver ali do que outros. O trabalhador nessa
função pode habitar esse espaço conversando com alguns usuários sobre
assuntos que vão desde a posição do Corinthians no campeonato brasileiro,
até compartilhar da sombra na calçada na hora de fumar um cigarro. Ás vezes
o profissional apenas circula pela casa, se mostrando disponível, outras vezes
propõe uma partida de truco ou outra atividade que reúna outras pessoas que
estão por perto, como um jogo ou uma roda de violão.
No trecho de entrevista apresentado, foi narrado um caso em que
usuário e trabalhador do CAPS tinham um vínculo mais próximo ao de amizade
quando podiam conversar informalmente. Quando este mesmo trabalhador
assumiu uma função de referência do usuário, percebeu uma significativa
mudança na qualidade desta relação: o trabalhador se viu na função de alguém
que deve dar respostas e muitas vezes de negar algumas solicitações,
enquanto o usuário já não o reconhecia mais como um amigo, alguém com
quem conversar e compartilhar acontecimentos de sua vida. O trabalhador
notou que se encontrava agora numa posição diferente, que implicava em
autorizar ou desautorizar os pedidos que o usuário lhe fazia, enquanto na
ambiência, quando não se via imbuído desse tipo de responsabilidade, era
considerado como alguém em quem se podia confiar assuntos que não eram
conversados num atendimento formal realizado dentro de uma sala. O
trabalhador relatou sentir tal mudança no vínculo de amizade como uma perda
na relação entre ambos, mas também notou como foi possível o mesmo
usuário buscar outra figura da equipe que frequentasse a ambiência e que
pudesse estar na função de amigo. Outros trabalhadores do CAPS também
relataram já ter vivenciado experiência semelhante e reconhecem a função de
amigo presente na ambiência como importante na construção dos projetos
singulares junto com os usuários:
100
Eu vejo que às vezes eles criam um certo bloqueio de não falar
algumas coisas (para o profissional de referência) e dizem “ah,
não vou falar algumas coisas senão eu não consigo outras” e
às vezes mesmo você não sendo referência e conversando
com ele ali, ele tem confiança de passar algumas informações
que fazem total sentido até para o tratamento dele (Oficina
“Modos de acolher Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
Observamos como as atividades de acolhimento como os plantões e
grupos, mesmo sendo abertos para a escuta e para a circulação da palavra,
possuem contornos pré-definidos de horários, escalas, salas, possuindo até
mesmo um repertório particular de perguntas e temas a serem conversados,
como vimos anteriormente. Já as práticas de acolhimento que aconteceram
fora desses limites apresentaram maiores variações, sendo a ambiência,
segundo a equipe, um lugar onde tudo pode acontecer.
A ambiência como prática no CAPS adAO não está dada de antemão e
tem sido frequentemente debatida em espaços coletivos de reuniões e
assembleias, onde planeja-se de que modo esse espaço pode ser habitado.
Por isso a preocupação que já houve um dia em responsabilizar um
trabalhador da escala de plantão pela gestão da ambiência em cada período do
dia. A equipe considera um espaço rico onde há mais oportunidades de se
conhecer os usuários para além de suas histórias com relação ao uso de
drogas, de conhecer os interesses que têm em outros assuntos e de se
produzir experiências de convívio no cotidiano.
Para a equipe as ações de acolhimento que se dão na ambiência são
marcadas pelos encontros informais com os usuários, através de conversas
menos imbuídas de linguagem técnica, além de um exercício de convivência na
qual os trabalhadores buscam se posicionar de modo mais lateralizado junto
aos usuários, podendo produzir vínculos mais próximos aos de amizade.
Reconhecem também que a prática da ambiência tem sido influenciada pelas
condições materiais da casa, sua localização, estrutura física e organização no
cotidiano:
101
O Lisa é um bairro que não tem uma praça, tem a Praça da
Concórdia que não tem nem árvores, é um território que
precisa de muito investimento (...) já peguei falas deles
(usuários) dizendo terem que ficar muito na calçada, essa aqui
é a única sala que pode ser usada livremente quando não tem
grupo, se é dia de chuva ou de mais frio eu percebo até mesmo
um esvaziamento porque não é um lugar confortável pra passar
o dia, então esse é um ponto que precisamos nos debruçar pra
ser mais criativos diante de um cenário desfavorável. (Oficina
“Modos de acolher Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
A casa onde está funcionando o CAPS adAO tem atualmente pouco
mais de três anos e durante uma conversa a coordenadora contou como foi
demorado e difícil o processo para encontrar uma casa adequada para o
CAPS, sendo que a mesma precisou ser adaptada em diversos aspectos para
receber melhor os usuários:
Ela me mostrou os banheiros e disse que quando se
mudaram um dos banheiros não tinha janela, o que era
muito desagradável, porque as pessoas ficavam
envergonhadas de usar e o cheiro se espalhar pela
sala de espera, então foi preciso adaptar, fazer uma
janela (trecho do diário de campo, 16/10/2014).
Uma das primeiras impressões ao conhecer as dependências do CAPS
adAO foi a sensação de pouco espaço e de se andar por caminhos labirínticos,
entre corredores estreitos e cômodos pequenos; ao mesmo tempo existe uma
atmosfera bucólica, pouca poluição sonora, muita luz natural. Somando às
portas abertas da entrada do serviço, das salas e do refeitório, o clima é de
receptividade. A equipe relatou que no início de suas atividades, um dos
primeiros grupos que foram realizados foi chamado de oficina de ambiência:
Logo no comecinho (...) não tinha nenhum objeto de
decoração, não tinha planta (...) aí a gente fez essa oficina com
o intuito de que os usuários pudessem dar a cara deles para o
CAPS, aí teve um dia que a gente foi no CEASA e fez a
compra junto com eles, com plantas que eles gostariam que
tivessem aqui (...) eles foram fazendo algumas bandejas que
tem na cozinha, os quadros que tem na recepção, até as
102
placas a gente colocou junto com eles. (Oficina “Modos de
acolher Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015)
A equipe relatou outros momentos em que houve a participação dos
usuários nas ações iniciais de cuidado com a casa, como a oficina com os
jovens que grafitaram de cores o muro do piso inferior, além de uma iniciativa
que possibilitou que um usuário realizasse um conserto de uma porta que há
muito tempo estava quebrada e atrapalhando o uso do banheiro. Nesse caso,
foi solicitado o trabalho de reparação para o próprio SSCF e diante da
demasiada demora da instituição em realizar o serviço um usuário ofereceu-se
para ajudar a consertar, processo que segundo a equipe se deu da seguinte
maneira:
Ele falou (o usuário) “se você tiver tais e tais ferramentas eu
consigo consertar” e achamos que fazia muito sentido, ele ficou
muito feliz, a referência dele acompanhou o processo. Tinha
um receio de como isso retornaria, se ele tinha a expectativa de
uma remuneração pelo trabalho, mas eu acho que tudo que
você implementa, quanto mais coletivo é o caminho mesmo, a
clínica mesmo foi dando diretrizes do que era possível.(...) Ele
se dispôs a ajudar e isso fez muito sentido pra ele, de se
apropriar do espaço também. (Oficina “Modos de acolher
Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
A oficina de ambiência não acontece mais e a equipe percebe que as
ações de cuidado com a casa estão cada vez menos frequentes, assim como a
participação dos usuários nesse processo. Alguns projetos que foram iniciados
não chegaram a ser concluídos e há uma compreensão de que o SSCF não
possui as mesmas condições de outrora para cuidar de seus serviços com
recursos próprios, restando ao próprio CAPS empreender de maneira mais
autônoma consertos, pequenas reformas e trabalhos de decoração da casa.
