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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE
LUZIANE BEYRUTH SCHWARTZ
A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES
DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO
RIO DE JANEIRO
2012
Luziane Beyruth Schwartz
A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Saúde.
Orientador: Prof. Dra. Flavia Rezende
RIO DE JANEIRO
2013
S399 Schwartz, Luziane Beyruth. A qualidade do ensino de ciências na voz dos professores da educação profissional
técnica de nível médio / Luziane Beyruth Schwartz. – Rio de Janeiro: UFRJ / NUTES, 2013. 257 f. : il.
Orientadora: Flavia Rezende Tese (Doutorado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
Referências bibliográficas: f. 205-210.
1. Qualidade do ensino. 2. Educação profissional técnica de nível médio. 3. Análise do discurso. 4. Educação em Ciências e Saúde - Tese. I. Rezende, Flavia. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, NUTES, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde. III. Título.
CDD 370
Luziane Beyruth Schwartz
A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Saúde.
Aprovada em 18/12/2012
______________________________________ Flavia Rezende, Dra., NUTES/UFRJ
______________________________________ Luiz Augusto Rezende Filho, Dr., NUTES/UFRJ
______________________________________ Marco Braga, Dr., CEFET-RJ
______________________________________ Maylta Brandão dos Santos, Dra., IFRJ
______________________________________ Alcina Maria Testa Braz da Silva, Dra., IFRJ
2
Para meu marido Humberto, e nossos filhos Stephan, Ingrid e Igor,
razões da minha vida.
Para meus pais, presenças marcantes em minha vida.
AGRADECIMENTOS
Ao meu amor, Humberto – minha melhor escolha na vida – pelo incentivo, paciência e compreensão por todo tipo de ausência nestes quatro anos de pesquisa. Agradeço, muito, muito, muito!
Aos meus queridos filhos:
Stephan – Força mãe! – obrigada pela escuta, equilíbrio e carinho!
Ingrid, companheira e amiga: doação incondicional para que eu seguisse em frente – “Você é mais que linda!".
Igor – “Sabe qual é o único defeito das mães? Não serem eternas. Te amo mãe. Beijos, Bakitin” – eu também te amo de paixão, meu filho.
À minha orientadora, Flavia Rezende, coautora desse texto, pelo comprometimento e responsabilidade, que proporcionaram o meu amadurecimento acadêmico, sem abdicar das críticas que estimulam a ir além.
Aos professores participantes da pesquisa, que permitiram a realização das reflexões aqui empreendidas.
À minha mãe, por todo o trabalho, dedicação e incentivo com a minha formação.
Ao meu pai (in memoriam), que se pudesse estar presente, sentiria muito orgulho.
A toda minha família pelo respeito e compreensão durante todos os momentos desta caminhada.
Aos professores Marco Braga, Luiz Rezende e Alcina Maria Testa pelas relevantes contribuições por ocasião do exame de qualificação.
Aos professores membros da banca, Marco Braga, Maylta Brandão, Luiz Rezende, Alcina Maria Testa, Gloria Queiroz e Guaracira Gouvêa, por aceitarem participar desse diálogo, condição imprescindível para o “acabamento”, ainda que sempre provisório.
À professora Cecília M. A. Goulart, por ter me aceitado por dois semestres como aluna ouvinte em suas aulas na UFF, minha luz bakhtiniana.
Aos colegas do grupo de pesquisa do LTC/NUTES, Gleice Ferraz, Roberta Comissanha, Aroaldo Veneu, pelo diálogo, no qual o confronto de diferentes pontos de vista enriqueceu minhas reflexões teórico-metodológicas. À Sandra Machado pela escuta atenta e carinhosa.
Há, nesse grupo, quem já se foi... mas, como Bakhtin disse: “De minha parte, em todas as coisas, ouço vozes” e a sua voz, Márcia, não se calou. Ressoará a todo o momento em nossos discursos na grande temporalidade. Agradeço, também, por me apresentar a professora Cecília M. A. Goulart.
Aos colegas da turma do doutorado, Marcus Vinicius, Maria Cristina, Carol, Andréa, Ana Cristina, Juliana e Teo, pelas trocas, reflexões e convivências agradáveis.
Às amigas Patrícia e Dione, dois presentes no percurso do doutorado.
Aos amigos do IFRJ pelo apoio, escuta, participação e incentivo.
Ao amigo Marcus Vinicius pela escuta amiga, solidariedade e companheirismo nessa travessia nada simples.
SCHWARTZ, Luziane Beyruth. A qualidade do ensino de ciências na voz dos
professores da educação profissional técnica de nível médio. Rio de Janeiro, 2012.
Tese de doutorado (Doutorado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de
Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2012.
O presente estudo teve por objetivo investigar sentidos de qualidade do Ensino de
Ciências na perspectiva de docentes da Educação Profissional Técnica de Nível
Médio (EPTM) e suas relações com outros discursos como, por exemplo, os
discursos acadêmico e oficial. O corpus analisado resultou de entrevistas com seis
professores atuantes em duas escolas técnicas federais distintas no Rio de Janeiro.
Dentre eles, quatro são professores de química e atuam no curso técnico em
química da escola A e dois são professores de biologia, e atuam no curso técnico
em análises clínicas e saúde da escola B. A Teoria da Enunciação de Mikhail
Bakhtin se constituiu como arcabouço teórico-metodológico que fundamentou essa
pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico. A entrevista dialógica e individual com
os sujeitos da pesquisa foi o instrumento metodológico utilizado na investigação. A
partir do quadro teórico adotado e da problemática da educação profissional,
procuramos discutir as seguintes questões: 1) Que perspectivas de qualidade são
construídas discursivamente por docentes da EPTM em relação às finalidades do
ensino de ciências? 2) Que perspectivas de qualidade são construídas
discursivamente por docentes da EPTM em relação ao conhecimento científico
ensinado? 3) Que aproximações e afastamentos são identificados entre as
perspectivas dos docentes sobre formação integral e o discurso oficial? A partir de
uma análise “bakhtiniana”, foi possível chegar a uma diversidade de perspectivas de
qualidade da educação científica, incluindo finalidades educacionais e visões de
ciências distintas, dentro de um contexto educacional tão particular como o da
educação profissional. Identificamos dois polos nas perspectivas de qualidade
enunciadas pelos professores: de um lado, a educação científica como preparação
da força de trabalho e de outro, como formação integral, para todas as dimensões
da vida. Mas consideramos que foi possível avançar, justamente quando
conseguimos captar nuances dessas perspectivas. Por meio do escrutínio que
realizamos, chegamos a visões particulares de qualidade, que nos mostraram a
importância dos docentes enquanto protagonistas do processo educativo, capazes
de conformar a qualidade do ensino. A diversidade é maior na escola A, mesmo
quando consideramos um mesmo campus. Na escola B, encontramos mais
aproximações do que afastamentos entre as perspectivas de qualidade enunciadas
e também mais aproximações com os discursos acadêmico e oficial. Acreditamos
que a diferença nos contextos institucionais das escolas pode estar na origem desse
resultado. Enquanto a escola B promove a discussão do currículo, do projeto político
pedagógico e da legislação, permitindo o embate de perspectivas, mas também a
construção coletiva e adesão dos professores a um projeto comum, a escola A não
promove o compromisso com um projeto coletivo. As perspectivas de qualidade são,
assim, fruto da assimilação de um possível senso comum sobre o conceito de
formação profissional que circula nas instituições educacionais, ancorado em
legislações passadas, na formação acadêmica do professor ou na mídia.
Palavras-chave: qualidade do ensino de ciências, educação profissional técnica de
nível médio, análise bakhtiniana do discurso.
SCHWARTZ, Luziane Beyruth. A qualidade do ensino de ciências na voz dos
professores da educação profissional técnica de nível médio. Rio de Janeiro, 2012.
Tese de doutorado (Doutorado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de
Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2012.
The present study aimed to investigate meanings of science education in the
perspective of teachers of Professional Technical Education (PTE) and the
relationship of these meanings with the official and academic discourses. The corpus
analyzed resulted from interviews with six teachers who work in two federal technical
schools in Rio de Janeiro. Four are teachers of chemistry and teach at the chemical
technical course in School A and two are teachers of biology, and work in the
technical course in clinical analysis and health in School B. The theory of Enunciation
by Mikhail Bakhtin was appropriated as theoretical-methodological framework of this
qualitative socio-historical research. The dialogical and individual interview with the
subjects was the methodological instrument used. From the theoretical framework
adopted and the professional education discussion, we seek to investigate the
following questions: 1) What quality perspectives are discursively constructed by
teachers of PTE related to purposes of science teaching? 2) What quality
perspectives are discursively constructed by teachers of PTE related to scientific
knowledge? 3) What approaches and distances are identified between the teachers’
perspectives and academic and official discourses? From a "Bakhtinian" analysis, it
was possible to reach a diversity of perspectives of quality of science education
including educational purposes and different views of science within a particular
educational context as the professional education. We identified two poles in
perspectives of quality set out by teachers: on the one hand, science education as
workforce preparation and on the other, as integral formation for all dimensions of
life. However, we believe that it was possible to move forward exactly when we were
able to capture the nuances of these perspectives. Through the research we
conducted, we got particular views of quality that have shown us the importance of
teachers as protagonists of the educational process, able to conform the quality of
education. The diversity is greater in school A, even when we consider the same
campus. At school B, we found more approaches than distances between the
perspectives of quality and also more approaches with academic and official
speeches. We believe that the difference in institutional contexts of schools may be
at the origin of this result. While school B promotes the discussion of curriculum, the
pedagogical project and legislation allowing the confrontation of perspectives, but
also the collective construction and adhesion of teachers to a common project, the
school A does not promote the commitment to a collective project. Perspectives of
quality are thus the result of the assimilation of a possible common sense about the
concept of professional training which circulates in educational institutions, anchored
in passed legislation, in teacher education or in the media.
Keywords: quality of science education, professional technical education, bakhtinian
discourse analysis.
LISTA DE QUADROS E TABELAS
Quadro 1 Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus I
71
Quadro 2 Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus II
72
Quadro 3 Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola B
73
Quadro 4 Procedimentos de análise dos enunciados dos professores 84
Quadro 5 Respostas do Prof. André à atividade escrita sobre Qualidade 101
Quadro 6 Respostas da Prof. Taís à atividade escrita sobre Qualidade 116
Quadro 7 Respostas da Prof. Cleo à atividade escrita sobre Qualidade 152
Quadro 8 Temas centrais mobilizados pelos professores e respectivos posicionamentos
181
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BM Banco Mundial
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica
CNE Conselho Nacional de Educação
DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
EC Ensino de Ciências
ENADE Exame Nacional de Desempenho de Estudantes
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
EP Educação Profissional
EPTM Educação Profissional Técnica de Nível Médio
ETF Escola Técnica Federal
IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
IF Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC Ministério da Educação
NUTES Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde
OCDE Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OIC Organização Interamericana do Comércio
PISA Programme for International Student Assessment
PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
RFPT Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica
TIC Tecnologia da Informação e Comunicação
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFF Universidade Federal Fluminense
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNIVERSO Universidade Salgado de Oliveira
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO 13
2 INTRODUZINDO A PROBLEMÁTICA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA 20
3 REVISÃO DE LITERATURA 32
3.1 A FORMAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
32
3.2 ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
37
3.3 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO DEBATE DE SUAS FINALIDADES
43
4 QUADRO TEÓRICO 47
4.1 INTRODUÇÃO À OBRA DE BAKHTIN 47
4.2 A ARQUITETÔNICA BAKHTINIANA DA LINGUAGEM 49
5 METODOLOGIA 62
5.1 OBJETIVO E QUESTÕES DE ESTUDO 63
5.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 64
5.2.1 A origem da pesquisa 64
5.2.2 Elaboração do roteiro de entrevistas 66
5.2.3 Os sujeitos da pesquisa 68
5.2.4 O contexto da pesquisa 73
5.2.4.1 Escola A 73
5.2.4.2 Escola B 75
5.2.5 Transcrição das entrevistas 77
5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE 78
6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DOS PROFESSORES ENTREVISTADOS 85
6.1 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR ANDRÉ 87
6.1.1 O contexto extraverbal 87
6.1.2 Perspectivas do professor André 88
6.2 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA TAÍS 102
6.2.1 O contexto extraverbal 102
6.2.2 Perspectivas da professora Taís 103
6.3 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR TONI 117
6.3.1 O contexto extraverbal 117
6.3.2 Perspectivas do professor Toni 118
6.4 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR VÍTOR 131
6.4.1 O contexto extraverbal 131
6.4.2 Perspectivas do professor Vítor 132
6.5 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA CLEO 142
6.5.1 O contexto extraverbal 142
6.5.2 Perspectivas da professora Cleo 143
6.6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR MURILO 153
6.6.1 O contexto extraverbal 153
6.6.2 Perspectivas do professor Murilo 154
7 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA EPTM
165
7.1 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO ÀS FINALIDADES DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
165
7.1.1 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus I da escola A
165
7.1.2 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus II da escola A
168
7.1.3 As finalidades da educação em ciências para os professores da escola B
170
7.2 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
171
7.2.1 O conhecimento científico ensinado no campus I da escola A 171
7.2.2 O conhecimento científico ensinado no campus II da escola A 172
7.2.3 O conhecimento científico ensinado na escola B 173
7.3 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO À FORMAÇÃO INTEGRAL
174
7.3.1 A formação integral no campus I da escola A 174
7.3.2 A formação integral no campus II da escola A 177
7.3.3 A formação integral na escola B 179
7.4 PERSPECTIVAS DOS DOCENTES SOBRE A EDUCAÇÃO CIENTÍFICA DE QUALIDADE NO CONTEXTO DA EPTM
181
8 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 184
8.1 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 184
8.1.1 Perspectivas de qualidade frente aos discursos oficial e acadêmico 184
8.1.2 Interpretando as perspectivas de qualidade: relações do texto com o contexto
193
8.1.2.1 Afastamentos e aproximações discursivos na Escola A 193
8.1.2.2 Afastamentos e aproximações discursivos na Escola B 196
8.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS 197
REFERÊNCIAS 205
APÊNDICES 211
ANEXOS 252
13
1 APRESENTAÇÃO
Escrever é traduzir. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua.
Transportamos o que vemos e o que sentimos para um código convencional de signos, a escrita e deixamos às
circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor,
não tanto a integridade da experiência que nos propusemos transmitir, mas uma sombra, ao menos, do que no fundo do
nosso espírito sabemos bem ser intraduzível, por exemplo a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma
descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como rastro de um sonho
que o tempo não apagará por completo. (José Saramago – Escrever é traduzir)
Este estudo é constituído a partir do diálogo com diversas vozes que, de
acordo com a teoria da enunciação de Mikhail Bakhtin, integram todo e qualquer
enunciado que se compõe de forma polifônica. É fundamental, antes de tudo,
apresentar minha trajetória profissional e acadêmica para explicitar a partir de que
lugar realizo as articulações necessárias ao elaborar esse texto, pois, como sujeito
socio-histórico trago marcas relevantes do meu percurso para configurar
dialogicamente a compreensão do universo pesquisado.
No início da década de 80 iniciei a minha prática no magistério e, desde
então, tenho atuado em diferentes atividades relacionadas ao processo de ensino e
de aprendizagem, principalmente como professora de matemática no nível médio,
como também, de gestão no âmbito de uma das escolas pesquisadas. Esse
percurso de trinta e dois anos incluiu atividades em escolas privadas, escolas
públicas estaduais e escolas técnicas federais, porém, a maior parte desse tempo
(vinte e cinco anos) foi dedicada à educação profissional técnica de nível médio
(EPTM).
Minhas práticas e vivências em escolas profissionalizantes e não
profissionalizantes constituem um percurso amplo, a partir do qual, muitos
questionamentos sobre as finalidades educacionais, mais marcadamente as que se
14
referem aos aspectos do processo de ensino e de aprendizagem das ciências1, me
levaram a continuidade dos estudos. Apesar da minha prática refletir a realidade do
ensino nos contextos de atuação profissional, sempre me inquietei diante da
insatisfação em ter que norteá-la visando apenas os aspectos burocráticos e
cumprimento de programas. Assim, me questionava constantemente: De que forma
essa ação torna-se de fato significativa e se constitui como construção do
conhecimento pelos alunos? Até que ponto os alunos são os sujeitos que dão
sentido ao meu ensino? Que outros valores e intenções poderiam integrar os
sentidos do ensino, para além da simples transmissão de conteúdos? Como
implementar tais mudanças a partir de um sistema de ensino hermeticamente
estruturado, mediante as relações de poder que o engendra?
No decorrer dos anos, tive a oportunidade de participar de eventos da área de
educação geral e, em particular, da área de educação matemática. Nestes
encontros, percebi que vários estudos estavam sendo desenvolvidos no sentido de
repensar o ensino e refletir sobre as finalidades educacionais. Esse contato com a
área de pesquisa educacional, somado às minhas inquietações, me incentivou a
cursar no período de 2001 - 2003 o mestrado em educação matemática.
Passados alguns anos, cada vez mais envolvida com uma grande carga
horária de aulas, sem ter como participar de grupos de estudos, de reflexões mais
amplas sobre questões sociais, culturais, históricas e políticas envolvidas nas
definições de finalidades educacionais, fui tomada por novas inquietações.
Objetivando aprofundar essas reflexões, ingressei no curso de doutorado em
2009, no programa de pós-graduação do NUTES/UFRJ e passei a fazer parte do
grupo de pesquisa coordenado pela professora Dra. Flavia Rezende. Durante os
primeiros encontros com esse grupo, fui apresentada ao projeto do Observatório da
Educação, contemplado em edital específico da CAPES (2008).
O acesso ao conteúdo do projeto, objetivos, questões de pesquisa,
referenciais teóricos, bem como sua abrangência aguçou o meu interesse. Interesse
que se intensificou ao conhecer, nas primeiras reuniões, os professores,
pesquisadores, coordenadores do projeto que integravam o grupo de pesquisa,
representantes de diferentes universidades do Brasil (UFRJ, UERJ, UFF,
UNIVERSO, UFRGS, UFMG) e colegas professores da educação básica.
1 O termo “ciências” corresponde às ciências naturais e matemática.
15
Este estudo emerge, assim, de um projeto de pesquisa maior, projeto este
que buscou compreender a construção de sentidos de qualidade do ensino de
ciências (química, física, biologia e matemática) no nível médio de ensino
considerando-se a diversidade regional e cultural de contextos educacionais, na
perspectiva dos docentes, tomando como referência a avaliação oficial medida por
indicadores como o Exame Nacional do Ensino Médio e o IDEB. Pretendeu-se,
nesse projeto, compreender como professores de Ciências e Matemática de
diferentes escolas e regiões constroem discursos sobre ciência, currículo, políticas
curriculares, objetivos educacionais, metodologias de ensino, e uso de tecnologias,
educação e educação em ciências de qualidade, e de que forma os mesmos
conformam o processo educativo e têm impacto na qualidade do ensino de ciências.
O meu percurso profissional associado ao destaque que vem sendo dado, no
momento político atual à EPTM, entregue à sociedade como política de qualidade
para a educação básica, constituíram a motivação para a escolha desse contexto
como realidade empírica dessa investigação.
Entretanto, cabe ressaltar, que esse não é um estudo específico sobre
políticas públicas e educação profissional no Brasil. É um estudo em que buscamos
compreender sentidos de qualidade da educação científica que integram
perspectivas docentes. A construção de sentidos a qual nos referimos se estabelece
na “produção dos discursos, enunciados confrontados entre si, que entram em um
tipo especial de relações semânticas” chamadas por Bakhtin (2010) de dialógicas,
cuja natureza específica é a interação entre as produções do discurso, ou seja,
quando os discursos conversam entre si (p.325). Segundo este autor, o discurso só
pode entrar em relações dialógicas “sob a condição de um enfoque linguístico, isto
é, de serem transformados em visões de mundo, pontos de vista, vozes sociais”, que
serão chamados neste estudo de perspectiva.
Muito já se discutiu e se discute sobre qualidade da educação no Brasil,
portanto, não sou a primeira pesquisadora a falar sobre este tema, uma vez que o
objeto do discurso do falante, seja esse objeto qual for já foi falado por outros em
diferentes esferas sociais e tempos históricos, sob os mais diversos pontos de vista,
nunca reiteráveis (BAKHTIN, 2010).
As intensas transformações nas áreas relativas ao modo de produção, às
tecnologias de informação e comunicação contemporâneas, às relações sociais e
ético-políticas acabam por refletir na construção de sentidos para a qualidade
16
educacional, muitas vezes atrelada às solicitações de uma sociedade capitalista.
Nesse contexto, os discursos gerados por organismos internacionais, amplamente
divulgados entre dirigentes, pela mídia e difundido na opinião pública, a partir da
década de 80, influenciaram durante todos esses anos as políticas educacionais no
Brasil. A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o
Banco Mundial foram as principais agências a proferirem discurso político sobre a
qualidade da educação. Decorreu daí, que a educação brasileira passou a ser
relacionada às palavras-chave “qualidade”, “eficácia” e “avaliação” (CHARLOT,
2006) e a reboque, houve a criação de vários indicadores para avaliar a qualidade
da educação a partir de parâmetros relativos ao acesso à escolarização, à idéia de
fluxo, (quantitativo de alunos que progridem dentro de um determinado sistema de
ensino) e à aferição de desempenho das escolas no SAEB, ENADE, Vestibular,
ENEM e o PISA, cujos resultados compõem o IDEB das escolas (OLIVEIRA e
ARAÚJO, 2005).
Analisando o modo como a qualidade vem sendo tratada no campo
educacional, Gentili (2001) afirma que essa discussão vem assumindo os mesmos
aspectos abordados no mundo empresarial, onde é mensurada e avaliada segundo
critérios produtivistas e mercantilistas. A esse respeito, Enguita (2001) ressalta a
necessidade de construir um sentido novo para levar a qualidade da educação ao
patamar de direito inalienável inerente à cidadania, sem nenhuma relação com o
caráter mercantil ao qual em outra ocasião estivera vinculado. Goulart (apud
MOREIRA e KRAMER, 2007) ressalta outros aspectos relacionados à qualidade da
educação e considera que esta abarca fatores internos e externos à instituição
escolar. Enquanto os primeiros compreendem “as condições de trabalho
pedagógico, a gestão escolar, o currículo, a formação docente, assim como a
análise de sistemas e unidades escolares com base em resultados de avaliações
externas, as dimensões extraescolares estão voltadas “às determinações e às
possibilidades de superação das condições de vida de grupos sociais
desfavorecidos” (idem, p. 1045).
Ao eleger a EPTM como contexto de pesquisa sobre a qualidade da
educação científica, foi preciso ouvir também, além dos pesquisadores da área de
ensino de ciências, as vozes que emergem do campo que pesquisa sobre relações
entre trabalho e educação. Pesquisadores da área educacional que pensam esse
17
campo defendendo a integração das categorias trabalho, ciência, tecnologia e
cultura como indispensável à formação humana.
A perspectiva sociocultural (WERTSCH, 1993) pareceu-nos adequada para
problematizar a questão da “qualidade”, tendo em vista a natureza polissêmica
dessa palavra, ou seja, o quanto a mesma depende da atribuição de sentidos pelos
sujeitos. A Teoria da Enunciação de Mikhail Bakhtin é o caminho que Wertsch (1993)
aponta para compor um olhar sociocultural e que decidimos seguir. Como estratégia
metodológica, optamos por entrevistas com os sujeitos da pesquisa. De acordo com
este referencial, partimos do pressuposto de que os valores e as intenções que
constituem as finalidades educacionais tecidas, discursivamente, pelos professores
pesquisados estarão imbricados nos sentidos de qualidade mobilizados em suas
perspectivas de educação científica. E, ainda, incluiriam possíveis relações
dialógicas com os discursos circulantes nos documentos oficiais e acadêmicos,
específicos para a educação científica no contexto da EPTM.
Nesta perspectiva, o nosso objetivo de pesquisa foi: investigar os sentidos de
qualidade do Ensino de Ciências, na perspectiva de docentes da EPTM no Rio de
Janeiro e a relação desses sentidos com os discursos oficiais das políticas públicas
específicas para esta modalidade de ensino e com os discursos acadêmicos.
Para orientar o desenvolvimento de pesquisa, serão discutidas as seguintes
questões: Que perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por
docentes da EPTM em relação às finalidades do ensino de ciências? Que
perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por docentes da EPTM
em relação ao conhecimento científico ensinado? Que aproximações e afastamentos
são identificados entre as perspectivas dos docentes sobre formação integral e o
discurso oficial2?
A tese foi estruturada em sete capítulos, além desse primeiro de
apresentação. No segundo capítulo, introduzo a trajetória histórica da educação
profissional técnica no Brasil, tecida com comentários dos autores que pesquisam o
campo das relações entre trabalho e educação, que têm se dedicado ao exame
deste contexto educacional.
No terceiro capítulo, apresentamos a revisão de literatura que servirá como
referência para a análise das enunciações dos sujeitos da pesquisa e que está
2 O discurso oficial referenciado no texto refere-se ao Documento base EPTM (2007) e à Lei Nº
11.892/2008 que criou os institutos federais.
18
subdividida em três seções. Na primeira, nos voltamos para as reflexões que
pesquisadores educacionais empreendem sobre as relações entre trabalho e
educação, pensando a formação humana a partir do trabalho como princípio
educativo e sobre os sentidos de integração entre ensino médio e educação
profissional. Na segunda seção, dialogamos com os autores da área de ensino de
ciências e matemática no que se refere às concepções de alfabetização científica e
tecnológica por encontrarmos pontos de contato entre esse campo de pesquisa e o
conceito de formação integral, nas bases expostas na primeira seção. Na terceira
seção, analisamos a qualidade da educação científica procurando apreendê-la no
debate que os autores da área de ensino de ciências estabelecem a partir de suas
finalidades educacionais.
No quarto capítulo, apresento o enfoque teórico adotado, discorrendo,
brevemente, sobre os princípios da Teoria da Enunciação de Bakhtin. Na primeira
seção apresentamos a introdução à sua obra e, na segunda, as bases do edifício
teórico desse pensador para quem o diálogo cria e tenciona teórico-
metodologicamente visões de sociedade, linguagem e sujeito (GOULART, 2011).
No quinto capítulo, exponho os dados e observações relacionados à origem, à
escolha do campo e dos sujeitos de pesquisa. Além disso, descrevo o processo de
definição do instrumento metodológico, os cuidados metodológicos com as
transcrições e os procedimentos de análise.
No sexto capítulo, buscamos entender, a partir da leitura minuciosa das
enunciações de cada um dos professores, o modo como compreendem o conteúdo
referencial de cada enunciado-pergunta, a partir das respostas dadas durante a
interlocução na situação de entrevista individual. Segundo Bakhtin (1976), o
enunciado compreende uma parte percebida e realizada em palavras (o dito) e uma
outra presumida (o não dito) que estão imbricados na construção de suas
perspectivas. Tomando esse preceito como base, a análise da situação extraverbal
(o não dito) passou a integrar a análise do discurso verbal (o dito) em todas as
subseções desse capítulo. Ao analisarmos, buscamos expressar o ponto de vista
dos docentes em relação aos objetivos do ensino de ciências, à seleção de
conteúdos, metodologia e avaliação, ao papel dos laboratórios no EC, ao interesse e
desempenho dos alunos, à formação integral, aos documentos oficiais, à
apresentação do conhecimento científico, ao papel da pesquisa na formação
profissional.
19
Já o sétimo capítulo subdivide-se em quatro seções. Nas três primeiras
seções, buscamos confrontar as perspectivas de qualidade com as questões de
pesquisa, considerando o contexto de atuação (escola/campus) de cada professor.
Assim, na primeira seção focalizamos as finalidades da educação científica, na
segunda o modo como o conhecimento científico é apresentado na atuação docente
e, na terceira seção, além de serem confrontadas as perspectivas dos professores
entrevistados sobre formação integral, buscamos identificar aproximações e
afastamentos tanto entre estas perspectivas quanto entre as mesmas e o discurso
oficial. Na quarta seção, as perspectivas de qualidade da educação científica
construídas pelos sujeitos da pesquisa, foram compostas a partir da síntese dos
principais aspectos levantados nas seções anteriores.
No último capítulo, passamos a discutir o que foi possível compreender
durante o processo de análise das enunciações, buscando identificar na primeira
subseção, aproximações e afastamentos entre os sentidos construídos pelos
professores para a educação científica e os discursos acadêmico e oficial. Na
segunda, procuramos por meio da análise da relação entre o discurso verbal e o
contexto extraverbal, compreender por que os professores enunciaram tais
perspectivas. Finalmente, na última seção, elaboramos as considerações finais em
função dos principais achados e discussões anteriores.
20
2 INTRODUZINDO A PROBLEMÁTICA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA
Ao nos propormos investigar a qualidade da educação científica no contexto
da educação profissional técnica de nível médio (EPTM) buscamos compreendê-la
como produto histórico, não cabendo pensá-la como dado a priori, mas como “uma
análise processual, uma dinâmica, assim como a recuperação do específico e o
respeito às condições conjunturais” (MOREIRA e KRAMER, 2007, p. 1044). Assim,
essa investigação considera o momento presente, mas indispensavelmente seu
diálogo com os antecedentes históricos integrantes dessa cadeia dialógica histórica-
socialmente construída.
Com este entendimento, iniciamos a problemática da educação profissional
pela abordagem histórica, no sentido de favorecer a compreensão dos processos de
mudança ocorridos que se traduziram e se traduzem em reformas educacionais,
cujas esferas e sujeitos socialmente envolvidos produzem discursos em um
processo dinâmico de dialogicidade, permanentemente aberto.
Recuperando a história do ensino técnico no país, voltamos ao início do
século XX, quando em 1909, o Presidente Nilo Peçanha criou a Escola de
Aprendizes Artífices para prover os “desfavorecidos da fortuna”, expressão contida
no Decreto Nº 7.566 que oficializava essa iniciativa. Foi dado, então, início à rede
federal de ensino. Tal iniciativa redirecionou os objetivos da educação profissional
brasileira ampliando o seu horizonte de atuação (antes com caráter assistencialista)
para formar operários visando atender as demandas dos empreendimentos no
campo da agricultura e da indústria (MANFREDI, 2002).
Nos anos seguintes, as mudanças políticas e socioeconômicas nas décadas
de 30 e 40 no país, impulsionaram tanto a indústria de base como a educação
profissionalizante, consideradas pilares do progresso nacional. Manfredi (2002)
afirma que as transformações econômicas e técnicas e nas formas de organização
do trabalho, neste período, advindas do desenvolvimento do capitalismo industrial,
acarretaram mudanças para o processo de trabalho. De acordo com a autora, os
grupos de pessoas e instituições que constituíram as corporações de ofício,
posteriormente, foram substituídos pelos grupos ocupacionais e profissionais. Essas
mudanças desencadearam a necessidade de “universalização da escola como
agência nacional de preparação para a inserção no mundo do trabalho” (p. 54).
21
Somado a isso, a aceleração no processo de inovação tecnológica, no período que
sucedeu à segunda guerra mundial, promoveu mudanças nas relações sociais. A
partir de então, um novo cenário econômico e produtivo – marcado pelo emprego
crescente de tecnologias cada vez mais sofisticadas no setor produtivo, na
prestação de serviços, possibilitando, inclusive, a internacionalização das relações
econômicas – passou a exigir para todos os trabalhadores uma formação geral mais
sólida.
Em resposta às demandas do processo histórico de industrialização e
modernização das relações de produção, vários Decretos-Lei foram sancionados
pela esfera governamental no país, visando regulamentar a educação brasileira,
conhecidos como Leis Orgânicas da Educação Nacional - a Reforma Capanema,
criada na gestão do então ministro da educação, Gustavo Capanema. Nesse
período, foi aprovada a construção de um sistema paralelo à rede federal – o
chamado “Sistema S” que teve como primeiras estruturas o SENAI – Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial e o SENAC – Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial. Nesse ponto, interessa-nos salientar a importância que
passou a ter a educação dentro do país e, em especial, a educação profissional,
passando a ser organizada por leis específicas para a formação profissional em
cada ramo da economia (MANFREDI, 2002).
Assim, após a Reforma Capanema, a educação regular fica estruturada em
dois níveis: a educação básica dividida em duas etapas (o curso primário e o curso
secundário, subdividido em ginasial e colegial) e o nível superior. A educação
profissional, parte final do ensino secundário, era constituída pelos cursos normal,
industrial técnico, comercial técnico e agrotécnico, todos com o mesmo nível e
duração do colegial, entretanto não habilitavam para o ingresso no ensino superior,
reafirmando a dualidade que marcava historicamente a relação entre educação
básica e educação profissional no Brasil, pois restringia o acesso ao ensino superior,
via processo seletivo, à classe dirigente, por receberem um ensino que contemplava
conhecimentos gerais, das letras, das ciências e das humanidades. Enquanto nos
cursos profissionalizantes, bastava o domínio dos conhecimentos básicos de leitura,
de escrita, de cálculo e da natureza (KUENZER, 2002).
Em 1942, as Escolas de Aprendizes Artífices são transformadas em Escolas
Industriais e Técnicas, passando a oferecer a formação profissional em nível
equivalente ao secundário, vinculando o ensino industrial à estrutura do ensino do
22
país. Anos depois, em 1948, tramitou no Congresso Nacional a primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Nº 4024 – começando a vigorar
somente em 1961. Uma série de conflitos marcava os debates na sociedade
brasileira acerca dos distintos modelos de desenvolvimento que influenciavam as
políticas educacionais. Nesse contexto, a LDB passa a vigorar proporcionando ao
mesmo tempo liberdade de atuação da iniciativa privada no campo educacional e a
plena equivalência entre todos os cursos do mesmo nível.
Foi no ano de 1959 que se iniciou o processo de transformação das Escolas
Industriais e Técnicas em autarquias. Nessa fase, as escolas técnicas ganharam
autonomia didática e de gestão e passaram a ser denominadas de Escolas Técnicas
Federais, intensificando a formação de técnicos para atuar nas indústrias.
Até meados da década de setenta do século XX, a formação profissional foi
vista como uma opção para a classe social menos favorecida de recursos
econômicos, visando à formação de trabalhadores para o exercício de funções
simples, isto é, com ênfase em treinamentos que pouco exigia do desenvolvimento
da capacidade de intervenção intelectual, competência essa, tradicionalmente,
reservada à elite brasileira (FRIGOTTO e CIAVATTA, 2003). Até então, a baixa
escolaridade dos trabalhadores ainda não era reconhecida como entrave no
desenvolvimento econômico do país.
Na década de 70, a Lei Nº 5.692/1971 promove uma profunda reforma na
educação brasileira – Lei da reforma de ensino de 1º e 2º graus – a qual prevê, de
forma compulsória, a estruturação de todo o currículo do segundo grau em técnico-
profissionalizante. Entretanto, enquanto a profissionalização compulsória se
restringia ao âmbito público, estadual e federal, as escolas privadas permaneceram
com os currículos propedêuticos endereçados à elite (FRIGOTTO, CIAVATTA e
RAMOS, 2005). Os autores relatam que a implantação do ensino profissionalizante
nas escolas estaduais privilegiou os conteúdos da formação profissional em
detrimento dos da formação geral, levando ao empobrecimento do currículo. Isso fez
com que de certa forma os alunos que cursavam os cursos propedêuticos levassem
vantagem sobre os dos cursos técnicos em relação ao acesso ao ensino superior e à
cultura geral. Como consequência, teve início um movimento de transferência dos
filhos da classe média para as escolas privadas em busca de uma formação que
garantisse a continuidade dos estudos para o nível superior.
23
Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos. (2005), o propósito desta lei era formar
técnicos de nível médio, sob o argumento da escassez de técnicos no mercado e
pela necessidade de evitar a frustração de jovens que não ingressavam nas
universidades nem no mercado por não terem uma qualificação profissional. Vale
ressaltar que nessa época o Brasil estava sob o comando de um governo militar cujo
projeto de desenvolvimento encontrava-se pautado pela industrialização,
demandando por mão de obra qualificada em atendimento ao crescimento
econômico (p. 33).
As atribuições profissionais de caráter estritamente técnico direcionavam os
currículos para uma educação científica e tecnológica com bases tecnicistas e
mecanicistas, reforçando o caráter funcional da escola técnica e a reprodução das
relações de trabalho. Nesse contexto, o conhecimento científico era apresentado
ideologicamente ahistórico e, portanto, neutro.