É notável que a participação dos usuários em tais atividades seja
tomada como parte dos projetos terapêuticos singulares, de modos que estes
têm sido construídos não apenas em torno da problemática de cada usuário
com relação ao uso de drogas, mas também em torno da cogestão da
convivência e da construção de propostas coletivas. Atualmente as práticas de
103
acolhimento na ambiência do CAPS adAO têm se dado de modo menos
orientado em torno de alguma proposta ou atividade. Por isso o que se destaca
é a postura de acolhimento, os modos como cada trabalhador se posiciona
diante do exercício de convivência ao mesmo tempo em que mantém uma
atitude de disponibilidade e prontidão para acolher situações inesperadas ou
que necessitam de um cuidado imediato.
5.6 Acolhimento-conversa 39
Alguns trabalhadores da equipe do CAPS adAO não estão presentes na
escala do plantão de acolhimento e durante o período pesquisado não
apresentaram responsabilidades pré-definidas quanto ao seu papel no
acolhimento aos usuários. São os casos das funções de recepcionista, auxiliar
de higiene e assistente de farmácia. No entanto, ao perguntarmos você realiza
acolhimento dos usuários?, a resposta unânime foi sim, com a justificativa de
que o ato de conversar é um modo de se acolher em qualquer lugar ou
circunstância e ao mesmo tempo um modo de colher informações que podem
ser relevantes na construção de um projeto terapêutico singular:
(...) “porque numa conversa à toa eles falam muito e a gente
acaba coletando muita coisa”, ela disse. Contou que param
muitas pessoas naquela janela só para conversar. (trecho de
diário de campo, 15/03/2015)
Perguntei por que achava que o seu trabalho tinha a ver com o
acolhimento: “porque a gente conversa muito com eles (os
usuários), muito mesmo... e isso faz bem pra eles.” (trecho de
diário de campo, 10/04/2015).
Nas situações de acolhimento que foram acompanhadas durante os
plantões, em grupos ou na ambiência algum tipo de conversa estava presente
e as ações de conversar têm possibilitado que todos os trabalhadores se
39 Em referência à noção de “acolhimento-diálogo” discutido por Teixeira (2008). Aqui, a
palavra “diálogo” foi substituída pelo termo “conversa”, conforme apareceu nas falas dos
trabalhadores que participaram da pesquisa.
104
reconheçam na função de acolher os usuários. Tal noção também apareceu na
fala de uma usuária, quando num encontro na ambiência perguntou a respeito
da pesquisa que estávamos realizando. A pergunta foi respondida e em
seguida lhe foi perguntado se ela sabia o que era acolhimento. A mesma
respondeu: sim, é quando a gente conversa e desabafa né?. Minutos antes
desse pequeno diálogo, a usuária estava debruçada no balcão da recepção
conversando com uma trabalhadora da equipe envolvida em atividades
administrativas:
(...) aquela usuária cujo acolhimento foi acompanhado na
semana passada veio em nossa direção, abriu um sorriso para
ela (trabalhadora na recepção) e logo começaram a conversar.
Ela está no leito-noite há dois dias e começou a contar de sua
vida e dos problemas que vêm enfrentando num tom carinhoso
que teve a reciprocidade da trabalhadora da equipe. (trecho de
diário de campo, 22/02/2015)
Na situação observada, a usuária chamou a trabalhadora pelo diminutivo
“inha” de seu nome, se aproximou sorridente e num tom afetuoso. A
trabalhadora respondeu de imediato com um largo sorriso e passou a escutar
as histórias que lhe eram contadas. Tais histórias envolviam longas internações
em comunidades terapêuticas, processos judiciais envolvendo a guarda de
seus filhos, violência doméstica e dificuldades para lidar com tarefas cotidianas.
Fragmentos de uma história de vida marcada por situações de sofrimento e dor
eram contadas para alguém em quem a usuária claramente tinha um vínculo
de confiança e sentia a reciprocidade de um afeto carinhoso. Ao final, de modo
leve e em meio a risadas, a usuária pediu uns conselhos para lidar melhor com
seus familiares.
Esse diálogo foi rápido, tendo durado em torno de dez minutos, mas
marcante quanto à postura da trabalhadora em acolher as histórias e o pedido
de ajuda que a usuária lhe fizera. Mesmo às voltas com tarefas administrativas,
em meio a papéis, computador, listas e outros instrumentos de trabalho, a
trabalhadora ofereceu escuta atenta durante toda a conversa, devolvendo os
sorrisos que a usuária lhe oferecia e desse modo assuntos complexos puderam
ser tratados de forma bem-humorada. Ao final, quando a usuária lhe pediu
105
conselhos, a trabalhadora lhe fez algumas perguntas a respeito do que já havia
sido tentado anteriormente, demonstrando interesse em respondê-la de alguma
forma, tendo em seguida orientado a mesma a conversar com sua referência
também.
Para Teixeira (2008), quanto mais se conversa num serviço de saúde,
mais oportunidades terão usuários e trabalhadores de frequentar novos
encontros, ampliar seus vínculos e criar novas respostas para as situações que
enfrentam. Pudemos analisar o caso do usuário que ao ver seu amigão da
ambiência ocupando uma nova posição de referência, passou a lhe solicitar
apenas aquilo que entendia que seria autorizado, mas encontrou em outra
figura da equipe a possibilidade de reconstruir um vínculo mais próximo ao de
amizade. Ou ainda, o caso da usuária que a equipe de redutores de danos não
conseguiu abordar na rua, mas conseguiu conversar com todas as outras
pessoas que frequentavam o local de uso, que por sua vez passaram a
conversar com a colega a respeito de seu cuidado e lhe contar que os
redutores estiveram ali. Em ambos os casos podemos destacar a produção de
novos encontros e ampliação de uma rede de relações, ou ainda, uma rede de
conversações produzida por um modo de se acolher conversando: um
acolhimento-diálogo (Teixeira, 2008).
Conforme discutimos anteriormente as conversas que se dão nas
práticas de acolhimento no CAPS adAO acontecem de modos diferentes a
depender do tipo de relação que se estabelece entre um trabalhador e um
usuário. Dentro das salas de atendimento a conversa tende a ser conduzida
pelo trabalhador através de perguntas e por um olhar técnico especializado; na
ambiência, trata-se de assuntos mais corriqueiros e com linguagem informal;
na rua, usam-se gírias e a conversa geralmente acontece enquanto um usuário
ou grupo de usuários está usando drogas ou sob efeito do uso.
Se os repertórios linguísticos são utilizados de modos diferentes nas
conversas, havendo usos diversos para a noção de acolhimento, observamos
uma prática corporal comum: uma postura acolhedora durante a conversa,
caracterizada por escuta atenta, demonstrações de interesse por aquilo que o
106
usuário está contando, o uso do tom de voz baixo e afetuoso, linguagem
acessível e a preocupação com os vínculos que se constroem com os usuários.
Ao discutir o tema do cuidado no campo de álcool e outras drogas,
Ramminger (2015) propõe ampliarmos a noção de substância, usualmente
utilizada como sinônimo de objeto, substância química ou psicoativa. A autora
destaca que existem outros significados dicionarizados para esse termo, como
por exemplo, para significar algo como necessário, ou até mesmo
indispensável, e nos convida a pensar em outros aspectos presentes no
cotidiano dos trabalhadores que atuam nesse campo, para além do objeto
droga:
(...) no âmbito das políticas públicas de saúde mental, também
se torna necessário algum grau de substantivação do trabalho
em saúde com usuários de drogas, ou seja, de descrição e
análise daquilo que os trabalhadores estão fazendo em seu
cotidiano assistencial: eles escutam, observam, telefonam,
conversam, cuidam, acompanham, encaminham, acolhem,
internam, prescrevem medicamentos, registram procedimentos
em documentos, constroem entendimentos e acordos
provisórios coletivamente e o que mais? (RAMMINGER, 2015,
p.14).
A autora destaca a importância de olharmos para uma multiplicidade de
ações que são realizadas quando se pretende atuar no sentido da produção do
cuidado integral e não somente na perspectiva da doença e da abstinência do
uso de drogas como condição para o tratamento. A expressão “e o que mais?”,
nos convida a considerar toda uma infinidade de ações possíveis de serem
criadas, de um potencial criador, inventivo presente nessa lógica do cuidado.
Procurando em outras fontes encontramos mais significados para o
termo substância e gostaríamos de destacar um deles para prosseguir em
nossas análises. Trata-se do uso desta palavra para adjetivar a parte mais
nutritiva dos corpos, aquilo que tem força, robustez e vigor40. A partir das
40 Disponível em http://www.dicio.com.br/. Acessado em 24/11/2015.
107
situações que acompanhamos e analisamos neste trabalho, podemos afirmar
que diferentes modos de conversar têm potencial para criar uma diversidade de
modulações nas práticas de acolhimento no CAPS adAO, se configurando
como ações que nutrem e multiplicam as relações que se dão no cotidiano,
fortalecendo projetos, vínculos e produzindo assim mais substâncias para o
trabalho no campo de álcool e outras drogas.
As conversas que se dão no cotidiano também têm sido consideradas
pela equipe do CAPS adAO como estratégias para lidar com a circulação e
consumo de drogas no serviço. Atualmente são aproximadamente 400
usuários em processo de acolhimento41, além de novos usuários e seus
familiares que buscam o CAPS todos os dias. Trata-se de um local com grande
circulação de pessoas que tem algum tipo de relação problemática com drogas
e que chegam até ali buscando alguma resposta. O CAPS adAO tem operado
em seu cotidiano de trabalho com as práticas de acolhimento como
norteadoras do cuidado de forma a promover o acesso dos usuários às práticas
que envolvem escuta, convivência, respeito pelos diferentes modos de vida e
construção de vínculos e projetos.
Ao longo da pesquisa empírica pudemos acompanhar situações que
envolveram uso e porte de drogas por parte dos usuários dentro das
dependências do CAPS e tivemos a oportunidade de discutir esses temas junto
aos trabalhadores em conversas informais, nas entrevistas e durante a oficina
que foi realizada em junho de 2015. As questões que surgiram expressaram
que nesses casos as abordagens têm se dado com o intuito de conversar,
escutar e incluir o usuário nos desdobramentos dessas situações. Atualmente
existem combinados que delimitam algumas atitudes dentro das dependências
do CAPS adAO:
A gente não chama de regra, a gente chama de acordo, porque
a gente ao longo da construção do CAPS procurou fazer a
41 Segundo informações relatadas pela equipe, os usuários em processo de acolhimento são
aqueles que possuem um prontuário aberto na unidade e algum tipo de projeto terapêutico no
CAPS adAO, independente de sua frequência no serviço.
108
construção de acordos no espaço da assembleia e aí na
medida do possível quando esses acordos eram feitos, estava
com uma dificuldade a gente retomava, tanto na assembleia
quanto nas rodas. (...) A gente combina essas três situações: o
uso de substâncias, violência e furtos, porque só tá liberado o
uso da medicação e do tabaco. (Oficina “Modos de acolher
Antônio Orlando”, realizada em 09/06/2015).
O espaço da assembleia citado no trecho tem acontecido semanalmente
às terças-feiras no período tarde, na sala grande no piso inferior, com
participação predominante de usuários e trabalhadores, embora seja aberto
para familiares e comunidade. Segundo a equipe, é nesse momento que
podem ser discutidas questões referentes ao cotidiano no CAPS, planejamento
de eventos, reivindicações variadas. É considerado um momento onde todos
podem ter voz ativa, se manifestar democraticamente e há um cuidado por
parte da equipe em se posicionar de modo lateralizado junto aos usuários,
propondo construções coletivas de projetos em comum.
O trecho apresentado refere alguns limites para circulação de drogas no
serviço. Há uma preocupação da equipe em enfatizar que não utilizam em seu
repertório linguístico a palavra “regra” e que os combinados com relação a
essas situações têm sido construídos entre trabalhadores e usuários nas
assembleias. As rodas citadas se referem às rodas de conversa, estratégia
encontrada para lidar com situações geralmente relacionadas a violações em
algum dos acordos e que a equipe avalia a importância de serem conversadas
no momento em que acontecem, sem a necessidade de aguardar a próxima
assembleia para poder dialogar a respeito.
Para os trabalhadores as rodas têm um papel importante na construção
dos combinados acerca da circulação de drogas no CAPS e de outras
situações, no entanto percebem que existe um risco dessa estratégia perder
sua potência nos períodos em que acontece com maior frequência. No início do
funcionamento do CAPS adAO, as rodas aconteciam esporadicamente e tinha
um potencial instituinte de criar novos acordos para a convivência no serviço.
Com o tempo, as rodas passaram a se tornar mais frequentes, devido às
constantes situações consideradas como violações dos acordos coletivos.
109
Atualmente a equipe acredita que a estratégia das rodas de conversa passa
por um processo de naturalização de seus sentidos, com repetição dos temas
abordados, dos acordos pactuados e há sensação de desgaste por parte dos
trabalhadores. Como efeito, têm acontecido menos rodas de conversas com os
usuários no CAPS adAO:
Minha impressão é que os fatos passaram a ser tão frequentes
que perdeu o sentido de fazer roda toda hora, porque é uso
aqui dentro, as intercorrências, as agressões (...) estava tão
comum que isso foi tendo um esgotamento (...) porque fazer
roda é uma caminho que nós escolhemos, de construir com
eles, mas é bastante trabalhoso né, aquela situação em que o
usuário ta tomando um corote aí senta todo mundo do serviço,
eu também fiquei com essa sensação que isso tava difícil pra
manejar. (Oficina “Modos de acolher Antônio Orlando”,
realizada em 09/06/2015)
A equipe acredita que uma das razões para ter havido um aumento na
frequência das rodas de conversa está no caráter provisório dos acordos
pactuados. Para os trabalhadores, tal provisoriedade expressa os próprios
processos dinâmicos vivenciados no cotidiano do CAPS adAO, o que torna a
proposta das rodas complexa, mas também possibilitou maiores flexibilizações
nos combinados, que não são definitivos e estão abertos para serem revistos
ou modificados a qualquer momento. Esta característica dinâmica na
construção dos combinados, que leva em consideração as singularidades das
situações que se dão num cotidiano sempre em movimento, parece seguir a
mesma lógica que se apresenta na construção dos projetos terapêuticos
singulares. No CAPS adAO, conforme exposto anteriormente, os PTS são
discutidos constantemente entre as mini-equipes e entre os profissionais de
referência e usuários, de modo que estão sempre em negociação, nunca
definitivos ou inalteráveis.