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) avaliam que, sob muitas críticas e
resistências sociais associadas às pressões da burocracia estatal, das instituições
de formação profissional e dos empresários do ensino, a profissionalização
obrigatória no 2º grau foi extinta pela Lei Nº 7.044/1982. As Escolas Técnicas
Federais (ETF) foram exceção nesse processo de extinção da Lei, pois, nelas, a
predominância nos currículos, das disciplinas específicas sobre as disciplinas da
formação geral, valorizava a formação que ofereciam. Os autores ressaltam que, até
o final da década de 80, as ETF desempenharam o papel de formar técnicos de
nível médio, sendo reconhecidas pela sociedade de um modo geral, como
instituições que ofereciam ensino de qualidade. Em 1978, as ETF foram
transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) pela Lei Nº
6.545/1978, inicialmente nos estados do Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
depois se estendendo a outros estados.
Finalizado o período ditatorial, o Brasil entra no processo de
redemocratização na década de 80, período marcado por intenso debate
educacional. Naquele contexto, havia aqueles que defendiam que a educação
brasileira deveria se pautar pela concepção de formação integral (desenvolvida no
capítulo 3) e aqueles que advogavam em defesa de uma educação que atendesse à
demanda do mercado, que acabou por prevalecer em consonância com as políticas
neoliberais.
24
Apenas para dar sentido ao debate, adiantamos que a ideia de integração
emerge da acepção da educação socialista na busca por uma educação omnilateral,
ou seja, uma formação humana que contemple as dimensões física, mental, cultural,
política e científico-tecnológica para se alcançar o desenvolvimento integral do
trabalhador.
A partir da década de 80, mudanças ocorridas na organização político-
econômica mundial, reconhecida como globalização, refletem na educação e no
mundo do trabalho. O cenário é de profundas transformações caracterizadas por
novas configurações no pensamento científico e tecnológico, na organização do
trabalho, na reestruturação da produção (KUENZER, 2002), influenciando os
processos formativos escolares, em particular, a formação profissional.
De um modo geral, os reflexos dessa nova ordem mundial são consonantes
com o impacto da concepção neoliberal “que privilegia políticas de avaliação,
financiamento, formação de professores, currículo, ensino e tecnologias
educacionais influenciadas pelos modelos empresariais contemporâneos”
(MOREIRA e KRAMER, 2007, p. 1040).
No Brasil, na década de 90, tais reflexos acarretaram mudanças envolvendo a
formulação de políticas educacionais a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/1996). Segundo Frigotto (2007), as
reformas educacionais visavam atender aos interesses do mercado ditados por
organizações internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), a Organização Interamericana do Comércio (OIC) e o Banco Mundial (BM). O
projeto refletiu no papel do Conselho Nacional de Educação (CNE), no Plano
Nacional de Educação e na definição de Parâmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL, 1998) visando à reforma do ensino médio e técnico.
Por ocasião da elaboração da LDB supracitada, retomaram-se as discussões
sobre o caráter dual da etapa final da educação básica e da educação profissional.
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) relatam que, neste período, o deputado federal
Otávio Elísio apresentou uma proposta para o 2º. Grau, que vinculava a educação à
prática social e ao trabalho como princípio educativo, que é um conceito
fundamental da politecnia e da formação integral. Esta proposta colocava para o 2º
grau o objetivo de “propiciar aos adolescentes a formação politécnica necessária à
compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das múltiplas técnicas
25
utilizadas no processo produtivo” (BRASIL, 1991, Artigo 38 apud FRIGOTTO,
CIAVATTA e RAMOS, 2005, p. 25).
A concepção de trabalho como princípio educativo, que estava sendo
disputada, é baseada na teoria Marxista, segundo a qual o trabalho é considerado
como atividade ontológica, estruturante do ser social que se dá na relação com a
natureza e os demais. Nesta concepção, segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos
(2005), o trabalho “é a forma pela qual o ser humano se humaniza, se cria, se
expande em conhecimento, se aperfeiçoa. É base estruturante de um novo tipo de
ser, de uma nova concepção de história” (p. 2). Tal conceito não deve ter a sua
compreensão restrita a uma das suas formas históricas aparentes, quais sejam a
profissão, o produto do trabalho, as atividades laborais, sem considerar a
complexidade das ações sociais que estão em suas bases. Assim, trabalho e mundo
do trabalho só poderão ser apreendidos em sua historicidade, seja como atividade
criadora ou histórica, se forem focalizados na sua particularidade histórica, nas
mediações específicas que lhe dão forma e sentido no tempo e no espaço
(CIAVATTA, 2005). Segundo a autora, é a partir dessa acepção que o trabalho pode
ser entendido como princípio educativo.
No entanto, considerado pela academia uma “regressão histórica e política”,
em 1997, o Decreto Nº 2.208 regulamentou os artigos da nova LDB que tratam
especificamente da educação profissional, imprimindo ao ensino médio um caráter
puramente propedêutico, enquanto os cursos técnicos passam a ser oferecidos no
regime de concomitância (ensino médio e ensino técnico em cursos separados),
reforçando a dualidade que historicamente marcou essa etapa de ensino. Para Lima
Filho (2008), este decreto, caracterizado por forte orientação mercadológica, seria o
principal instrumento jurídico normativo das reformas realizadas no período de 1995
a 2002.
Nas esferas das regulamentações legais, a perspectiva de trabalho como
princípio educativo (e de formação integral) foi então derrotada e a nova LDB
acabou por estruturar a educação brasileira em dois níveis: a educação básica,
formada por educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, e a educação
superior (Art. 21). A segunda etapa da educação básica passa a chamar-se ensino
médio, e a educação profissional é tratada no texto como uma possibilidade de
formação em paralelo, na medida em que se torna opcional. No entanto, no texto da
lei, é possível depreender marcas de ambiguidade no que se refere à relação entre o
26
ensino médio e a educação profissional, quando assinala que “o ensino médio,
atendida à formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de
profissões, e técnicas” (Art. 36, § 2º) e, ao mesmo tempo, que “a educação
profissional será desenvolvida em articulação com o ensino regular ou por diferentes
estratégias de educação continuada, em instituições especializadas ou no ambiente
de trabalho” (Art. 40).
Com a separação, no que se refere às reformas curriculares, o ensino médio
e a educação profissional passaram a ter currículos próprios e independentes. Costa
(2011) salienta que se adotou a flexibilidade curricular associada à ideia de
formação por competências, no qual as disciplinas poderiam ser agrupadas por
módulos, como um dos princípios orientadores do currículo, em oposição à ideia de
currículo integrado proposto pela Lei Nº 5.692/1971, considerado, na época, uma
estrutura pouco flexível diante das rápidas mudanças do mundo do trabalho.
No texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação profissional
de nível médio, consta que as competências específicas de cada habilitação
deverão ser definidas pela escola na elaboração do currículo, sendo que a carga
horária mínima deverá ser de 1.200 horas (DCN, Parecer Nº 16/1999, p. 81). Vale
ressaltar que, no antigo Parecer do Conselho Federal Educação no. 45/72, que
regulamentava as Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional com base na
Lei Federal Nº 5.692/1971, a carga horária mínima do currículo, correspondente à
formação profissionalizante, era de 1.500 horas.
O currículo por competências ganha, assim, destaque nas propostas oficiais,
imputando à educação profissional o acompanhamento das rápidas transformações
do mundo produtivo, em decorrência da entrada de novos modelos tecnológicos de
produção. Costa (2011) nos chama a atenção para o sentido instrumental produzido
para o currículo, apreendido no texto do Parecer CNE/CEB Nº 16/1999:
Quando competências básicas passam a ser cada vez mais valorizadas no âmbito do trabalho, e quando a convivência e as práticas sociais na vida cotidiana são invadidas em escala crescente por informações e conteúdos tecnológicos, ocorre um movimento de aproximação entre as demandas do trabalho e as da vida pessoal, cultural e social. É esse movimento que dá sentido à articulação proposta na lei entre educação profissional e ensino médio. A articulação das duas modalidades educacionais tem dois significados importantes. De um lado afirma a comunhão de valores que, ao presidirem a organização de ambas, compreendem também o conteúdo valorativo das disposições e condutas a serem constituídas em seus alunos. De outro, a articulação reforça o conjunto de competências comuns a serem ensinadas e aprendidas, tanto na educação básica quanto na profissional. (BRASIL, 1999, p.25 apud COSTA, 2011, p. 42)
27
Com base nesse texto, depreendemos que o objetivo de formação no ensino
médio é equiparado ao da formação profissional, que seria a aquisição de
competências básicas em atendimento às demandas do mundo do trabalho. Franco
(1994) já afirmava que essa concepção significa
limitar o papel da escola concebendo-a apenas como uma agência de adestramento em que o domínio de técnicas ganharia primazia sobre as atividades voltadas para a formação integral do aluno. Isso, por outro lado, não implica fazer o raciocínio inverso e eximir a educação de qualquer responsabilidade pela formação profissional. Mais do que isso acreditamos ser a escola uma das oportunidades para capacitar o aluno a compreender o trabalho como categoria social - e histórica, desde que exista na escola a preocupação de levá-lo a entender as formas diferenciadas de vivenciar as relações de produção e as desigualdades delas decorrentes. (pp. 20-21)
No mandato do governo Luís Inácio Lula da Silva, iniciado em 2003, retoma-
se a discussão da década de 80 acerca da formação geral integrada à formação
profissional, técnica e tecnológica, em diferentes âmbitos institucionais,
governamentais e da sociedade. Nesse período, é possível identificar nos discursos
oficiais, no âmbito governamental, em defesa da integração entre ensino médio e
educação profissional, a prevalência da finalidade de "formação humana integral"
sobre aquelas voltadas apenas para as necessidades do mundo produtivo. O que se
buscava era a formação de um sujeito com autonomia intelectual, ética, política e
humana, em oposição à formação profissional que vise adaptar o trabalhador e
prepará-lo de forma passiva e subordinada ao processo de acumulação da
economia capitalista (MOURA, 2006; KUENZER, 2002).
Nesse contexto, revoga-se o Decreto N.º 2.208/97 que separava ensino
médio e educação profissional, buscando-se o resgate da integração a partir da
formulação das bases que deram origem ao Decreto Nº 5.154/2004. Esse Decreto
pretendia estabelecer um horizonte para o ensino médio consolidado pela formação
básica unitária e politécnica. (FRIGOTTO, 2005), no entanto, faz a crítica de que, ao
ser regulamentado, não incorporou novas concepções pedagógicas para a formação
profissional, apenas a oferecia simultaneamente e ao longo do Ensino Médio.
Todavia, mesmo tendendo para uma medida conciliatória entre as distintas
concepções e propostas da comunidade educacional, esse decreto, na perspectiva
de (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005), trouxe alternativas de implementação
de políticas públicas de integração contemplando trabalho, cultura, ciência e
tecnologia.
28
A partir desse novo cenário político, foi criado, ainda, o Documento base da
EPTM (2007), no mesmo período em que tramitava no Congresso Nacional o projeto
de emenda à LDB de 1996. Ambos os documentos são apresentados como
resultado de um processo de discussão nas esferas social, educacional e
governamental, sobre as finalidades do ensino médio com “centralidade nos seus
principais sentidos – sujeitos e conhecimentos – buscando superar a determinação
histórica do mercado de trabalho sobre essa etapa de ensino” (DOCUMENTO
BASE, 2007, p. 6). Esses debates apontavam uma crise no ensino médio marcada
pela falta de sentido e de significado para esse nível de ensino. O que estava sendo
defendido era a inserção social do aluno no mundo do trabalho, sem nele se fechar,
compreendendo também a continuidade dos estudos.
O Documento Base da EPTM (2007) é apresentado à sociedade como "ação
política concreta de explicitação dos princípios e diretrizes às instituições e sistemas
de ensino" (p. 9), visando à implementação da tão almejada formação integral,
buscando resgatar a oferta do ensino médio integrado à educação profissional. Os
fundamentos teóricos em que se baseiam as reflexões sobre formação integral,
apresentados no Capítulo 3 do Documento, tomaram por base trabalhos3 de
pesquisadores da formação profissional, sustentando o discurso de integração entre
ensino médio e educação profissional.
Em 2007, foi lançado o programa Brasil Profissionalizado objetivando a
modernização e a expansão do ensino médio integrado à educação profissional,
subsidiado com recursos do governo federal. Como parte dessa iniciativa, foram
criados, fundamentalmente a partir dos CEFETs, os Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Recentemente, foi aprovado pelo Congresso
Nacional o Projeto de Lei Nº 1.209/2011, voltado para a ampliação do acesso ao
ensino médio, criando o PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino
Técnico e Emprego), que pretende ampliar a oferta de cursos técnicos visando, além
da formação de quadros técnicos para o setor produtivo, a formação em profissões
associadas ao bem estar das pessoas, em particular nas áreas de saúde, educação
e meio ambiente.
3 A coordenação editorial do texto foi realizada por Dante Henrique Moura e o texto assinado por
Dante Henrique Moura, Sandra Regina de Oliveira Garcia e Marise Nogueira Ramos. Os trabalhos referenciados no capítulo foram Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) e Ramos (2007).
29
Em 29 de dezembro de 2008, foi homologada a Lei N.º 11.892 pelo governo
federal, através do Ministério da Educação (MEC), instituindo a Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFPT) e os Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia (IF). Inicialmente, foram criados 38 institutos, com
314 campi com abrangência em grande parte do território nacional, inclusive no
interior, atuando em cursos técnicos (50% das vagas), em sua maioria na forma
integrada com o ensino médio; licenciaturas (20% das vagas) e graduações
tecnológicas, podendo ainda disponibilizar especializações, mestrados profissionais
e doutorados, com ênfase na pesquisa aplicada com caráter de inovações
tecnológicas.
A concepção de integração do ensino médio à educação profissional pode ser
percebida no Art. 6º, inciso I da Lei Nº 11.892/2008 que apresenta como uma das
finalidades dos IF
ofertar educação profissional e tecnológica, em todos os seus níveis e modalidades, formando e qualificando cidadãos com vistas na atuação profissional nos diversos setores da economia, com ênfase no desenvolvimento socioeconômico local, regional e nacional. (BRASIL, 2008, grifo nosso)
No que concerne diretamente ao ensino de ciências e matemática,
identificamos nesta lei, intenções explícitas de ações propositivas que apontam para
os processos formativos de docentes e para a oferta de cursos de capacitação
docentes de outras escolas públicas, conforme descrito nos incisos V e VI do Art. 6º:
V - constituir-se em centro de excelência na oferta do ensino de ciências, em geral, e de ciências aplicadas, em particular, estimulando o desenvolvimento de espírito crítico, voltado à investigação empírica;
VI - qualificar-se como centro de referência no apoio à oferta do ensino de ciências nas instituições públicas de ensino, oferecendo capacitação técnica e atualização pedagógica aos docentes das redes públicas de ensino;
No Inciso VII – “desenvolver programas de extensão e de divulgação científica
e tecnológica” – o papel atribuído aos IF parece se aproximar da idéia de
alfabetização científica e tecnológica, quando propõe a realização da divulgação
científica e tecnológica associada aos programas de extensão que, em geral, são
programas que levam conhecimento para além dos muros da própria instituição, ou
seja, para a sociedade.
Observamos no Art. 7º, um dos sentidos de integração entre ensino médio e
educação profissional, ao apontar como objetivo dos IF
30
ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos. (BRASIL, 2008)
O uso da palavra prioritariamente deixa em aberto a possibilidade de oferta de
educação profissional não integrada ao ensino médio. É possível considerar, ainda,
outras alternativas de formação profissional possibilitadas pelo Decreto Nº
5.154/2004, que seriam as modalidades concomitante e subsequente.
No cenário atual, se evidencia a centralidade dada à articulação entre
educação profissional técnica de nível médio e o ensino médio nas políticas públicas
para a educação brasileira, com incentivos ao regime de cooperação entre União,
estados e municípios, buscando intensificar o aumento da oferta de educação
pública de qualidade associada ao desenvolvimento econômico e social.
Em um balanço da educação brasileira na primeira década do século XXI,
Frigotto (2011) critica a centralidade dada pelo governo a um “projeto
desenvolvimentista com foco no consumo” e em “políticas e programas para a
grande massa de desvalidos” em conciliação com os interesses da classe
dominante, no qual a educação universal e com igual qualidade é secundarizada e
concebida como desnecessária. Assevera que, em decorrência, as concepções e
práticas educacionais desta década foram definidas a partir das mesmas
concepções da década de 1990, (re)afirmando as parcerias público-privado
colocadas pela LDB de 1961, com exceção no que diz respeito à abrangência das
políticas aos grupos sociais assistidos e ao financiamento aplicado, dentre elas, a
expansão dos CEFET, hoje IF em sua maioria, promovendo cerca de 500 mil
matrículas. Em relação às formas de gestão e concepções que orientam as ações e
as políticas no campo educacional, o autor faz a crítica à ênfase dada aos
“processos de avaliação de resultados balizados pelo produtivismo e à sua filosofia
mercantil” que se refletem nos processos pedagógicos. Para ele, essas ações
valorizam a pedagogia das competências em detrimento da pedagogia histórica-
crítica, por conduzirem à aplicação dos métodos do mercado na escola e, assim,
afastando-se de uma educação unitária e omnilateral (FRIGOTTO, 2011, p. 244).
Um dos motivos desta preocupação emerge, segundo Frigotto (2011), das
atuais intenções do governo federal em eleger para a presidência da Câmara de
Educação Básica do CNE, o representante do Sistema S, gerido por empresários, e
assim, tornar as instituições de ensino prestadoras de serviços ligadas ao mercado,
31
nas quais o conhecimento é tomado como mercadoria. Nesse sentido, negligenciam-
se a função social e cultural da educação e valorizam-se indivíduos em competição
determinando uma sociedade dos que “passam pelo metro que mede o tempo fugaz
da mercadoria e de sua realização” (FRIGOTTO, 2011, p. 251).
A educação profissional vem se constituindo historicamente em um campo no
qual estão em disputa vários interesses governamentais, empresariais, de
instituições internacionais e, em particular, da esfera acadêmica que luta para
reverter a concepção adestradora e tecnicista profissional que, de um modo geral,
desde muito caracteriza os processos formativos profissionais no Brasil. A
preocupação da comunidade acadêmica em relação à EPT que nesta década
recebe atenção prioritária do governo, é a forma como vem se constituindo, tanto
pela manutenção de seu caráter privado (até 2008, cerca de 80% da educação
profissional estão nas mãos da iniciativa privada) como pelas DCN para a Educação
Profissional Técnica de nível Médio que parecem insistir em uma regressão ao
Decreto Nº 2.208/1997.
A ênfase crescente dada pelas políticas públicas para a educação profissional
integrada ao ensino médio e a discussão sobre suas determinações em relação à
ampliação das oportunidades de acesso à educação profissional técnica de nível
médio representam, ao mesmo tempo, a oferta em larga escala de educação
científica e tecnológica nesses moldes, com alcance para todo o território brasileiro.
Entretanto, poucos estudos têm sido desenvolvidos no sentido de se compreender
como vem sendo tecida essa integração e, a partir dessa noção, os sentidos que
são produzidos no contexto da educação profissional para a educação científica, o
que aumenta a relevância deste estudo.
32
3 REVISÃO DE LITERATURA
Embora a educação científica constitua a base curricular dos cursos de
formação profissional e tecnológica tal como proposto pela legislação nas últimas
décadas no Brasil, é incipiente o número de estudos na literatura especializada da
área de ensino de ciências e matemática que problematizem a educação científica
nesse contexto. Nas últimas décadas, a discussão sobre a educação profissional
vem se desenvolvendo prioritariamente no âmbito da pesquisa em educação,
precisamente nos grupos de pesquisa que investigam as relações entre trabalho e
educação. Por este motivo, a revisão da literatura apresenta, inicialmente, a
discussão que esses pesquisadores empreendem sobre a educação profissional e
sobre o conceito de formação integral.
Mesmo reconhecendo que a contribuição específica da área de ensino de
ciências para a discussão da educação profissional seja ainda incipiente, trazemos o
resultado de um levantamento realizado nas principais revistas da área, que resultou
em poucos artigos. Para além desses artigos, encontramos na discussão sobre
Alfabetização Científica e Tecnológica, objeto amplamente explorado pelo campo,
um ponto inequívoco de contato com a formação integral. Abrimos espaço para essa
discussão neste capítulo, entendendo que tanto a formação integral como a
alfabetização científica pode ser vista como perspectiva de qualidade da educação
científica no contexto da formação profissional de nível médio.
3.1 A FORMAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
Na concepção de Ramos (2008)
uma educação de qualidade é uma educação que possibilite a apropriação dos conhecimentos construídos até então pela humanidade, o acesso à cultura, à ciência e às mediações necessárias para trabalhar e produzir a existência e a riqueza social. (p. 62)
Segundo a autora, estes seriam, também, os pressupostos para a formação
integral.
33
Mas o que é integrar? É tornar íntegro, tornar inteiro, o quê? Ao empreender
essas reflexões, Ciavatta (2005) remete o termo ao “seu sentido de completude, de
compreensão das partes no seu todo ou da unidade no diverso, o que significa tratar
a educação como uma totalidade social" (p. 84). Segundo a autora, a ideia de
formação integrada sugere superar a redução da preparação para o trabalho com
vistas à realização de tarefas simples, que não contempla os conhecimentos que
estão na sua gênese científico-tecnológica. Como formação humana, o que se
busca é assegurar ao adolescente, ao jovem, ao trabalhador o direito a uma
formação completa que o possibilite a fazer a leitura do mundo e a atuar como
cidadão integrado dignamente à sociedade política (CIAVATTA, 2005, p. 85).
O conceito de formação integrada tem origem na educação socialista que
pretendia ser omnilateral, no sentido de formar o ser humano na sua integralidade
física, mental, cultural, política e científico-tecnológica. No Brasil, é recente a ideia de
integração entre formação geral e a educação profissional, que pode ser
identificada, conforme já mencionado nesse texto, na busca da superação histórica
do “dualismo da sociedade e da educação brasileira e nas lutas pela democracia e
em defesa de uma educação pública nos anos 1980” (CIAVATTA, 2005, p. 87).
Em outro estudo, Ramos (2008) se propõe a discutir sobre três sentidos de
integração entre ensino médio e educação profissional, que se complementam entre
si. Ao introduzir a discussão sobre integração nesse contexto, pergunta-se: "É só
uma questão de forma? São disciplinas da formação geral com a formação
profissional? Quando falamos de currículo integrado, do que estamos falando?"
O primeiro sentido atribuído à integração é o filosófico que expressa uma
concepção de formação humana, com base na integração de todas as dimensões da
vida no processo formativo, independente da forma ou tipo de formação, se é geral
ou profissionalizante (RAMOS, 2008, p. 63).
Nessa perspectiva, a integração das dimensões trabalho, ciência, tecnologia e
cultura implica entendimento do trabalho como princípio educativo, ou seja, é
considerar que o homem é produtor de sua realidade e, por isso, pode dela se
apropriar e modificá-la. Além do sentido ontológico, a autora considera, também, o
sentido de trabalho construído historicamente em relação aos aspectos econômicos
para garantir a nossa sobrevivência, produzir riquezas e satisfazer necessidades.
Esta relação econômica é fundamento da profissionalização, porém, ao integrar
trabalho, ciência, tecnologia e cultura, a profissionalização vai além da concepção de
34
formar para o mercado e incorpora outros valores e conteúdos históricos e científicos
que caracterizam a práxis humana (RAMOS, 2004, p. 45).
Nesse sentido, a autora considera que formar profissionalmente é
proporcionar a compreensão das dinâmicas sócio-produtivas das sociedades modernas, com as suas conquistas e os seus revezes, e também habilitar as pessoas para o exercício autônomo e crítico de profissões, sem nunca se esgotar a elas. (RAMOS, 2004, p. 45)
Assim, o trabalho deve ser compreendido no seu duplo sentido, ontológico e
histórico:
a) ontológico, como práxis humana e, então, como a forma pela qual o homem produz sua própria existência na relação com a natureza e com os outros homens e, assim, produz conhecimentos; b) histórico, que no sistema capitalista transforma-se em trabalho assalariado ou fator econômico, forma específica da produção da existência humana sob o capitalismo; portanto, como categoria econômica e práxis produtiva que, baseadas em conhecimentos existentes, produzem novos conhecimentos. (RAMOS, 2004, p.46)
Nessa perspectiva, a ciência é parte do conhecimento sistematizado e
expresso na forma de conceitos e métodos que são transmitidos de uma geração a
outra, podendo ser reconstruídos historicamente (RAMOS, 2004, p. 43).
Ao contextualizar a história da tecnologia a partir da revolução industrial,
seguida do taylorismo, do fordismo e da automação, a autora argumenta que esta se
encontra nos marcos da transformação da ciência em força produtiva. Portanto, é a
“mediação entre ciência (apreensão e desvelamento do real) e produção
(intervenção no real)” (RAMOS, 2004, p. 44).
No que concerne à cultura, Ramos (2004), com base na perspectiva de
Gramsci (1991 apud RAMOS, 2004), a compreende no seu sentido mais amplo
possível, ou seja,
como a articulação entre o conjunto de representações e comportamentos e o processo dinâmico de socialização, constituindo o modo de vida de uma população determinada. Portanto, a cultura é o processo de produção de símbolos, de representações, de significados, e ao mesmo tempo prática constituinte e constituída do e pelo tecido social. (p. 44)
Assim, uma formação integrada vai além de possibilitar o acesso aos
conhecimentos científicos ao promover a reflexão crítica sobre os padrões culturais
de um grupo social, assim como
a apropriação de referências e tendências estéticas que se manifestam em tempos e espaços históricos, os quais expressam concepções, problemas, crises e potenciais de uma sociedade, que se vê traduzida e questionada nas manifestações de obras artísticas. (RAMOS, 2004, p. 44)
35
Tomando como ponto de partida a concepção filosófica que acabamos de
expor, apresentaremos o segundo sentido de integração, com caráter político e
estruturante, que é o de indissociabilidade entre educação profissional e ensino
médio.
Ciavatta (2005) entende a educação que visa à formação integral como uma
totalidade social, isto é, “as múltiplas mediações históricas que concretizam os
processos educativos”. Esse tipo de formação propõe a indissociabilidade entre a
educação geral e a profissional em todos os âmbitos em que se dão os processos
educativos, buscando superar a ênfase em uma preparação para o trabalho
conformada por aspectos operacionais que não contemple os “conhecimentos que
estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social”.
Nesse sentido, a escola unitária é tomada na concepção de não dualidade
educacional, ou seja, que propicie a todos “o acesso aos conhecimentos, à cultura e
às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência e a riqueza
social” (CIAVATTA, 2005, p. 86).
Para Ramos (2008, p. 62), uma educação nessas bases precisa ser
politécnica, isto é, uma educação que ao propiciar ao sujeito o acesso aos
conhecimentos e à cultura construídos pela humanidade, propicie também a
realização de escolhas e o acesso ao trabalho como produção humana e como
práxis econômica.
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) definem formação politécnica com base na
acepção de Saviani (2003) como sendo “o domínio dos fundamentos científicos das
diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno”, destacando
que esse ideário busca, não separando educação básica e técnica, resgatar o
princípio da formação humana em sua totalidade. E ainda, do ponto de vista
epistemológico e pedagógico, propõem “integrar ciência e cultura, humanismo e
tecnologia, de modo a propiciar o desenvolvimento de todas as potencialidades
humanas” (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005, p. 35).
De acordo com Ramos (2008), na atualidade, existem dispositivos legais que
possibilitam a formação integrada. A partir do Decreto N.º 5.154/2004, tornou-se
possível desenvolver a educação integrada, objetivando garantir, aos sujeitos,
educação básica (ensino médio) e formação técnica profissional. A autora esclarece
que ao defender o significado formativo do trabalho para o ensino técnico, nas bases
conceituais discutidas nessa seção, não está querendo dizer que o ensino técnico,
36
por si só, é mais importante do que a formação geral, pelo contrário, em sua
concepção, caso não sejam integrados os conhecimentos da educação básica, este
ensino é reduzido a treinamento.
No cenário político atual, a formação integrada, entendida como sólida
formação básica em estreita ligação com a formação profissional, tornou-se possível
de ser realizada pelas escolas, uma vez que o Decreto N.º 5.154/2004 flexibilizou a
oferta de educação profissional nas modalidades: concomitante e subsequente. No
primeiro caso, a formação técnica é oferecida em currículos e em estabelecimentos
de ensino, diferentes. No segundo, com o caráter de formação continuada para o
jovem que já concluiu o ensino médio não profissionalizante e que deseja fazer a
formação profissional.
Porém, atingir a formação integral não se constitui em uma tarefa fácil. Ao
discutir a formação no sentido de integrar conhecimentos gerais e específicos
correspondentes à formação básica e profissional, Ramos (2005, p.52) introduz o
terceiro sentido de integração, questionando
como podemos proporcionar compreensões globais, totalizantes da realidade a partir da seleção de componentes e conteúdos curriculares? Como, então, poderíamos desenvolver uma formação que não separando formação geral e profissional, viabilizasse o ensino-aprendizagem de conhecimentos que possibilitam a compreensão da vida social como um todo?
Para a autora as respostas para tais perguntas estão na relação entre partes
e totalidade que pode ser entendida na perspectiva de uma visão histórica, ou seja,
aquela em que o conhecimento contemporâneo guarda em si a história de sua
construção ou na perspectiva que trata da relação entre o estudo de um fenômeno,
de um problema, ou de um processo de trabalho com a realidade em que se insere
(p. 52).
Ramos (2008) constrói o sentido de integração entre conhecimentos gerais e
específicos remetendo-o à concepção de totalidade curricular. A autora faz a crítica
à classificação das disciplinas como formação geral e específica, a qual considera
reflexo da formação dos professores de ensino médio baseada na hegemonia do
positivismo, argumentando que
não existe essa separação que o positivismo nos fez crer ao longo da história, com base na qual se naturaliza a ideia de que o professor da educação básica ministra as teorias gerais, enquanto o professor da formação técnica ministra as suas aplicações. (p.68)
37
Assim, segundo a autora, nenhum conhecimento específico é definido como
tal se são consideradas as finalidades e o contexto produtivo em que se aplicam. Da
mesma forma, um conhecimento de formação geral só adquire sentido quando
reconhecido em sua gênese a partir do real e em seu potencial produtivo. Para
superar a separação entre geral e específico, Ramos (2008) propõe vincular os
conhecimentos ao estudo e compreensão de fenômenos reais, visando estabelecer
relações entre o conhecimento e o que se pode compreender da realidade a partir
dele.
Com essa visão, Ramos (2008) sugere que na formação profissional
integrada ao ensino médio, qualquer processo de produção e/ou fenômeno social
seja estudado e compreendido em suas múltiplas dimensões, visto como totalidade,
ou seja, relacionando questões físico-ambientais, econômico-produtiva, sócio-
histórica e técnico organizacional.
No entanto, a autora nos adverte que não é tornar as disciplinas da formação
geral instrumentais à formação específica. A integração curricular proposta, exige
uma postura epistemológica baseada nos princípios de interdisciplinaridade e da
visão totalizante da realidade, em contraposição à ideia de somatório, superposição
ou subordinação de conhecimentos uns aos outros.
3.2 ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
A revisão dos principais periódicos da área de ensino de ciências revelou
apenas quatro trabalhos que se inserem no contexto da formação profissional. Em
um deles, Rubega e Pacheco (2000) apresentaram uma breve retrospectiva da
evolução sócio-histórica do técnico em Química e de sua prática no mundo
produtivo. Na discussão, os autores enfatizam os aspectos social, político e
científico-tecnológico na formação técnica de nível médio buscando superar a
ideologia imediatista de formação profissional e eliminar a perspectiva reprodutivista
das relações sociais como engrenagem do sistema capitalista. Foi possível
identificar uma aproximação entre a discussão empreendida pelos autores com a
discussão da formação integral desenvolvida na seção anterior, na medida em que
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os autores dão relevo aos aspectos sociais e políticos na formação do técnico em
Química.
Já o estudo de Borges e Carvalho (2005) buscou desvelar o significado do
termo “aprender” entre os alunos de uma escola agrotécnica. Os autores refletiram
sobre as convergências e divergências de significados a partir da visão dos alunos,
na tentativa de “evidenciar os invariantes e as categorias que expressam aspectos
relevantes do fenômeno estudado” (p. 1). Os resultados revelaram que os
significados do termo “aprender” abrangem “o sentido de aprender”, as “condições
para aprender” e “relações afetivo-relacionais no aprender” e a relação desses
significados com situações vividas em uma escola agrotécnica. Embora este estudo
tenha como contexto a educação profissional, seu objetivo se afasta da discussão
da EP apresentada anteriormente.
Outro trabalho discute a alfabetização científica e tecnológica (ACT) na
perspectiva da ênfase curricular que privilegia as relações entre Ciência, Tecnologia
e Sociedade (CTS) no contexto da EPTM. Neste estudo, Silveira e Bazzo (2009)
investigaram a concepção que empreendedores e gestores, envolvidos com o
processo de desenvolvimento de inovações tecnológicas dentro de incubadoras de
empresas de base tecnológica do Paraná, possuem sobre ciência, tecnologia,
inovação e suas relações com o contexto social. Como resultados, os autores
afirmam que a grande maioria dos participantes da pesquisa possui uma visão ainda
incipiente sobre ciência, tecnologia e suas relações sociais, evidenciando-se, dessa
forma, a necessidade de se mudar o paradigma atual da educação tecnológica, a fim
de transformar a concepção do profissional da área tecnológica quanto a sua
responsabilidade social nesse processo. Os resultados deste trabalho apontam a
necessária relação da formação profissional com a crítica ao papel da ciência e da
tecnologia no contexto histórico e social, o que também se alinha com a discussão
da formação integral.
O estudo de Salandim e Garnica (2010), pautado em uma síntese histórico-
sociológica sobre o panorama rural brasileiro, na constituição do ensino técnico e no
desenvolvimento do ensino técnico agrícola, se propuseram a discutir a dupla
marginalização que as escolas técnicas agrícolas sofrem, proveniente de sua
natureza profissionalizante e de sua vinculação com o meio campesino. Este
processo, além de segmentar, cindir e hierarquizar práticas e saberes, nos coloca
frente a frente não somente com o preconceito entre os saberes produzidos no
39
campo e na cidade, mas, sobretudo, aos saberes que deverão ser dedicados ao
trabalho, força motriz dos explorados. Os autores concluem que tal marginalização
ocupa também o interior das escolas, onde os professores de Matemática
apresentam resistências e acomodações em relação aos professores das áreas
técnicas e, de modo geral, ao sistema regular de ensino. Também é possível ver
aproximação entre os objetivos perseguidos pelos autores e a discussão da
formação integral na medida em que apontam a necessidade de cruzar o ensino (no
caso, profissional) com seus aspectos sociais.
Este caminho de integração de diferentes objetivos para a educação científica
está presente na arena da conceituação de alfabetização científica (AC) e de
letramento científico (LC)4. Santos (2007) defende uma educação científica cujas
leituras de informações científicas e tecnológicas, possibilitem a compreensão das
relações entre ciência-tecnologia-sociedade, propiciando a interpretação de sua
função social. Segundo o autor, a discussão sobre o conceito de AC como meta do
ensino de ciências ganha ênfase nos anos de 50 e 60. Com o crescimento da
indústria americana no final da década de 40 e início da década de 50, surgiu a
necessidade de formar cientistas e engenheiros para atender ao crescimento
socioeconômico do país. Em seguida, nos anos de 50 e 60, frente ao desafio do
lançamento do Sputnik soviético, a política desenvolvida para o ensino de ciências
privilegiava objetivos políticos e econômicos em detrimento dos culturais e sociais. O
que se pretendia era a formação de uma elite científica e tecnológica capaz de
promover, com êxito, a investigação americana (FOUREZ, 1997). Dessa forma, a
ciência se tornou um componente importante do currículo geral pré-universitário nos
Estados Unidos como ocorreu em outros países industrializados.
Dentre as definições formais de AC, Shamos (1995) afirma que elas variam
de um extremo que vai desde a compreensão mínima de ciência, variando o nível de
conhecimento científico necessário para os profissionais iniciantes no campo de
conhecimento da ciência até o outro extremo, no qual pouco ou quase nenhum
conhecimento científico formal é necessário para ser alfabetizado cientificamente.