110
5.7 Acolhimento e indisciplinas
A equipe identificou que no processo de construção de acordos para
lidar com a circulação de drogas no serviço, muitas vezes os próprios usuários
sugerem medidas repressivas e punitivas como respostas para essas
situações, como expulsão do serviço, denúncia à polícia e revista de pertences
pessoais. Tais práticas, comumente acionadas em ambientes de internações
em clínicas psiquiátricas, comunidades terapêuticas e também no sistema
carcerário, às vezes aparecem maciçamente no discurso dos usuários do
CAPS adAO, mesmo em espaços de caráter democrático como assembleias e
rodas de conversa. Tais referências que os usuários fazem de medidas
repressivas denunciam os modos como o tema das drogas ainda é tratado de
forma hegemônica no Brasil, entre instituições psiquiátricas, religiosas e de
justiça, que operam pelo ideal da abstinência do uso de drogas de modo
imperativo, através do controle e supressão das diferenças.
Para Souza (2012) a articulação entre essas três instituições tem
mobilizado historicamente através de seus aparatos disciplinares a produção
da imagem do usuário de drogas imediatamente associada à imagem de um
sujeito doente, imoral e criminoso, condenado perpetuamente a ser vigiado
nesta condição. Outro efeito dessas lógicas pôde se expressar durante uma
conversa com uma das trabalhadoras responsáveis por auxiliar os usuários na
hora do almoço no CAPS adAO:
Ela contou que acompanha o almoço todos os dias e que
geralmente é tranquilo, em torno de 15 pessoas. Disse que às
vezes perguntam a ela: “por que enquanto a gente tá
almoçando você fica aqui?” Ela responde: “porque alguém
pode derrubar alguma coisa e precisar de ajuda, ou alguém
pode até passar mal, engasgar e precisar chamar alguém da
equipe para socorrer”. Acho que às vezes eles pensam que a
gente tá aqui par ficar vigiando eles, já me perguntaram se a
gente fica lá pra ver como é que eles comem como eles se
comportam, mas não é isso. É pra ajudar com alguma coisa se
eles precisarem. (trecho de diário de campo, 19/04/2015).
111
Por isso, mesmo considerando os processos de construção de acordos
mais trabalhoso e complexo do que trabalhar com regras rígidas, a equipe
insiste no compromisso com a inclusão dos usuários na criação de arranjos
coletivos e aposta no diálogo para produzir respostas diferentes, não punitivas
e que convidem todos a lidar no caso a caso com as situações que envolvem a
circulação de drogas no CAPS:
A minha impressão é a de que é muito mais fácil ter uma regra,
que a gente tinha menos conflitos entre nós enquanto a gente
conseguia ter uma regra mais rígida e as condutas eram as
mesmas independente da situação ou do usuário.(...) mas a
gente não trabalha dessa forma, trabalhamos com projeto
terapêutico singular e às vezes um sujeito que fez uso aqui
dentro vai ter indicação de ir embora e outro vai ter indicação
de não ir embora e aí que está o desafio e a delicadeza dessa
clínica. Tanto nós profissionais nos debruçarmos nessas
diferenças como nessa construção coletiva, porque isso já
aparece na fala deles. (Oficina “Modos de acolher Antônio
Orlando”, realizada em 09/06/2015)
A equipe reconhece que ter regras rígidas torna o seu trabalho menos
complexo, pois basta aplicar a regra independente das múltiplas variáveis em
jogo em cada situação. A aplicação de regras, portanto obedeceria sempre o
mesmo inflexível e curto caminho. Os trabalhadores afirmaram atuar de outros
modos, a partir das singularidades, das variações ou do que se diferencia em
cada circunstância, considerando atualmente como toleráveis algumas práticas
relativas à circulação de drogas que antes eram respondidas com maior
rigidez. Os efeitos das flexibilizações podem ser percebidos nos modos de se
acolher os usuários:
(...) e eu percebo aqui no nosso CAPS usuários que só vêm
intoxicados, por exemplo, o X. eu nunca vi o X. sem estar sob
efeito de substâncias (...) o dia que ele não estava intoxicado
tinha alguma coisa de errado, ele tava mais angustiado, foi
aquele dia do futebol. Foi quando ele perdeu a referência, ficou
mal, ele chegou sóbrio. (Oficina “Modos de acolher Antônio
Orlando”, realizada em 09/06/2015)
112
Este caso, tomado pelos trabalhadores durante a oficina para analisar
situações em que ocorrem flexibilizações nos combinados, refere-se a um
usuário que frequenta o CAPS adAO diariamente, que convive na ambiência,
participa de atividades, chama a todos pelo nome e que também é conhecido
pelas pessoas que circulam pelo serviço. Não são raros os dias em que chega
alguém sob efeito do uso de álcool ou que faz uso dentro das dependências do
CAPS de forma discreta, sendo percebido quando já está demasiadamente
ébrio. Foi discutido durante a oficina como anteriormente os trabalhadores se
sentiam incomodados e inclinados a limitar de alguma forma a circulação do
usuário mencionado no serviço dessa maneira. No entanto, a partir de
processos de vinculação que se deram entre trabalhadores e usuário, foi
possível perceber que o mesmo não deixava de ir ao CAPS, mostrava
interesse nas festas, jogos de truco e conversas na ambiência e que chegar
alcoolizado era o modo como ele podia acessar o cuidado no CAPS adAO, já
que nunca se apresentara de outro modo anteriormente. A equipe então
passou a flexibilizar alguns acordos para atender às singularidades expressas
nesse caso, até que um dia esse usuário se apresentou sóbrio.
Num modelo de tratamento tradicional pautado pelo paradigma da
abstinência, este seria um dia para se comemorar o afastamento que se deu
entre o usuário e a droga. Entretanto, a equipe do CAPS adAO ao notar um
movimento diferente produzido pelo mesmo, se interessou, escutou e percebeu
que havia ali algo a ser cuidado, para além do uso abusivo de álcool. Ele
possuía um vínculo muito potente com um trabalhador do CAPS que acabara
de deixar sua função, o que o impactou ao ponto de se produzir um movimento
totalmente inédito aos olhos da equipe, que por sua vez passou a acolhê-lo de
outros modos.
Algumas flexibilizações de combinados puderam ser acompanhadas
durante a pesquisa empírica. Certa vez durante uma conversa na sala de
equipe uma trabalhadora contou que iria conversar com um usuário de sua
referência que estava portando drogas dentro do serviço e deixou a mesma
cair, sendo descoberto. Segundo ela, o objetivo dessa conversa era negociar
113
com ele o que poderia ser feito a respeito de tal situação, que violava um dos
combinados pactuados coletivamente:
No caso do usuário que portava drogas, conseguiram negociar
que ele poderia esconder ou guardar a droga fora do CAPS
para buscar depois (pois estava indo para o leito noite) e ele
próprio disse que havia parado de fumar crack e estava só
fumando maconha então achava que a equipe estava errada
em repreendê-lo. (trecho de diário de campo, 23/01/2015)
Neste trecho podemos observar duas alternativas propostas para se
lidar com essa situação: esconder ou guardar a droga em algum local fora das
dependências do CAPS adAO. Em nenhum momento lhe foi solicitado
descartar um objeto que lhe pertencia, ou imposta uma punição. O usuário
optou por esconder a droga num local dos portões para fora onde somente ele
saberia, para que pudesse busca-la quando retornasse do leito-noite. É
interessante notar como o mesmo intervém nessa situação, questionando a
equipe ao dizer que o estavam repreendendo numa situação que poderia ser
olhada pelas lentes da redução de danos com a substituição do crack pela
maconha, droga que considera ter efeitos menos prejudiciais para si. Neste
caso, a conversa se deu em tom de negociação para pactuar um novo acordo,
ao mesmo tempo em que se produziu um questionamento, abrindo espaço
para a própria equipe analisar sua posição.
Durante a conversa em que a trabalhadora relatou esse caso, lhe foi
perguntado se eram comuns as situações em que se negociam a circulação de
drogas dentro do CAPS adAO. A mesma respondeu que os combinados
pactuados sempre são retomados, mas seus propósitos são analisados no
caso a caso, pois os acordos feitos não servirão a todos da mesma maneira.
Diferentemente da regra, os combinados não são aplicados uniformemente,
mas são discutidos enquanto contratos acordados em coletivo e estão sujeitos
a serem modificados quando se mostrarem insuficientes. Outra profissional da
equipe ao escutar se aproximou para contar que certa vez um usuário fez uso
de crack na sua presença, enquanto era acolhido individualmente dentro de
uma sala:
114
No final da manhã a equipe me contou alguns casos
interessantes. Em um deles, o usuário usou crack dentro da
sala de atendimento, deu uma tragada. A trabalhadora que
estava com ele disse que fez sentido no contexto, que foi uma
intervenção dele com a equipe. (Trecho de diário de campo,
23/01/2015).
Mas de que maneiras é possível considerar como uma intervenção o ato
de um usuário fazer uso de crack durante um atendimento? Essa pergunta
pôde ser realizada posteriormente em uma das entrevistas realizadas, na qual
o caso foi narrado com mais detalhes. Trata-se de um rapaz que ia ao CAPS
adAO somente nos dias que ele escolhia, independente do que havia sido
combinado com sua referência. Esta, ao perceber tal dinâmica passou a se
colocar prontamente disponível para acolhê-lo quando o via entrando pelo
portão, independente se estava no plantão de acolhimento ou não. Muitas
vezes ela não compreendia o que ele lhe dizia, seu discurso era confuso e às
vezes falava em outras línguas de modo ininteligível; ele por sua vez,
tampouco solicitava para conversar e nunca mencionava qualquer tipo de
problema ou sofrimento relacionado ao uso de crack que fazia. Geralmente
apresentava-se sujo, com a barba por fazer e sempre pedia para tomar banho,
o que era autorizado. Pouco a pouco foi se dando um processo de vinculação:
(...)a dinâmica que se instaurou foi: ele vem, pede uma
conversa comigo ou eu chamo ele pra uma conversa (...) aí a
gente faz uma conversa que não dura cinco minutos, ele pede
um banho, aí ele toma um banho e pede pra conversar depois
do banho. Então tem sido assim. Não tem dia certo pra ele vir,
não tem hora certa. (trecho de entrevista realizada em
30/11/2015)
A trabalhadora contou como mesmo em meio a imprevisibilidade que
envolvia seu retorno ao CAPS, os encontros que aconteciam seguiam sempre
esse mesmo compasso: chegar, cumprimentar, tomar banho e conversar. A
postura de acolhimento estava sempre ativada, pois não dependia da
organização mais rígida da escala do plantão para a acolhida acontecer. Até
um dia em que ele, respondendo às suas tentativas de conversar acerca do
uso de crack, propôs algo diferente:
115
(...) ele começou a ter uma postura assim “então vamos falar
de drogas, é de drogas que a gente tem que falar, então eu vou
falar de droga. Isso é o crack, isso é a piteira”, só que ele só
me mostrava (a droga no seu bolso) e enquanto ele me
mostrava eu ia falando “ah você tá usando, tá usando quanto,
você usa como, usa com quem, usa que horas, o que sente
quando usa?”, aí ele começou a dizer que ele gostava de vir
aqui intoxicado porque ele se acha uma pessoa muito séria,
calada, sem graça sem o uso da droga (...) contou inclusive
que usava o crack escondido durante o banho pra conseguir
conversar comigo depois. (trecho de entrevista realizada em
30/11/2015).
É importante destacar que até esse momento o usuário pouco falava de
si mesmo ou de outros assuntos. Por isso sua referência escutou tal atitude
como um movimento diferente produzido pelo usuário e passou a demonstrar
seu interesse por aquilo que estava lhe mostrando, ainda que estivesse sendo
violado o combinado de não portar drogas dentro das dependências do CAPS
adAO. A partir de então, todas as vezes que o usuário ia ao CAPS, a procurava
para contar um pouco mais do que ele sabia sobre drogas e também para
mostrar mais algum item que utilizava durante o consumo. Com isso, outros
assuntos puderam ser conversados, até que um dia enquanto mostrava os
objetos que havia trazido, preparou um cachimbo e acendeu dentro da sala de
atendimento:
(...) eu fui percebendo que ele tava montando ali e eu pedi “não
fuma aqui por favor” e ele tava muito desorganizado naquele
dia e ele acendeu ele deu um trago. E eu repeti, ”assim não vai
dar pra gente continuar conversando”, ele falou, “não, só foi
essa” e guardou. Aí em seguida ele falou “isso é pra você
conseguir continuar conversando comigo porque agora você
sabe o que é o crack e como que fuma” (...) como se naquele
momento eu estivesse partilhando da mesma experiência. (...)
Em seguida eu interrompi a conversa, oferecendo para ele um
café, ele aceitou, a gente desceu e aí eu não tava entendendo
nada direito do que ele tava falando, frases incoerentes,
falando em outra língua... aí eu perguntei se eu podia chamar a
psiquiatra pra conversar junto, ele aceitou, eu chamei ela, a
116
gente ali tomando café e conversando, ele aceitou uma
medicação. (trecho de entrevista realizada em 30/11/2015)
No caso apresentado, a profissional de referência acompanhou durante
aproximadamente dois anos um usuário que frequentava o CAPS adAO fora
dos horários combinados, que não participava de grupos e atividades
oferecidas, que pouco mostrava interesse em conversar e que chegava no
serviço sob efeito de ou portando drogas, chegando a revelar que
frequentemente fazia uso dentro das dependências do CAPS enquanto tomava
banho. A trabalhadora relatou que durante todo esse tempo, discutiu o caso em
equipe e que não havia um consenso geral com relação aos modos como vinha
conduzindo a situação, mas que mesmo assim encontrou apoio dos colegas,
que pouco a pouco também apostaram na produção de um vínculo de
confiança a ser construído a partir desse modo de acolher.
Schmidt (2013) ao acompanhar as práticas de acolhimento em um
Centro de Saúde Escola na cidade de São Paulo (SP) analisou os modos como
alguns usuários burlam certas exigências da instituição para conseguir acessar
o cuidado num contexto onde há escassez de recursos. Para terem
respondidas suas necessidades de saúde com maior agilidade, falsificam
receitas, escondem cartões de agendamento, omitem ter faltado em alguma
consulta. A autora percebeu que tais atitudes comumente encaradas pela
equipe como desobediência, quando avaliadas no caso a caso podem
expressar as maneiras como os usuários se apropriam ativamente daquilo que
lhe é ofertado, criando caminhos alternativos para acessar o cuidado. Tais
“anti-disciplinas” ou “indisciplinas” quando analisadas pelos trabalhadores em
suas formas singulares, forçam certos aparatos burocráticos, produzindo
flexibilizações na organização dos serviços. Desse modo, é possível considerar
tais indisciplinas como um modo de os usuários resistirem à burocratização do
acesso ao cuidado no cotidiano interferindo na gestão dos processos de
trabalho e insistindo na criação de novos caminhos para a resolução de suas
necessidades (SCHIMIDT, 2013).