Nessa última visão, a prevalência é dada à compreensão dos problemas sociais
trazidos pela ciência e tecnologia sobre a busca de soluções para os mesmos.
4 Santos (2007) posiciona-se a favor de uma diferenciação não dicotômica entre estes termos, mas
tende a caracterizar AC como “domínio da linguagem científica” e LC no sentido do uso do conhecimento científico voltado para a “prática social”.
40
Shamos (1995) discute a busca pela AC a partir de dois aspectos, a saber, o
da auto-justificação e perpetuação da ciência e das profissões para a educação
científica e o da educação generalizada objetivando criar um público cientificamente
alfabetizado. Tomando o segundo aspecto como objetivo da educação científica, o
autor define AC com base nos benefícios que a sociedade e o indivíduo possam
obter, se os seus membros forem suficientemente letrados para participar
inteligentemente em assuntos sociais da ciência. Contudo, ao teorizar sobre estas
concepções polemiza sobre a inadequação destes objetivos no contexto do nível
médio de ensino, alegando que quando os alunos se tornam adultos, fase em que os
considera mais responsáveis e capazes de contribuir para o bem coletivo, não há
nenhuma garantia que tenham retido tais conhecimentos, ainda que tenham tido um
bom desempenho nas disciplinas científicas (p.76).
Ainda sob o ponto do ponto de vista das implicações sociais da ciência,
Shamos (1995) explicitando Benjamin Shen, refere-se ao objetivo da AC cívica como
aquela que oportuniza “ao cidadão tornar-se mais consciente da ciência e das
questões relacionadas com a ciência, para que ele e os seus representantes
possam ter bom senso para lidar com estas questões" (p. 87). Após uma extensa
revisão sobre visões de AC, o autor sugere superar a radicalização simplista de
considerar o sujeito alfabetizado ou analfabeto científico, e, ao invés disso, distinguir
níveis de alfabetização obtidos durante a exposição formal à ciência em uma
organização verticalizada, quais sejam Alfabetização Científica Cultural;
Alfabetização Científica Funcional e Alfabetização Científica “Verdadeira”.
Pautado na definição de Hirsch, Shamos (1995) define AC Cultural como o
entendimento de certas comunicações básicas que comunicadores devem realizar a
partir do conhecimento de suas audiências. No entanto, faz a crítica de que a AC
não pode se bastar à aquisição do léxico científico, colocando os sujeitos em uma
zona de conforto em relação a não se sentirem totalmente analfabetos em ciências
(p. 90). Então amplia este nível para AC Funcional exigindo que o sujeito seja capaz
de conversar, ler e escrever de forma coerente e usar termos científicos em
contextos não técnicos, mas em discurso significativo sobre artigos científicos e seja
capaz, também, de formular perguntas inteligentes sobre ciência. Em um nível
acima, está a AC “Verdadeira” exigindo que o sujeito conheça as teorias nas quais
se fundamenta a ciência, o papel da experiência na ciência, os elementos da
investigação científica, o raciocínio analítico e dedutivo, o pensamento lógico e
41
outros. Todavia, reconhece que é uma exigência difícil a de que as pessoas, além
de tornarem-se alfabetizadas, mantenham-se alfabetizadas em ciência. Segundo o
autor, deve-se levar em conta questões, por exemplo, que giram em torno da carga
emocional associada às questões sociais da ciência, financiamentos, compromisso
por parte dos alunos, a dificuldade inerente à compreensão dos conceitos científicos,
etc. (pp. 92-97).
Chassot (2000) afirma que AC deve ser considerada como “o conjunto de
conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo
onde vivem” (p. 19). Em outro trabalho (CHASSOT, 2003), o autor acrescenta que
“ser alfabetizado cientificamente é saber ler a linguagem em que está escrita a
natureza” (p. 91) e, ao falar de ciência como linguagem, associa este conceito à
capacidade do cidadão de prever e transformar a natureza para melhorar a
qualidade de vida das pessoas.
Para Delizoicov e Auler (2001), a ACT deve problematizar “mitos”, como por
exemplo, o da “superioridade do modelo de decisões tecnocráticas, a perspectiva
salvacionista da Ciência e Tecnologia e o determinismo tecnológico” (p. 2). Os
autores defendem a concepção ampliada de ACT que não só problematiza como
busca superar a visão de EC com base nos citados mitos, atenta aos temas
socialmente relevantes, como a democratização da ciência e tecnologia como
aspecto essencial ao exercício da cidadania. O pressuposto seria, então, a
democratização do acesso a esse conhecimento no sentido de formar cidadãos
capazes de pensar a ciência a partir de uma postura crítica, ativa que lhes permitam
compreender e participar dos processos decisórios visando o bem individual e
coletivo.
Fourez (1997) relaciona ACT à necessidade de "promoção da dignidade
humana nas sociedades chamadas desenvolvidas" (p. 19). Em sua análise, atribui à
intensa discussão sobre ACT e ao movimento de Ciência, Tecnologia e Sociedade, à
crise do ensino de ciências que se manifesta, em todo mundo, nos níveis
pedagógicos e socioeconômicos. No nível pedagógico, segundo o autor, os
obstáculos estão relacionados ao ensino de conteúdos incoerentes e irrelevantes
para as necessidades atuais dos alunos o que interfere diretamente na
aprendizagem pelo fato “de os alunos não reterem grande coisa depois de alguns
anos”. Acrescenta ainda, que, a alfabetização científica está intrinsecamente
relacionada com a alfabetização tecnológica e qualquer distinção entre esses
42
conceitos seria, no mínimo, “artificial”, pois ambos são produções humanas,
criadoras de modelos vinculados a situações, contextos e projetos particulares
(FOUREZ, 1997, p.21).
Em outro trabalho, Fourez (2003) analisa a crise do ensino de ciências a partir
da discussão sobre suas finalidades. Em sua análise, afirma que a finalidade da ACT
centra-se na formação cidadã, enquanto que, o ensino de “proezas científicas”
visaria à preparação de especialistas. Embora afirme que estas sejam orientações
distintas, chama a atenção para a complementaridade entre essas duas
abordagens, questionando se para formar especialistas não seria necessário
priorizar a ACT de todos, em outras palavras: “se é dado a muitos o sentido do que
se pode fazer com as ciências, as vocações científicas poderiam se desenvolver”
(p.114).
Na sequência de seus estudos, Fourez analisa o conceito de AC, associando-
o ao desenvolvimento do que ele chama de “unidades de racionalidade” constituídas
por um conjunto de conhecimentos de base em ciência e tecnologia. Para o autor,
esses conhecimentos possibilitariam às pessoas participar ativamente na sociedade,
na compreensão de fenômenos e na aquisição de novos conhecimentos. Nesse
sentido, as finalidades do ensino de ciências relacionam-se diretamente com o
desenvolvimento de tais racionalidades.
Entendemos que a educação profissional técnica de nível médio pautada pelo
princípio da integração, tanto possibilitará o contato com os conceitos e princípios
científicos básicos, na ótica dos aspectos apresentados, como poderá permitir o
desenvolvimento de habilidades necessárias à compreensão, à intervenção e à
tomada de decisões voltadas para questões científicas e tecnológicas, como já
discutidos pelos autores aqui apresentados. Essa concepção de formação
profissional em consonância com a formação de cidadãos capazes de analisar,
interpretar, inferir e decidir em um processo democrático de participação na
sociedade, aponta para o rompimento com a noção de formação técnica
instrumental e a aproxima dos pressupostos da alfabetização científica que
pressupõem uma formação mais ampla que vá além da preocupação em formar
bem, técnicos especialistas para o mercado de trabalho, mas cidadãos que se
compreendam e ao mundo em uma perspectiva sócio-histórica e cultural.
43
3.3 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO DEBATE DE SUAS FINALIDADES
A história da pesquisa em ensino de ciências pode nos ajudar a entender
como têm sido postas questões sobre a sua qualidade. Sua origem na América do
Norte, como consequência dos esforços empreendidos para aumentar a eficiência
do ensino de ciências frente à corrida espacial na década de 50 do século XX,
marca até hoje, com traços do eficienticismo pretendido naquele momento, tanto a
pesquisa quanto o ensino nessa área. Desde então, a pesquisa em Educação em
Ciências (EC) tem priorizado os aspectos metodológicos e epistemológicos e a
consideração à lógica do conhecimento científico de referência no sentido de
garantir a eficiência dos processos de ensino-aprendizagem.
Esta característica, ainda dominante, assume a qualidade do ensino de
ciências enquanto qualidade do processo educativo sem ver como necessária a
reflexão sobre seus objetivos, assumindo-os como evidentes ou como a formação de
quadros técnicos necessários ao desenvolvimento científico e tecnológico e ao
mercado. Esta falta de questionamento dos objetivos da EC parece desconsiderar a
educação como campo intrinsecamente político e social o que, por conseguinte,
deixa a discussão sobre qualidade passar ao largo desses aspectos.
É possível ver essa tendência na área de física, por ter sido esta área, entre
as ciências naturais, a precursora no desenvolvimento de pesquisas em ensino. De
acordo com o mapeamento realizado por Rezende, Ostermann e Ferraz (2009), o
estado da arte da produção nacional sobre o ensino de física concentra-se na
temática ensino-aprendizagem, apoiando-se sobre um tripé: propostas de
metodologias e estratégias de ensino, desenvolvimento de experimentos para o
laboratório didático e elaboração de recursos didáticos para a sala de aula. As
autoras interpretam essa configuração da área como “a expressão de uma visão
instrumentalista da pesquisa em ensino e muitas vezes tecnicista do processo
educativo, que visa basicamente ao fornecimento de subsídios ao professor para
melhorar o desempenho do aluno” (p. 5).
Considerando que, assim como a física, as áreas de biologia, química e
matemática tenham priorizado o desenvolvimento e a pesquisa das dimensões
metodológicas e epistemológicas do ensino, é possível vislumbrar que a produção já
alcançou um nível de conhecimento importante no sentido de indicar
44
direcionamentos para a qualidade da prática docente e da aprendizagem como,
entre outros, a necessidade de considerar o conhecimento prévio do aluno, a
necessidade de mudar a crença epistemológica empirista impressa no ensino de
ciências, a necessidade de fomentar interações dialógicas e caminhos para
incorporação das tecnologias da informação e comunicação no ensino.
Por outro lado, a área de EC tem dado pouca importância às políticas
educacionais como caminho para se atingir a qualidade. Talvez justamente a falta de
reflexão política tenha como consequência o fato de que a produção acadêmica da
área acaba se prestando ao atendimento e divulgação das propostas curriculares
oficiais (REZENDE e OSTERMANN, 2005). Sendo os PCN (BRASIL, 1998) do
ensino médio para a área de ciências naturais construídos a partir dos conceitos de
interdisciplinaridade, competências e contextualização, é possível inferir que a
pesquisa tem assumido estes conceitos como sinônimos de qualidade. Entretanto,
críticas aos PCN trazem à tona objetivos educacionais que são valorizados a partir
dos conceitos metodológicos dessa proposta. Por meio dos conceitos de
contextualização e competências seria difundida a ideia de que a educação deve
servir de ferramenta de inserção social, vinculando-se ao mundo produtivo, sem se
preocupar com os questionamentos de como se constituiu ou se constitui este
mundo. Como consequência, tem-se observado que muitos professores entendem o
princípio da contextualização como sinônimo de abordagem de situações do
cotidiano, no sentido de descrever os fenômenos da natureza com a linguagem
científica, deixando de explorar as dimensões sociais, políticas e culturais nas quais
esses fenômenos estão inseridos (SANTOS, 2007).
Entendemos que, embora toda a produção da área dedicada ao processo de
ensino-aprendizagem possa ser considerada um passo importante na direção da
qualidade, não há como desvincular a reflexão sobre a qualidade do ensino de
ciências da reflexão sobre seus objetivos. Gurgel (1999) aposta que uma educação
científica de qualidade deve não apenas responder aos anseios de uma sociedade
envolvida pela cultura tecnológica, mas, sobretudo, aos sujeitos que, em seus
cotidianos, precisarão entender seus próprios mundos, tanto no âmbito de seus
componentes naturais, quanto acerca dos aspectos histórico-culturais,
considerando-se a interação entre o homem e a natureza em suas diversas
dimensões.
45
Encontramos no discurso de Lemke (2006) a proposta de formular objetivos
para a educação científica dentro de nossos objetivos mais amplos para a educação
em geral e de nossa definição do que seja necessário para uma sociedade melhor e
uma vida melhor para as pessoas, portanto, não devem ser meramente técnicos ou
objetivar apenas a formação de “trabalhadores capacitados e consumidores
educados para uma economia global” (p. 6).
Lemke (2005) defende a reorientação do currículo de ciências para questões
e problemas sociais que terão que ser enfrentados por toda a humanidade no século
XXI, como a crise ambiental, a injustiça social e a opressão invisíveis para com os
mais jovens visando a uma sociedade melhor e uma vida mais satisfatória para as
pessoas. O autor acredita que legisladores e protagonistas da EC devem tomar
atitudes políticas e morais ou seremos julgados, seja pelos estudantes, seja pela
história, como socialmente irresponsáveis.
Esta orientação está longe de ser realizada, apesar de defendida, atualmente,
por alguns pesquisadores, como Banet (2007), para quem é evidente que a
formação recebida pelos estudantes no ensino secundário, centrada nos conceitos e
leis próprios das disciplinas não atende às necessidades da sociedade atual e deixa
de lado outros âmbitos formativos importantes como os processos que caracterizam
a atividade científica. Assim, nem se efetiva uma educação científica satisfatória,
nem se atendem às necessidades formativas dos cidadãos na atualidade.
Os estudos sobre as abordagens curriculares com ênfase na relação Ciência-
Tecnologia-Sociedade (CTS) são a linha de pesquisa da área que prioriza a
qualidade política da ciência e da educação. Estes estudos, que na essência se
aproximam dos fundamentos da ACT, defendem um currículo que explore a relação
entre Ciência, Tecnologia e Sociedade e apontam como sua principal proposta a
preparação dos estudantes para o exercício da cidadania (SANTOS e MORTIMER,
2002). Estes autores alertam, por outro lado, que uma reforma curricular com ênfase
CTS implica mudanças de concepções do papel da educação e da EC ou estaremos
incidindo no erro de simplesmente maquiar os currículos atuais com pequenas
aplicações de temas sociais do cotidiano.
É reconhecido que, ao longo das últimas décadas, a educação científica tem
sido impulsionada por interesses políticos voltados para a formação da força de
trabalho técnica e cientificamente preparada. Lemke (2005) considera que este
processo tem excluído grande parte da população, contribuindo para o isolamento
46
da educação científica das preocupações cotidianas de estudantes de todas as
idades. Esta crítica vai ao encontro do que especialistas em currículo defendem ao
alertarem que a dignidade humana, a identidade cultural e a diferença precisam ser
consideradas nas propostas curriculares, caso contrário nos arriscaremos a
promover um ensino para poucos, excluindo e marginalizando grande parte da
população (MOREIRA, 2001).
Além destas, outras questões podem ser levantadas quando propomos a
reflexão sobre a qualidade da EC: quais são as finalidades da educação científica de
qualidade? Uma EC que visa apenas à preparação de força de trabalho técnica e
cientificamente qualificada e à integração ao mercado? Finalidades que possam ir
ao encontro de expectativas de melhor qualidade de vida, desenvolvimento de
potenciais humanos e culturais (LOPES, 2004)? Que visão de ciência seria
compatível com um currículo de qualidade? Uma ciência inquestionável, com seus
objetivos próprios e rumo autônomo, que se coloca acima dos interesses dos
cidadãos comuns ou a ciência que se curva aos problemas socioculturais do nosso
tempo? Que políticas curriculares e de avaliação na área das Ciências da Natureza
significam qualidade da educação? Políticas que democratizem acesso e qualidade
da educação ou que priorizam a educação para todos e a qualidade para poucos?
47
4 QUADRO TEÓRICO
Esta pesquisa está fundamentada em constructos da teoria da enunciação do
filósofo russo Mikhail Bakhtin, que concebe a linguagem como constituidora do
sujeito, ao considerar seu caráter dialógico e ideológico. Nesta perspectiva, o autor
distancia-se da concepção de linguagem apenas como um sistema de signos
abstrato e estável e a percebe como um fenômeno social, histórico e ideológico,
elemento de comunicação, que, por consequência, “não poderá jamais ser
compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta” de produção
(BAKHTIN, 1994, p. 124).
Este estudo não pretende desenvolver uma tese sobre linguística, mas se
apropriar dos preceitos da teoria bakhtiniana para aprofundar as relações existentes
entre os usos da linguagem, a formação dos sujeitos e a produção de
conhecimentos.
Interessa-nos, assim, abordar alguns dos princípios que nos auxilie na
apreensão e análise dos sentidos do ensino de ciências que integram as
perspectivas dos professores investigados. O termo perspectiva será apropriado a
partir de uma equiparação com o conceito de voz de Bakhtin (2003), o qual designa
o ponto de vista, a visão de mundo, o posicionamento assumido pelos sujeitos a
partir dos elementos axiológicos e ideológicos mobilizados em suas enunciações
para integrar os sentidos que dão ao objeto de fala.
Assim, nessa seção, estabelecemos um diálogo com pressupostos teórico-
metodológicos bakhtinianos que fundamentam a análise do material empírico desta
investigação.
4.1 INTRODUÇÃO À OBRA DE BAKHTIN
Antes de iniciar a análise dos princípios que fundamentam a teoria
bakhtiniana da linguagem, apresentamos algumas informações relevantes sobre a
obra de Mikhail Bakhtin, que poderão proporcionar uma melhor compreensão de sua
obra e de suas ideias.
48
Os problemas com a tradução dos textos originais, escritos em russo, para
outros idiomas, imprimiram à leitura da obra de Bakhtin, um certo grau de
dificuldade, principalmente, pelas diferentes terminologias e proposições, ficando ela
sujeita a diversas e distintas interpretações. Somam-se a isso dois fatores
importantes. Um deles, a dúvida quanto à autoria de alguns textos, polêmica que se
criou quando o linguista Viatcheslav V. Ivanov afirmou que o livro intitulado Marxismo
e Filosofia da Linguagem havia sido escrito por Bakhtin e não por Volochinov, que
assinara a primeira edição (FARACO, 2003). Neste trabalho, será adotado o mesmo
critério das publicações brasileiras atuais, indicando-se ambos os autores nas
citações que se referem aos textos de autoria duvidosa.
Uma outra maneira de contornar essa polêmica é se referir ao “Círculo de
Bakhtin” que inclui os estudos realizados por Bakhtin e um grupo de profissionais, de
diferentes áreas e interesses, que durante os anos de 1919–1929, trabalhava em
clima de amizade e colaboração. Para Faraco (2003), porém, três desses
intelectuais merecem atenção, Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, não só devido à
confusão de autoria dos textos, mas também pela representatividade desses acerca
do pensamento do Círculo.
Esses aspectos controversos de sua obra podem ser explicados, em parte,
por sua história de vida. Bakhtin viveu na Rússia pós-revolução bolchevique, tendo
sido exilado no Cazaquistão pelo regime stalinista, em 1929, e proibido de retornar a
Moscou até 1969. Nesse período, não publicou e trabalhou como professor em uma
cidade nos arredores da capital. Finalmente, na década de 60, foram autorizadas
publicações de seus textos, e que estão, em sua maior parte, ainda inéditos.
É importante destacar que Bakhtin, inicialmente, voltou seus estudos para o
campo da literatura e da estética, tendo no ápice de sua elaboração teórica aspectos
relacionados ao gênero romance, contudo a teoria bakhtiniana passou a configurar
as bases para uma nova percepção do sujeito nas Ciências Humanas, por “examinar
também a sistematicidade do discurso cotidiano, contribuindo, portanto, para uma
nova perspectiva a respeito da linguagem humana e de seus estudos” (BRAIT, 2001,
p. 35).
A década de 70 foi um marco para a recepção dos trabalhos de Bakhtin no
Ocidente, cuja repercussão, até parte da década de 80, ainda se referia às críticas
literárias. As obras que mais influenciaram os estudos com abordagens enunciativas
e discursivas foram a tradução de Problemas da Poética de Dostoievski (1929) e
49
Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929). Esta última foi considerada como uma
mudança de paradigma para os linguistas. Enquanto a primeira apresenta os
conceitos de dialogismo e polifonia, fundamentais em sua teoria, a segunda é
marcada pela perspectiva histórica, social e cultural da linguagem, que define o
sujeito bakhtiniano formado na e pela interação verbal, e por anunciar,
subliminarmente, conceitos que foram redimensionados em obras escritas mais
tarde, como, por exemplo, o de gênero discursivo. Tais obras são: Questões de
literatura e de estética: a teoria do romance de 1978, e Estética da criação verbal de
1979 (BRAIT, 2003). Longe da pretensão de explorar por completo sua produção
literária, ao longo de sua complexa história de vida, essas breves informações
pretendem orientar o leitor quanto a possíveis caminhos para uma melhor
compreensão da abordagem discursiva e enunciativa dos estudos da linguagem na
concepção bakhtiniana.
Buscamos, na teoria da linguagem bakhtiniana, constructos que
contribuíssem para elucidar as questões que norteiam esta pesquisa, principalmente
em seus textos: Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006), The Dialogic Imagination
(1994) e Estética da Criação Verbal (2010). Dentre os principais conceitos
desenvolvidos por Bakhtin em sua obra, dialogismo e polifonia foram,
fundamentalmente, os que nos auxiliaram no conhecimento e compreensão do
objeto de pesquisa. A partir do desdobramento da pesquisa, envolvendo a análise
dos dados, fomos nos apropriando de outros conceitos, mencionados e
desenvolvidos ao longo da seção seguinte.
4.2 A ARQUITETÔNICA BAKHTINIANA DA LINGUAGEM
No início do século XX havia duas tendências nos domínios da linguística,
que se confrontavam para estabelecer os pilares conceituais a respeito da natureza
da linguagem. De um lado, o objetivismo abstrato, de Ferdinand de Saussure,
limitou-se ao estudo da língua como sistema imutável, estável e normativo de formas
linguísticas, transmitido de geração em geração, um mero instrumento para a
descrição linear de fatos e coisas. De outro lado, havia o subjetivismo idealista,
concepção segundo a qual, a língua é percebida como criação individual, fruto de
operações imanentes e intrapsíquicas. Para Bakhtin (2006), ao privilegiarem as
50
manifestações abstratas e estruturais da língua em detrimento da dinamicidade
constituidora da fala, estas correntes apoiavam-se na enunciação monológica como
ponto de partida, não valorizando sua natureza social.
A filosofia da linguagem de Bakhtin (2006) é a filosofia do signo ideológico.
Signo entendido como “arena de luta”, resultado de um confronto entre sujeitos
socialmente organizados em um processo de interação que lhe assegura a
existência para além de objeto ou de instrumento, estando intimamente relacionado
aos processos de significação nas interações verbais e sociais dos falantes, como
explicitado a seguir:
Em todo ato de fala, a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada, enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de decodificação que deve, cedo ou tarde, provocar uma codificação em forma de réplica. Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 67)
Na concepção de Bakhtin (2006), a compreensão do homem e das relações
que estabelece na vida com o trabalho, com o outro, com o conhecimento de um
modo geral, é construída por meio de signos criados e recriados na interação verbal.
Por esta razão, a enunciação passa a constituir um dos pontos centrais de sua teoria
da linguagem, na medida em que é considerada território conflituoso e dinâmico de
produção de sentidos a partir de relações dialógicas entre os signos e entre estes e
as condições da situação social concreta de interação verbal.
Assim, a enunciação é de natureza social, compreendida como “o produto da
interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um
interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social
ao qual pertence o locutor” (BAKHTIN, 2006, p. 114). Portanto, a enunciação é uma
resposta e não existe fora do contexto social.
Por realizar-se em um processo de relação social, todo signo é ideológico e
está intrinsecamente marcado por uma realidade social datada e determinada por
um grupo social. A interpretação de signo como “material semiótico-ideológico” nos
leva ao entendimento de que língua e ideologia estão imbricadas em todo ato de fala
e qualquer mudança de ideologia implica mudança na língua, uma vez que para
Bakhtin (2004),
51
a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não seja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN, 2004, p. 34)
Nesta perspectiva, o signo e a língua se transformam em uma relação de
reciprocidade ao se materializarem na interação verbal, em diálogo permanente
entre dois níveis: o da infraestrutura, que representa a realidade (por exemplo, o
aspecto econômico) e o da superestrutura, entendida como as manifestações
sociais, culturais e políticas, que circunscrevem uma determinada ideologia.
Faraco (2003, p. 46) confirma esse sentido de ideologia, assumido pelo
Círculo de Bakhtin:
A palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do “espírito” humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num vocábulo de sabor mais materialista). Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar uma certa terminologia marxista).
Assim sendo, os signos linguísticos são entes ideológicos, que não emergem
de atos isolados de fala individual e nem do sistema abstrato de regras gramaticais
da língua, mas surgem na interação verbal, constituídos por valores sociais, sempre
em tensão, em um processo dinâmico de (re)significação. Nessa visão, entendemos
que quando expressamos um ponto de vista em relação a um determinado assunto,
este reflete ideias e pensamentos em relação com a realidade concreta na qual nos
inserimos, porque segundo Bakhtin (2006)
através da palavra me defino em relação ao outro, isto é, em última análise, à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. (p. 116)
O sujeito bakhtiniano é então concebido como um ser social e dialógico
formado na e pela interação verbal e que só pode ser entendido pelos seus textos,
no sentido mais amplo do termo, ou seja, nos atos de fala, gestos, atitudes,
enunciados, discursos produzidos em uma situação social e histórica. Um sujeito
que só existe na relação com o outro e por isso se constitui em alteridade, como nos
explica Sobral (2005, p. 22):
52
A proposta é a de conceber um sujeito que sendo, um “eu para si”, condição de formação de identidade subjetiva, é também formação de identidade de um “eu para-o-outro”, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável, que lhe dá sentido.
E, ainda, um sujeito que existe a partir do diálogo com o outro, porque
No diálogo com o outro, eu não harmonizo as diferenças (que são essenciais à prática dialógica), não supero as frustrações que me são impostas pelos limites (efetivos) da comunicação, não elimino os riscos, porém aprendo a apreciar a polifonia, aprendo a ouvir a diversidade das vozes. Exercito-me numa linguagem que amplia meus horizontes para a compreensão do que está além do saber constituído. Educo-me no respeito à inesgotabilidade do real. Desenvolvo a capacidade de combinar a preservação da minha identidade com uma abertura menos tímida para a alteridade. (KONDER, 1996, p. 7)
Nesse sentido, o sujeito bakhtiniano é um ser inacabado, incompleto e
inconcluso a partir do valor atribuído à palavra e à interação com o outro. Segundo
Bakhtin (apud BRAIT, 2005), “a alteridade define o ser humano, pois o outro é
imprescindível para sua concepção: "é impossível pensar no homem fora das
relações que o ligam ao outro” (p. 28). A ideia de alteridade em Bakhtin é um dos
tópicos mais fundamentais e discutidos no campo da enunciação e tem como eixo
central a relação entre o eu e o outro, porque é o outro que constitui ideologicamente
o sujeito proporcionando-lhe o acabamento. Ou seja, enquanto vivo, somente o
outro pode dar a mim, como criação, este acabamento, a partir do que ele vê, sabe e
conhece a meu respeito e que eu mesma não posso por não ter esse domínio
(BAKHTIN apud FREITAS, 2007, p. 18).
Por considerar a formação e o desenvolvimento da bagagem sociocultural de
cada pessoa, numa perspectiva interdiscursiva, a noção de alteridade torna-se
fundamental na teoria bakhtiniana. Bakhtin (2010) relaciona o princípio da alteridade
à posição responsiva ativa do sujeito diante do texto, no empenho por compreendê-
lo: levando-o a concordar ou discordar, criticar, refutar, seja total ou parcialmente, na
busca por compreensão. Assim, ao reagir ao processo de audição (para além dos
sinais vocais) do texto, “o ouvinte torna-se falante” (BAKHTIN, 2010, p. 271). Por
isso, no plano da enunciação, o homem é um ser de resposta: “Todo falante é por si
um respondente em maior ou menor grau” (BAKHTIN, 2010, p. 272). Ele pressupõe
uma anterioridade aos enunciados, seus e alheios, em uma complexa relação
dialógica, fazendo de cada enunciado
53
um elo na cadeia da comunicação discursiva que não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 300)
No discurso literário, Bakhtin definiu duas modalidades para o gênero
romance: o monológico e o polifônico. À primeira, segundo Bezerra (2008, p. 191),
“estão associados os conceitos de monologismo, autoritarismo e acabamento; à
categoria de polifônico, os conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade,
dialogismo e polifonia”.
Influenciado pelo pensamento de Dostoievski, Bakhtin (1929) passa a
defender a noção de que, no discurso monológico, as ideias são assumidas como
verdadeiras ou falsas, submetendo-se como dogmas à perspectiva do autor. Neste
modelo não se escuta a voz do outro e não se considera o outro como outra
consciência viva e falante. Lembrando que o termo voz, para Bakhtin (2010), se
refere à consciência falante presente nos enunciados, entendida como visão de
mundo do falante e, portanto, carregada de juízo de valor e expressividade e não
deve ser confundida com os sinais audiovocais.
Amorim (2002) afirma que todo discurso dogmático é necessariamente
monológico, porque nesse discurso, apenas uma voz pode ser ouvida. Mas, ao
mesmo tempo adverte que o inverso não é verdadeiro, por não existir a possibilidade
de um discurso ser exclusivamente monológico, uma vez que em todo discurso há,
pelo menos, duas vozes: a voz do leitor e a voz do locutor.
Por outro lado, o aspecto composicional, ou seja, a forma como o texto é
escrito e composto, permite que mais vozes sejam ouvidas no texto, ou não. Nesse
caso, a autora considera tratar-se de um princípio tendencial: “um texto tende para o
monologismo mais do que um outro, mas ele nunca será inteiramente monológico,
em virtude da sua própria condição de possibilidade” (AMORIM, 2002, p. 11). Isso
significa que algumas vozes, na enunciação, falarão mais alto que outras, no sentido
de serem mais valorizadas ideologicamente, em detrimento do silêncio ou de uma
menor intensidade de outras.
Bezerra (2008) ressalta que as concepções bakhtinianas de monologismo,
dialogismo e polifonia foram construídas considerando-se os aspectos históricos,
sociais e ideológicos do discurso, pois Bakhtin (2006) aplicou ao romance
monológico o conceito marxista de reificação, que reduz o homem a objeto, ao
analisar a relação capitalista entre o produtor e a produção da mercadoria. O autor
54
observa que o mesmo sistema capitalista, que reduz as pessoas à condição de
coisas, também provoca a estratificação social e conflitos capazes de gerar vozes e
consciências, produzidas em um movimento de resistência à mencionada redução.
Ao discurso monológico está vinculada a noção de univocidade, que nos
remete ao conceito de discurso de autoridade, os quais não se modificam ao entrar
em contato com outras vozes, mas se pretendem absolutos, apenas veículo de
transmissão de um único sentido, não permitindo a interanimação com outras visões
de mundo. Segundo Bakhtin (1994), “o discurso autoritário não pode ser
representado, só é transmitido” (p. 344). Neste caso, a criação de significados dá
lugar à ideia de fidelidade ao significado a ser transmitido, não permitindo que a voz
do ouvinte se manifeste, seja desafiando, seja propondo uma discussão ou
criticando a voz que transmite e que pretende ser a única a ser ouvida. O discurso
científico, por exemplo, carrega, além das marcas da neutralidade, da objetividade e
do dogmatismo, as de autoridade, pois, segundo Bakhtin (2010), “as Ciências Exatas
constituem uma forma monológica do saber, já que ao pesquisador e seu intelecto
só se contrapõe a coisa muda” (p. 400).
A passagem da perspectiva monológica do discurso literário para a dialógica
se dá pela polifonia. Para Bezerra (2008), polifonia é a “multiplicidade de vozes e
consciências independentes e imiscíveis”, cujas vozes não são objeto do discurso do
autor, mas os próprios sujeitos desse discurso. Nesse sentido, o princípio fundante
em relação ao enunciador “é a posição do autor como grande regente do coro de
vozes que participam do processo dialógico” (p. 194). Contudo, esta não é uma
regência que aprisiona as vozes (re)criadas na enunciação dialógica, mas que
permite que elas se manifestem com autonomia e revelem no sujeito um outro, um
“eu para si, infinito e inacabável”, lugar de construção da sua subjetividade. Nesse
processo de alteridade, há de se considerar, também, o homem como um “eu para o
outro”, condição na qual tal subjetividade se dá responsavelmente em relação às
perspectivas sociais e individuais, em relação ao outro.
Assim, o absoluto dá lugar à multiplicidade de vozes no discurso literário que,
entendido como polifônico, não reconhece privilégios e hierarquia de pontos de vista
seja do autor ou das personagens. Estendendo a abordagem polifônica do discurso
literário ao discurso do cotidiano, como autoriza Bakhtin (2010), podemos perceber
este último como constituído de várias vozes e também marcado pela não
prevalência de uma sobre a outra.
55
No discurso polifônico, a manifestação das múltiplas vozes ecoa
simultaneamente e de um mesmo lugar, por meio de uma enunciação concreta. Isso
quer dizer que a fala humana é povoada pelas palavras de outras pessoas, que são
transmitidas em graus diversos de fidelidade e imparcialidade e determinando,
assim, um maior ou menor grau de dialogização. As características dialógicas da
linguagem revelam que, na verdade, as pessoas não são as únicas autoras das
palavras que proferem, porque ao falarem, o fazem sempre em relação ao que
outros já disseram, falam a respeito do que outros falam. Portanto, o sujeito modifica
o sentido a partir das vozes que intervêm em sua enunciação, o que afasta a
possibilidade de ser o sujeito o primeiro a produzir um dado sentido.
No pensamento bakhtiniano, os sentidos se constroem em um complexo
intercâmbio social que se materializa nas trocas linguísticas realizadas na
interlocução. Assim, para o autor, a natureza da linguagem está centrada na sua
condição dialógica. Ou seja, viver é essencialmente um ato dialógico que se põe
integralmente nos usos da palavra que, por sua vez, localiza-se no tecido social da
existência humana, na grande temporalidade. Esta ideia é fundamental para
compreender a linguagem em uma perspectiva centrada no inacabamento, uma vez
que Bakhtin (2010) considera o enunciado um elo de uma cadeia complexa e
ininterrupta, que, por isso mesmo, traz uma gama de sentidos já postos em
circulação no passado, ao mesmo tempo em que aponta para um auditório social
que ainda está por se constituir. Esse entendimento nos ajuda a compreender que
ao considerar a relação estreita com o contexto socio-histórico, a análise dos
enunciados não se fecha aos acontecimentos da época de sua produção, mas
também carrega as marcas de contextos históricos mais amplos.
Na perspectiva bakhtiniana, há uma diferenciação entre significação e
sentido. O autor refere-se à significação como "elementos da enunciação que são
reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos" (BAKHTIN apud FREITAS, 1995,
p. 13). São elementos abstratos, convencionados por um sistema e com tendências
universalizantes: é a palavra dicionarizada. Em seu pensamento, o sentido se
constrói no território da enunciação imbricado com as condições da situação
imediata e do contexto mais amplo de produção, portanto, está permanentemente
inacabado, uma vez que é algo que está sendo tecido entre a palavra do enunciador
e todas as vozes que passam a habitar o seu discurso. Nessa baliza teórica, a
entonação expressiva (o modo como se fala) e o acento apreciativo são
56
fundamentais para a percepção e compreensão dos sentidos construídos
interdiscursivamente.
A interação de múltiplos pontos de vista individuais e sociais que se
manifestam na voz do sujeito representa uma estratificação da linguagem. Quanto
mais intensa, mais diferenciada e altamente desenvolvida é a vida de uma
sociedade falante, maior é importância de se anexar à fala, as palavras de outra
pessoa. A tentativa de unificação da linguagem em um mesmo campo social é
marcada pela tensão de forças que estão em luta para unificá-la e, ao mesmo
tempo, estratificá-la. A primeira, Bakhtin (1994) nomeou de força centrípeta
enquanto a segunda, chamou de centrífuga. Essa luta é travada em todo enunciado
de um sujeito falante, locus onde tais forças se encontram. Nessa perspectiva, todo
discurso carrega a marca polifônica do espaço plural e do tempo em que vivem os
sujeitos. Assim, a profissão exercida pelo sujeito, seu nível social, formação
acadêmica, idade, valores e tudo mais a sua volta exercem influência sobre seu
discurso.