A partir do trecho de entrevista narrado, observamos como durante todo
o tempo foi possível manter um diálogo e continuar negociando os próximos
117
passos a serem dados: a interrupção do atendimento, o convite para um café e
a introdução de um novo membro da equipe nesta relação, ampliando uma
rede de conversações. A trabalhadora relatou ter percebido um fortalecimento
do vínculo entre ambos após essa situação e uma ampliação no repertório das
conversas que se dão, possibilitando uma continuidade na co-construção de
um projeto terapêutico singular do usuário no CAPS adAO.
Vimos como no CAPS adAO, embora existam combinados que limitam a
circulação de drogas no serviço, estas situações são cotidianas. No entanto,
diferentemente das lógicas da regra e da punição, a equipe têm atuado com
postura acolhedora, apostando nas relações singulares que se dão entre
usuários e trabalhadores e na produção de novas respostas pela via do diálogo
e da construção de vínculos de confiança. Com relação aos casos
apresentados e tomados nesse estudo como analisadores, é importante
destacar que os trabalhadores apostam nas flexibilizações de combinados
quando contribuem para a singularização do cuidado, devendo se construir
junto com cada usuário um caminho diferente a ser trilhado. Assim, mesmo
indisciplinas podem acontecer de modo cuidadoso, produzindo sentidos dentro
de um projeto terapêutico e podendo ser acolhidas imediatamente quando
ocorre algum imprevisto. Outro aspecto que merece destaque é o diálogo
constante que há entre os trabalhadores, de modo que mesmo quando não há
um consenso em relação à condução dos casos, é possível compartilhar as
experiências, os seus efeitos e ter o acolhimento dos próprios colegas em
momentos de maior dificuldade.
Neves e Heckert (2010) nos convidam a pensar o acolhimento em saúde
a partir da questão do acesso, nos provocando com as perguntas: “como e o
que temos acolhido em nossas práticas de cuidado?” e “o que se quer acolher
nos processos de produção de saúde?” (p.154), propondo a superação do
entendimento a respeito do acesso numa dimensão exclusivamente espacial,
administrativa ou relativa a atitudes voluntaristas por parte dos trabalhadores.
As autoras referem que tais aspectos tendem a apresentar um viés moral
diante dos usuários, que por sua vez irão considerar o acolhimento como uma
etapa a ser vencida ou como um favor que está lhe sendo concedido.
118
O que pudemos observar com relação às práticas de acolhimento que se
dão no CAPS adAO, são processos mais complexos, que vão além de
organizar um fluxo organizacional ou da boa educação, convocando os
trabalhadores a atuarem de maneira implicada, interrogando a si próprios no
encontro com os usuários. Desse modo, o que se acolhe por entre fichas e
prontuários, portas e portarias, almoços e cafés está necessariamente
relacionado aos modos como cada trabalhador lida de modo único e particular
com as situações que lhe são apresentadas, com suas escolhas, suas
experiências e ainda, com os impasses que se produzem no campo das
drogas.
Trabalhar de modo tão próximo à movimentos de vida classificados e
julgados hegemonicamente como imorais, patológicos e criminosos é parte do
que se vivencia no cotidiano do serviço, pois são muitos os usuários que
procuram o CAPS adAO reproduzindo discursos de impotência, doença e culpa
tal como reverberados pela mídia e pelas instituições por onde já passaram.
Nesse sentido, trabalhar a partir de uma lógica curativa ou prescritiva só
permitiria acolher aqueles que se apresentassem de acordo com as normas e
exigências instituídas, muitas das quais o CAPS adAO e seus trabalhadores
também estão sujeitos a responder, numa sociedade onde a circulação de
muitas drogas é ilegal. Nessa lógica, o acesso espacial poderia ser garantido,
assim como a boa educação, porém estariam inviabilizadas expressões mais
singulares de vida, aquilo que diferencia cada sujeito. Aquilo que se mostra em
sua potência transformadora, estaria barrado e excluído educadamente em
nome do que já está estabelecido.
Compartilhar do cigarro após o almoço, usar um palavrão durante uma
conversa, pixar um muro, preocupar-se quando alguém aparece sóbrio, ceder o
microfone numa festa para alguém que está alcoolizado e tem algo a dizer,
testemunhar cenas de uso, ser indisciplinado junto. E por entre tudo isso,
também seguir combinados, planejar processos de trabalho, ter horários, seguir
protocolos. Tais situações observadas no CAPS adAO de perto, ou narradas
pelos trabalhadores, nos mostraram modos diversos de acolher imbuídos de
119
responsabilidade, de criatividade, dando mais substâncias para o cuidado
produzido a partir do diálogo e da cogestão no cotidiano.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acompanhamos a equipe do CAPS ad Antônio Orlando nas ações de
acolhimento realizadas junto aos usuários do serviço. Encontramos as portas
abertas para observar, perguntar e conversar acerca dos diferentes modos
como tais práticas acontecem no dia a dia e seus efeitos na produção do
cuidado dos usuários. Observamos os modos como o acolhimento vai se
desenhando tanto como metodologia de trabalho como para o arranjo
organizacional do serviço, num modelo híbrido entre as tecnologias de cuidado
leve-duras e leves.
O acolhimento se apresentou como eixo norteador do cuidado no CAPS
adAO, em torno do qual se realizam atividades como grupos de acolhimento,
escuta inicial de novos usuários, seus familiares, abordagens de redução de
danos e rodas de conversas para acolher determinadas situações no coletivo.
No entanto a abertura que nos foi dada pela equipe para a realização da
pesquisa nos conduziu por caminhos com múltiplas entradas, possibilitando um
olhar ampliado para as práticas de acolhimento que se dão para além dos
espaços ou funções instituídas para isso. Chamou-nos muito a atenção a
presença de uma postura acolhedora por parte dos trabalhadores em
momentos em que aparentemente nada estava acontecendo, como em
conversas de corredor, bate-papos na janela da farmácia ou um mero jogo de
truco na ambiência.
A postura de acolhimento esteve presente na atuação de todos os
trabalhadores com quem conversamos e cada um deles se reconheceu de
algum modo na função de acolher, independente de seu núcleo profissional ou
cargo. No CAPS adAO o que tem tornado as práticas de acolhimento múltiplas
é o conjunto de diferentes funções sendo acionadas, somadas aos estilos e
experiências de cada trabalhador, além da disponibilidade em acolher aquilo
que difere e se singulariza nos encontros com os usuários.
O fato de os trabalhadores terem responsabilidades distintas com
relação ao acolhimento dos usuários provoca a equipe a discutir as diferenças
121
entre os núcleos profissionais, abalando certas barreiras disciplinares.
Conforme nos foi contado no decorrer da pesquisa, a participação de alguns
trabalhadores na composição do plantão de acolhimento e a coordenação dos
grupos de acolhimento são temas frequentemente evocados em reuniões de
equipe e de planejamento. Acompanhamos casos em que não foi possível a
inclusão de alguns profissionais nessa função, assim como outros casos em
que isso aconteceu. Tais situações foram debatidas e acordadas entre todos
da equipe, o que nos indica que tais distinções entre funções não produzem
fragmentações nos processos de trabalho. As diferenças nos modos de acolher
não nos indicaram uma hierarquização entre os núcleos profissionais, mas a
valorização das diferentes formas de se acolher os usuários.
A noção de função diacrítica forjada no campo da Psicoterapia
Institucional discute a importância das distintividades em um serviço de saúde
mental (MOURA, 2003). O diacrítico nessa perspectiva refere-se àquilo que
produz distinções que possibilitam um olhar mais atento para os mínimos
acontecimentos, evitando que as situações mais corriqueiras se tornem
indiferentes aos olhos da equipe. Esta, por sua vez, se tornará mais sensível
aos processos de singularização e às expressões das diferenças, evitando sua
diluição e invisibilização em meio ao cotidiano institucional.
A equipe do CAPS adAO tem engendrado condições para que o
acolhimento opere uma função diacrítica na produção do cuidado dos usuários:
as portas abertas, a livre circulação dos usuários, a convivência, os diferentes
modos de conversar, as diferentes possibilidades de vínculos que se
produzem, a multiplicidade de redes de conversas que se conectam, as
flexibilizações de acordos e a constante preocupação em discutir os processos
de trabalho e as situações vivenciadas. Tais condições, somadas a suportes
concretos que se repetem no dia a dia, formam um praticável42, possibilitando
que tais arranjos sejam postos em ação (MOURA, 2003).
42
A noção de praticável é discutida no campo da Psicoterapia Institucional e também aparece no
dicionário como aquilo que pode ser colocado em prática ou em uso. No teatro, praticável se refere à
estrutura cenográfica móvel que facilita a movimentação dos atores sobre o palco. Disponível em:
<http://www.dicio.com.br/praticavel/>. Acessado em: 09.01.2016.
122
Gostaríamos de destacar a função da gestão no CAPS adAO. Pudemos
observar como não está rigidamente fixada na figura do gestor, é dinâmica e há
espaço para circular por entre todos que desejem ocupá-la, havendo inclusive
espaços instituídos para isso. No entanto não são apenas nestes espaços que
a cogestão no CAPS acontece. Observamos situações em que decisões e
encaminhamentos foram tomados sem uma necessidade imperativa do gestor.
Foram casos em que os trabalhadores organizaram-se entre si para lidar com
determinadas situações, ou reuniram-se junto aos usuários em rodas de
conversa e em alguns casos individualmente. Há um exercício de autonomia
por parte dos trabalhadores que podem lançar mão de seus conhecimentos e
potencialidades, desde que suas intervenções sejam compartilhadas e
discutidas, ampliando os repertórios da equipe na construção dos projetos de
cuidado.
Essa autonomia exercida pelos trabalhadores fortalece sua potência
criativa para acolher determinadas situações e reavaliar respostas que já não
funcionam mais, como nos casos em que há circulação de drogas no serviço.
Vimos que, ao mesmo tempo em que há violação de combinados, são nesses
casos que a equipe se mostrou mais criativa e disposta a escutar os usuários e
produzir novas respostas, na perspectiva do acesso e não da repressão ou
punição.
Observamos atitudes de protagonismo dos usuários diante das relações
de poder que se estabelecem, como no caso da usuária que surpreendeu a
equipe ao acionar o SAMU e pedir ajuda com seus próprios recursos, ou como
o caso do usuário que pouco a pouco foi estabelecendo suas próprias
exigências para conversar com sua referência. Tal protagonismo também se
apresentou nas construções coletivas em torno da gestão da convivência no
cotidiano. Trata-se de uma equipe que dirige o olhar para um sujeito em sua
complexidade e que busca produzir desvios nas formas instituídas das
classificações nosográficas e do entendimento hegemônico naturalizado que
condena o usuário de drogas a uma condição de impotência.
Foram muitas as informações registradas e optamos por focalizar
nossas análises em torno da multiplicidade dos modos de acolher no CAPS ad
123
Antônio Orlando e seus efeitos potentes. Não pudemos deixar de olhar, no
entanto, certos aspectos que inevitavelmente nos remeteram às práticas
tradicionais pautadas pelas lógicas da tutela e da patologização. No decorrer
de nossas observações, conversas e entrevistas, estranhamos a presença de
elementos característicos do modelo psiquiátrico tradicional, tanto nas relações
entre trabalhadores e usuários, como nas rotinas estabelecidas dentro do
CAPS adAO.
Chamou-nos a atenção a existência de um grupo de alcoolistas. Trata-se
de um espaço instituído para acolher pessoas que frequentam o CAPS adAO e
que apresentam algum tipo de sofrimento relacionado ao uso de álcool. A
nomeação “alcoolista”, no entanto remete a uma classificação diagnóstica
apresentada pelo DSM V43, que enfatiza a droga e seus efeitos patológicos de
acordo com certo padrão de consumo, reduzindo as múltiplas variações
possíveis nas experiências de uso. Por isso, o grupo de alcoolistas
inevitavelmente nos lembrou de práticas que focam a droga e a doença e não
os sujeitos em sua complexidade. Tal reflexão nos produziu interrogações
acerca dos motivos para a equipe utilizar tal nomenclatura, sendo tão
claramente comprometida com os processos de desinstitucionalização do
discurso do dependente químico. Tal interrogação também surgiu com relação
à utilização da palavra tratamento, uma vez que ali não se pretende trabalhar
numa perspectiva curativa ou prescritiva e sim pelas vias do cuidado integral e
da clínica ampliada.
Estão presentes ainda outras práticas que remetem, ainda que com
outras proporções, às tradições asilares. É o caso da contenção física de
usuários em situações que envolvem agressividade. Conforme nos foi contado,
tal prática embora aconteça muito raramente, constrange a equipe, provoca
discussões e reavaliações dos processos de trabalho. Além disso, o
encaminhamento de usuários para internação psiquiátrica é frequente, mesmo
cada caso encaminhado sendo discutido criteriosamente.
43
Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, 5ª Edição.
124
Tais interrogações não puderam ser desdobradas junto aos
trabalhadores do CAPS adAO e por isso são apresentadas aqui para que não
passem despercebidas, invisíveis aos olhos do pesquisador. No capítulo
anterior narramos situações em que os próprios usuários expressam seu saber
com relação aos modos como a questão do uso de drogas é tratada no Brasil,
entre os campos jurídico e psiquiátrico. Numa das últimas conversas realizadas
no CAPS adAO, uma trabalhadora responsável por ajudar os usuários na hora
do almoço contou já terem lhe perguntado se ela estava ali para vigiá-los, ao
que ela respondeu que sua função era a de ajudar caso alguém passasse mal
ou derrubasse algo.
Tais situações nos indicaram o poder das lógicas psiquiátricas
tradicionais, que também resistem e forçam uma serventia, podendo reforçar
aquilo que se busca superar. Para Souza (2012), “se uma estratégia fracassa
há séculos e ainda mantém um valor de uso para a sociedade é porque esta
estratégia cumpre uma função que se ajusta e se potencializa no próprio
fracasso” (p. 45). Chamou-nos a atenção a insistência de tais práticas em
restarem e continuarem se reproduzindo ainda que raramente ou
discretamente, em forma de resquícios quase imperceptíveis. Em um CAPS ad
claramente comprometido com as atuais políticas públicas no campo da saúde
mental álcool e outras drogas e cujas práticas são postas em análise
cotidianamente, há que se continuar interrogando tais situações, para que
novas respostas possam ser produzidas.