No centro da arquitetônica bakhtiniana está o enunciado, em sua forma oral
ou escrito, como “unidade real da comunicação discursiva”, que constitui as
enunciações concretas, o lugar imprescindível para a produção de discursos na voz
dos sujeitos envolvidos neste ato. É no enunciado que a língua entra em contato
com a realidade e nessa mediação a palavra carrega pontos de vista individuais,
acento avaliativo, uma intenção, uma significação, uma expressividade e
ideologia(s): “o falante é sempre, de uma forma ou de outra, o defensor de uma
determinada ideologia, e suas palavras são sempre difusores dessa ideologia”.
(BAKHTIN, 1994, p. 331)
Como já foi dito, há uma relação de reciprocidade na dinâmica que envolve a
situação social da enunciação e o próprio enunciado. Desta forma, cada campo
social pode ser delineado a partir do conteúdo temático e do estilo da linguagem de
onde provém o enunciado, e, sobretudo, da sua construção composicional. Ao
mesmo tempo, esses três elementos são igualmente determinados pelas
singularidades do campo da comunicação verbal, de onde emergem. Daí Bakhtin
(2010) ressaltar que, embora cada enunciado particular seja individual, cada campo
de utilização da língua elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os
quais ele designou de “gêneros discursivos” (p. 261). Quanto mais se desenvolve e
se complexifica o campo, maior é a variedade de tipos de enunciado.
57
Apesar de admitir a individualidade de um enunciado em particular, Bakhtin
não a atribui ao ineditismo do referido enunciado, mas sim, fundamentalmente, à
expressão valorativa que o falante lhe empresta. Para ele, “cada enunciado é pleno
de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 297). É
impossível ao falante assumir uma posição sem relacioná-la com posições prévias
de outros falantes, pois é no diálogo e no confronto com o ponto de vista ou visão de
mundo do outro, que aquele define sua posição no discurso.
Por outro lado, a fala sempre é conformada por uma linguagem social no
processo de produção de um enunciado. Entendemos por linguagem social o que
Bakhtin (1988 apud GOULART, 2007, p.3), define como “pontos de vista específicos
sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas
objetais, semânticas e axiológicas.” Entretanto, é preciso distingui-la de gênero
discursivo:
Os gêneros do discurso, de riqueza e variedade infinitas, historicamente organizam os conhecimentos, estabilizando-se de determinadas maneiras. Estão relacionados às esferas sociais das atividades humanas, às intenções e aos propósitos dos locutores, constituindo-se como formas de ação social. Ao lado dessa estratificação da língua em gêneros se entrelaça, ora coincidindo, ora divergindo, com a estratificação profissional da língua (em amplo sentido) (grifo do autor), o que o autor define como linguagens sociais. (BAKHTIN apud GOULART, 2007, p. 3)
Bakhtin (2010) chama a atenção para as inúmeras e distintas possibilidades
de aparecimento de situações típicas da comunicação verbal que imprimem aos
gêneros de discurso extrema heterogeneidade, e, ao fazê-lo, classifica-os quanto à
sua natureza em gêneros discursivos primários, os discursos do dia-a-dia, e gêneros
discursivos secundários que, banhados de ideologias, emergem de um cenário
cultural mais complexo, mais desenvolvido e organizado, como por exemplo, o meio
artístico, o sociopolítico, o científico etc. Cabe observar que a heterogeneidade dos
gêneros não deve ser redundantemente funcional porque, se assim considerada,
estes seriam caracterizados como abstratos e vazios, contrapondo-se à ideia de
emergirem das condições específicas nas quais os discursos são produzidos. Os
gêneros primários são reelaborados durante o processo de formação dos
secundários e desvinculam-se da situação real imediata e dos enunciados alheios. A
natureza do enunciado e sua relação com os tipos de gêneros do discurso são de
importância fundamental para o campo da pesquisa linguística, por valorizarem o
58
caráter histórico, contextual, social, político e cultural, em uma abordagem relacional
da linguagem.
Os enunciados, desde a réplica do diálogo cotidiano até os diálogos mais
complexos, têm limites delineados com precisão, pela alternância dos sujeitos
discursivos, ou seja, começa quando termina o enunciado do outro e termina quando
o falante passa a palavra ao outro. As réplicas do diálogo designam um tipo de
alternância dos falantes interlocutores observada na simplicidade do diálogo real,
forma clássica de comunicação discursiva. Outra peculiaridade do enunciado é a sua
conclusibilidade específica, cujo critério mais importante é ocupar uma posição
responsiva em relação a ele. Aqui reside uma das diferenças fundamentais entre
oração e enunciado, pois a oração compreensível e acabada, a menos que se torne
um enunciado pleno, não demanda atitude responsiva e nem um autor.
Segundo Bakhtin (2010), três elementos determinam a inteireza do
enunciado: (1) exauribilidade do objeto e do sentido; (2) projeto ou vontade de
discurso do falante; (3) formas típicas composicionais e de gênero do acabamento.
O primeiro elemento refere-se à percepção do término de um enunciado pelo
sentido da enunciação, cuja plenitude se dá de forma diversa em diferentes campos
da vida, campos oficiais e até nos campos de criação. O segundo, a vontade
discursiva que nos permite imaginar o que o falante quer dizer, determinando tanto a
escolha do objeto quanto os seus limites e o sentido do enunciado como um todo.
A intenção do falante ao enunciar implica a opção por certo gênero do
discurso. Este, por sua vez, está intimamente relacionado à situacionalidade do
enunciado, ou seja, ao campo da comunicação discursiva do qual ele emerge e com
as suas especificidades; com o tema (semântico-objetal), com a composição
individual dos falantes etc. A intenção discursiva do falante é, assim, conformada por
certo gênero discursivo que molda e organiza todo discurso, permitindo que
antecipemos o todo e o gênero do discurso alheio, desde quando o outro profere
suas primeiras palavras ao enunciar.
Uma outra peculiaridade do enunciado é a relação do enunciado com o seu
autor e com os outros que participam da comunicação discursiva. Em um primeiro
momento, é o conteúdo semântico-objetal do enunciado que irá determinar as
peculiaridades de estilo e de composição do enunciado seguido da expressividade,
da emoção, do juízo de valor e da entrada da voz individual do outro em nossa
enunciação. Cabe ressaltar que o mesmo enunciado pode ser povoado por juízos de
59
valor antagônicos construídos pelos falantes. Tudo vai depender do quadro
axiológico conceitual e das escolhas individuais de cada sujeito do discurso. Para
além da materialidade do texto em seu aspecto formal, a forma de expressar o tom
usado para dizer algo, o valor atribuído ao conteúdo do objeto e do sentido e,
especialmente, a quem se dirige a fala, são fatores que implicam na análise dos
processos de produção discursiva, que por sua vez são atravessados por discursos
de poder, políticos, religiosos, econômicos de outros. Por isso, não há enunciado
neutro.
A relação com os outros é expressa pela relação com outros enunciados, ou
seja, trazer a voz de quem já falou sobre o objeto e a de quem se dirige o enunciado
é essencialmente importante no processo de construção do enunciado. Sua
estruturação está intrinsecamente relacionada com o seu endereçamento, o que
quer dizer que o destinatário participa como coautor do enunciado.
Amorim (2002), alinhada com a concepção bakhtiniana de direcionalidade do
enunciado, propõe que se ouçam as vozes do texto: a voz do destinatário real,
“aquele que efetivamente lê o texto” e “interlocutor direto do diálogo cotidiano”; a voz
do destinatário suposto, a qual “faz ouvir a voz do contexto de origem do texto”,
podendo ser um grupo de um determinado campo da atividade humana com o qual
se dialoga, para quem se supõe estar falando. Já o sobredestinatário, totalmente
indefinido e não concretizado, “libera o texto das limitações de seu contexto”, e desta
forma, não cria vínculos temporais e de espaço com o texto, assumindo uma
dimensão universalizante.
Segundo a autora, ainda há outras vozes a serem ouvidas no discurso: a voz
do locutor, que é aquela que diz “eu”, “nós” ou “se” (da terceira pessoa), no interior
de um enunciado e a voz do autor, que pode ser ouvida ali, no ponto crucial de
encontro entre a forma e o conteúdo do texto que concerne um lugar enunciativo e,
como tal, é portadora de um olhar, de um ponto de vista que trabalha o enunciado
do início ao fim. Essa abordagem polifônica nas Ciências Humanas contribui para
mostrar a densidade e a instabilidade do objeto (discurso), dissolvendo a impressão
de transparência dos discursos (AMORIM, 2002).
Entre essas vozes, torna-se fundamental, na pesquisa acadêmica, ouvir a voz
do objeto, porque tudo que irá se dizer sobre ele será confrontado dialogicamente
com o que já foi falado a seu respeito, para a construção de novos sentidos. Neste
60
caso, o “objeto é um sujeito produtor de discurso”, com o qual o pesquisador irá
dialogar, não podendo, portanto, ser calado (AMORIM, 2002, p. 10).
Ao abordar o papel do destinatário, em uma concepção polifônica, a autora
considera que, de acordo com a época e o meio social, existem enunciados de
autoridade carregados de entonação expressiva e valorativa, que ecoam no discurso
em diferentes graus de intensidade. Contudo, quando se faz a apropriação dos
discursos alheios, esse tom valorativo também é reelaborado e reacentuado. O
sentido atribuído à apropriação, de acordo com a arquitetônica bakhtiniana, é o de
“trazer algo para o interior de si mesmo e fazê-lo próprio”. Apropriar-se do discurso
é, em parte, tornar suas as palavras do outro, acrescentando-lhes intenção
semântica e expressividade própria, dando voz a sua manifestação discursiva e
promovendo sua reconstrução (WERTSCH, 1999).
As formas para a apropriação dos discursos assumem uma importância
profunda na formação ideológica do indivíduo, na qual o discurso do outro não se
limita apenas à informação, direções, regras, modelos etc. – mas ao invés disso,
“luta para determinar os conceitos mais básicos de nossas inter-relações ideológicas
com o mundo, a própria base de nosso comportamento; ele se estabelece aqui como
um discurso autoritário e como um discurso internamente persuasivo” (BAKHTIN
1994, p. 34).
Já o discurso internamente persuasivo se opõe à concepção de discurso de
autoridade na medida em que, no primeiro, o discurso é tecido a partir das palavras
do outro após terem sido reconhecidas e assimiladas, e os limites entre esses
discursos são praticamente imperceptíveis. Por isso Bakhtin (1994) diz que “a
palavra internamente persuasiva é metade nossa e metade de outro” (p. 341). A
estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta.
Em cada um dos novos contextos que dialogam com ele, o discurso consegue
revelar uma nova forma de significar, porque ela entra em inter-relação com outros
discursos, em outros contextos. Entende-se que as palavras internamente
persuasivas voam de um contexto a outro, recebendo novas e diferentes
significações na voz do falante e da situação imediata social, em um movimento
contínuo e infinito.
Bakhtin (1994) adverte que se deve sempre ter em mente “que a fala do
outro, uma vez que esteja dentro de um contexto, está – não importa o quão
precisamente for transmitida – sempre sujeita a certas mudanças semânticas” (p.
61
340). Apesar do conceito de recontextualização não ter sido um termo cunhado por
Bakhtin, o sentido dado pelo autor ao princípio de apropriação sugere uma
aproximação, se levarmos em conta que para ele o contexto que envolve as
palavras do outro é responsável por seus antecedentes dialógicos, cuja influência
pode ser muito grande. Pode-se, inclusive, modificar até uma citação, dependendo
do grau de polemização que o autor imprima a esta e, por este motivo, não se pode
tratar a fala do outro isolada do seu contexto dialógico. Nesse sentido, para avaliar e
entender o real significado das palavras do outro na vida diária, é fundamental saber
quem está falando e sob quais circunstâncias concretas.
A filosofia da linguagem de Bakhtin se apresenta como um poderoso aporte
teórico para a interpretação e para a análise do discurso docente proposto por este
trabalho devido à grande abrangência de seus conceitos, ao diálogo que estabelece
com a perspectiva sócio-histórica e a seu caráter dialógico e ideológico, oferecendo
assim a possibilidade de aprofundamento da compreensão dos sentidos que
buscamos apreender na voz dos sujeitos investigados.
62
5 METODOLOGIA
O destaque dado à linguagem nas interações sociais, que embasa o
pensamento de Bakhtin, mostra-se extremamente relevante para este estudo, na
medida em que ele será concebido enquanto uma pesquisa qualitativa de cunho
socio-histórico. Esta perspectiva recusa o pensamento positivista e racionalista para
debater e compreender as questões educacionais e, em particular, da educação
científica. A análise dessas questões, feita através das lentes das Ciências
Humanas, afasta-se do saber monológico e volta o seu olhar para o sujeito que se
constitui na relação com o outro. Consideramos essa a abordagem
fundamentalmente importante para a pesquisa em educação em ciências, uma vez
que a partir dela, o sujeito não é “percebido e conhecido como coisa porque, como
sujeito e permanecendo sujeito não pode tornar-se mudo; consequentemente o
conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico” (BAKHTIN, 2003, p. 400).
Com base nos pressupostos bakhtinianos, apresentamos o enquadre teórico-
metodológico que fundamenta a pesquisa. Partimos da análise de enunciações, para
apreender os sentidos de qualidade da educação científica que se produzem na
relação com o contexto histórico e sociocultural. Optamos assim, pela pesquisa
qualitativa, realizada por meio da realização de entrevistas com professores sujeitos
do estudo.
De acordo com Freitas (2007), a perspectiva socio-histórica representa um
caminho significativo para a produção de conhecimento no campo das ciências
humanas. Ao compreender que o psiquismo é constituído no social, num processo
interativo possibilitado pela linguagem, abre novas perspectivas para o
desenvolvimento de alternativas metodológicas que superem as dicotomias
externo/interno, social/individual (FREITAS, 2007, p. 26).
A pesquisa qualitativa de orientação socio-histórica é constituída por
características próprias. Bogdan e Biklen (apud FREITAS, 2007) apontam os
aspectos que a caracterizam:
a) A fonte de dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge. O que
se busca é compreender os sujeitos envolvidos na pesquisa para, através
deles, compreender também o seu contexto.
63
b) As questões formuladas se orientam para a compreensão dos fenômenos em
toda a sua complexidade e em seu acontecer histórico.
c) O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase na compreensão,
tomando por base a descrição que deve ser complementada à luz das
questões de estudo na estreita relação com o evento investigado numa
integração do individual com o social.
d) O pesquisador é parte integrante da investigação, pois, a sua compreensão
se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa (p. 27).
Assim, a teoria enunciativa de Bakhtin se apresenta como um enquadre
teórico-metodológico fértil para a realização de estudos que consideram a pesquisa
como uma relação entre sujeitos, em uma perspectiva dialógica. Essa concepção
ressalta "o valor da compreensão, construída a partir dos textos signos criados pelo
homem, assinalando o seu caráter interpretativo dos sentidos construídos" na
interlocução (FREITAS, 2007, p. 28).
Nesse sentido, é possível considerar a entrevista um instrumento
metodológico que, no âmbito da pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico, pode
ser compreendida como produtora linguagem, por ser um acontecimento entre duas
ou mais pessoas que buscam mútua compreensão em situação de interação verbal.
Em consequência, a partir da perspectiva dialógica, a entrevista estabelece relações
entre sentidos a partir do horizonte social que orienta a compreensão dos sujeitos
envolvidos.
5.1 OBJETIVO E QUESTÕES DE ESTUDO
Temos como objetivo investigar os sentidos de qualidade do Ensino de
Ciências, na perspectiva de docentes da Educação Profissional Técnica de Nível
Médio (EPTM) no Rio de Janeiro e suas relações com outros discursos como, por
exemplo, os discursos oficial e acadêmico. Para orientar o desenvolvimento de
pesquisa, serão discutidas as seguintes questões, que se originam na problemática
da EPTM exposta nos capítulos dois e três:
1) Que perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por docentes
da EPTM em relação às finalidades do ensino de ciências?
64
2) Que perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por docentes
da EPTM em relação ao conhecimento científico ensinado?
3) Que aproximações e afastamentos são identificados entre as perspectivas
dos docentes sobre formação integral e os discursos oficiais5?
5.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta seção apresenta o contexto de origem da pesquisa, o contexto no qual
se realizou a pesquisa, a elaboração do instrumento metodológico, os sujeitos da
pesquisa e os procedimentos de análise utilizados.
5.2.1 A origem da pesquisa
Esta investigação emerge de um projeto de pesquisa em rede que investiga
os sentidos de qualidade da educação científica na voz dos docentes de nível
médio, desenvolvido por pesquisadores de quatro Universidades Federais (UFF,
UFRJ, UFMG e UFRGS). Trata-se de um projeto vinculado ao edital Observatório da
Educação da CAPES, que tem por objetivo avançar na compreensão da qualidade
da Educação em Ciências, na perspectiva dos docentes, considerando-se a
diversidade regional e cultural de contextos educacionais e tomando como
referência a avaliação oficial, medida pelo IDEB e ENEM6.
O subprojeto desenvolvido pelo Núcleo UFRJ, coordenado pela Professora
Flavia Rezende, iniciou-se pela realização de um grupo focal com nove professores
das Ciências da Natureza e Matemática do ensino médio de escolas públicas e
privadas, e propunha a discussão sobre a “qualidade da educação em ciências no
nível médio de ensino”. Essa etapa foi projetada com o objetivo de identificar, no
discurso dos professores, temas e tensões que evidenciassem os sentidos de
qualidade da educação científica, que iriam ser aprofundados na segunda etapa da
pesquisa, quando se previa a realização de entrevistas com outros professores.
5 Os discursos oficiais referenciados no texto referem-se ao Documento base EPTM (2007) e à Lei Nº
11.892/2008 que criou os institutos federais. 6 Esta tomada de referência foi uma exigência do edital da CAPES.
65
A dinâmica ocorreu em uma sala de uma universidade do Rio de Janeiro, com
a participação de um relator, uma pesquisadora responsável pela mediação do
grupo e de dois pesquisadores responsáveis pelo registro de toda a atividade do
grupo focal. Foram utilizados recursos para a gravação em áudio e vídeo, e foi
realizada em, aproximadamente, duas horas.
Realizadas as transcrições, procedemos a uma análise detalhada dos
enunciados dos professores (Rezende et al., 2011), identificando os sentidos de
qualidade que, embora não explicitada pelo uso da palavra qualidade puderam ser
lidos a partir do que os professores consideraram como “bom” (qualidade) ou “ruim”
(não qualidade) para o ensino das ciências. Entendemos que a não qualidade
trazida pelos professores pressupõe aquilo que é considerado qualidade por uma
relação de oposição.
A primeira etapa da análise foi identificar os temas que compunham o
conteúdo semântico referencial dos enunciados dos professores. Após essa etapa,
foi feita a análise da relação do falante com seu enunciado, a identificação das
vozes dos professores, considerando-as como perspectivas referenciais
(WERTSCH, 1993) sobre aquele(s) tema(s). Para identificá-las, inferimos qual era o
ponto de vista do falante, como e por que o tema foi relacionado à qualidade.
O recorte para o presente estudo pretende aprofundar os resultados do grupo
focal no âmbito da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTM),
estruturada curricularmente com conteúdos da formação geral ou propedêutica e da
formação técnica (ou específica).
A escolha por este contexto, além de estar atrelada ao meu percurso
profissional, também teve como motivação o fato de alguns professores participantes
do grupo focal terem construído suas perspectivas relacionando as finalidades do
ensino de ciências à formação para o trabalho. Em seus discursos, foi colocada em
tensão a aplicação dos conteúdos ensinados, durante a execução de funções em
situação de trabalho, a Lei Nº 5.692/1971 e a problemática de todos os alunos
estarem aprendendo os mesmos conteúdos, sem terem habilidades ou interesse
pelas ciências naturais e matemática.
A participação nas análises do grupo focal inaugurou a minha inserção na
teoria enunciativa de Bakhtin. No processo de análise das enunciações dos
professores, tentamos perceber o modo como eles veem os temas abordados nas
perguntas, a partir de seus sistemas axiológicos. Mas, como nos ensina Bakhtin
66
(2010), essa transferência de lugares, que possibilita olhar o mundo com olhos da
cultura do outro e que é indispensável para a sua compreensão, não deve se
encerrar apenas nesse momento, o que para ele seria uma “simples dublagem e não
traria consigo nada de novo e enriquecedor” (p. 365). Segundo o autor, depois, é
preciso “de volta ao meu lugar, contemplar seu horizonte com tudo o que se
descobre do lugar que ocupo fora dele” (BAKHTIN apud FREITAS, 2007, p. 35).
Desse lugar exotópico, buscaremos evidenciar os sentidos construídos nas
enunciações dos sujeitos do presente estudo. Especialmente em relação ao
contexto da escola A, esse deslocamento configura-se como uma tarefa nada fácil
de realizar. A inserção no campo, a familiaridade com os processos formativos
desse contexto e as relações com alguns dos professores exigiram um exercício
permanente de aproximação e afastamento, para uma compreensão mais profunda
das enunciações.
5.2.2 Elaboração do roteiro de entrevistas
Visando o aprofundamento dos resultados do grupo focal, tomamos os temas
mobilizados pelos professores para compor o roteiro de entrevistas a ser aplicado no
presente estudo. A análise minuciosa das enunciações dos participantes do grupo
focal nos mostrou que os sentidos de qualidade foram construídos, de um modo
geral, referenciando o currículo, o espaço físico escolar, o professor, o interesse e o
desempenho dos alunos, as legislações educacionais e questões políticas e sociais
mais amplas. Em relação às questões voltadas para o currículo, foram
problematizadas as finalidades do ensino de ciências, conteúdos, metodologias de
ensino e a avaliação educacional. No tocante ao espaço físico escolar, discutiram-se
basicamente sobre infraestrutura, laboratórios e os ambientes de aprendizagem. No
que diz respeito ao professor, o enfoque recaiu sobre o seu papel, visão de ensino,
comprometimento, motivação, formação e relatos da sua prática. Os aspectos
sociais e políticos mais amplos da educação incluíram as questões ligadas à família,
bolsa família, políticas públicas e violência. E, ao focalizarem os alunos, os
professores falaram da participação deles no processo de ensino e de
aprendizagem.
67
A construção do roteiro de entrevistas tomou por base os temas mais
diretamente relacionados ao contexto da educação profissional técnica de nível
médio (EPTM). Neste sentido, destacamos a formação para o trabalho enquanto
finalidade da educação cientifica na medida em que este tema foi problematizado
tanto pelo docente que atua na formação profissional como também pelos que
atuam no ensino médio não profissionalizante. Assim, as questões de 1 a 5 do
roteiro de entrevistas (APÊNDICE I) foram redigidas a partir da tensão existente
entre as finalidades do ensino de ciências voltadas para a preparação para o
vestibular, para a inserção no mercado de trabalho e para outros objetivos que
envolvem aspectos curriculares (conteúdos, metodologias, avaliação). A questão 6
emergiu da discussão sobre infraestrutura, quando os professores apontaram como
falta de qualidade a ausência de laboratórios em suas escolas. Tomamos o tema do
laboratório já que este espaço é muito importante no contexto da EPTM, mas a
pergunta não se limitou à infraestrutura. Questionamos sobre o seu papel no ensino
buscando apreender os sentidos construídos nos discursos docentes para o
conhecimento científico. A lógica do conhecimento científico também está na origem
das questões 8 e 11. A qualidade política apreendida na tensão entre a formação
geral e a formação técnica evidenciada nas enunciações dos participantes do grupo
focal deu origem à questão 7 e 9. Por fim, a questão 10 originou-se da discussão
voltada para os alunos, quando os professores apresentaram como justificativa para
a falta de qualidade do ensino, a defasagem de conteúdos gerais com que os alunos
chegam ao ensino médio e a falta de interesse nas aulas.
Além das perguntas que orientaram a entrevista, decidimos, também, realizar
uma atividade7 que incluiu o preenchimento de uma ficha na qual os professores
deveriam enumerar, sucintamente, no máximo cinco perspectivas de qualidade para
a educação científica, em ordem decrescente de importância. Essa atividade foi
aplicada aos três primeiros entrevistados (André, Taís e Cleo). Com o
amadurecimento da pesquisa, incorporamos à entrevista, a pergunta direta sobre a
qualidade, que acabou sendo feita apenas aos professores que ainda não haviam
sido entrevistados (Toni, Vítor e Murilo). A intenção em realizar a pergunta direta foi
7 Este procedimento não se estabeleceu a partir de uma técnica específica, apenas tivemos a
intenção de ampliar o leque de perspectivas e tentar conhecer a ordem de importância dos quesitos de qualidade enunciados pelos professores.
68
a de ampliar o leque de perspectivas e nuances que tinham sido abordadas na
atividade solicitada aos três primeiros.
5.2.3 Os sujeitos da pesquisa
A partir do roteiro de entrevista descrito anteriormente, foram entrevistados
seis professores que atuam em duas escolas de educação profissional do Rio de
Janeiro (escola A e B)8, sendo quatro de química e dois de biologia.
A realização de uma pesquisa é, fundamentalmente, delineada por escolhas e
critérios que viabilizem a sua realização. Neste processo, também estão envolvidos
nossos interesses, valores, ideologias, que conduzem o endereçamento do texto de
pesquisa. Entendemos que tais escolhas precisam ser realizadas de um modo que
favoreça alcançar o objetivo da pesquisa e elucidar as questões que pretendemos
discutir.
Nesse sentido, para a seleção dos professores a serem entrevistados,
partimos da relação entre disciplinas científicas e o seu peso nos cursos oferecidos
pelas escolas que serviriam de contexto para pesquisa, ou seja, aquelas cuja
inserção curricular se caracteriza por maior grau de aprofundamento, por se
constituírem como específicas para determinada formação técnica. Assim, entre os
cursos oferecidos pela Escola A, optamos por entrevistar professores de química
que atuam no Curso Técnico em Química e, na Escola B, professores de biologia
que atuam no Curso Técnico em Análises Clínicas e Saúde. Por serem as disciplinas
estruturantes de cada curso, deverão ocupar lugar privilegiado na discussão sobre a
qualidade do ensino de ciências e na sua relação com a formação profissional.
Com o mesmo intuito, procuramos diversificar a escolha por professores
quanto à série/ano ou período escolar em que lecionam, visando a incluir, na
pesquisa, professores que atuam com as disciplinas que compõem a parte básica do
currículo do curso técnico, comumente denominada formação geral, e os que atuam
8 As escolas serão descritas mais adiante. Inicialmente, à época do exame de qualificação, a
pesquisa iria ser realizada na escola A, campus I, no qual a pesquisadora atua como gestora. Em função de critérios descritos neste capítulo, decidiu-se por incluir o campus II da escola A. A inclusão da Escola B ocorreu em decorrência da sugestão dada por um dos membros da banca, por ocasião da leitura do projeto como leitor externo ao programa de pós-graduação do NUTES/UFRJ, com o intuito de enriquecer as discussões sobre os princípios teóricos que fundamentam os estudos acerca das relações entre trabalho e educação.
69
na formação específica, como é chamada a parte do currículo com ênfase na
formação profissional. O objetivo foi buscar diversidade entre as perspectivas de
qualidade da educação científica dos professores, supondo sua relação com o
contexto de atuação curricular (Anexos 1 e 2).
Outro critério considerado foi o tempo de atuação dos professores nos cursos
técnicos. Buscamos variar entre aqueles que atuam na formação técnica há cerca de
vinte anos ou mais, e aqueles com tempo inferior a quinze anos. A intenção foi a de
incluir professores que viveram grande parte das reformas da educação profissional
brasileira, inclusive o momento histórico da atual expansão da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEP), assim como aqueles de
ingresso mais recente. A partir dessas considerações, incluímos, como contexto
empírico para a pesquisa, a escola A, Campus II.
O acesso aos professores e às escolas pesquisadas teve início com um
contato por e-mail com os diretores gerais solicitando a permissão para a realização
da pesquisa no respectivo campus. Posteriormente, entreguei-lhes pessoalmente, os
documentos impressos referentes à realização das entrevistas, quais sejam o
resumo do projeto do Observatório da Educação e o parecer do comitê de ética.
Tendo sido autorizada, um segundo e-mail foi encaminhado à direção solicitando a
relação de nomes de professores que reunissem os critérios definidos na seção
5.2.3.
Na escola A o diretor geral ofereceu total liberdade para consultar a Direção
de Ensino e a Coordenação de Turno dos campi selecionados sobre a grade
curricular e o quadro de horários das aulas para que eu fizesse a escolha dos
professores a serem entrevistados. Como trabalho na escola A, campus I, já
conhecia o atual diretor. Esse horizonte espacial comum pode ter interferido na
forma como fui acolhida por ele para a realização da pesquisa, oferecendo uma
maior autonomia para a escolha dos professores. De posse das informações
necessárias para a seleção de professores, procurei pelos professores que
estivessem na escola para facilitar o convite pessoal. No campus I foram convidados
cinco professores, dos quais, apenas dois aceitaram participar da pesquisa. No
campus II, seis professores foram convidados por e-mail. Destes, apenas dois
aceitaram o convite. As informações sobre o tempo de atuação dos professores na
escola A em ambos os campi foram obtidas consultando a direção e a coordenação
de ensino.
70
Na escola B, diferentemente da escola A, ao enviar o mesmo e-mail
solicitando ao diretor geral a autorização para a realização da pesquisa, recebi um e-
mail resposta indicando os nomes de alguns professores que se encaixavam nos
critérios pré-estabelecidos para a pesquisa, conforme já exposto neste texto. Dos
três professores indicados pela direção e pela coordenação de ensino, dois
aceitaram participar da entrevista. As informações que constituem o contexto
extraverbal foram obtidas através das informações disponibilizadas no mesmo e-mail
pelo diretor geral e pela coordenação de ensino, acompanhando a indicação dos
nomes dos docentes.
As entrevistas foram realizadas individualmente. Dos seis professores
entrevistados, quatro ministram aulas de química no Curso Técnico em Química e
atuam na Escola A, Campus I (André e Taís) e Campus II (Toni e Vítor) e dois
ensinam biologia no Curso em Análises Clínicas e Saúde na escola B (Cleo e
Murilo). Os critérios para a escolha dos professores a serem entrevistados na escola
B foram os mesmos da escola A. Passamos a apresentar os dados profissionais dos
seis professores, cujos nomes são fictícios, a saber:
a) Professor André
O professor André possui graduação em Engenharia Química, licenciou-se
em Química em 1989, cursou o Mestrado e concluiu o Doutorado em Educação
2009. Ensina Química Geral e Inorgânica, há sete anos nos períodos iniciais,
usualmente designado por formação geral, no Curso Técnico em Química
(integrado), no campus I, escola A.
b) Professora Taís
A professora Taís é Bacharel e licenciada em Química. Cursou
Especialização em Didática do Ensino Superior, obtendo o título em 2009. No que se
refere ao tempo de docência, conta com trinta e dois anos de magistério, dos quais
vinte e um foram dedicados à educação profissional, na escola A, campus I. Hoje,
ensina Química Orgânica no terceiro período, disciplina da formação específica do
Curso Técnico em Química (integrado). Durante onze anos exerceu suas atividades
no ensino médio propedêutico na rede privada de ensino, inclusive na modalidade
ensino à distância.
71
As informações acadêmicas e profissionais referentes aos professores André
e Taís foram resumidas no Quadro 1 apresentado a seguir.
Quadro 1: Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus I
PROFESSOR(A) DISCIPLINAS
MINISTRADAS INSERÇÃO
CURRICULAR FORMAÇÃO ACADÊMICA
TEMPO DE ATUAÇÃO
ANDRÉ Química Geral e Inorgânica
Séries iniciais
Engenharia Química; Licenciatura em
Química; Mestrado e Doutorado em Educação
7 anos
TAÍS Química Orgânica
Séries finais
Bacharelado e Licenciatura em
Química; Especialização em Didática do Ensino
Superior.
21 anos
c) Professor Toni
O professor Toni cursou a graduação em Química, Mestrado em Química e
Doutorado em Educação, obtendo o último título em 2011. Ensina Química Geral,
Físico-Química e Química Inorgânica há seis anos, para o primeiro período, na parte
denominada formação geral do Curso Técnico em Química, integrado, no campus II.
O Prof. Toni já atuou no campus III da escola A, no mesmo período escolar,
ensinando as mesmas disciplinas. Além da escola A, já trabalhou durante quatro
anos com o nível médio em escola privada e na rede estadual no Rio de Janeiro.
d) Professor Vítor
O Prof. Vítor tem formação em Engenharia Química, é Mestre em Gestão
Ambiental e Doutorando em Engenharia Oceânica. É importante para esse estudo
ressaltar que o Prof. Vítor formou-se em Técnico em Química pela escola A, campus
I, na modalidade integrada, portanto é ex-aluno de um dos campi pesquisados.
Acumula sete anos de trabalho na escola A, porém atuando em diferentes campi. Foi
professor substituto por dois anos, no período de 1998 a 2000, no campus III. Após
intervalo de dois anos, retornou, na mesma condição, até o ano de 2004 ao campus
III e, finalmente, atua como professor efetivo, a partir de 2009, no campus II,
72
ministrando aulas de Química Aplicada e Análise de Risco. Trabalhou por um ano na
rede privada com o ensino médio, totalizando oito anos de magistério.
As informações acadêmicas e profissionais referentes aos professores Toni e
Vítor foram resumidas no Quadro 2 apresentado abaixo.
Quadro 2: Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus II
PROFESSOR(A) DISCIPLINAS
MINISTRADAS INSERÇÃO
CURRICULAR FORMAÇÃO ACADÊMICA
TEMPO DE ATUAÇÃO
TONI
Química Geral; Físico- Química;
Química Inorgânica
Séries iniciais
Licenciatura em Química; Mestrado em Química; Doutorado em
Educação.
6 anos
VÍTOR Química Aplicada
Séries finais
Técnico em Química; Engenharia Química; Mestrado em Gestão
ambiental; Doutorando em Engenharia
Oceânica.
3 anos
e) Professora Cleo
A professora Cleo cursou Licenciatura em Ciências Biológicas, especializou-
se em Educação Profissional e Saúde e cursou o Mestrado em Educação
Profissional e Saúde na escola B, onde atua como docente. Trabalha como docente
há quinze anos, no ensino médio, dos quais doze foram dedicados à rede estadual
de ensino e apenas três à educação profissional técnica na escola B, onde ministra
aulas de Biologia na primeira série do Curso Técnico em Análises Clínicas. Portanto,
sua disciplina se situa na parte do currículo que corresponde à formação geral.
f) Professor Murilo
O professor Murilo cursou o Curso Técnico em Biotecnologia na escola A, na
modalidade integrada, e o Curso Técnico em Biologia Parasitária em outra
instituição, no nível médio de ensino. Licenciou-se em Biologia e é Mestre em
Biologia Parasitária. É docente na escola B há quatro anos, ministrando aulas de
biologia e Protozoologia na parte de formação geral e específica do currículo,
respectivamente. Atualmente é Coordenador da disciplina denominada Iniciação à
Formação Politécnica. Ainda na escola B, ministrou aulas de Metodologia de
73
Pesquisa para os alunos do Curso Técnico em Saúde. Atuou como docente no nível
médio de ensino durante sete anos, na rede privada, ministrando aulas de Biologia,
somando ao todo onze anos de magistério.
As informações acadêmicas e profissionais referentes aos professores Cleo e
Murilo foram resumidas no Quadro 3 apresentado abaixo.
Quadro 3: Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola B
PROFESSOR(A) DISCIPLINAS
MINISTRADAS INSERÇÃO
CURRICULAR FORMAÇÃO ACADÊMICA
TEMPO DE
ATUAÇÃO
CLEO Biologia Séries iniciais
Licenciatura em Ciências Biológicas; Especialização em Educação Profissional
e Saúde; Mestrado em Educação Profissional e
Saúde
3 anos
MURILO
Biologia, Protozoologia;,
Iniciação à Formação Politécnica
Séries finais
Técnico em Biotecnologia; Técnico em Biologia
Parasitária; Licenciatura em Biologia; Mestrado em
Biologia Parasitária
4 anos
5.2.4 O contexto da pesquisa
A pesquisa foi realizada entre maio de 2011 e junho de 2012, em duas
escolas de educação profissional técnica de nível médio do Rio de Janeiro.
A contextualização apresentada a seguir não tem a pretensão de explorar
totalmente o percurso histórico dessas escolas, mas apenas situar, com uma breve
exposição, as características de criação e concepções atuais dos contextos nos
quais foram realizadas as entrevistas.
5.2.4.1 Escola A
A escola A foi criada, segundo Fontan (2011), como a primeira e única da
Rede Federal de Ensino a oferecer apenas um curso de Química. O autor
estabelece, como uma das razões para a sua criação, as prioridades do governo
Vargas para a formação de mão de obra especializada para a Indústria Química,
74
dada a enorme relevância deste ramo industrial para a estratégia de
desenvolvimento econômico do Brasil.
O autor infere, ainda, que o Ministro da Educação da época tinha a percepção
de que essa escola seria o “berçário” de futuras novas “habilitações técnicas” que
tivessem por base a ciência Química. Suas especulações se confirmaram, pois, na
sequência histórica, passou a oferecer os cursos de Alimentos, Biotecnologia,
Farmácia, e Saneamento.
Por mais de uma vez teve suas características institucionais ampliadas e
diferentes denominações. Assim, já se chamou Escola Técnica Federal (ETF) e
Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET). Com a passagem para CEFET,
em 1978, passou a oferecer à sociedade, além de uma grande variedade de cursos
técnicos de nível médio, a graduação, a pós-graduação lato sensu e o mestrado
profissional, reafirmando o vínculo com o mundo da produção.
Por ocasião da transformação da ETF em CEFET, iniciou-se um movimento
de inclusão nos debates, entre as instituições federais de formação profissional,
sobre as necessidades e aspirações do território em que estavam inseridas e o
delineamento de princípios que pudessem nortear as iniciativas comuns às unidades
que constituíam a rede federal de educação profissional e tecnológica. Até então, se
acentuava, em relação à educação profissional e tecnológica, uma concepção de
caráter funcionalista, estreita e restrita apenas a atender aos objetivos da
acumulação capitalista, no que diz respeito ao seu interesse por mão de obra
qualificada.
Em 2008, a Lei Nº 11.892/2008 instituiu os Institutos Federais e a escola A
passou a compor a estrutura multicampi dos Institutos Federais de Educação
Ciência e Tecnologia (IF). Os campi I e II são dois, entre dez no Estado do Rio de
Janeiro pertencentes à escola A, vinculados à Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica (SETEC) do MEC. Atende a uma clientela constituída de estudantes
provenientes de diferentes classes sociais, como tem sido constatado pelas
informações coletadas pela Secretaria da escola, na fase de matrícula.
Como princípio, em sua proposta político-pedagógica, a escola A, na nova
institucionalidade, oferece educação básica, principalmente em cursos de ensino
médio integrados à EPTM, cursos superiores de tecnologia, licenciaturas e
programas de pós-graduação lato e stricto sensu. Propõe-se a agregar formação
acadêmica à preparação para o trabalho (sem deixar de firmar o seu sentido
75
ontológico e uma estrutura curricular de formação profissional e tecnológica
contextualizada, constituída de conhecimentos, princípios e valores que
potencializem a ação humana em busca de uma vida mais digna (PROJETO
POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2009).
A organização curricular da escola A (Anexo 1) acentua a verticalização do
ensino, ou seja, a oferta de diferentes níveis e modalidades da educação profissional
e tecnológica. Com essa proposta, busca superar o modelo disciplinar, apresentando
os conteúdos de forma integrada e verticalizada. O objetivo é estabelecer o diálogo
entre os conhecimentos científicos, tecnológicos, sociais e humanísticos e os
conhecimentos relacionados ao trabalho, rompendo com o conceito de escola dual e
fragmentada. Essa nova concepção curricular pretende quebrar da hierarquização
dos saberes e possibilitar a construção de uma nova identidade para essa etapa da
educação básica (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2009).
5.2.4.2 Escola B
A escola B originou-se da Secretaria Técnica da Rede de Escolas Técnicas
do Sistema Único de Saúde (RET-SUS). Foi criada em 1985, com o objetivo de
melhorar a educação profissional nessa área e promover a qualificação técnica de
trabalhadores já inseridos no sistema de saúde, a partir de um modelo de educação
profissional descentralizado e em relação estreita com os serviços de saúde
(RAMOS, 2010). Segundo a autora, paralelamente à proposta de implementação de
escolas técnicas no modelo “escola função” - aquela destinada à formação de
trabalhadores inseridos nos serviços de saúde, de acordo com suas necessidades,
com ação descentralizadora -, tomava corpo a ideia de instituir uma escola do tipo
politécnica, inspirada na experiência cubana dos politécnicos de saúde. Tal
iniciativa, para a autora, não se baseou em uma concepção teórica de politecnia,
que foi sendo apropriada já, ao longo do funcionamento da escola B.
A escola B, constitui-se como uma Unidade Técnico-Científica regulamentada
pelo Ministério da Saúde (MS), responsável pela coordenação e execução de
atividades de ensino, pesquisa, informação e comunicação, desenvolvimento
tecnológico e cooperação técnica nas áreas de Educação Profissional em Saúde e
em C&T e de Iniciação Científica no Ensino Médio.
76
Na década de 90, as políticas de educação profissional técnica em saúde se
alinharam às políticas educacionais do Ministério da Educação do governo Fernando
Henrique Cardoso, bem como às orientações do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), financiador do programa. Adotou-se, assim, a pedagogia
das competências para esse sistema de ensino. O discurso das competências
passou a ser compreendido como uma tentativa de substituir uma representação
hierárquica estabelecida entre os saberes e as práticas. Outro fato importante que
influenciou na organização curricular da escola B, nesse período, foi a crítica ao
ensino transmissivo de conteúdos, reverberando a pedagogia das competências.
Entretanto, várias pedagogias marcaram a história da construção do modelo
curricular da escola B, entre elas a pedagogia da pergunta, típicas do pensamento
de John Dewey e a da problematização e relação dialógica, com elementos das
ideias de Paulo Freire.
Hoje o projeto político pedagógico da escola B tem como compromisso, a
Educação Profissional em Saúde, em nível técnico e de formação inicial e
continuada, voltada para uma formação ética, política e técnica. Com essa
finalidade, são realizados cursos e pesquisas e traçadas cooperações técnicas em
níveis nacional e internacional. A proposta de uma formação politécnica em saúde
qualificada e crítica é construída em dois eixos principais: a formação dos jovens e
maduros trabalhadores do sistema de saúde da C&T e a formação docente para a
área de Educação Profissional. Elabora propostas de política, regulamentação,
currículos, cursos, metodologias e tecnologias educacionais; produção e divulgação
de conhecimento nas áreas de trabalho, educação e saúde.
Suas pesquisas e atividades de ensino focam a Educação Profissional em
Saúde; o Processo de Trabalho em Saúde; as Tecnologias Educacionais em Saúde;
o Ensino Médio integrado à Educação Profissional em Saúde e a Iniciação Científica
no Ensino médio. O ensino se realiza nas modalidades de formação inicial e
continuada de trabalhadores, especialização técnica e formação técnica de nível
médio nas seguintes áreas específicas: Atenção à Saúde; Vigilância em Saúde;
Gestão em Saúde; Informações e Registros em Saúde; Técnicas Laboratoriais em
Saúde; e Manutenção de Equipamentos de Saúde (PROJETO POLÍTICO
PEDAGÓGICO, 2005).
A escola B vem se pautando pela concepção politécnica, que dialoga com as
circunstâncias societárias atuais, deixando explícita a sua concepção de mundo.
77
Nessa concepção, o trabalhador é visto se educando no conflito e na contradição, e
que a aquisição, pela classe trabalhadora, dos saberes elaborados pela humanidade
serve de instrumento para a luta contra a divisão social do trabalho e a dominação
(PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2005). Trata-se, assim, de defender que a
todo trabalhador deve ser garantida a Educação Básica, como essência para um
processo de formação dos profissionais de nível médio e fundamental que lhes
possibilite tornarem-se dirigentes.
Assim, a escola B vem se estruturando como politécnica, mediante a
construção de um novo projeto pedagógico que ampliou suas práticas, na
perspectiva da formação integral de trabalhadores. A criação de um espaço de
discussão sobre Educação, no interior da escola, foi fundamental para o
desenvolvimento desse projeto. O debate sobre a formação profissional integral,
síntese entre cultura e técnica, alicerçada numa sólida Educação Básica e dela
indissociável, culminou na realização, em 1987, do Seminário Choque Teórico, cujas
reflexões foram fundamentais para a consolidação dos princípios que estruturam o
projeto ético-político-pedagógico dessa escola. Esse projeto se afirmou como um
espaço de criação, questionamentos, crítica e produção intelectual e material,
comprometido com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde e com o
desenvolvimento científico e tecnológico em Saúde, tendo o trabalho como princípio
educativo (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2005).
5.2.5 Transcrição das entrevistas
As entrevistas foram gravadas e transcritas por esta pesquisadora. Embora
tenhamos consciência das limitações que envolvem a transcrição de entrevistas
tanto em relação à pretensa neutralidade quanto em relação à ilusão de termos
captado todos os detalhes, ainda assim, buscamos realizá-la com o máximo de
fidelidade com a fala dos professores. Por esta razão, optamos em transcrevê-la
guardando a forma (o estilo e o gênero) e o conteúdo que a constituem. Da mesma
forma, buscamos, sempre que possível, preservar ao máximo a expressividade e a
entonação percebidas no momento da entrevista, repetições de palavras, indicações
de hesitação por meio de pausas e outros sinais. Também consideramos a
entonação expressiva que não pode ser observada pelo leitor, captada nos gestos,
78
risos, tom de voz e outras expressões corporais, mas, que se não levadas em conta
no momento da análise, contradizem os pressupostos teórico-metodológicos que
embasam este estudo, uma vez que Bakhtin (2006) ao considerar que toda palavra
usada na fala real possui um acento de valor ou apreciativo relacionado com a face
objetiva da significação, questiona “em que consiste esse acento e qual é a sua
relação com a face objetiva da significação?”, e responde dizendo que
o nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra é transmitido através da entoação expressiva. Na maioria dos casos, a entoação é determinada pela situação imediata e frequentemente por circunstâncias mais efêmeras. (BAKHTIN, 2006, p. 124)
O autor aprofunda a análise desse conceito acrescentando que a entoação
não se integra ao conteúdo objetivo da construção, mas, está relacionada aos
nossos sentimentos, quando damos, por exemplo, a uma palavra, uma entoação
expressiva e profunda.
5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
Neste estudo, buscamos investigar as perspectivas de qualidade da educação
científica, analisando as enunciações de seis professores da formação profissional
técnica de nível médio, de química e de biologia, em relação direta com a situação
social de entrevista na qual se inserem. Interessou-nos compreender o processo de
construção dos sentidos a partir da abordagem teórica que fundamenta este estudo
e à luz das questões que orientam esta pesquisa.
De acordo com a filosofia bakhtiniana, o enunciado é o locus de produção e
de circulação de sentidos, sempre aberto à multiplicidade de perspectivas do outro,
mobilizadas no discurso para compor a perspectiva do enunciador. Em consonância
com esse princípio teórico, o enunciado constitui a unidade de análise de nossa
investigação.
O gênero entrevista, que emerge de uma situação concreta de interação
verbal, possui particularidades que facilitam a delimitação do enunciado, importante
aspecto na teoria da linguagem de Bakhtin (2003, p. 296), pois, para ele, “os
próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do
discurso”, ou seja, o pesquisador pergunta sobre um conteúdo e, ao concluir a
pergunta, o entrevistado inicia a sua fala. Ao seu término, o entrevistador inicia a
79
sua, e assim por diante, tentando tornar inteligível o discurso e fazer emergir as
reentrâncias das situações e fatos apresentados nas falas dos sujeitos da pesquisa.
Não se trata de reduzir a entrevista a uma troca de perguntas e respostas
previamente preparadas como ações mecanizadas, mas concebê-la no âmbito da
pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico, como uma produção de linguagem.
Nesta dialogia, o endereçamento é essencialmente importante, pois, alinhada
à concepção bakhtiniana, Amorim (2002) afirma que o destinatário participa como
coautor do enunciado. A autora, em seu estudo das vozes, define: i) o destinatário
real, “aquele que efetivamente lê o texto”; ii) o destinatário suposto,“faz ouvir a voz
do contexto de origem do texto”, iii) o sobredestinatário, totalmente indefinido e não
concretizado, “libera o texto das limitações de seu contexto”. Entendemos que tais
endereçamentos podem produzir sentidos específicos no enunciado. Assim, o
entrevistado pode mudar o tom, a expressão e até o conteúdo, construindo novos
sentidos sobre o objeto, em função do seu ouvinte (o entrevistador), ou da imagem
que faz de sua audiência.
Na comunicação discursiva, sempre há um locutor e um ouvinte, porém, nem
sempre com lugares bem definidos. Há também um objeto do discurso sobre o qual
se fala. Amorim (2002) nos explica esse princípio, apoiada nas ideias de Benveniste
(apud AMORIM, 2002), quando afirma: “A linguagem põe e supõe o outro”. Tudo que
se enuncia supõe um “Eu”, que designa um “Tu”, a quem ele se dirige e fala de um
“Ele”. Explica, também, que embora a enunciação seja um lugar de constituição da
subjetividade, seu sentido só se produz numa relação de alteridade que, em Bakhtin,
se desdobra em muitos lugares enunciativos. Daí a polifonia, pois, em um mesmo
enunciado, ressoa uma multiplicidade de vozes.
O estudo das vozes está sempre imbricado com os tipos de discurso que se
inscrevem na enunciação. Em sintonia com a teoria bakhtiniana, lembramos que na
enunciação há, no mínimo, duas vozes, a do locutor e a voz do destinatário suposto,
daí Amorim (2002) afirmar não haver um discurso de uma só voz, mas somente a
tendência de alguns enunciados estabelecerem uma relação direta com o objeto, ao
contrário do enunciado dialógico, que permite o contato com outras vozes. Essa
tendência será observada em nossas análises, quando o enunciador defender as
“suas” ideias, assumindo-as como verdadeiras ou falsas, não escutando a voz do
outro, desconsiderando-o como outra consciência viva e falante. É a composição do
texto, a forma como o texto é escrito e composto que permite que outras
80
perspectivas falem em seu discurso. Pode-se dizer que, na enunciação, algumas
vozes falarão mais alto que outras, no sentido de serem mais valorizadas ideológica,
histórica e socioculturalmente, silenciando as demais.
Além dos princípios da alteridade, do endereçamento e da polifonia, que
constituem o dialogismo de Bakhtin, o enunciado pressupõe uma situacionalidade,
ou seja, ele é determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é,
pela situação social imediata. A enunciação não existe fora de um contexto social, já
que cada locutor tem um horizonte social e se dirige para um interlocutor (em
potencial), para um auditório social bem definido (BAKHTIN, 2004).
Do ponto de vista de Bakhtin (2004), cada novo contexto possui influência
sobre os sentidos atribuídos às enunciações. Apoiamos-nos nessa ideia para
esclarecer que, ao trazermos duas escolas de formação profissional (escola A e
escola B) para constituir o corpus desta pesquisa, o que nos interessa não é a
comparação entre os professores e as escolas com o intuito de classificá-los ou
desqualificá-los como melhores ou piores, bons ou ruins, certos ou errados, mas,
uma vez reconhecidas suas singularidades e especificidades, explorar as questões
de pesquisa, levando em conta a influência que cada contexto histórico e
sociocultural, imediato e mais amplo, exerce sobre a produção de sentidos na
comunicação dialógica dos professores.
O autor afirma que o discurso nasce de uma situação pragmática, extraverbal,
contextual, histórica, e que continua a ligação com essa situação para poder manter
sua significação. No texto "Discurso na vida e Discurso na Arte", Bakhtin/Volochínov
(1926) já se perguntava: "Como o discurso verbal se relaciona com a situação
extraverbal que o engendrou?”; “De que forma o analista deve proceder
metodologicamente para descobrir o sentido e a significação?".
Com estas indagações, introduzimos outra dimensão da análise bakhtiniana
da linguagem, além da orientação social do enunciado. Ao desprezar a abordagem
formal e o ideologismo estreito para analisar e estudar a linguagem, Bakhtin inclui a
análise do “contexto extraverbal” como parte constitutiva dos sentidos atribuídos às
enunciações. Esse contexto é composto basicamente pelo horizonte espacial
comum aos interlocutores, pelo conhecimento e compreensão comum da situação
existente entre os interlocutores e da avaliação comum dessa situação. Esse
caminho articularia o verbal e o não-verbal, o dito e o não-dito, o posto e o
pressuposto, o entendido e o subentendido. A consequência para as nossas
81
análises é a de que, durante a entrevista, o que o entrevistador e o entrevistado
veem, sabem e avaliam em comum se reflete na produção de sentidos da
enunciação dos envolvidos nessa situação social.
No texto Dialogic Imagination, Bakhtin (1994) acentua o valor que dá ao
aspecto da transmissão e a avaliação da fala do outro, como um dos temas mais
importantes e fundamentais da fala humana. Ele argumenta que, em todas as áreas
da vida e da atividade ideológica, nossa fala está completamente repleta de palavras
de outras pessoas, as quais são transmitidas com graus muito variados de rigor e
imparcialidade.
Em nossa análise, buscaremos observar, também, quando o enunciador tenta
fixar sentidos em seus enunciados, não permitindo a interanimação com outras
vozes. Esse tipo de transmissão é denominado pelo autor como discurso de
autoridade “o discurso autoritário não pode ser representado, só é transmitido”
(p.344). Nesse sentido, o enunciador parece demonstrar fidelidade incondicional ao
significado a ser transmitido, parece hermeticamente fechado, não permitindo que o
ouvinte o questione. Esse aspecto é especialmente importante em nossa pesquisa,
uma vez que iremos analisar enunciações dos professores de ciências, que trazem
as marcas desse horizonte social. Nelas se pressupõe, na maioria das vezes, uma
formação em contato com o gênero do discurso científico, dogmático e
essencialmente de autoridade.
Por outro lado, pode-se encontrar o discurso internamente persuasivo. Ele
ocorre quando há marcas de que o enunciador produz, em sua enunciação, sentidos
dialogando com outros enunciados e sobre eles discute, concorda, critica, questiona.
É tecido a partir das palavras dos outros e permeado com as próprias palavras do
enunciador e, por isso, pode ser considerado metade dele e metade do outro.
Analisaremos, ainda, a forma como o enunciador se posiciona em relação aos
outros enunciados. Esse posicionamento pode ocorrer por meio da apropriação, que
é “trazer algo para o interior de si mesmo e fazê-lo próprio” (WERTSCH, 1999, p.92).
Ao fazê-lo, o enunciador amplia o seu horizonte pela apropriação, compreensão e
produzindo sua própria perspectiva.
Apropriando-se do discurso alheio, os professores podem mudar o conteúdo e
o sentido sobre o objeto do discurso. Em relação a essa mudança, Bakhtin (1994)
explica que “o discurso do outro está dentro de um contexto e não pode ser
82
fielmente transmitido, está sempre sujeito a certas mudanças semânticas” (p. 338). É
nesse campo que o viés interpretativo é dado, originando as nuances do discurso.
Embora Bakhtin não tenha cunhado o conceito de recontextualização em sua
filosofia da linguagem, esse tipo de apropriação pode ser entendido como tal, pois “a
estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta;
em cada um dos novos contextos que dialogam com ele, este discurso pode revelar
sempre novas formas de significar” (BAKHTIN, 1994, p. 346).
Na orquestração de vozes na composição do enunciado, faremos referência
ao discurso citado (ou direto) e ao discurso indireto. No primeiro, a voz da pessoa é
incorporada ao discurso, preservando a sua originalidade. A identificação dessa
originalidade é explicitada pelo uso de marcadores linguísticos, observados na
superfície do texto. Já no discurso indireto, tais marcas nem sempre são percebidas
na superficialidade dos textos, mas pelo seu conteúdo semântico referencial, pela
entonação e expressividade empregadas.
Bakhtin (1994) pede que se pense sobre a importância da forma como se
incorpora a palavra do outro em nosso discurso, afirmando ser decisivamente
importante, além de conhecer as condições de produção do enunciado, identificar
quem está falando no texto. Esses conceitos podem nos orientar quanto ao efeito de
sentido de uma citação ou referência à fala de outrem na enunciação do enunciador.
São efeitos que podem surgir quando, na enunciação dos entrevistados, o
enunciador relata a fala do outro, preservando a integridade do texto e buscando
apresentar provas para legitimar os sentidos que está tentando fixar em seu
discurso. Porém, Bakhtin (1994) também adverte sobre as possíveis mudanças
semânticas a que estão sujeitas as citações, mesmo quando enunciadas com
precisão (limites demarcados linguisticamente e banhados de expressividade e
entonação).
Os professores poderão também relatar indiretamente a fala do outro,
fazendo uso de suas próprias palavras para falar sobre o que outro disse. Isso é o
que se faz na maioria das comunicações cotidianas. É importante, assim, estar
atento às interpretações e apropriações que os professores fazem dos discursos dos
outros, pois elas estão marcadas, também, pela intencionalidade do falante.
Para inferirmos os sentidos de qualidade construídos nas falas dos
professores, serão observados, também, os marcadores linguísticos, que podem ser
83
palavras, expressões, exclamações, pois estes sempre podem auxiliar na análise
para evidenciar os possíveis sentidos produzidos em cada discurso.
Tomando estes constructos como princípios metodológicos, utilizaremos os
procedimentos metodológicos propostos por Bakhtin (2004) para realizar a análise
dos enunciados construídos pelos professores investigados. Assim, percorreremos
as seguintes etapas:
i) análise das formas e os tipos de interação verbal em ligação com as
condições concretas em que se realizam. Nesta etapa, procuraremos
identificar a situação extraverbal composta pela extensão espacial, pelo
conhecimento, pela compreensão e pela avaliação comuns aos interlocutores
na situação de entrevista;
ii) análise das formas das distintas enunciações em ligação estreita com a
interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de
fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela
interação verbal: as perspectivas (vozes) que intervêm na enunciação; o
endereçamento do enunciado (destinatário real, o destinatário suposto e o
sobredestinatário); o posicionamento do professor em relação ao conteúdo
semântico referencial do enunciado-pergunta;
iii) análise das formas da língua na sua interpretação linguística habitual.
Nesta etapa analisaremos cada enunciado, observando: o conteúdo
semântico referencial (o conteúdo propriamente dito), a estrutura
composicional (a estrutura do enunciado), o gênero textual e o estilo adotados
(seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua); os
efeitos de sentido dos marcadores linguísticos sobre a enunciação dos
professores.
Resumidamente, percorreremos três etapas para a análise dos enunciados,
conforme apresentado no Quadro 4 a seguir.
84
Quadro 4: Procedimentos de análise dos enunciados dos professores
CONTEXTO EXTRAVERBAL
Horizonte espacial, conhecimento, compreensão e avaliação comuns aos interlocutores na situação de entrevista.
CONTEXTO INTRAVERBAL
Identificação do enunciado cujos limites foram estabelecidos a partir da alternância dos sujeitos. Leitura preliminar do enunciado. Análise do enunciado à luz dos pressupostos teórico-metodológicos bakhtinianos e das questões de pesquisa.
PERSPECTIVAS Apreensão das perspectivas dos docentes em relação à qualidade da educação científica no contexto da EPTM.
85
6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DOS PROFESSORES ENTREVISTADOS
Este capítulo aborda as análises das respostas dadas pelos professores na
situação de entrevista individual. Para realizar estas análises, buscamos captar o
coro de vozes que ressoam nos enunciados dos professores, nos sentidos
construídos na interlocução com a pesquisadora.
Operacionalmente, a primeira providência tomada diante do material de
pesquisa foi delimitar o enunciado, unidade real da comunicação discursiva, cujos
limites se estabelecem, no caso da entrevista, pela alternância dos sujeitos. Assim,
cada resposta foi tomada como um enunciado, a partir dos limites concretos entre o
término da fala do pesquisador e o início da fala do entrevistado até o seu fim, e
assim por diante.
A análise, que buscou compreender ativamente as enunciações, emerge da
leitura minuciosa de cada enunciado, para apreender os sentidos e as apreciações
que, de acordo com Bakhtin (2004), se constituem como elementos de toda
enunciação. Para ele, a todo instante da vida, o sujeito assume continuamente uma
posição avaliativa e responsiva em relação ao outro. Nesse sentido, buscamos
evidenciar não somente o que os professores falam, mas também como falam: a
entonação com que se expressam, as acentuações valorativas, as dialogias
estabelecidas, o seu posicionamento na enunciação e a forma como se apropriaram
dos temas aos quais foram apresentados. Tudo isso, sem perder de vista a
“interpretação linguística habitual”, ou seja, o exame do uso dos elementos
linguísticos (léxico, sintaxe, estilo, construção composicional, unidade temática e a
conclusibilidade) constituintes do enunciado.
Organizamos as análises, agrupando-as pelos temas centrais de cada
pergunta, com o intuito de compreender como cada professor tece suas perspectivas
de qualidade, com foco nos temas principais nelas referenciados: a) objetivos do
ensino de ciências (Química ou Biologia); b) seleção de conteúdos, metodologia e
avaliação; c) o papel dos laboratórios no ensino de ciências; d) interesse e
desempenho dos alunos; e) formação integral; f) documentos oficiais; g)
apresentação do conhecimento científico; h) o papel da pesquisa na formação
profissional.
86
Em consonância com a arquitetura bakhtiniana, nenhum enunciado pode ser
plenamente compreendido se não forem levadas em conta as situações concretas
em que se realizam, a relação entre os interlocutores e o endereçamento. Assim, a
compreensão do enunciado como um todo se configura pela integração de duas
partes: a verbal, realizada em palavras, e a presumida, ou seja, o dado, o
inquestionável.
Neste sentido, é necessário esclarecer que o roteiro que estruturou as
entrevistas foi apenas um ponto de partida. A imprevisibilidade e a singularidade de
cada encontro com os professores influenciaram o modo como as perguntas foram
elaboradas. Isso pode ser observado no conjunto das análises do professor André,
em que não aparece o item relativo à consulta aos documentos oficiais e, nas do
professor Murilo, em relação à pesquisa. No primeiro caso, porque o professor já
havia comentado a respeito, por mais de uma vez, nos enunciados precedentes ao
momento dessa pergunta. No segundo, porque o professor apresentou uma
limitação de tempo que me levou a rever as perguntas. Como também já havia se
posicionado em relação à pesquisa em outros momentos da entrevista, não
julgamos prejudicial essa omissão. Por motivos semelhantes, algumas perguntas
foram feitas englobando mais de um tema para uns professores e separadamente
para outros.
Iniciamos a análise descrevendo o contexto extraverbal de cada entrevista,
que inclui o horizonte espacial, o conhecimento e a avaliação comuns aos
professores e à pesquisadora em relação ao contexto social mais próximo, na qual a
pesquisa está imersa. Ainda como parte do contexto extraverbal, consideramos de
igual importância para a compreensão do enunciado, o acesso aos dados
profissionais, tanto dos entrevistados quanto da pesquisadora, registrados,
respectivamente, no capítulo cinco e na apresentação. A descrição das trajetórias
profissionais e acadêmicas dos professores estão inevitavelmente imbricadas em
seus enunciados. A descrição das atividades profissionais e acadêmicas da
pesquisadora estão virtualmente implicadas na imagem que o entrevistado faz de
seu ouvinte e, portanto, também moldam seu enunciado. Pois, como nos adverte
Freitas (2007), a inserção da pesquisadora no campo se dá de fato pela “penetração
em outra realidade, para dela fazer parte, levando para esta situação tudo aquilo
como um ser concreto em diálogo com o mundo em que vive” (p. 37).
87
6.1 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR ANDRÉ
6.1.1 O contexto extraverbal
O horizonte espacial comum entre o professor André e a pesquisadora, na
situação social de entrevista9, ou seja, o que viam em comum no contexto imediato
de pesquisa eram elementos básicos de uma sala de aula ociosa da escola A, no
horário vago do professor. Nessa sala estavam presentes apenas a pesquisadora e
o entrevistado, que percebiam juntos toda a movimentação de alunos e professores
do turno vespertino, na dinâmica da rotina escolar.
No que tange ao conhecimento presumido entre o professor André e a
pesquisadora é importante explicitar que trabalhamos como docentes, no Campus I
da escola A, por um período comum de sete anos, ministrando disciplinas que se
inscrevem nas séries iniciais da formação técnica. Embora mantivéssemos um bom
relacionamento, foram poucas as oportunidades para um diálogo sobre nossas
concepções de educação. Encontramo-nos pouquíssimas vezes a partir de 2009,
quando conversamos rapidamente acerca de nossas experiências no curso de
doutorado. De lá para cá, com a mudança de endereço da reitoria, que antes
funcionava nas dependências da escola A, nossos diálogos se tornaram mais
escassos ainda.
Em relação às mudanças políticas no contexto da educação profissional no
Brasil, vivenciamos as reformas educacionais, a partir das determinações do Decreto
Nº 5.154/2004, que revogou a obrigatoriedade da separação entre ensino médio e
formação técnica, estabelecida pelo decreto anterior, dando autonomia às escolas
para a integração. No ano de 2008, vivenciamos também a criação dos institutos
federais, a partir dos centros federais de educação, ciência e tecnologia. Embora
não tenhamos discutido a política de expansão da educação profissional do governo
federal a partir de 2003, sabíamos da importância dada a essa via de escolarização
pelas instâncias governamentais.
Por sermos professores atuantes no ensino técnico de nível médio, sabíamos
da existência dos PCNEM como política curricular oficial, das diretrizes curriculares
9 A transcrição completa da entrevista com o Prof. André encontra-se no Apêndice 2 (p.209).
88
nacionais para a formação técnica e do projeto político pedagógico da escola A;
sabíamos das relações de poder que permeavam as disputas por espaço, no
currículo, entre os conhecimentos gerais e os específicos; conhecíamos o reflexo
destas disputas, nas relações interpessoais, no âmbito da instituição; sabíamos da
importância da Coordenação de Integração Empresa-Escola (CoIEE) para a
instituição e da relevância dos laboratórios no curso técnico em Química. Vale
ressaltar, também, que o professor André estava a par de que a pesquisadora
ocupava, no momento da entrevista, um cargo de direção na escola A.
A avaliação comum, presumida por ambos, em relação à participação na
pesquisa, é o quanto valorizam essa atividade, por se tratar de um estudo na área
de ensino de ciências, desenvolvido na UFRJ, uma instituição acadêmica
reconhecida socialmente pela relevante produção científica e que, nesse contexto,
suas contribuições poderiam produzir eco na academia, por se tratar de uma
pesquisa para uma tese de doutorado. Outra avaliação comum relaciona-se ao
reconhecimento da importância de se discutir a educação científica, no momento em
que a formação profissional ganha centralidade nas políticas educacionais para o
nível técnico de ensino.
6.1.2 Perspectivas do professor André
a) Objetivos do ensino de química
Iniciei a entrevista com o Prof. André perguntando sobre a sua visão em
relação ao objetivo do ensino de ciências, na educação profissional técnica de
formação para o trabalho. O professor afirmou considerar esse objetivo como central
e importante, mas, ao enunciar: “Tem que ver realmente como essa formação se dá.
Mais crítica”, revelou uma preocupação com a qualidade dessa formação, trazendo
para seu discurso um acento de valor em relação à formação profissional, que se dá
a partir de uma perspectiva crítica.
Aparentemente pautado por esta perspectiva, analisa a concepção de
formação profissional oferecida pela escola A: “Aqui, na instituição, aqui, hoje, a
formação para o trabalho tem uma característica muito estranha”. O uso do
marcador “aqui” representa a escola A, no qual ele trabalha e pressupõe um “lá”,
que, possivelmente, representa os demais campi da escola A, onde a formação para
89
o trabalho pode não ser “estranha”, ou, no mínimo, é diferente dessa. Já o uso do
marcador “hoje” pressupõe um “ontem” e um “amanhã”. Ambos com possibilidades
de caracterizações diferentes de “estranha” para a formação profissional no Campus
I. Diferente do que acontece “hoje”, é possível que, no passado, a formação
profissional fosse considerada adequada aos seus fins, em sua visão. Já no uso do
“amanhã”, o sentido é de que, a partir do presente, ele esteja vislumbrando
mudanças do cenário atual.
Ao enunciar que hoje a escola A “tem algumas questões que são
anacrônicas” e “fora da perspectiva que nós temos hoje em relação à questão do
trabalho”, qualificou a formação profissional oferecida nesse campus como
descolada das demandas contemporâneas advindas do mundo do trabalho. Na
continuidade, o professor apontou um desalinhamento entre o perfil de formação
técnica oferecida hoje pela instituição e o perfil de formação técnica solicitada
atualmente pelo mercado. Ressaltou a importância de se estabelecer um contato
com as empresas ou indústrias que irão empregar estes profissionais, julgando que,
hoje, esse “laço” com o mercado é “completamente débil, muito frágil,
completamente inexistente”. O professor relembrou um determinado momento
histórico, em que havia carência de profissionais no mercado, subentendendo-se o
técnico em Química, no qual a escola A era “quase a única provedora desse tipo de
profissional”, para construir o sentido de que naquela época tal contato com as
empresas não se fazia tão necessário, porque demanda e oferta se casavam
perfeitamente. Embora reconhecendo que hoje ainda exista grande demanda pela
formação técnica tradicionalmente oferecida pelo Campus I, lamentou o fato de ele e
seus pares não terem recursos para avaliar a adequação ao mercado, a partir da
formação que oferecem (“mas a gente não tem parâmetros, indicadores, como
avaliar de que maneira esse profissional está sendo voltado para uma função de
trabalho, qual é o padrão da formação profissional desse cara”).
Mas, se não forma para as atuais demandas do mercado de trabalho, que tipo
de formação tem sido oferecido aos futuros técnicos? Na visão do Prof. André, a
escola A oferece uma “formação para o lado acadêmico”. Exemplificou, relatando o
interesse dos alunos pelo curso de Biotecnologia, atribuindo-o ao desejo destes em
aprofundar o conteúdo de Biologia, disciplina que constitui a base curricular do curso
de Medicina (“Eles estão num curso de biotecnologia para ter uma carga poderosa
com relação à área de biologia”). Deixou clara a sua visão de que na escola A não
90
há o desejo coletivo da formação para o trabalho, diferente do que ocorre nos
demais campi, configurando isso como uma “espécie de estorvo no padrão dos
institutos.” A escolha da palavra “estorvo” para adjetivar a escola parece indicar que
a formação profissional oferecida ali destoa e atrapalha o conjunto dos demais
institutos federais.
Embora tenha feito essa crítica, o professor André admite que a escola A
pode continuar oferecendo a formação técnica alheia às discussões que envolvem
as questões relativas à formação para o trabalho, “tanto do ponto de vista para a
formação específica para o trabalho quanto do ponto de vista para a formação
integral”, mas à custa de seu isolamento, em relação ao conjunto dos institutos.
Na continuidade de seu discurso, pareceu aprofundar o que ele acabara de
enunciar, a partir do “conjunto de pessoas” que atuam no ensino. O que ele disse é
que essas pessoas - e entendemos estar se referindo aos professores que
ingressaram na escola A por meio de concurso (“selecionadas”) - são pessoas muito
motivadas com a sua linha de estudos e que, ao depararem, na escola A, com um
“espaço de liberdade” para desenvolver o seu trabalho, buscam a realização pessoal
em torno dessa liberdade. Para ele, tal realização é propiciada, também, pela grande
carga horária de disciplinas, principalmente, em função das disciplinas exatas ou
biológicas. Porém, contrapôs a grande carga horária das disciplinas matemática,
física, química e biologia à das disciplinas de história e geografia, avaliando como
“pífio” o conhecimento humanístico oferecido aos alunos na formação técnica.
Retomou o tema central da pergunta e passou a apresentar a sua visão sobre
os objetivos para a formação para o trabalho, a partir da sua formação acadêmica,
que disse estar relacionada a essas discussões. Assim, marcou o lugar social de
onde estava falando e se diferenciou dos demais professores (“mas os professores
daqui, stricto sensu, não têm nenhuma noção de qual é a demanda ou as
orientações nacionais para a formação do trabalho”). Com este comentário, infere-se
que a sua visão se coaduna com a da legislação.