Gostaríamos de mencionar alguns momentos no decorrer da pesquisa
em que fomos atravessados pela conjuntura institucional atual. Vivenciamos
períodos de greve, conflitos entre a equipe do CAPS adAO e instituições que
tensionaram pedidos de internações compulsórias, atrasos de salários. Em
meio a tudo isso, tivemos a oportunidade de presenciar o momento em que os
trabalhadores receberam e acolheram a equipe contratada para atuar no novo
CAPS ad que estava para ser inaugurado, convidando-os a participar de suas
reuniões, do trabalho no cotidiano e assim comporem uma rede de cuidados.
Não pudemos nos dedicar a estudar os modos como a equipe do CAPS adAO
têm construído ações de acolhimento em articulação com outros serviços da
125
rede, mas acompanhamos algumas discussões de casos compartilhados com
outras equipes, como o S.O.S Morador de Rua, o CAPS Integração (CAPS III)
e a Defensoria Pública de Campinas.
O CAPS adAO, ao operar a partir do modelo psicossocial, pela lógica do
cuidado integral e segundo princípios da redução de danos, se propõe a
manter suas portas abertas para o acesso dos usuários tanto ao seu espaço
físico como para o acolhimento de suas questões e necessidades. Através de
diferentes modos de se conversar, produzem-se variadas conexões e
combinações entre escuta, convivência, construção de vínculos e de projetos
que dão mais substância para o cuidado produzido. Para a equipe, acolher não
é simplesmente ouvir e dar uma resposta já pronta, uma atitude de autorizar ou
desautorizar pedidos e nem uma questão de educação. Trata-se de se
interessar pelo que o outro está dizendo ou expressando de algum modo. Nas
conversas e entrevistas os trabalhadores contaram suas experiências de
acolhimento dos usuários com riqueza de detalhes, sem pressa alguma e num
tom afetivo, incluindo o que sentiram em cada situação narrada.
O cuidado no CAPS adAO tem como um de seus princípios a atitude de
acolher o outro em sua complexidade, mesmo que isso signifique escutar o que
nunca foi ouvido, olhar quando não se quer ver e quebrar regras que nunca
haviam sido quebradas. Cada conflito é provisório e se revezará com outros,
ainda por virem. Desse modo é possível dar acesso em nós àquilo que ainda
não existe, mas está em vias de diferir e de ser único. Àquilo que se
manifestará em toda sua potência.
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IMS/UERJ -ABRASCO, 2003.
TENÓRIO, F. Desmedicalizar e subjetivar: a especificidade da clínica da
recepção. Cadernos IPUB, ano VI, n.17, p.79-91, 2000.
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ANEXOS
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OFICINA “MODOS DE ACOLHER ANTÔNIO ORLANDO”
TRECHOS ELABORADOS PARA A ATIVIDADE
1- “Existe um plantão de acolhimento. Na lousa da sala de equipe fica anotada uma
escala com os períodos manhã e tarde e ao lado espaços em branco para que os
próprios profissionais preencham conforme eles possam cobrir um ou outro período.
Durante uma conversa na sala de equipe discutimos que o acolhimento abarca muitas
coisas: avaliar leitos-noite, receber usuários novos, evoluir prontuários, etc. Já o
“reacolhi” é abreviação de recolhimento, em que pacientes que abandonaram o
tratamento retornam depois de algum tempo. A pressão do horário pode interferir nos
modos de realizar o acolhimento e embora cada um faça à sua maneira, existem
algumas perguntas chave”
2- “Os grupos de acolhimento funcionam em três horários na semana e são destinados
aos pacientes novos. Ali eles ficam sabendo o que é CAPS, que grupos existem e
podem decidir sobre seu projeto, ou simplesmente falar de si. Seria um momento
grupal de acolher depois de um acolhimento individual. O grupo de acolhimento ajuda
a ir estreitando os vínculo para começar a desenhar um PTS e estabelecer um
profissional de referência. Para que isso aconteça é esperado que exista uma
comunicação entre quem faz o acolhimento e quem faz o grupo de acolhimento”.
3- ”Na ambiência, às vezes ouve-se mais do que se responde e quando acontecem
situações que fogem do esperado a conduta a ser tomada pode não estar descrita
tendo que ser decidida em questão de minutos ou de segundos.”
4- “São comuns as situações em que há porte e ou uso de drogas no CAPS ad Antônio
Orlando. Em alguns casos é possível negociar com o usuário esse tipo de circulação
pra dentro do serviço.”
5- “Na ambiência tem paredes com escritos pinturas e mensagens positivas de liberdade,
criatividade e alusões ao tema do cuidado, que a própria equipe criou num momento de
crise institucional”.
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Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Título do Projeto: “Outras drogas, outros vínculos: uma análise sobre a produção do cuidado
no dispositivo CAPS ad”.
Pesquisadora Responsável: Carolina Galvão de Oliveira
Orientadora: Maria Cristina G. Vicentin
Você está sendo convidado (a) a participar desta pesquisa que tem como objetivo
conhecer os processos de trabalho em um CAPS ad, identificar e analisar junto à equipe de um
CAPS ad como esta tem realizado o cuidado oferecido aos usuários de álcool e outras drogas
que frequentam o serviço.
Esclareço que você tem a liberdade de se recusar a participar em qualquer momento
ou fase da pesquisa, sem qualquer prejuízo em seu vínculo empregatício. Além disso, sempre
que quiser poderá nos contatar para pedir mais informações do estudo por telefone ou e-mail.
Para a realização dessa pesquisa, serão realizados procedimentos que incluem:
observação das situações de acolhimento que se apresentam no cotidiano do serviço, registros
em diário de campo; realização de entrevistas com profissionais da equipe a partir da pergunta
norteadora “Conte como foi o último acolhimento que você realizou no CAPS ad?”, além de
rodas de conversas com a equipe com o objetivo de discutir o tema do acolhimento
coletivamente e compartilhar aspectos analisados na pesquisa.
Os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa estão de acordo com a
Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que regula os Critérios da Ética em
Pesquisa com Seres Humanos. A participação nesta pesquisa não infringe as normas legais e
éticas e não há riscos previsíveis à dignidade e/ou integridade física dos participantes.
Você e os demais participantes não terão despesas pessoais em qualquer fase do
estudo e não haverá nenhuma forma de ressarcimento ou pagamento em dinheiro por sua
participação, no entanto, esperamos que este trabalho possa trazer mais informações acerca
da produção do cuidado no cotidiano de um CAPS ad e que esse conhecimento possa
contribuir para a consolidação das práticas de atenção psicossociais voltadas á usuários de
álcool e outras drogas.
Todas as informações coletadas neste estudo são estritamente confidenciais, somente
a pesquisadora responsável e sua orientadora terão conhecimento de sua identidade e nos
comprometemos a mantê-la em sigilo ao publicar a pesquisa. Quando este estudo for
encerrado deverá haver um retorno sobre os resultados do mesmo a todos que participaram e
à Instituição.
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A assinatura deste Termo de Consentimento deverá ser feita em duas vias, uma para a
pesquisadora responsável e outra para você e após estes esclarecimentos, solicitamos seu
consentimento de forma livre para participar da pesquisa e o preenchimento dos itens que se
seguem.
Consentimento Livre e Esclarecido
Tendo compreendido os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida
manifesto meu consentimento em participar da pesquisa. Confiro que recebi cópia deste
termo de consentimento e autorizo a execução do trabalho de pesquisa e divulgação dos
dados obtidos.
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Nome do participante Data
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Assinatura do participante
Contatos:
Carolina Galvão de Oliveira
Tel.: 11 – 992691318
E-mail: cgopsico9@gmail.com
Maria Cristina G. Vicentin
Tel.: 11 991792922
E-mail: cristinavicentin@gmail.com
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