Justifica o desconhecimento dos demais professores em relação às
orientações oficiais para a formação para o trabalho, atribuindo-o, também, à total
ausência de espaços de discussão na escola A sobre essas orientações (“não há
encontros, seminários, motivações, orientações”). Ele próprio assumiu não conhecer
o que diz o projeto político pedagógico da instituição sobre a formação para o
91
trabalho, embora já tenha se empenhado em saber, sem êxito, por não obter
respostas (“já perguntei pelo projeto várias vezes e ninguém responde”).
Ao enunciar que “Gostaria de, antes de sair dessa instituição, ver esse
documento”, destacou, no mínimo, a possibilidade de não permanecer na instituição.
Na sequência enunciativa, pôs em dúvida a existência do projeto político pedagógico
e apontou o não reconhecimento da importância do mesmo pela instituição. A seu
ver, o que importa para “eles”, que interpretamos sendo o corpo docente e
administrativo da escola A, é “manter a sua própria história. Uma história que vai se
perdendo por essa mudança de nomes, por essa descaracterização.” Pelas palavras
finais desse enunciado, verificamos que, também para o professor André, as
mudanças provocadas pelas legislações recentes na formação técnica,
acompanhadas de novos nomes para designar a instituição, implicam perdas,
embora tenha trazido essa visão para o discurso tentando justificar a ausência de
discussão em torno do projeto político pedagógico da escola. É como se ele
dissesse que a discussão entre os seus pares centra-se nessa descaracterização e
na busca pela fixação dos sentidos para o ensino, que prevaleceram ao longo da
história, visando à reconstrução de uma identidade institucional. É possível
considerar também que a ênfase nesse processo de busca de identidade acaba por
secundarizar reflexões coletivas em torno dos documentos legisladores da/para a
instituição. Ainda podemos interpretar que essa busca emerge do quanto essas
mudanças ameaçam a suposta estabilidade do reconhecimento social, pela
qualidade oferecida, e que o coletivo institucional se preocupa em manter.
Do ponto de vista do professor, o entendimento do processo vivido
atualmente pela instituição se configura como um interessante processo psicológico
“digno de um estudo antropológico, psicológico, sociológico”, sugerindo a análise da
problemática discutida a partir do sujeito constituído sob a ótica sócio-histórica-
cultural. O professor relatou que as pessoas não têm mais o nome da instituição,
documentos oficiais, registros do passado, restando a eles “a própria história”. Se a
instituição, na qual essas pessoas trabalham há anos, vêm se modificando, e se
estas rejeitam ou resistem às mudanças, o sentimento de pertencimento se desfaz e
todos acabam, segundo o professor, só tendo “uns aos outros”. Entretanto, elas não
parecem compor um grupo harmônico, na medida em que “têm muitas diferenças”.
Por isso, o professor qualificou a atual situação da escola como “esquizofrênica”, o
que também indica a ausência de um projeto institucional.
92
Intencionando retomar o foco, refiz a pergunta sobre os objetivos do ensino
de Química, tendo o professor salientado a necessidade da criação de espaços de
discussão sobre as relações entre as solicitações do mercado e a formação técnica.
Ao apontar essa preocupação, deixou evidente sua perspectiva de que a formação
profissional oferecida deve atender ao mercado.
O professor se ressente de a escola A não ter desenvolvido um processo
sistemático para discutir estas questões, visando a reorientar os discursos docentes.
Por exemplo, lembrou que a Química ainda é ensinada na escola em uma
perspectiva analítica, restringindo a habilitação profissional do aluno ao trabalho em
laboratório, quando esse não é “o único universo de possibilidades”.
O Prof. André trouxe para o discurso a ideia de acomodação institucional,
diante da convicção que gestores e docentes têm da alta qualidade do ensino
oferecido, convicção esta construída e reconhecida socialmente ao longo da história,
e que balizou e baliza a formação técnica oferecida pela escola A. Então, qualquer
mudança ou questionamento representa uma ameaça ao status alcançado pela
instituição, mesmo que seja no imaginário coletivo que a conforma. Esse sentido foi
apreendido no tom irônico com que o professor se expressou ao comentar: “Nós
somos os melhores e porque somos os melhores, nós devemos continuar tudo do
jeito que está.”
Caracterizou a cultura institucional, ao enunciar que “a função pedagógica ou
didática nesta instituição se refere muito a uma espécie de burocracia pedagógica,
então pensar curricularmente essa instituição, sob o ponto de vista de novas
práticas, novas abordagens é praticamente um tema proibido”. Finalizou o
comentário, usando o mesmo tom irônico (“Porque somos muito bons”) para justificar
a resistência institucional em discutir e pensar o ensino a partir de novos parâmetros
pedagógicos ou curriculares. Em seguida, classificou a escola A, dizendo que acha
que isso não acontece nos demais campi, talvez pela nova institucionalidade, que
conforma a criação dos mesmos, demandando por consulta e discussão dos
documentos oficiais (“Alguém de outro campus já conhece a diretriz, já sabe como
formular isso, mas aqui é tudo mais difícil”). O uso do marcador “aqui”, no final do
seu enunciado, reforça a dificuldade de se discutirem ou implementarem mudanças
na escola A.
93
b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação
Em seu discurso sobre a seleção de conteúdos, metodologia e avaliação, o
Prof. André diz seguir o currículo estabelecido institucionalmente, tomando-o como
discurso de autoridade que conforma a sua prática. Diz ser um “arranjo curricular
consensual” para as disciplinas de Química Geral I e II e Inorgânica, uma vez que
estas disciplinas são direcionadas à formação básica, no sentido de serem pré-
requisitos para futuros aprofundamentos da química no processo de formação
profissional.
No entanto, após deixar refletir a voz de autoridade institucional em seu
discurso, demonstrou responsividade ativa quando relatou introduzir questões de
história e filosofia da ciência, nos novos conteúdos, para ensinar química geral I e
química inorgânica.
O Prof. André afirmou ainda que a inserção dos novos conteúdos que faz é
possível, porque ele tem formação acadêmica para tal, afirmando e reafirmando
várias vezes a sua competência. Ao reforçar a ideia de que isto é possível no seu
caso particular, deixa margem à percepção de que mudanças curriculares são
iniciativas individuais e isoladas na escola A.
c) O papel do laboratório no EC
O Prof. André constrói a sua visão sobre o uso do laboratório divergindo da
concepção de ensino experimental, das atividades práticas, questionadas, também,
pelo “ensino de ciências”, que interpretamos como sendo a literatura da área em
ensino de ciências. Na sequência enunciativa, ressoa em seu enunciado a voz
institucional em relação às práticas laboratoriais usuais (“A gente tem um percurso
na atividade experimental de consolidação e aprendizagem de técnicas”). Contrapôs
essa perspectiva à concepção de atividades experimentais defendida pela área de
ensino de ciências, “que tem que ser mais críticas, menos ingênuas, não ser uma
repetição de roteiros”.
Apesar de ter aproximado a sua visão acerca das finalidades do laboratório à
visão da área de ensino de ciências, considera a “atividade repetitiva”, realizada no
laboratório, como necessária à atividade profissional que o técnico irá exercer. (“faz
parte da atividade profissional que ele vai desenvolver”). Porém, avalia essa prática
como uma “aula bem careta”, tanto do ponto de vista da técnica, quanto do ponto de
vista de se confrontar com a teoria dada em sala de aula.
94
Considera que, excetuando-se o instrumentalismo inerente à atividade que o
técnico irá desenvolver em sua ocupação profissional (“que tem que ser”), a
atividade experimental na escola A, que ocorre com um caráter de “repetir roteiros,
com pouca reflexão, formulação de hipóteses, poucos testes, poucos diálogos, o
confronto é pouco”, poderia ser reformulada. Com esse comentário, se posicionou
de forma crítica em relação ao uso instrumental do laboratório e pareceu defender
uma reformulação na linha do que propõe o ensino de ciências, citado como
contraponto, no início do enunciado. O uso de “a gente10” em “a gente precisa
reformular isso” parece indicar que, nas atividades experimentais, há planejamentos
em grupo, já que incorpora, em seguida, em seu discurso, o posicionamento desse
grupo (“essa ansiedade que o grupo tem há algum tempo”) sobre as reformulações
em tais atividades. Relatou que algumas reformulações já foram feitas, porque
algum docente com voz de autoridade realizou (“alguém chegou e disse: eu vou
fazer assim mesmo”), de forma individual, no processo “on the job”. Reconheceu, no
entanto, que é preciso “sentar e reorganizar melhor”, o que também parece dizer
respeito a uma atividade a ser realizada pelo grupo.
d) Interesse e desempenho dos alunos
Em relação ao interesse e desempenho dos seus alunos, o Prof. André
considera que “os alunos têm muito interesse, porque vieram para cá”, produzindo o
sentido de que o interesse dos alunos está ligado diretamente à instituição e não à
carreira, como se poderia supor. Este sentido parece se confirmar quando o
professor declarou que circula, entre ele e seus pares, a pergunta (“Mas interesse
em quê?”) e passa, a partir deste questionamento, a apresentar a sua leitura, que é
a de que os alunos “têm muito interesse em ensino de qualidade e não em ensino
profissional”. Na sequência, retomou a perspectiva de motivação dos alunos, tecida
no início do seu enunciado, acrescentando o adjetivo “gratuito” ao que expressara
antes, (“Eles vêm aqui em busca de ensino de qualidade gratuito”) tentando assim,
mais uma vez, qualificar o interesse específico de seus alunos.
Com relação ao desempenho, considera que os alunos são bons “porque eles
são filtrados”. O marcador “filtrado” se refere ao processo seletivo acirrado por que
10
Consideramos que a interpretação da expressão “a gente”,como sujeito coletivo, não é inequívoca, já que a mesma também pode ser usada, caracterizando vício de linguagem, designando a primeira
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passam os alunos que ingressam na escola A. É possível interpretarmos que o
professor atribui os bons resultados obtidos por seus alunos ao fato de já
ingressarem na escola com uma boa base de conteúdo, e não apenas por conta do
ensino aí ministrado.
e) Formação Integral
Questionado sobre a sua compreensão de formação integral, o Prof. André a
definiu trazendo-a para a realidade da escola A: “acho que essa formação integral
seria o sujeito ter, além da perspectiva da formação do sujeito em ensino médio, ele
ter acesso a conteúdos, atividades, questões que tivessem a ver com a formação
profissional”. Considera que, na escola A, a formação integral ocorre parcialmente
por privilegiar a formação profissional e secundarizar a formação mais ampla. Assim,
o Prof. André equiparou a formação mais ampla à formação geral oferecida no
ensino médio.
O professor André exemplificou a valorização maior dada à formação
profissional na escola A, citando a discussão da inclusão das disciplinas de Filosofia
e Sociologia, recentemente imposta pela legislação educacional, como obrigatória
no ensino médio e, portanto, também à educação profissional. Deixou claro o desejo
de aproveitar o momento da entrevista para registrar o seu posicionamento em
relação a tal discussão (“queria até deixar registrado”). Ao fazer esse comentário,
expressou sua convicção do quanto julga equivocada a reação de rejeição de seus
pares em relação a essa orientação se aplicar, também, à formação profissional. É
como se ele quisesse garantir o eco de sua voz, que parece tomar como verdade,
para uma audiência social mais ampla, ou seja, para a academia, gestores
institucionais, professores, entre outros, em relação a essa temática. Abordou a
resistência dos professores de algumas disciplinas, subentendendo-se, pelo todo do
enunciado. que sejam as disciplinas específicas, lançando mão das formas
linguísticas “temeridade” e “absurdo” para tecer a oposição destes em relação à
exigência da inclusão das disciplinas de humanas no currículo da formação técnica.
O Prof. André transmitiu o questionamento dos docentes que discordam de tal
inclusão, pressupondo que, ao enunciarem “pra quê?”, na realidade, estão
perguntando: “pra que filosofia e sociologia o tempo todo?”. Em sua concepção, os
pessoa. Só ousamos interpretá-la como sujeito coletivo diante de evidências no todo estético do enunciado.
96
professores questionam, resistem, por não entender o que é a formação integral.
Com essa crítica, o professor, apesar de limitar a formação mais ampla ao que é
oferecido no ensino médio, defende algo mais para a formação técnica profissional.
Para avaliar a formação integral no contexto da formação profissional, o Prof.
André compôs a estrutura do seu enunciado selecionando intencionalmente as
palavras, principalmente quando, após dizer que a formação integral “É uma espécie
de simulacro”, explicitou que é uma palavra de que ele gosta muito (“Vou deixar
claro que é uma palavra que eu gosto muito”). Demonstra, assim, uma valoração na
escolha do léxico para construir o sentido que deseja produzir em seu discurso. Na
sequência discursiva, reforçou o sentido anterior com o acréscimo de outros
adjetivos à estrutura composicional: (“essa formação integral na educação
profissional é um simulacro, uma mentirinha, um fingimento”). Reiterou, assim, a sua
concepção de que a formação integral não é realizada na escola A e, além de não
se realizar efetivamente, finge-se que é realidade na escola. Insistiu no exemplo da
resistência à inclusão das disciplinas de filosofia e sociologia no currículo da
instituição para provar a inexistência da formação integral.
Ao tentar esclarecer a problemática da formação integral na escola A, acabou
expondo sua visão de currículo como uma construção mediada por relações de
poder dentro da instituição: “as pessoas não estão dispostas a perder nada do que
têm hoje, porque o currículo, em qualquer lugar, atende à idiossincrasia do conjunto
de pessoas daquela instituição, né?” Complexificou essa noção quando
acrescentou, à construção do currículo, o atendimento a acordos internacionais. No
entanto, embora tenha mencionado essa importante influência no currículo, não
desenvolveu essa ideia.
Encaminhou a conclusão do seu enunciado apontando um problema
estrutural na proposta da legislação no que tange às disciplinas de humanas. Esse
problema seria a necessidade de um número maior de professores na área de
humanas, mas que, de acordo com a lei, esse número acabaria sendo, ao final do
curso, maior que o número de professores das disciplinas específicas, consideradas
mais importantes no âmbito da escola A, como, por exemplo, a própria química.
Na continuidade da entrevista, perguntei sobre outro sentido que poderia ser
dado à formação integral, ou seja, à integração entre as disciplinas curriculares do
ensino médio e do ensino profissional. O Prof. André foi categórico ao enunciar:
“Não tem integração. Essa relação de diálogo, não tem diálogo. As funções básicas,
97
as disciplinas básicas são espécie de serviço sujo que as disciplinas da ponta não
querem fazer." Além de deixar claro não haver integração, ele classificou, isto é,
separou a formação geral das disciplinas da formação profissional e colocou a
formação geral em posição inferior, naquele contexto institucional.
Nesse ponto da entrevista, o Prof. André passou a discorrer sobre os
obstáculos que tem enfrentado, a partir das dificuldades demonstradas por seus
alunos, diante do rigor conceitual e do regime semestral que caracterizam a
instituição. Ao enunciar que “a gente vem experimentando nas disciplinas iniciais um
processo de reprovação muito grande. Isso é ruim, mas é bom para as disciplinas
que estão na frente”, descreveu um mecanismo seletivo interno, que é perverso para
os alunos e “bom” para alguns professores. Justificou o porquê desse “bom”, uma
vez que, reprovados nas séries iniciais, o número de alunos diminui para as séries
finais. Pelo tom irônico com que expressou “Isso tudo acontece em prol da defesa da
qualidade institucional, porque sempre fomos bons assim, exigindo muito”, é
possível considerar que o Prof. André pôs em xeque a hegemonia desse
pensamento e problematizou essa qualidade, ao dialogar com os “novos perfis” dos
alunos que estão chegando com novas dificuldades e diante das transformações
que o mundo vem sofrendo.
Ao afirmar, em seguida, que o diálogo entre as disciplinas é “só pró-forma”,
produziu o sentido de que a integração de conteúdos não acontece como deveria, se
configurando como um discurso retórico.
O Prof. André afirmou que os professores das disciplinas das séries finais
(formação específica) veem as disciplinas das séries iniciais (formação geral ou
básica), “apenas”, como pré-requisito necessário para o desenvolvimento das
primeiras, mas comparou essa relação com a necessidade que temos do “lixeiro” (“a
gente precisa do lixeiro, mas quer que ele fique cada vez mais longe da gente”). Um
dos sentidos apreendidos é o de que, embora reconheçam a necessidade das
disciplinas básicas, não valorizam os professores que as ministram e, arriscamos
dizer, que mantêm até certa distância, demonstrando superioridade hierárquica,
quando ele afirmou que “é necessário que eu vá lá, deixe o lixo e ele pega. Se eu
não encontrar com ele, ótimo. É um serviço que eu preciso que seja feito, e bem
feito”. Com isso, pareceu apontar, também, a inexistência de diálogo entre eles
como obstáculo para construir algum tipo de integração, enfatizando as relações de
poder na instituição como limites para a construção da integração.
98
A metáfora do lixeiro expressa sua visão de que os professores das séries
finais julgam o trabalho dos professores das séries iniciais como bem feito ou não, a
partir da “limpeza bem feita”, ou seja, da reprovação no início do curso, para que
recebam um número menor de alunos ao final do curso.
O Prof. André recorreu a uma situação hipotética de aprovação em massa
nas séries iniciais, que denominou de “manifesto”, como uma forma de mudar a
perspectiva dos professores das séries finais. Diante dessa nova situação, que
implicaria o aumento do quantitativo de alunos em sala de aula, eles poderiam,
segundo o professor, “entender as questões”.
Já tendo perguntado sobre dois sentidos de formação integral, um oficial e
outro de integração de conhecimentos, parti para um terceiro, que seria o sentido de
uma formação mais ampla. Perguntei, fundamentalmente, se ele percebia alguma
preocupação no meio institucional com essa formação. O Prof. André, nas palavras
iniciais de seu enunciado, disse haver essa preocupação, mas, ressaltou que é uma
posição pessoal e não institucional ou curricular. Mais adiante, assumiu não saber se
realiza ou não essa formação, basicamente por não ter contato com os documentos
oficiais que contêm as diretrizes para a EPTM. Convicto, afirmou que os demais
professores da instituição também desconhecem essas diretrizes e, assim, apontou
uma implicação, percebida na superfície de seu enunciado pela estrutura
composicional: “Logo, o que a gente tem é um festival de boa vontade, é a legião da
boa vontade da Química”, ecoando em seu discurso a falta de diretriz para o grupo.
É como se dissesse que cada um faz o que acha melhor e cada um define formação
integral individualmente.
Ao enunciar “a gente vai trazendo questões para a cena da questão ambiental
sim”, parece indicar que se mobiliza para introduzir a mencionada questão
ambiental, na tentativa de implementar a formação integral. Apreendemos, também,
que, ao evocar essa questão, aproxima a introdução de temas ambientais à
implementação da formação integral, ainda que com restrições, por não se organizar
a partir das diretrizes e não ser cobrada dos alunos em um processo de avaliação.
A apreciação valorativa evidenciada no discurso do Prof. André em relação ao
processo de avaliação se acentua, na medida em que a considera meio de legitimar
a formação integral (“Vou chamar aqui só uma coisa que é muito importante: essas
questões todas que podem estar pontuadas como itens de uma formação integral,
elas têm que, em algum momento, estar incluídas no processo de avaliação daquele
99
sujeito”). O professor defendeu que tem que deixar claro para o aluno que “isso está
sendo contado para que ele progrida no curso, sendo observado”. Com esse
comentário, o professor parece validar e garantir a realização da formação integral a
partir da submissão dos alunos a algum tipo de controle (de observação,
mensuração) e que, sabendo que será avaliado, passe a valorizar os “itens” (ou as
novidades no ensino que, por ventura, venham com a implementação) da formação
integral. Nessa visão, ecoa em seu discurso a autoridade da avaliação, concebida
como instrumento de poder (controle), capaz de revestir de valor toda e qualquer
atividade relacionada ao processo de ensino e aprendizagem.
As palavras finais desse enunciado refletem e refratam a realidade
institucional, no que diz respeito à falta de um projeto comum que vise à formação
integral e ao desconhecimento das diretrizes oficiais, admitindo, o professor, não
serem esses “os documentos orientadores da atividade docente” na instituição. O
uso dos marcadores linguísticos “incrível” e “impressionante”, em “não se conhecem
esses documentos oficiais. Incrível, né, impressionante”, e a entonação com se
expressou no momento da entrevista para a sua audiência social, revelam o quanto
incomum, extraordinário julga esse desconhecimento. Uma interpretação possível
seria a de que ele considera que os documentos oficiais deveriam ser reconhecidos
e apropriados no âmbito da instituição como diretrizes da prática pedagógica que
visasse à formação integral.
f) Apresentação do conhecimento científico
A resposta do Prof. André sobre a sua visão do modo como o conhecimento
científico é apresentado na formação profissional estabelece uma apreciação
valorativa do professor em relação ao objeto: “É a mais careta possível.
Impressionante, impressionante...”. A seleção dos recursos lexicais e a repetição dos
adjetivos produz discursivamente o sentido de objeção do professor em relação à
visão de Ciência construída na formação técnica.
Traz, para o enunciado, a relevância da discussão sobre o conhecimento
científico para ele e para a sua formação. Essa valoração se estende à formulação,
à escrita e à escolha do léxico nos relatórios de avaliação produzidos pelos alunos.
Mais uma vez, qualificou o modo de ensinar o conhecimento científico como
“careta”, acrescentando a essa qualificação a palavra “ingênua”, e o considerou
como “quase positivismo lógico”. O uso do recurso linguístico “quase”, no que
100
acabou de enunciar, pode ser interpretado como uma tentativa de atenuar o sentido
produzido, em função da sua audiência social (destinatário real, suposto e
sobredestinatário), evitando, talvez, uma generalização indevida dessa adjetivação.
g) O papel da pesquisa
Para falar da pesquisa, o professor incorporou ao seu discurso a voz
institucional, colocando em evidência as atividades que são realizadas no Campus I,
durante a Semana da Química. Ao focalizar tal atividade em seu discurso, expressou
um acento de valor a este evento, também apreendido na escolha do recurso
linguístico “interessante” para qualificá-lo. Declarou que, por reconhecerem a
tradição desse acontecimento, os alunos, buscam junto aos professores, orientações
para desenvolver seus projetos de pesquisa.
A posição que o Prof. André assumiu em relação ao tipo de pesquisa que
realiza com os alunos, é marcada na superfície do seu enunciado, quando diz que
oferece “projetos de pesquisa básica: pesquisa, reflexão, intervenção, debate...
Básicas. Raramente aplicada”, relacionando tal escolha ao seu interesse pessoal
pela pesquisa básica.
Demonstrando pressa, talvez porque fosse dar aulas, ou para passar à
pergunta seguinte, com a intenção de imprimir velocidade à interação para finalizá-la
o quanto antes, ou ainda por considerar que atingiu a exauribilidade máxima do
conteúdo do objeto, o professor perguntou: “Qual é a outra questão?”
Tendo respondido ao professor que era sobre a importância da pesquisa, o
professor disse que é no âmbito dessa atividade que se revela “a qualidade do
material humano que a gente tem e do interesse”. Atribui, às atividades de pesquisa,
a capacidade de aproximar professor e aluno e o incentivo pela crescente vontade
de aprender.
Após relatar que é desse grupo de alunos interessados em pesquisar que
escolhe o seu bolsista de iniciação científica, o professor marcou seu lugar social
como pesquisador e o interesse em trabalhar com alunos motivados.
O Prof. André, na sequência enunciativa, aproximou o trabalho com a
pesquisa à sua visão de formação integral, explicando como a segunda se realiza a
partir da primeira, na medida em que os alunos são incentivados a “trabalhar em
grupo, lidar com a diferença, [...] tomar decisões, aprender como colocar a sua
decisão, respeitar a decisão do outro, no sentido da ajuda e da compreensão.” Ele
101
considera que tais atividades conduzem os alunos a um amadurecimento, capaz de
ajudá-los a compreender e a aceitar os aspectos limitantes que se impõem ao longo
da pesquisa.
h) Qualidade
Ao final da entrevista, solicitei ao professor Prof. André que relacionasse, no
máximo, cinco perspectivas de qualidade para a educação científica. No Quadro 5,
está reproduzido na íntegra o quê e em que ordem o professor respondeu.
Quadro 5: Respostas do Prof. André à atividade escrita sobre Qualidade
1. Menos alunos em sala.
2. Organização escolar adequada.
3. Adequação de espaço físico.
4. Mais Filosofia.
5. Menos conteúdos específicos.
Observamos que, nas perspectivas de qualidade registradas pelo professor
André, ressoam valores e intenções indicados na análise dos enunciados
precedentes. A perspectiva “Menos alunos em sala” pode ser apreendida,
subliminarmente, quando enunciou a respeito das dificuldades que os professores
dos primeiros períodos estão atravessando, por conta do alto número de
reprovações. A partir da realização dessa atividade, foi possível considerar que o
acento de sua reclamação não recai, apenas, na problemática da reprovação em si,
mas, nos reflexos sobre o aumento do quantitativo de turmas e alunos nas séries
iniciais, nas quais trabalha.
As perspectivas indicadas nos itens 4 e 5, já enunciadas ao longo da
entrevista, confirmam o peso que o professor dá à abordagem filosófica do
conhecimento científico, na equação da qualidade do ensino de química, no âmbito
da formação técnica.
Já as perspectivas enunciadas nos itens 2 e 3 não foram captadas em sua
fala até a análise da realização desta atividade, dificultando interpretações sobre
outros acentos e intenções, para além do que essas expressões minimamente
sugerem, que seriam o valor depositado na infraestrutura e no aspecto
102
organizacional para o bom funcionamento da escola. Juntamente com o aspecto
operacional, classificado pelo professor como primeiro lugar, os aspectos
classificados como 2o e 3o lugares não se destacaram na análise da entrevista, sob
o ângulo das perspectivas de qualidade.
6.2 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA TAÍS
6.2.1 O contexto extraverbal
Nas condições imediatas de entrevista11 com a Profa. Taís, não ocorreu nada
de extraordinário (no plano do visível) que pudesse interferir na interlocução, além
do movimento corriqueiro dos alunos nos corredores da escola. Estávamos em uma
sala de aula desocupada, apenas ela e eu, após o término da jornada diária de aulas
da professora. Dispúnhamos de sessenta minutos livres para a entrevista, que durou
quarenta e cinco minutos.
Em relação ao nosso conhecimento comum da situação social, vale destacar
que trabalhamos juntas na escola A, Campus I, por cerca de vinte anos como
professoras dos cursos técnicos. Portanto, vivenciamos juntas as reformas da
educação profissional desde a década de 90, quando, até então, a formação técnica
era oferecida de forma integrada ao ensino médio, passando pela separação
compulsória em 97 e pela liberdade para a integração a partir do Decreto Nº
5.154/2004. Nessa época, compartilhamos as discussões que polemizavam as
consequências dessas determinações legais para o ensino técnico.
Vivenciamos juntas momentos de tensão política em relação à possibilidade
de privatização da escola A, arrochos salariais, escassez de recursos materiais e
humanos, pressão política para transferência da escola do centro da cidade para a
baixada fluminense, com grande repercussão na mídia nacional, tudo isso na era
FHC. Mais recentemente, em 2008, vivenciamos, juntas, a criação dos institutos
federais, a partir dos centros federais de educação ciência e tecnologia e, embora
não tenhamos discutido sobre a intensificação da política de expansão da educação
11
A transcrição completa da entrevista com o Profa. Taís encontra-se no Apêndice 3 (p.214).
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profissional técnica do governo federal a partir de 2003, sabíamos da importância
dada a essa via de escolarização pelas instâncias governamentais.
No momento da entrevista, era conhecimento comum entre nós, por sermos
professoras atuantes no ensino técnico de nível médio, a existência dos PCNEM
como política curricular oficial para o ensino médio e as diretrizes curriculares
nacionais para a formação técnica. Também sabíamos que atuávamos em partes
diferentes do currículo, a professora/pesquisadora, na formação reconhecida como
geral e Taís, na específica; sabíamos das relações de poder que hierarquizavam
curricularmente os conhecimentos específicos sobre os gerais e o impacto dessa
hierarquização nas relações interpessoais no âmbito da instituição; sabíamos da
importância da Coordenação de Integração Empresa-Escola (CoIEE) para a
instituição.
Sempre mantivemos um bom nível de relacionamento, diálogo e respeito e,
frequentemente, compartilhávamos nossas ideias sobre o ensino de ciências e
matemática nos ambientes escolares, preocupadas em oferecer, o que parecia, em
nossas perspectivas à época, ser o melhor para os nossos alunos, comuns em
alguns dos períodos semestrais. A Profa. Taís também sabia que a pesquisadora
recentemente havia passado a ocupar um cargo de direção na escola A.
A avaliação presumida entre a professora Taís e a pesquisadora, frente à
situação social de pesquisa, também pode estar relacionada ao reconhecimento da
importância em se discutirem temas referentes ao ensino de Química no contexto do
curso técnico, em um momento no qual a formação profissional técnica ganha
centralidade nas políticas educacionais do país. Pode existir, também, um valor
presumido em relação ao momento da entrevista, relacionado aos seus destinatários
supostos, como oportunidade de falar sobre a sua prática para uma professora e
doutoranda de um programa de pesquisa conceituado, constituindo escuta
privilegiada no sentido de provocar eco na academia.
6.2.2 Perspectivas da professora Taís
a) Objetivos do ensino de química
Ao tecer considerações a respeito do objetivo do ensino de ciências (EC) na
formação profissional, explicitado nos documentos oficiais para a EPTM, como
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sendo o de formar para o trabalho, a Profa. Taís estruturou a sua fala fazendo uso
do indeterminador do sujeito “se” na oração “sempre tem que se levar em
consideração o que você quer da escola [...]”; (quem?). Uma hipótese para analisar
o efeito dessa indeterminação sobre o sentido produzido no enunciado aponta para
a naturalização desse objetivo, a partir do momento em que é feita a opção por esta
via de escolarização, seja pela família dos alunos ou pelos próprios alunos.
Demonstrou, inclusive, que compartilha dessa visão ao reconhecer que, uma vez
escolhida a formação técnica, está posto que o ensino de química deva ter como
objetivo central a formação para o trabalho, em atendimento às solicitações desse
mercado. Em seguida rompeu com esta indeterminação para se posicionar, (“Eu
acho”, “Eu vejo”, na 1ª pessoa do singular) em relação à avaliação do curso técnico
em Química, o qual julga como “de excelência” pelo direcionamento dos conteúdos
de química ao mercado de trabalho. Os verbos usados no presente do indicativo
indicam que os processos a que se refere (“Eu vejo isso nas visitas que eu faço de
supervisão de estágio”) são simultâneos ao momento da fala do enunciador, ou seja,
a professora, hoje, ocupa dois posicionamentos: além de professora de Química,
atua como supervisora de estágios.
Ao interrogar “Você sabe o que isso significa?” acentua o valor que dá à
avaliação feita pelos representantes do setor produtivo sobre os estagiários
estudantes do curso técnico em química, por ocasião de suas visitas de supervisão
de estágio. É como se ela dissesse: significa muito! Ao mesmo tempo, parece
reiterar a importância que dá ao objetivo do ensino de química ser aquele que
oferece ao aluno o acesso à maioria do conteúdo demandado pelo setor, e à
habilidade de aplicá-lo nesse contexto.
Mesmo sem fazer referência direta, é possível dizer que a Profa. Taís
incorporou, em sua fala, a perspectiva dos discursos institucionais que pregam o
objetivo do EC de formar para o trabalho, emitidos pelas instâncias internas à
Instituição, como a Pró-Reitoria de Ensino Técnico (PROET), a Coordenação de
Integração Empresa-Escola (CoIEE), o Planejamento Político-Pedagógico
Institucional (PPI), também preocupadas com a performance do egresso no mundo
produtivo. Tal desempenho é avaliado, internamente, pela supervisão de estágio e
atestada pelos representantes das empresas, por ocasião de suas visitas de
supervisão de estágio. Essa convergência de propósitos para o ensino de ciências
na formação profissional pode ser evidenciada quando ressoa, no enunciado da
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professora, a voz dos representantes do setor produtivo, ao avaliarem os alunos:
“eles são ótimos, eles têm excelente conteúdo”. A professora optou pela
representação do discurso citado (ou direto), em que se preserva a integridade e a
autenticidade do discurso de outrem. Interpretamos que, ao incorporar à sua fala,
esses marcadores, tentou comprovar e reforçar o acento que dá a essa avaliação.
Observamos, também, que, ao supervisionar o estagiário, a professora demonstra
preocupação com a satisfação do aluno no momento em que executa a sua função
de técnico, no sentido de saber se ele está conseguindo aplicar os conteúdos que
aprendeu e saber, também, se há consonância entre os conteúdos ensinados na
escola A e as demandas atuais do setor produtivo (“se os conteúdos que ele
aprendeu, ele está conseguindo aplicar lá com facilidade, se tem alguma coisa que
ele não sabia fazer e a escola é responsável por ele não saber aquele conteúdo”).
Embora afirme que o currículo proposto pelo curso certamente atenda ao
mercado de trabalho, reconheceu também a impossibilidade de atender totalmente à
demanda empresarial, diante da diversidade e especificidade de cada empresa na
contemporaneidade. Com esse comentário, interpretamos que a professora parte do
pressuposto de que este objetivo é legítimo e que ela se atém na avaliação de seu
cumprimento pela escola.
Diante da indagação acerca do estabelecimento de outros objetivos para o
ensino de Química, no contexto da EPTM, a professora Taís expressou um acento
de valor em relação à educação cidadã, ao estímulo ao sentimento de solidariedade
diante de problemas sociais, a alunos politizados, no sentido de serem estimulados à
autonomia e agirem em defesa de seus direitos. Com isso, acabou por expressar a
importância que dá ao estabelecimento de outros objetivos para o processo
formativo profissional técnico, ainda que restritos ao interior da escola.
Observamos, também, que ao enunciar os objetivo mais amplos para o EC,
as formas linguísticas que estruturam o seu enunciado dão margem a pensarmos
que este objetivo cabe a outros espaços escolares (“eu acredito que ela (a escola)
trabalha bem isso, ela trabalha bem cidadania”). Essa interpretação é confirmada
quando percebemos o valor que Taís imprimiu a essa dimensão de formação, ao
declarar ter ficado emocionada com as apresentações de teatro e do coral dos
alunos (iniciativas da escola), evidenciado pela sua entonação expressiva (“ e foi a
coisa mais linda”). Com isso, trouxe para a sua fala outra perspectiva de formação
do técnico em Química, além da restrita aos aspectos cognitivos e utilitaristas. No
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entanto, ao afirmar “Então eu acho que a escola trabalha todo o conjunto. E prepara
o indivíduo para a vida profissional, para seu desenvolvimento como cidadão
também ela trabalha”, parece construir para a formação integral um sentido de
soma, de superposição e não de integração das dimensões trabalho, ciência, cultura
e tecnologia.
A preparação para a pesquisa é outra faceta de formação que compõe o
“conjunto” da formação profissional, na visão da professora. Mais uma vez, a
professora parece se distanciar do papel de protagonista em trabalhar dimensões
mais amplas, atribuindo à escola este papel:“ela (a escola) procura desenvolver o
aluno para a pesquisa”, “eles ficam pesquisando meses e meses”, “ela (a escola)
tem esse lado bom também”. Inferimos que a professora concorda, admira e
considera importante trabalhar todas essas dimensões, mas, não assume,
discursivamente, autoria sobre esses processos.
b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação
Para falar da seleção de conteúdos, a Profa. Taís estruturou o seu enunciado
com formas linguísticas que apontam para um sentido de submissão da ação do
enunciador às determinações institucionais, indicando que segue os conteúdos que
constam de uma ementa elaborada no âmbito institucional. Tal sentido é marcado no
enunciado pelas expressões: “os conteúdos já estão selecionados desde que eu
entrei aqui ”; “a gente tem uma ementa e, dentro daquela ementa, a gente
desenvolve aqueles conteúdos”; “o que todos os livros abordam e a gente tem que
abordar” . Por outro lado, o marcador “a gente” produz um efeito de sentido de que
essa perspectiva pode corresponder, também, à do grupo social a que pertence, isto
é, a seus colegas de trabalho. Os marcadores “desde que” e “tradicional”, nas
expressões “desde que eu entrei aqui”; “eu ensino o tradicional”, produzem um efeito
de sentido que sugere uma posição tradicional da enunciadora em relação à seleção
de conteúdos.
Concorda com o caráter utilitarista e pragmático daqueles conteúdos, efeito
de sentido observado na pergunta retórica – “porque são os conteúdos que eles vão
precisar para desenvolver o trabalho deles, tá?”. A forma como se refere ao
conteúdo do seu enunciado (expressividade e entonação) imprime um efeito de
estabilização e naturalização sobre o seu posicionamento.
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Chamou-nos atenção a frequência com que a professora faz uso do recurso
linguístico “a gente” (“a gente tem uma ementa e, dentro daquela ementa, a gente
desenvolve aqueles conteúdos que a gente... [...] o que todos os livros abordam e a
gente tem que abordar)”. Ousamos interpretar que a repetição dessa construção do
sujeito parece uma forma de a Profa. Taís descentralizar a sua atuação individual,
compartilhando, na maioria das vezes, a responsabilidade da escolha dos conteúdos
com a equipe de trabalho e com as determinações dos documentos oficiais.
Diferentemente, o uso do pronome de primeira pessoa, destacado na
expressão “em cima deles (dos conteúdos) eu desenvolvo as minhas provas”, são
marcas que colocam em evidência a voz da entrevistada. Interpretamos que a
professora assume para si o papel de protagonista da avaliação de seus alunos. É
um posicionamento diferente do assumido em relação à seleção de conteúdos,
sobre a qual indicou não ter nenhuma ingerência. No entanto, sobre as provas, dá a
entender que o poder de decisão é seu.
No enunciado da Profa. Taís é possível perceber o sentido que atribui ao
termo metodologia, ao associá-lo exclusiva e enfaticamente ao uso dos recursos
didáticos que utiliza para ensinar: o quadro (negro ou branco), o giz e as listas de
exercícios (“a metodologia eu uso quadro e giz”).
Na composição do enunciado, os pronomes de primeira pessoa são marcas
da enunciação que colocam em evidência a voz da Profa. Taís (“eu uso quadro e
giz, porque eu preciso que o aluno tenha uma visão da minha molécula”).
Na sequência enunciativa, ao explicar a sua intenção de utilizar o quadro e o
giz para ensinar, foi possível perceber explicitamente o endereçamento do seu
enunciado à entrevistadora, que é professora de matemática, quando busca sua
concordância e equipara a necessidade do uso desses recursos tanto à química
quanto à matemática (“não é verdade?É a mesma coisa que ensinar matemática.
Você precisa de quadro e giz [...] você sabe como é integral, tem que mostrar todas
aquelas etapas”). Assim, projetou suas concepções de ensino como sendo também
as da entrevistadora.
Ao contrário da seleção de conteúdos, a professora Taís assumiu total
controle sobre a escolha dos recursos que usa para ensinar, apesar de justificada
pelas características intrínsecas do conteúdo de Química, certa de que eles
atenderão a sua necessidade de ilustrar o desenvolvimento de sua aula.
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É possível dizer que a Profa. Taís assumiu a perspectiva do discurso do
ensino expositivo (“Você precisa de quadro e giz [...] Você está num quadro. [...] A
gente precisa de um quadro [...] Temos que usar o quadro, entendeu?”. Além disso,
conferiu, ao uso do quadro, a propriedade de facilitar a visualização da molécula por
meio do que ela registra no quadro. Foi possível perceber, pela entonação de seu
enunciado, uma resistência da professora Taís em relação à apropriação dos
recursos multimidiáticos para o ensino da química em suas aulas (“Mas essas aulas
assim, tipo multimídia são muito pouco usadas, pelo menos na minha matéria”),
indicando que tal apropriação esteja restrita a outras disciplinas como “História e
Geografia”, talvez por achar que essas disciplinas tenham características intrínsecas
para justificar tal uso.
Na enunciação da Profa. Taís, percebe-se que a apropriação que faz do
conceito de avaliação no processo de ensino e de aprendizagem de química
aproxima-se da visão determinística de que é capaz de “observar se ele (o aluno)
aprendeu” a matéria que ensina. Disse considerar o “crescimento” do aluno ao longo
do período, no caso, um semestre e o seu desempenho quanto à frequência,
participação e realização das tarefas escolares como critérios de avaliação,
afirmando realizar, assim, uma avaliação qualitativa do aluno (“não é
numericamente, não é por uma nota. Tem toda uma análise qualitativa também do
aluno”). Ao mesmo tempo em que traz para o discurso a voz que busca superar a
concepção de avaliação relacionada apenas à nota alcançada na avaliação de
conteúdos ensinados, percebe-se que restringe essa tentativa de superação a um
determinado grupo de alunos (“agora, tem aquele aluno que não consegue tirar a
nota”), o que sugere a apropriação do conceito de avaliação qualitativa apenas como
mais um recurso para compor a “nota” e os critérios de aprovação ou reprovação
desses alunos (“tudo isso serve de avaliação na hora da...para dizer se ele (o aluno
que não conseguiu a nota) vai ser aprovado ou reprovado”).
c) O papel do laboratório no EC
A Profa. Taís relaciona o papel do laboratório ao “conhecimento das técnicas”,
emitindo um julgamento de valor (“é importante para ele desenvolver lá o trabalho
dele”) dirigido à formação para o trabalho e, por isso, a importância em observar a
“desenvoltura dele”, “autonomia do trabalho dele”. Observamos um distanciamento
de seu protagonismo, ao discorrer sobre os benefícios da participação em atividades
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desenvolvidas no laboratório para os alunos, produzindo um sentido, para o seu
discurso, de não envolvimento nesse processo ou na construção de uma concepção
própria do uso do laboratório no ensino de química. A ausência de conjugação
verbal na 1ª pessoa do singular ou do plural, quando descreveu as atividades de
laboratório (“Mas à medida que eles vão começando, vão pegando, tendo intimidade
com o laboratório [...] vão começando a desenvolver com mais tranquilidade as
tarefas que lhes são dadas”) corrobora esta interpretação, assim como a presença,
ao longo do enunciado, diversas vezes, do marcador “é importante que”,
caracterizando, também, um discurso despersonalizado.
A professora parece romper com esse distanciamento ao se fazer representar
no discurso pelo indeterminador “a gente”, para expressar o valor que também dá ao
uso do laboratório, como um espaço onde “a gente junta o conhecimento da teoria,
aplicado na prática”, como importante para o ensino de Química.
É provável que, ao argumentar acerca do comportamento do aluno no
laboratório - “é importante [...] educá-lo também como se comportar num laboratório
é importante. Tem que ter seriedade dentro do laboratório” - esteja dialogando com
as perspectivas das instâncias que discutem sobre segurança no trabalho e
insalubridade, embora a Profa. Taís não esclareça quais seriam as suas reais
preocupações.
d) Interesse e desempenho dos alunos
Para a Profa. Taís, o desempenho e o interesse do aluno passam pela
excelência da escola A, em relação às escolas privadas e estaduais, ou seja, os
alunos da escola A são os melhores, porque são selecionados por meio de um rígido
e competitivo processo seletivo. Os professores que reprovam na escola A não
conhecem as escolas de outras redes de ensino como ela. Interpretamos que
classifica o desempenho dos alunos que frequentam essas outras redes como muito
ruim (“Eu acho que eles nunca trabalharam em escola particular, ou do Estado,
entendeu?”). Se conhecessem, não reprovariam os da escola A. Outro sentido dado
ao objeto do seu discurso relaciona-se à adolescência, etapa responsável, segundo
a professora, pelo mau desempenho desses alunos. Disse haver um grande índice
de reprovação nos dois primeiros períodos, mas ao mesmo tempo se exime de
qualquer preocupação com isso, deixando-a para a escola, ao não se fazer
representar como sujeito da frase “A escola também está preocupada com isso”. Por
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fim, tece seu ponto de vista sobre o desempenho e o interesse do aluno, a partir da
visão de que os alunos chegam com um desempenho melhor ao terceiro período, no
qual trabalha, porque “já estão um pouco calejados” e “já levou umas pancadinhas
no primeiro e no segundo períodos” e, por isso, “são tranquilos para trabalhar com
eles [...] em termos de interesse, participam [...]”. Inferimos que a enunciadora atribui
o interesse demonstrado pelos alunos do terceiro período ao caráter rígido e seletivo
dos períodos iniciais do curso. O uso dos recursos linguísticos “calejados” e
“pancadinhas” indica o alto nível de exigência e o provável sofrimento dos alunos
nesse processo formativo.
Depreendemos daí que, ao associar exclusivamente desempenho e interesse
do aluno no/pelo ensino de Química à seletividade e às características da
adolescência, a professora silenciou outras concepções de ensino, relacionadas, por
exemplo, às suas aulas, às suas metodologias de ensino, à abordagem dos
conteúdos, avaliação e forma como procura motivar seus alunos.
e) Formação Integral
Nas palavras iniciais do seu enunciado, a Profa. Taís anunciou o ponto de
vista expresso ao falar sobre o conceito de formação integral: “É... planos,
conteúdos, ensino médio e profissional? Acho que sim.”. Ela acha que a formação
integral é atingida pela escola A, avaliando o desempenho dos alunos egressos na
interface com as diferentes escolhas e apropriações que fazem do conhecimento
adquirido por esta via de escolarização. Assim, acentuou o valor na excelência do
ensino ministrado na instituição, usando como balizadores desse status a aprovação
no vestibular e a avaliação dos alunos em estágio, realizada pelos representantes do
setor produtivo. Desse modo, a professora construiu a sua apreciação avaliativa
dialogando com o atendimento às exigências da universidade e do mercado de
trabalho, como comprovações que garantem a realização da formação integral na
escola A. (“Eu vejo que nós temos um alto índice de aprovação no vestibular ou a
gente tem sempre uma parte de aceitação e de elogios quanto à escola, na parte
profissional. Acho que a gente consegue atender sim essa formação integrada”).
Ao ser interpelada pela pesquisadora sobre outro sentido possível para a
formação integral, em relação à integração de conteúdos da formação geral e
formação profissional, a professora reagiu à pergunta, chamando a atenção para o
fato de, na escola A, não haver esse tipo de separação. Composicionalmente,
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emprega o recurso linguístico “aqui”, (“Aqui na escola não tem essa parte: essa aqui
é da educação profissional, essa aqui é do núcleo comum. Aqui não tem isso. A
gente trabalha tudo ao mesmo tempo.”) produzindo o sentido de demarcação
espacial da escola onde trabalha como sendo distinto dos espaços das demais
escolas, sejam elas da mesma rede de ensino ou não. Ela disse que essa
classificação pertenceu a um passado marcado pela separação compulsória entre
ensino médio e formação técnica, sugerindo o sentido de que hoje essa separação
não mais acontece.
No entanto, ao enunciar logo a seguir que “Na verdade ficou até mais ou
menos parecido, porque, o que acontece no curso técnico? São os mesmos
conteúdos, aprofundadamente, e algumas outras matérias, né?”, evidenciou a
complexidade dialógica da enunciação, neste caso, apreendida no conflito entre os
sentidos de integração curricular, o que deixou ainda mais nebuloso o que de fato
mudou, em relação à organização curricular do passado. Se ficou mais ou menos
parecido, então continuam separados, ou não? Há aqui, também, o sentido de
autonomia para gerenciar os princípios que regem a escola e seu currículo. Tal
sentido é produzido a partir do lugar social e ideológico de onde a Profa. Taís falou:“
e aí a gente separou um pouco [...]”.
Observamos também que, para explicar como funciona hoje, separou os
conteúdos em dois blocos: “os mesmos conteúdos” e “algumas outras matérias”.
Nessa separação, percebemos um sentido de depreciação do segundo bloco de
matérias. Efeito de sentido marcado linguisticamente pelo advérbio de modo
“aprofundadamente”: o primeiro bloco é ensinado “aprofundadamente”, mas o
segundo bloco não o é. Seguindo esse raciocínio, uma pergunta aqui se impõe:
quais seriam essas “outras matérias” que parecem não merecer serem ensinadas
aprofundadamente? Estariam elas incluídas no grupo das disciplinas de ciências
naturais e matemática? Ciências humanas? Ciências sociais?
Na sequência da interação verbal, no momento em que ainda falávamos da
integração de conteúdos, a Profa. Taís perguntou: “Agora, você está falando da
interdisciplinaridade das matérias?” Tendo eu respondido que sim, a professora
avaliou: “Isso aí é difícil. Isso é muito bonito, mas é muito difícil” e julgou que ela é
quase impraticável em qualquer instituição de ensino, privada ou pública.
Mais uma vez, a recorrência no emprego do recurso linguístico “aqui” produz
um sentido de marcar a escola A como espaço enunciativo de produção de sentidos
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para o ensino. (“Não. Aqui não. Aqui a gente não tem essa preocupação não. O
ensino interdisciplinar, não”) Em seguida, ao enunciar quais são as reais
preocupações da escola, empregou o pronome possessivo de 1ª pessoa: “de que o
meu conteúdo atenda aos cursos, aos períodos que vêm [...]”, cujo efeito apreendido
é o de que, provavelmente, tentou harmonizar o seu ponto de vista com o currículo
da escola A. É possível interpretar, ainda, que, ao apontar essa sintonia com o
currículo, a professora tenha buscado legitimar a sua perspectiva.
Ao ser questionada sobre as dificuldades para realizar a interdisciplinaridade,
a Profa. Taís construiu o seu discurso pautando-se nas consequências desse
princípio sobre o ensino, acentuando um valor negativo. Isto porque desorganizaria
o programa, interferindo na ordem da apresentação dos conteúdos, com a qual os
professores das diferentes disciplinas já estão acostumados a trabalhar. Outra
dificuldade indicada pela professora como empecilho para o desenvolvimento da
interdisciplinaridade diz respeito ao uso de livros didáticos no formato de volume
único que, apesar de não serem “bons” na apreciação da professora, (“são livros
muito vazios”) têm que ser usados, considerando que os pais dos alunos investiram
nesse material escolar (“vai dificultar porque o pai, comprar um livro que...”).
Em sua visão, a realização da interdisciplinaridade dependeria de todos os
professores ensinando sobre o mesmo assunto ao mesmo tempo (“eu acho que é
muito complicado você juntar todo mundo pra poder... todo mundo estar falando
daquele mesmo assunto, cada um com a sua visão, naquele dado momento”).
Explicou, então, por que essa abordagem seria complicada: “Porque a gente tem
que montar um programa que é sempre cobrado no vestibular. Não pode mudar a
ordem, senão você não consegue estabelecer a sua ordem.” Neste caso, supondo-
se que o programa curricular de uma escola é elaborado em grupo, o uso do
marcador “a gente” dá margem à interpretação de que a preocupação com a ordem
dos conteúdos ,visando à preparação para o vestibular, é um objetivo compartilhado
pela escola, no sentido de buscar a formação integral.
Nas palavras finais do seu enunciado, foi possível apreender, ainda, que a
professora Taís considera impraticável a interdisciplinaridade na atual estrutura
curricular, admitindo ser possível apenas se houver uma mudança em “toda a nossa
abordagem. Mude todo o programa”. Este final de sua enunciação indica que, hoje,
ela e seus pares conseguem realizar no máximo alguns trabalhos interdisciplinares,
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mas, “o conteúdo todo de uma escola, acho que não dá não, naquele mesmo
semestre, naquela mesma semana. Eu acho muito complicado.”
f) Apresentação do conhecimento científico
Nesse enunciado, a professora modalizou seu discurso, enfatizando a
importância que dá à organização curricular sequencial e ordenada dos cursos
técnicos, evidenciada pela escolha dos marcadores léxicos: “a coisa é toda muito
gradativa”, “à medida que vou passando os períodos”, “aumentando de período”. Daí
se depreende que a apropriação que fez do conteúdo temático referenciado na
pergunta foi apenas no sentido dessa organização curricular, o que pode indicar um
afastamento da autora de outras apropriações possíveis, como a preocupação com
a história da química, a produção do conhecimento químico ou a relação desse
conhecimento com a sociedade e o ambiente. Emprestou um tom apreciativo ao
enunciado, quando se refere às disciplinas técnicas, valorizadas em seu discurso ao
argumentar: “Onde acabam as disciplinas do núcleo comum, e é aí que existe mais
um aprofundamento e existem mais as matérias técnicas.” Interpretamos que é esse
momento que ela considerou para valer, no qual é importante aprofundar os
conteúdos das disciplinas (apenas as técnicas). Assim, ela restringiu o conteúdo
científico a essas disciplinas, para justificar sua defesa em relação à organização
curricular adotada.
g) Documentos oficiais
No início desse enunciado, identificamos o advérbio “já”, recurso linguístico
que assinala um tempo, acompanhado do verbo “ler” usado no passado (“Já. Eu já li
alguns capítulos”), o que parece indicar uma ação concluída no passado e sem
continuidade no presente. Tal uso nos dá pistas de que a consulta a tais
documentos não é atualizada, mas, foi realizada em algum momento, mesmo que de
forma restrita (“alguns capítulos”). A seguir, queixou-se da introdução obrigatória das
disciplinas de sociologia e filosofia em todas as séries e também da língua
estrangeira, o espanhol, atribuindo a essa inserção o estrangulamento da grade
curricular (“a escola já tem uma grade curricular apertada [...] você há de convir que
ela vai ficar muito mais apertada ainda”). É possível considerar que não atribuiu
acento de valor às disciplinas de humanas, mas o fez em relação às disciplinas
técnicas, ao defender o redirecionamento dos tempos de aulas, destinados pela lei
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às ciências sociais e ao “espanhol”, para as disciplinas específicas para a formação
profissional (“A gente já não tem esses tempos, mas se a gente tivesse e pudesse
usar na formação do aluno, na formação profissional”). Identificamos uma tentativa
da professora de retificar o que foi dito, (“Não estou dizendo que não seja importante
não”) em contradição com o posicionamento assumido no início do enunciado.
Destacamos, na sequência discursiva, a frase “Haja vista que eles estão sendo
incluídos”, marcada, na enunciação, pelo recurso linguístico da voz passiva para
indeterminar o sujeito verbal da oração, o qual se supõe ser a perspectiva do
discurso oficial (MEC), isto é, um dos determinadores legais das disciplinas
obrigatórias que compõem a grade curricular do ensino médio. O sentido apreendido
é o de que a inclusão das disciplinas filosofia e sociologia, na grade curricular, é
considerada importante por ser uma determinação da legislação educacional.
h) O papel da pesquisa
Questionada a respeito do envolvimento dos alunos, em suas aulas, com
projetos de pesquisa, a professora Taís declarou que, no (terceiro) período em que
leciona, não realiza pesquisa com os seus alunos, desdizendo o que afirmara
anteriormente. Entretanto, em seguida, situou a realização desse objetivo em outros
períodos (“Mas nos outros períodos, sim”). Levando em consideração o nosso
horizonte comum em relação à instituição, seu comentário deixa dúvidas se ela
orienta os alunos oriundos de outro período ou se seus alunos se envolvem com
professores de outros períodos do curso para a realização da pesquisa. Ao
desenvolver como ocorre o processo, ressaltou, em seguida, a ideia que sustenta,
ao longo de todo seu enunciado, de que esta iniciativa parte muito mais dos alunos
do que dos professores (“o que a gente sente na escola é que eles procuram o
professor”), uma vez que essa é uma possibilidade na escola A. Ao desenvolver
como ocorre o processo no qual, segundo ela, a pesquisa nasce de uma ideia e da
iniciativa dos estudantes, a professora Taís lançou mão do discurso direto para
transmitir a voz dos alunos, (“Professora, o que é que eu faço com esse [assunto] o
que é que a senhora poderia me orientar nesse trabalho?”) buscando fundamentar
sua explicação e para dizer que, a partir desse contato, toma conhecimento do tema
de pesquisa de interesse do aluno e o direciona para um professor que tenha o perfil
correspondente à pesquisa em questão.
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Na sequência da interlocução, perguntei à professora o quanto avaliava
importante envolver os alunos em pesquisa, tendo a professora afirmado que essa
atividade seria boa para o desenvolvimento do aluno. A forma como estruturou seu
enunciado, com a repetição “acho, acho, acho sim”, pode ter tido a intenção de não
deixar dúvidas de que ela a julga importante, considerando o endereçamento à
entrevistadora/professora e pesquisadora na área de educação como o seu
destinatário suposto, para quem, nessas condições de produção, ela talvez jamais
dissesse que não.
Buscando fazer com que ela justificasse a importância afirmada, insisti,
perguntando sobre os princípios e objetivos que julgava importantes nesse
processo. Para responder, a professora silenciou os objetivos e os princípios e
repetiu a dinâmica que ela segue para implementar o processo de pesquisa dos
alunos (“Bom, eu tenho acesso ao orientador. Aí o professor orienta: esse é o teu
assunto. Então você vai procurar tais e tais e tais artigos referentes a esse assunto”).
Em seguida, embora tenha declarado não se envolver diretamente com esse
processo a partir da indicação do aluno para um orientador, a professora trouxe para
o discurso a sua apreciação valorativa em relação a dois aspectos. Um deles seria o
fato de que acha interessante os alunos darem continuidade à pesquisa no ano
seguinte, porque possibilita um aprofundamento do estudo. O outro é que valoriza
tanto a iniciativa como a autonomia do aluno em escolher os temas a serem
pesquisados (“ eles já vão se aprofundando mais naquele determinado assunto que
eles que escolheram. Isso que é importante: Eles escolheram”).
i) Qualidade
Ao solicitar à Profa. Taís que relacionasse, no máximo, cinco perspectivas de
qualidade para o ensino de química, a professora registrou exatamente o que
aparece na ordem apresentada no Quadro 6.
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Quadro 6: Respostas da Prof. Taís à atividade escrita sobre Qualidade
1. Informação.
2. Fundamentação.
3. Atualização.
4. Necessidade.
5. Prioridade.
Em uma abordagem bakhtiniana, os sentidos apreendidos em qualquer
enunciado estão sempre em relação direta com o contexto de produção e
estabelecidos na interação verbal, seja ela oral ou escrita. Assim, os enunciados que
compõem o quadro de perspectivas da professora Taís, se tomados isoladamente,
são vazios e ininteligíveis. No entanto, no contexto da interlocução entre a
pesquisadora e a entrevistada, seus enunciados simplificados passam a ser plenos
de significação, apontando sentidos de ensino que integram as suas perspectivas de
qualidade. Retornando ao contexto de análise, foi possível tecer algumas relações
entre sentidos dos enunciados registrados durante esta atividade e os analisados
anteriormente.
Os enunciados indicados nos itens 1 e 2, “informação” e “fundamentação”,
evidenciam o acento de valor dado ao conhecimento entendido como informação e
teoria, que fundamentam a ação dos futuros técnicos, ao aplicá-los na função de
trabalho. Essa conexão foi feita a partir do sentido apreendido em “se os conteúdos
que ele aprendeu ele está conseguindo aplicar lá”, na resposta à pergunta sobre os
objetivos do ensino de química. Do mesmo modo, os enunciados “atualização” e
“necessidade” parecem se referir à necessidade de atualizar os conteúdos de acordo
com as solicitações (necessárias) do campo de atuação profissional, apreendido em
“se tem alguma coisa que ele não sabia fazer e a escola é responsável por ele não
saber aquele conteúdo” e “porque são os conteúdos que eles vão precisar para
desenvolver o trabalho deles”, também em resposta à mesma pergunta. A escolha
da palavra “prioridade”, apesar de colocada em último lugar, parece indicar a ideia
de que o sentido de qualidade, construído pelos demais aspectos registrados por
ela, é prioritário para o ensino de química, no contexto da educação profissional.
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6.3 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR TONI
6.3.1 O contexto extraverbal
No tocante ao horizonte espacial comum, restrito ao momento da entrevista12,
é importante relatar que esta ocorreu em uma sala de aula do Instituto de Educação
(onde o professor também ministra aulas de química para o ensino médio), na qual
se encontravam apenas o professor Toni e a pesquisadora. O local foi sugerido pelo
professor Toni, com a minha concordância, porque os institutos federais estavam em
greve e, também, por ser logisticamente viável para ambos. Nenhum acontecimento
extraordinário pôde ser identificado como capaz de ter influenciado ou atrapalhado a
interlocução durante a entrevista, que ocorreu em clima de tranquilidade e durou em
torno de oitenta minutos.
Apesar de trabalharmos na escola A em diferentes campi, durante seis anos,
nunca havíamos nos encontrado, portanto, também nunca tivemos chance de
conversarmos sobre nossas concepções de educação.
O conhecimento comum entre nós era que eu sabia que o professor Toni
ministrava aulas de química no Campus II e que ele, provavelmente, sabia (pela
assinatura no texto do e-mail), que eu ocupava, naquele momento, um cargo de
direção na reitoria da instituição; sabíamos, também, que atuávamos na parte da
denominada formação geral do currículo do curso técnico em Química; sabíamos
das discussões que estavam acontecendo, na escola A, sobre a carga horária
docente, como um dos pontos a serem tratados no grupo de trabalho que cuida das
demandas internas à instituição e sabíamos da importância dada aos laboratórios
pela instituição e ao setor responsável pelos estágios para os alunos do curso
técnico em Química.
Como professores atuantes no ensino técnico de nível médio, sabíamos da
existência dos PCNEM, das diretrizes curriculares para a educação profissional e do
projeto político pedagógico da escola A; sabíamos que o Decreto 5.154/2004
instituiu a autonomia para a integração entre o ensino médio e técnico, como
também para os regimes subsequente e concomitante; sabíamos do momento atual
e histórico da grande expansão da rede federal de educação técnica no Brasil,
12
A transcrição completa da entrevista com o Prof. Toni encontra-se no Apêndice 4 (p.218).
118
inclusive da criação dos institutos federais a partir do ano de 2008; sabíamos que o
campus onde o professor atua foi criado recentemente, a partir da política de
expansão, e que, por isso, ainda está se estruturando para um funcionamento pleno;
sabíamos das dificuldades enfrentadas para a implantação de um novo campus, em
parceria com a prefeitura local, bem como da importância de estarmos
constantemente discutindo as diretrizes curriculares para o ensino técnico, no atual
contexto político e social.
Pode ser considerado como presumido o quanto o Prof. Toni valorizava a
participação na pesquisa pelo fato de, recentemente, ter realizado uma pesquisa de
doutorado em Educação, que também contou com a colaboração de outros
docentes para as suas entrevistas. Além disso, porque julgasse importante, também,
estar falando para audiências sociais avaliadas por ele como relevantes: a
pesquisadora, diretora da escola A e a academia. Tanto em um caso como em outro,
presumimos que julgava importante o fato de que suas contribuições poderiam
produzir eco.
6.3.2 Perspectivas do professor Toni
a) Objetivos do ensino de química
Ao ser questionado acerca dos objetivos do ensino de química, no contexto
da educação profissional, o Prof. Toni enfatiza questões relacionadas a esse
conteúdo. Diferenciou o início e o final do Curso Técnico em Química, classificando
as abordagens dos conteúdos nas séries iniciais como “muito teóricas” e “mais
sofisticadas”, ensinadas com uma profundidade que vai além do estabelecido para o
nível médio de ensino, e até mesmo além do objetivo da formação técnica, para,
somente no final do curso, voltarem-se para a atuação no mercado de trabalho.
Objetivando situar o nível de aprofundamento, usou, reiteradamente, o termo
“intermediário”, para indicar que as disciplinas iniciais, em termos de conteúdo, estão
acima do nível médio e um pouco abaixo do nível universitário. Demonstrou
preocupação com a inadequação do aprofundamento do conteúdo ao nível de
maturidade dos alunos, nas séries iniciais do curso técnico.
O Prof. Toni defendeu o objetivo de preparar para o mercado de trabalho,
desde que associado à formação para a prática da cidadania, como se este termo
119
tivesse um único sentido e, portanto, não precisasse explicá-lo: “... a gente pode
fazer isso sem perder de vista as próprias discussões que envolvem o ensino médio,
a formação pra cidadania mesmo, né?”. Inferimos que, com o uso do sujeito coletivo
“a gente”, intencionou o envolvimento dos seus pares profissionais na discussão que
ele identificava, até então, como pertencente ao contexto do ensino médio
propedêutico, buscando trazê-la, também, para o contexto da formação profissional.
Interpretamos a presença do subjuntivo em “... pra mim o ideal seria se as disciplinas
dos períodos iniciais tentassem primeiro procurar uma formação mais voltada pra
questões de cidadania, e no decorrer do período, a partir do meio do período pro
final, que elas tivessem um olhar mais voltado pra essa questão prática, pra essa
questão do aluno, do mercado que ele atua, do que ele vai desempenhar” como um
indicativo do quanto ele idealiza um currículo que reservasse as séries iniciais para
uma formação cidadã e, para os períodos finais, uma formação mais pragmática.
Todavia, esse ideal não está na realidade presente.
Embora, pela própria natureza do curso, tenha reconhecido como legítimo o
objetivo de formar para o trabalho, (“Afinal de contas é um curso técnico, né, então
eu acho que as duas formações devem ser contempladas...”), o professor contrapôs
o excesso de formação “conteudista” à formação técnica e à formação do cidadão,
dando margem à interpretação de que o nível de aprofundamento do conteúdo não
serve nem a uma nem a outra.
Na sequência da enunciação, é possível localizar a voz acadêmica, quando
mencionou o conceito de “alfabetização científica”, o qual o professor aproxima do
relativo à formação para a cidadania. A menção a esse conceito nos permite inferir
acerca de seu vínculo acadêmico e de um endereçamento à academia e à
pesquisadora, que ele sabe pertencer à área de ensino de ciências, como
destinatários supostos. Ele considerou que ambas (formação profissional e cidadã)
devem fazer parte da formação do técnico, apesar de considerar que a cidadania
seja mais importante. Ao valorizar positivamente a formação profissional com ênfase
na cidadania, o professor atribuiu o apagamento das discussões acerca da formação
cidadã ao excesso de conteúdo ministrado (“... se perdem discussões mais
importantes...”), demonstrando a opção pelos objetivos mais valorizados por ele.
Ao ser perguntado por esta pesquisadora acerca de outras finalidades além
do objetivo de formar para o trabalho para o ensino de química no contexto da EP, o
Prof. Toni respondeu: “Na verdade, até esse objetivo de só formação pro mercado
120
de trabalho não acontece, né?” É possível inferir que. ao lançar mão da palavra “só,
nesse enunciado, e considerando a entonação expressiva no momento da entrevista
(fez uma pausa para pronunciar este vocábulo com um tom mais alto e forte do que
o restante do enunciado), o Prof. Toni intencionou realçar que a formação técnica
oferecida pela escola A se afasta de uma formação que se limite a atender,
exclusivamente, às demandas do mundo produtivo. Esse entendimento emerge,
como já apontado nesta análise, da crítica ao aprofundamento exagerado da
química ensinada no curso técnico, (“Conteúdos que às vezes são até temas de
pesquisas”) em contraposição ao “conhecimento amplo” dessa disciplina, que ele
julga como mais importante. O sentido apreendido por conhecimento amplo com
relação à química, no discurso do professor, é aquele que não se reduz à formação
técnica no sentido estrito da expressão, ou seja, um ensino
mecanicista/instrumentalista, mas que também não deve dar conta de todas as
“nuances da química”, a ponto de se nivelar ao ensino superior.
O foco do seu discurso sobre os objetivos do ensino de química recaiu sobre
o currículo, cuja profundidade de conteúdo ele criticou fundamentalmente. Deixou
clara a necessidade de a escola A, juntamente com seus professores, “repensar o
currículo”, no sentido de atenuar o exagero de aprofundamento do conteúdo que o
hoje o constitui (“Pra se enxugar...”). Entendemos que a qualidade do ensino de
química da escola A não está, para o Prof. Toni, no currículo presente e dependeria
de uma mudança curricular.
Em sua compreensão ativa destacou o investimento institucional para se
repensar o currículo (“Houve há pouco tempo a imersão...”) como ação convergente
com a sua perspectiva de busca da qualidade. Inferimos, a respeito, uma intenção
de corrigir o desvio do foco da formação técnica e da formação cidadã, para dar
lugar a uma formação “de fato intermediária”, que, no seu ponto de vista, parece
assumir, agora, um sentido conciliatório entre as formações mencionadas, diferente
do sentido produzido anteriormente.
No enunciado como um todo, observamos o uso recorrente da expressão “a
gente” (“... a gente tem que de fato começar a repensar o currículo...”; “... a gente
perde um pouco a mão nisso aí”; “a gente deveria tentar...”; “a gente nesse sentido
peca ...”) como uma atitude de responsabilizar a si e a seus pares profissionais pelas
mudanças curriculares necessárias para atingir os objetivos do ensino da química
idealizados, discursivamente, por ele. Neste caso, interpretamos o uso de “a gente”
121
como sujeito coletivo, pelo fato de o professor Toni ter deixado claro, ao longo de
sua enunciação, que as mudanças almejadas deveriam partir de discussões
institucionais e não de ações individuais.
b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação
Para falar acerca da seleção de conteúdos, o professor se remeteu à ementa
da disciplina estabelecida pela instituição que, segundo ele, é tomada
institucionalmente como referencial de qualidade, associado ao tradicionalismo das
práticas curriculares institucionais. Na sequência, retomou a crítica ao currículo de
química, demonstrando, mais uma vez, o quanto o “exagero” do conteúdo se afasta
de suas perspectivas de qualidade do ensino para a formação profissional.
Interpretamos esse retorno ao tema como uma mostra de quanto o professor está
incomodado e preocupado com esse aspecto.
Reconhecendo a ementa como um discurso de autoridade, que emerge do
contexto social onde trabalha, O Prof. Toni disse ter encontrado um caminho para
cumpri-la coerentemente com sua perspectiva de qualidade do ensino, “usando
outras estratégias”. No discurso sobre a sua prática, declarou que instituiu o debate
em sala de aula como espaço estratégico de ação, no sentido de dar voz aos alunos
e, assim, discutir a relação entre conhecimento científico, neste caso o da química, e
a atuação profissional. Para tanto, estimula os alunos a fazerem perguntas e, a partir
daí, cria espaços para compartilhar com eles os questionamentos relativos à
composição e à organização curriculares, representando indiretamente a voz do
aluno em seu discurso: “pra que serve, né? Pra quê? Por que ele tem que aprender
aquilo, por que ele (o aluno) tem que saber daquele detalhe, né?” Deixou claro seu
posicionamento em relação a tais indagações, explicitando que, “às vezes”,
consegue justificar a importância do que está sendo ensinado para a formação
profissional e outras vezes, não. Considerou válida a atitude de mostrar aos alunos
que muitas vezes não consegue justificar o conteúdo, no sentido de ajudá-los a
compreender o quanto é difícil “inovar” em relação aos conteúdos curriculares e o
quanto ele (o professor) também está submetido a esse currículo. Nesse sentido,
propôs estimular a atitude responsiva ativa do aluno, visando, a partir da reflexão e
da crítica, instituir o direito a espaços enunciativos de concordância ou discordância,
no todo ou em parte, inclusive com professores de outras disciplinas.
122
Questionado acerca da tentativa de introduzir outros conteúdos em suas
aulas, além dos estabelecidos pela ementa, o Prof. Toni iniciou sua enunciação
expressando busca, ao afirmar “tento... tento...”. Entretanto, seguidamente, ele
declarou: “Mas confesso que não sou tão ousado assim não”, revelando, em parte,
um sentido de submissão à lógica de autoridade da ementa. No discurso sobre a
sua prática, exemplificou como se esforça para estabelecer relações entre os
conteúdos da química geral, em particular os relacionados às funções inorgânicas,
presentes no cotidiano do aluno, para discutir questões ligadas ao ambiente, como,
por exemplo, a chuva ácida e o efeito estufa. Além desses, dentro de estequiometria,
procura relacionar as reações químicas com a energia aí envolvida, no contexto dos
processos (químicos) industriais e, assim, “inovar em cima daquele conteúdo”.
Inferimos que o professor apropria-se da palavra “inovar” com o sentido de
estabelecer relações entre o conteúdo pré-determinado pela ementa e questões da
realidade presente (problemas ambientais) e futura (atuação profissional).
Para implementar o debate com os seus alunos, embora tenha um “roteiro” a
ser seguido, apropria-se das redes sociais e de vídeos do Youtube para a realização
de trabalhos, explicitando, também, como e com que intenção realiza a apropriação
dos meios contemporâneos de informação e comunicação no ensino: “Mas, eu
queria uma visão e eu deixei isso claro pra eles, que ultrapassasse a mera
explicação, né, eu gostaria de exemplos práticos, exemplos do cotidiano, exemplos
até que vão permear a vida profissional deles mesmo sabendo que essa minha
disciplina é de formação básica, mas já pra tentar desenvolver no aluno esse olhar
mais crítico, né?”
Teceu a sua perspectiva de qualidade, (“... estimular o meu aluno a sempre
refletir acerca daquilo que tá sendo ensinado pra ele”) a partir da dialogia com
princípios filosóficos, estabelecida explicitamente na referência a Edgar Morin (“Eu
acho que a mudança acontece quando existe reforma de pensamento”). E, assim,
evidenciou o caráter polifônico da enunciação e o lugar social de onde o professor
fala, como doutor em Educação.
Ao recuperar as conversas travadas com alguns dos professores com quem
trabalha nos espaços escolares comuns, e comparando com os comentários tecidos
pelos alunos sobre suas aulas, o professor julga o ensino técnico ainda muito
tradicional (“ainda pinta um cenário muito tradicional de ensino, né?”), endereçando
aos outros professores (uma minoria, segundo ele) a ideia de ensino transmissivo na
123
escola. O tom de crítica e desaprovação existente em sua enunciação, nesse
momento, nos permite inferir o quanto discorda desse tipo de ensino.
Mais uma vez acentuou o potencial das TIC em relação à velocidade e
quantidade de informações disponíveis aos alunos na contemporaneidade, que pode
ser aliada à atitude questionadora que deve ser estimulada para “formar pessoas
mais interessadas, pessoas mais politizadas...”. Entendemos que, em sua visão,
essa mobilização prescinde das TIC, no sentido de valorizar o comportamento crítico
dos alunos para pensar, relacionar, questionar, comparar, ainda que não seja no
contexto do uso das ferramentas e aplicativos tecnológicos.
Na réplica ao enunciado que o interroga acerca da sua concepção de
avaliação educacional, repetiu as palavras nas linhas iniciais do seu enunciado (“É.
É. Eu aplico prova, eu aplico prova, né? Aplico prova, mas não é minha única
avaliação, né?”), o que parece indicar um desconforto em assumir a avaliação
tradicional, diante das perspectivas educacionais tecidas em seus enunciados
precedentes. A ênfase no uso de outros modos de avaliar (“Além da prova eu passo
alguns trabalhos ... tentando avaliar essa questão mais reflexiva”) revelou uma
tensão entre o que pratica e o que busca praticar, não restringindo a avaliação à
mera aplicação de provas. Mais adiante, ao enunciar “Confesso que eu ainda aplico
prova”, nos permite inferir que está corroborando a tensão existente em relação a
essa questão, cujo tom nos conduz à interpretação de que ele se cobra métodos
alternativos de avaliação.
Há conflito entre as perspectivas de avaliação presentes em seu enunciado,
marcadas, também, em “Mas, confesso que existe uma força, né, que nos enlaça
nesse tradicionalismo que é a prova” e “E também não acho que de repente aplicar
prova seja algo negativo, também não penso dessa maneira, não sou extremista a
ponto...”. Fica evidente, nesse contexto de disputas por sentidos de qualidade em
relação à avaliação, a instabilidade entre as concepções do que seria melhor para o
ensino, na visão do Prof. Toni. Sintetizou seu ponto de vista, deixando aflorar a
coexistência da “prova” tradicional e outra atividade avaliativa “que a gente consiga
dar espaço pro aluno se pronunciar...”.
Interpretamos que sua perspectiva de qualidade do ensino está diretamente
relacionada à interação verbal com o aluno, seja abrindo espaço da aula para
perguntas, seja para ouvir o aluno na avaliação.
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c) O papel do laboratório no EC
Em relação ao papel do laboratório, no ensino profissional de química, o Prof.
Toni recuperou a lembrança das práticas de laboratório desenvolvidas em sua
graduação e as aproximou das realizadas por ele e seus colegas de profissão, no
curso técnico em que atua, explicitando, assim, a finalidade do laboratório no curso
de química na escola A: “são práticas de laboratório que visam ratificar a teoria”.
Desenvolveu essa perspectiva, assumindo uma atitude responsiva ativa, trazendo
exemplos da prática docente nos laboratórios, externando discordância em relação à
perspectiva mencionada, pelo fato de que “a reflexão fica do lado de fora do
laboratório”. Trouxe, para o território da enunciação, sua perspectiva de qualidade
do uso do laboratório no ensino de química: “eu acho que a gente deveria ir pro
laboratório pra ter mais perguntas, ir pro laboratório pra encher a galera de
interrogação.”
Posicionou-se em relação à visão de ciência, afastando-se da tendência, no
contexto acadêmico de acentuar a autoridade do discurso científico, para considerá-
lo em sua instabilidade e incerteza, evidenciado em “Eu acho que é importante o
aluno refletir pra que ele não comece a pensar de repente, que a química é uma
ciência feita de verdades, verdades dogmáticas, né? Na verdade não é, né?”. As
palavras finais dessa frase apontam busca por concordância da entrevistadora. Ao
enunciar “Eu acho que a gente nesse sentido peca, né?”, o uso do marcador “a
gente” expressa um sujeito coletivo, considerando que a visão de ciência, como se
pôde depreender do todo de seu enunciado, não seria característica da prática de
um professor apenas, mas abrangeria um grupo de docentes, no qual ele também se
inclui.
É interessante notar a maneira como o Prof. Toni teceu sua perspectiva sobre
o uso do laboratório, entrecruzando tempos (passado e presente) e espaços
distintos de ação (graduação e docência nos Campi I e III), com um tom de
reclamação, ao reconhecer que as atividades de laboratório, realizadas hoje na
escola A, são semelhantes às do passado, ou seja, com ênfase na positividade da
Ciência.
Classificou o ensino de ciências, baseado em comprovações da teoria por
meio de experimentos, como uma prática que tende a robotizar o aluno (“... um cara
que só foi programado durante sua formação a comprovar aquilo que foi dito em sala
de aula através de experimentos”), no sentido de torná-lo um mero reprodutor,
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deixando o estímulo à sua capacidade crítica e questionadora à margem de sua
educação científica, dando lugar apenas à reprodução unívoca de sentidos. Embora
tenha argumentado que a experimentação “tem que ser a mola motriz de uma série
de outras questões”, apontou a dificuldade de promover mudança (“Mas é difícil
fazer isso”) diante da “autoridade da tradição, de verdades geralmente reconhecidas
no passado” (Bakhtin, 1994, p. 4) no âmbito da epistemologia escolar (“a gente
esbarra com todo um tradicionalismo, com apostilas experimentais que já estão
prontas, e assim, até às vezes você pode começar a se indispor com outros colegas,
se você começa a fazer o diferente do script, né?”). Observamos também a
preocupação do professor em relação a possíveis conflitos com os seus colegas de
trabalho, ao buscar fazer diferente.
No movimento para explicar a origem da dificuldade de transformar o papel do
laboratório em um estímulo à crítica, fez questão de marcar o seu lugar social (“eu
falo agora como professor que integro uma equipe”) e, ao mesmo tempo, acabou
descrevendo o caráter do ensino experimental e a postura tradicional dos
professores no cenário da escola: “a gente esbarra com todo um tradicionalismo,
com apostilas experimentais que já estão prontas”. O modo presente em “eu falo
agora”; “a gente esbarra”; “que (eu) integro” se refere a esse cenário que é o atual,
ao passo que a presença no decorrer da explicação do “se” em “só começa a
melhorar se a gente começar a se encontrar, professores começarem a se reunir pra
refletir...” indica que esta reflexão, hoje, ainda não acontece e que ele gostaria que
fosse a realidade presente na escola, uma qualidade a ser alcançada.
d) Interesse e desempenho dos alunos
O Prof. Toni iniciou seu enunciado justificando o interesse do aluno pelas
aulas de química, por conta da aproximação entre a disciplina que leciona e o
objetivo do curso. Entretanto, observou que o interesse dos alunos vai diminuindo ao
longo do curso e atribuiu isso, em parte, ao professor que não consegue “manter
esse estímulo”. Dando continuidade à sua fala, trouxe para o discurso a perspectiva
de necessidade de mudança no currículo, que passou a ser apontado como causa
do desinteresse que os alunos apresentam, à medida que o curso avança.
Mais uma vez, idealizou uma realidade futura condicionada à transformação
da realidade presente, marcada no texto pelo uso do subjuntivo: “Eu acho que o
ideal seria que nós conseguíssemos um currículo onde o aluno desde o primeiro
período fosse aos poucos sendo preparado pro mercado de trabalho, sem perder de
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vista essas questões mais reflexivas de atuação dele como cidadão, né?”. Assim,
reiterou sua perspectiva, apontando o currículo que defende como uma forma de
melhorar o ensino atual, produzindo o sentido de qualidade vinculado à formação
para o mercado de trabalho, articulada com a formação para a cidadania.
e) Formação Integral
Para o Prof. Toni, a formação profissional, oferecida pelo curso técnico da
escola A aos seus alunos, está longe de ser mecanicista ou instrumentalista “(Eu
não acredito que ele esteja sendo, digamos assim, formado pra apertar botões, né?),
pelo menos nos últimos seis anos, tempo em que está na escola. É como se ele
dissesse: anteriormente ao meu ingresso, eu não posso afirmar.
Sua perspectiva de formação integral é construída a partir do diálogo com os
discursos institucionais (programas de iniciação científica e o estímulo à pesquisa),
nos quais ele valoriza a “reflexão em cima dos conteúdos” promovida por estas
iniciativas. Teceu a sua perspectiva de formação integral entrelaçando sentidos
produzidos na dimensão política da produção de conhecimento, em confronto com
uma dimensão mais pragmática do mundo produtivo (“ formação integral, que na
minha concepção é um tipo de formação que cumpre o que tem que ser cumprido
com relação ao mercado de trabalho, né, sem deixar de lado todas as nuances
políticas, todos os debates que aquela produção de conhecimento possui, né?”).
Endereçou seu discurso explicitamente (“aqui, né, nessa entrevista”) à
imagem que constrói da pesquisadora, buscando adesão à sua crítica (“...a gente
tem algumas disciplinas da Química que precisam de enxugamentos curriculares [...]
a gente precisa se encontrar mais, enquanto professores pra tentar buscar outras
abordagens...”). Ainda assim, o professor acha que a escola A oferece uma boa
formação. O mesmo endereçamento pode tê-lo levado a essa consideração.
Dando continuidade à sua concepção de formação integral, mencionou que “a
gente tem sempre que tentar colocar o aluno como sujeito reflexivo”, valorizando
essa atitude. Também aproximou as atividades de pesquisa e as de monitoria à
formação integral, por considerá-las capazes de dar “uma abertura maior em termos
de conhecimento”. É possível localizar a voz acadêmica no seu discurso para
construir a sua perspectiva de um bom ensino, ao se apropriar da expressão “sujeito
reflexivo”, comum na literatura educacional.
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Reagiu à pergunta acerca da integração de conhecimentos, mobilizando o
conceito teórico de interdisciplinaridade. Admitiu que consegue visualizar conexões
entre os conteúdos das diversas disciplinas e atribuiu a dificuldade em realizá-las à
ausência de comunicação entre os professores, “pra que eles tentem ter uma atitude
mais interdisciplinar.” Interpretamos que acentuou, com tom de positividade, o
esforço que os professores devem fazer para realizar a interdisciplinaridade,
intencionando “educar” os alunos “pra que mais adiante eles consigam visualizar
essas conexões, né?” O valor presumido possível se traduz na importância que dá a
esta prática para a formação profissional dos alunos, no sentido de que, no futuro,
quando da atuação no mundo produtivo, tais conexões sejam importantes e
necessárias de serem feitas.
O professor criticou a fragmentação e o isolamento das disciplinas escolares,
que apreende no discurso dos professores mais próximos a ele, (“eles não
conseguem rasgar esses envelopes”) com um tom de reprovação (“como é que
pode, né?”) que parece indicar o quão indesejável esse modo de ver/pensar ainda
persista no ambiente de trabalho. Reforçou a resistência dos colegas professores
em romper tal isolamento. Presumimos que os professores demonstram não
quererem ou não saberem trabalhar com essa possibilidade, o que o Prof. Toni
considera “quase um pecado”. Trouxe um exemplo de interdisciplinaridade,
relacionada à integração da matemática com a química, mas reclamou da não
adesão dos professores à sua visão e presumiu que isto se deva ao fato de não
quererem, não acreditarem, terem medo, sentindo-se desconfortáveis.
Dialogou com os discursos circulantes no meio acadêmico, que apontam
como gênese dessa problemática o processo de formação de professores,
submetido à lógica disciplinar, que julga ser apenas didática. No seu ponto de vista,
a ênfase no ensino, em que as disciplinas são entregues como “envelopes
intocáveis”, implica um tipo de formação que dificulta os alunos integrarem os
conhecimentos.
Manteve a atitude responsiva ativa, exemplificando como pratica a
interdisciplinaridade entre a química e a geografia. Se, por um lado, trouxe
evidências da riqueza do trabalho interdisciplinar, por outro falou da dificuldade em
realizá-lo, o que está marcado em “As matérias se ajudam, é um mutualismo que só
rende frutos, porque uma vai dando sentido pra outra, uma vai complementando a
outra e tal. Mas, né, requer também certa disposição pra isso, né?” Ele considera
128
que a integração pode ser feita entre quaisquer disciplinas, mas percebe que as
ciências humanas (“geografia, história e sociologia”) podem sempre ser integradas a
quaisquer disciplinas, uma vez que, em seu modo de pensar, “nenhum
conhecimento científico é desvinculado de razões políticas e de contextos
históricos”.
f) Apresentação do conhecimento científico
Para o Prof. Toni, o conhecimento científico é apresentado no curso técnico
“de uma forma tradicional”, ressoando aí um tom de negatividade, de algo que já
deveria ter sido superado, na medida em que não considera o conhecimento “com
todas as fragilidades”, mas como verdade absoluta.
Conjecturou, com um tom de hesitação, (“talvez”) que, se a visão de ciência
dos alunos entendida como de “verdades absolutas”, é decorrente da forma como
os professores transmitem esse conhecimento. Inferimos um confronto entre o seu
posicionamento e a visão de ciência passada aos alunos por outros professores. O
Prof. Toni declarou que os alunos se apropriam da sua perspectiva alternativa de
ensino com resistência, mas que, ainda assim, não se intimida e tenta fazer valer a
sua perspectiva, mesmo que isso gere “incômodo no aluno”. Trouxe a voz dos
alunos (“ele fica satisfeito com o “é sempre assim”, né? É sempre assim que vai ser?
É dessa maneira? Ah, então toda vez que for assim é assim, né?”) para indicar a
preferência deles em relação aos modos tradicionais de aprender/discutir ciência,
com os quais foram acostumados em suas experiências escolares e em “outros
lugares”, por exemplo, na mídia, como canais de divulgação da visão positivista de
ciência.
g) Documentos oficiais
Questionado acerca do seu acesso aos documentos curriculares oficiais, o
Prof. Toni relatou que já os consultou, com a intenção de orientar trabalhos de
alunos, mas não para guiar a sua prática. Reconheceu a importância do
estabelecimento de espaços para discuti-los institucionalmente e deixou claro que,
hoje, isso não acontece (“Mas não existe, em termos institucionais, um trabalho de
divulgação, ou de debate em cima dessas diretrizes, né?”). Lançou mão do discurso
direto (citado) de um possível coordenador da sua área de ensino para transmitir
com legitimidade a voz institucional: “Olha, tá aqui a ementa, as aulas são tal
129
horário, você tem que cumprir até aqui...”. Nessa sentença ressoa a superioridade
hierárquica do possível enunciador, que busca impedir a incorporação de outros
sentidos para a orientação da prática pedagógica.
Perguntado sobre possível consulta ao projeto político pedagógico da escola,
o prof. Toni respondeu que sim, mas com outras intenções, de onde se presume que
não seja para orientar a sua prática. Reconheceu que esse documento deveria ser
mais amplamente debatido na escola. O uso do futuro do pretérito deixa claro que
não é essa a realidade. Entretanto, sinaliza iniciativas recentes para a discussão de
debates. Apontou movimentos, em fase inicial, que buscam instituir espaços para
debates acerca de “demandas internas” da instituição, que esclarece mais adiante,
poderiam incluir o debate do projeto pedagógico.
h) O papel da pesquisa
Em relação à importância que dá à pesquisa, mais uma vez o professor
repetiu as palavras iniciais do enunciado (“Acho importante, acho importante. Acho
importante”). Essa repetição produz o sentido de frisar que ele acha importante,
mesmo que não esteja realizando esta prática, como afirmou antes.
No que tange aos valores e princípios que orientam o seu projeto de
pesquisa, relacionou-os às perspectivas de diálogo entre diferentes áreas de
conhecimento. Intuímos como um trabalho interdisciplinar, intencionando “alargar,
né, aquele tema de pesquisa pra outras áreas”. Assim, exemplificou que, ao tratar da
“energética”, tentou relacioná-la com o tema da “sustentabilidade”. Outro princípio
abordado pelo professor diz respeito ao modo como trabalha (“é um exercício que eu
faria com o meu aluno, mas sem trazer nada pronto pra ele, seria uma construção
mesmo, né?”), valorizando, assim, a construção coletiva e ampla de conhecimentos.
Ao final dessa resposta, estendeu essa perspectiva com um tom de prescrição,
marcado por “precisa”, a outros níveis de ensino além do técnico, como o superior e
a pós-graduação.
i) Qualidade
A avaliação da qualidade da educação científica, no contexto do Curso
Técnico em Química, foi abordada pelo Prof. Toni em duas dimensões. Ele iniciou
pela dimensão física, da infraestrutura, em particular dos campi II e III, julgando-os
espaços que oferecem ambiente propício à educação de qualidade (“biblioteca com
130
bom acervo”). Em seguida, abordou a dimensão curricular, na qual apontou
empecilhos à qualidade e necessidade de mudança. Seu acento recaiu sobre os
objetivos a serem definidos/alcançados e, para isso, a necessidade de “ampliar os
debates entre os docentes sobre que tipo de cidadão queremos formar.” Endereçou
explicitamente a responsabilidade dessa ação à instituição em “promover reuniões
pra que os professores comecem de repente a refletir, e alguns até quem sabe,
serem convencidos de que algumas reformas são necessárias. De que a gente pode
formar um bom profissional sem perder um bom cidadão.” Com essas últimas
palavras, parece direcionar o seu discurso aos professores da escola A, cujos
sentidos de qualidade educacional se restringem à formação profissional voltada
para atender às solicitações do mercado de trabalho. Explicitou, finalmente, sua
perspectiva de qualidade do ensino profissional de química. Reconheceu a
necessidade de uma reforma curricular para torná-la realidade na escola A, para se
alcançar “um tipo de ensino de fato integral. Um ensino que prepara um profissional
pro mercado de trabalho, mas um profissional politizado, um profissional
participativo, um profissional que tenha a consciência ambiental, um profissional que
reflita acerca de questões políticas.”
131
6.4 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR VÍTOR
6.4.1 O contexto extraverbal
O horizonte espacial comum entre o professor Vítor e a pesquisadora, na
situação imediata de entrevista13, abrangia uma sala de estudos ociosa da
COPPE/UFRJ, onde a interlocução ocorreu apenas em nossas presenças. Esse
local foi definido pelo professor como sendo o mais viável para o nosso encontro, por
ser nesse contexto que desenvolve a sua pesquisa de doutorado na área de
petróleo e onde estaria presente no dia agendado. Este foi o nosso primeiro
encontro, um vez que não nos conhecíamos até o momento da entrevista. A
interlocução ocorreu em um ambiente tranquilo e silencioso, sem a ocorrência de
eventos que pudessem interferir na entrevista, que durou aproximadamente
quarenta e cinco minutos.
Nosso conhecimento comum da situação social de entrevista, por sermos
professores atuantes do ensino técnico, era o de que sabíamos da existência dos
PCNEM, das diretrizes curriculares nacionais para a educação profissional e do
projeto político pedagógico da instituição; vivenciamos o período de reformas
educacionais da educação profissional na década de 90, quando a pesquisadora
pertencia ao quadro efetivo e o professor Vítor, ao de professor substituto, na escola
A. Nessa década, o curso técnico passou a ser oferecido obrigatoriamente separado
do ensino médio; vivenciamos, também, o período pós-reforma educacional, quando,
a partir do Decreto Nº 5.5154/2004, a formação profissional no Brasil passou a ser
oferecida, dando liberdade às escolas para optarem entre os regimes integrado,
concomitante ou subsequente; sabíamos que o professor ministra aulas de química
no Campus II e que a pesquisadora ocupava, no momento, um cargo de direção no
âmbito da reitoria da escola A; sabíamos que o professor Vítor atuava na parte
específica do curso técnico em Química; sabíamos da importância em discutirmos a
educação científica no contexto político atual, marcado pelo complexo processo
nacional de expansão da rede federal de ensino técnico; sabíamos das limitações e
das dificuldades de seu campus, pela recente criação em parceria com a prefeitura
13
A transcrição completa da entrevista com o Prof. Vitor encontra-se no Apêndice 5 (p.228).
132
local; sabíamos da importância dos laboratórios e do setor responsável na instituição
pelos estágios para os alunos do curso técnico em Química na instituição.
As avaliações apreciativas comuns ao professor e à pesquisadora, no
momento da entrevista, podem estar relacionadas ao fato do Prof. Vítor também
estar cursando um doutorado, ainda que seja em área distinta, e reconheça a
importância de suas contribuições para viabilizar uma pesquisa acadêmica oriunda
da UFRJ, realizada por uma pesquisadora que também é diretora da escola A e a
quem ele se dirige. E, por este endereçamento, presumirem que suas contribuições
podem causar eco na academia ou na escola A, para a qual trabalham
desempenhando diferentes funções.
6.4.2 Perspectivas do professor Vítor
a) Objetivos do ensino de química
Interrogado acerca dos objetivos do ensino da Química no curso técnico, o
Prof. Vítor constituiu sua visão de formação profissional, ao longo de todo o
enunciado, contrapondo um processo formativo que visa à reflexão da
aprendizagem mecânica, objetivando somente o treinamento (“...Não é apenas
apertar parafuso, abrir e fechar de uma forma mecânica, tem que pensar”). Retomou
sua própria experiência escolar pregressa, de formação técnica na escola A,
Campus I, a qual avalia como uma formação não mecanicista, porque, desde então,
já estimulava o pensar sobre a atividade a ser desenvolvida no âmbito profissional.
Acentuou a “visão mais analítica e crítica” das funções a executar no trabalho
técnico como capaz de conduzir os alunos ao “sucesso” profissional. Apontou
convergência entre a perspectiva de ensino da escola A no passado e a do
presente, e destacou as “estruturas curriculares” como instâncias capazes de
promover tal perspectiva. Respondeu ativamente, trazendo o exemplo de uma
escola que preparou os alunos “pra fazer soldagens no navio” de uma forma
mecânica, sem, no entanto, ensiná-los a “... planejar, pensar e avaliar ...” o que,
segundo ele imprimiria qualidade ao trabalho.
Ao responder sobre a definição de outras finalidades para ensino de química,
para além da formação para o trabalho, o Prof. Vítor assumiu sua visão estreita de
ensino em um passado remoto, ancorada à supremacia da tecnologia, como sendo
133
“... estritamente técnica, aquele engenheiro, né, do século passado aí onde tem uma
visão de execução mesmo da parte técnica, ou seja, a tecnologia pode tudo. Eu
sempre pensei assim.” O uso do passado em “eu sempre pensei assim” parece
indicar que ele mudou de visão, o que é reiterado logo adiante (“nesses últimos
tempos eu começo a refinar, refutar esse conceito um pouco antigo”). Na frase
seguinte, enunciou essa nova visão: “tem que inserir o profissional no mercado de
trabalho, mas com uma visão social, mais humanista.” Ao longo do enunciado,
conceituou sua visão de formação humanista, que visaria à construção “de um
mundo melhor, mais sustentado, do ponto de vista social.”
Vinculou a construção de sua nova perspectiva de ensino à participação em
espaços de discussões criados no Campus II, envolvendo “antropólogos, sociólogos,
até pedagogos”. Assim, acentuou o valor da interação com os colegas de trabalho
de outras áreas, como espaço privilegiado para a reflexão, capaz de ampliar seu
horizonte de conhecimentos e de produzir novos sentidos para os objetivos de
ensino. Se por um lado, valorizou a interação com os colegas da área das ciências
humanas e a inserção dessas disciplinas no curso técnico, por outro, problematizou
tal inserção em todos os períodos: “...agora, todos em todos os períodos estão
colocando filosofia e sociologia. Não vou dizer que é o correto em todos os períodos,
mas há necessidade de ter essa disciplina na visão social pra o mundo do trabalho”.
Observamos, assim, uma tensão entre a inserção curricular dessas disciplinas e a
sua importância no curso técnico, demonstrando a complexidade dialógica de seu
enunciado como território de confrontos entre diferentes perspectivas.
Na sequência, as marcas do tempo presente em “E é uma opinião de um
engenheiro, né, que acredita sempre na ciência acima de tudo, assim, na parte da
engenharia hardware, né, do cálculo, cálculo, né?” deixa dúvida em relação à
mudança de visão relatada anteriormente, na medida em que “um engenheiro” se
confunde com o autor do enunciado.
b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação
Em relação à seleção de conteúdos, o Prof. Vítor relatou que atua na parte do
currículo correspondente à formação técnica, mas que não se limita à sua
especificidade, buscando o “estudo de casos associados à solução de problemas do
mundo, de um mundo real.”. Trouxe, como exemplo, os resultados sociais de um
acidente do trabalho, que pode levar ao estresse psicológico. Sua ideia é sempre a
134
de extrapolar a parte técnica da ementa. Interpretamos que essa é a apropriação
que faz da visão humanística de ensino que tenta implementar.
Em seguida a essa fala, fez uma pequena pausa e enunciou, com tom de
hesitação: “E isso eu sinto um pouco que não é...”. Mesmo não concluindo a sua
frase, foi possível antecipar a sua resposta pelo conteúdo temático e pela entonação
usada, inferindo que iria dizer que não é praticado dessa forma na escola A e que,
possivelmente, não completou a ideia, em função do seu destinatário suposto.
Substituindo alguma crítica que provavelmente iria fazer à escola, apontou a
iniciativa institucional, (“Nós fizemos uma revisão agora do curso integrado de
Química, onde eu acho que tem pouca especificidade na estrutura do conteúdo,
acho que tinha que ter algo um pouco mais direcionado) que visa a discutir
mudanças curriculares, no sentido de incorporar um conteúdo mais específico e
contextualizado. Estas mudanças parecem ir ao encontro de sua própria perspectiva
de ensino.
Na tentativa de explicar para o seu ouvinte suposto e para organizar o próprio
pensamento em relação ao que pretende alcançar com os “estudos de caso”, incluiu
perguntas retóricas sobre sua perspectiva de ensino (“Quais são os estudos de caso
que teria a apresentar? Qual é uma visão holística e aplicada de algumas
disciplinas?”). Ao fazê-lo, se apropriou da palavra “holística”, para acentuar a sua
visão de ensino totalizante, que integre conhecimentos diferentes e, principalmente,
capaz de apresentar sua aplicabilidade.
O professor respondeu parcialmente às perguntas que levantou, inicialmente
apontando que a integração entre conhecimentos diferentes não é possível ao longo
de todo o currículo. Reconheceu dificuldades para mostrar a aplicabilidade das
disciplinas de matemática e física, por exemplo, nas séries iniciais do curso técnico,
mas considerou que isto seja factível nas séries finais.
Em relação aos estudos de caso, ele os generalizou, quando admitiu que, “de
uma forma geral, é isso o que o país tá precisando de forma imediata, ou seja,
buscar identificar potenciais problemas específicos associados ao conteúdo de cada
disciplina, seja disciplina técnica ou não técnica”. Observamos, nesse enunciado, o
sentido de ensinar com ênfase no atendimento às demandas do país, em busca de
soluções técnicas para qualquer tipo de problema.
No que se refere ao tema metodologia de ensino, o Prof. Vítor dialogou com o
uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) nas aulas, mostrando que o
135
simples uso do “show de PowerPoint” não é sinônimo de mudança em relação a
aulas expositivas, e nem garante a motivação para o aluno. Essa crítica é elaborada
a partir do deslocamento do enunciador entre diferentes lugares sociais: ele fala
como professor do curso técnico e como aluno, que, presumimos, seja no curso de
pós-graduação. Localizou, fundamentalmente no curso noturno, a necessidade de o
professor ser “um showman”, para manter o aluno “antenado”.
Sua metodologia de ensino visa a manter o interesse do aluno, usando uma
variedade de métodos e o estudo de casos reais, como aplicação da teoria (“os
alunos têm uma resposta positiva, que é mostrar estudo de casos práticos de coisas
que são tangíveis ao mundo dele”). Interpretamos que a aplicação ao mundo real
poderia representar a visão humanística e social que ele enunciou anteriormente,
mas, pelo todo do enunciado, percebemos que a intenção seria a de “inserir o aluno
num mercado de trabalho, num contexto mais realista, em algo que ele tá
visualizando”.
Assim, acabou construindo um sentido de qualidade de ensino (“um bom
ensino”) que, do ponto de vista da metodologia, seria o de “dar os conceitos físicos e
matemáticos, depois aplicação no estudo de caso e depois uma análise que ele faça
essa interpretação.” Exemplificou seu método de ensino, com a intenção de motivar
seus alunos, utilizando, por exemplo, casos práticos anunciados nos jornais. Além
dos casos práticos, defendeu também a alternância de métodos do professor em
sala, para motivar, em particular, os alunos do noturno (“Então, você tem que tá
sempre motivando, alterar o tom de voz, né, colocar Power Point, fechar o
PowerPoint e ir pro quadro, depois fechar, não copiar mais no quadro, né, na lousa,
e ir pro PowerPoint, fazer gestos com as mãos, trazer modelos de lego”). Trouxe
para o discurso a perspectiva de ensino da universidade, onde usa “modelos de lego
pra explicar projetos de petróleo”, acentuando o valor desse uso porque, por esse
meio, o aluno “mete a mão, consegue observar”.
Ao responder sobre a sua visão de avaliação, trouxe a perspectiva da
avaliação tradicional (“uma parte prática e uma parte teórica”). Ao descrever mais
especificamente os instrumentos de avaliação, contrapôs-se à memorização (“eu
detesto questões de decoreba.”), defendendo a reflexão do aluno e a aplicação de
conceitos em situações práticas da realidade (“escolher bem as questões onde tem
uma ponte entre o que você ministrou na aula aplicada ao mundo”).
136
c) O papel do laboratório no EC
No que diz respeito ao uso do laboratório, embora tenha declarado que não
há demanda pelo uso na disciplina que ministra atualmente, reconheceu sua
importância para o ensino de química (“Se pudesse eu sempre usaria”). Especificou
o papel do laboratório para o técnico em química: “é onde você faz as práticas, as
experiências, onde você tem diferentes alternativas de testes que são os
laboratórios”. Entretanto, ampliou o conceito de laboratório (“O uso de um lego é
como se fosse um laboratório em sala de aula”) para além dos ambientes
tradicionais, com vidrarias, bancadas e equipamentos para experimentos, incluindo
atividades como construções de protótipos, arranjos e simulações, “onde você vai
maximizar o conhecimento do aluno”, acentuando também o caráter lúdico dessa
atividade.
d) Interesse e desempenho dos alunos
O Prof. Vítor associou o interesse dos alunos ao caráter dinâmico de suas
aulas, uma vez que trabalha com “exemplos” ligados à aplicabilidade,
contextualização dos conteúdos em estudos de casos, já enunciados anteriormente.
Todavia, afirmou que os alunos “não gostam das provas”, pela dificuldade em
compreender o que está sendo perguntado.
Sua compreensão ativa gerou uma autocrítica, na qual o Prof. Vítor declarou
concordar com os alunos, reconhecendo que algumas questões exigem que os
alunos se transportem “para o ambiente de trabalho, para um mundo real de um
projeto de engenharia de petróleo, uma petroquímica” o que não conseguem,
embora façam visitas técnicas a indústrias e empresas.
Observamos, também, que o Prof. Vítor conseguiu identificar o motivo pelo qual os
alunos julgam as perguntas “muito complexas”, a partir do reconhecimento de que,
para um profissional que acumula experiência nos ambientes de trabalho, as
questões são “fáceis”.
Ao finalizar esse enunciado, o professor admitiu que “a parte da aula eles
gostam, mas na avaliação das provas, eles questionam muito”. Nessa conclusão, o
professor colocou em xeque a qualidade de seu ensino.
137
e) Formação Integral
Para o Prof. Vítor, a formação integral para o curso técnico é “dividida em
duas partes muito claras: [ ...] a parte técnica do mundo do trabalho [...] e a formação
onde ele vai ter aulas de português, geografia, matemática, sociologia, pra poder
integrar sua formação técnica”. Portanto, há em seu dizer um sentido de
desintegração, apreendido na superfície do seu discurso, seja por enunciá-la como
dividida em duas partes, seja pelo uso do conectivo “e” (sublinhado acima) que
sinaliza o somatório e não a integração de duas partes.
Sua perspectiva de “ensino integrado” seria a união das duas partes já
enunciadas e visaria à formação do cidadão. Para o professor, a formação do
cidadão para o mundo do trabalho “tem que ter essas duas áreas muito bem
associadas”, no sentido de integrar a base dada pelas disciplinas português e
matemática com a formação técnica. Ressaltou a importância da disciplina
português, para desenvolver um bom relatório e ajudar na interpretação das
questões de matemática. Interpretamos que, ao perceber a formação geral apenas
como uma base para a formação técnica, acabou por enunciar uma visão utilitarista
da formação geral e uma concepção reduzida de formação integral.
Ele criticou o curso técnico quando era oferecido separadamente da formação
propedêutica, antes de 2004, (“no passado”) e o considerou como perda para os
alunos. Relacionou essa “ruptura” à falta de qualidade do ensino (“ isso não foi um
bom resultado”).
Ao ser perguntado se consegue, na prática, realizar a formação integral e o
quanto a instituição demonstra estar preocupada em desenvolvê-la, confirmou a sua
concepção de formação integral, ao dizer que esses alunos (do curso técnico
subsequente) não atingem esse tipo de formação (“ nós estamos formando alguns
alunos onde a parte técnica fica um pouco deficiente na fase final do curso, que é na
elaboração de um relatório”).
Ele comparou e classificou a formação nos cursos integrado e subsequente,
avaliando que, no primeiro, “os resultados são muito melhores, agora no curso
subsequente, os resultados são muito ruins, muito ruins mesmo.” Para explicar a sua
avaliação, hierarquizou os espaços escolares (“Ele às vezes fez o curso numa outra
instituição que não foi a escola A, e fez somente a parte técnica, aí quando vai
somar esses resultados é muito ruim no curso subsequente”). Para ele, a qualidade
do curso integrado está relacionada ao fato das disciplinas português e matemática
138
se integrarem às técnicas, embora reconheça que tenham “que integrar um pouco
mais”.
Apontou, como ponto crítico do curso subsequente, a forma como se dão as
aprovações (“sendo um pouco, assim, automáticas”), porque “alguns alunos passam
de uma série pra outra, no curso subsequente, apenas pra cumprir tabela, pra
cumprir número”.
Deixou claro, ao longo de todo o enunciado, sua apreciação valorativa em
relação à capacidade dos alunos de elaborar o relatório final do curso, o que dá
margem à interpretação de que esses relatórios atestam a qualidade da formação
integral no curso técnico.
f) Apresentação do conhecimento científico
Após uma pausa, o Prof. Vítor iniciou sua resposta declarando: “essa
pergunta é difícil”. É possível interpretar essa pausa como necessidade de tempo
para tecer uma resposta, buscando palavras, concepções para enunciar a sua visão
de uma forma elaborada e próxima ao que sua interlocutora gostaria de ouvir, ou ao
que seria mais “correto” dizer. Também como falta da apropriação de uma
concepção de ciência, a respeito da qual já pudesse enunciar como palavra própria.
A visão que ele elaborou, inicialmente, foi a de que “a ciência ela sendo bem
utilizada, sendo bem conduzida, ela resulta em... Ela gera resultados bastante
positivos, mas tem que pesquisar continuamente”. A partir desse trecho,
interpretamos que, para o Prof. Vítor, a ciência bem usada é a ciência persistente e
que pode chegar a resultados “bastante positivos”, o que leva à ideia de que o
atributo de ser “bem utilizada” seja, para ele, um problema do fazer a ciência e não
dos fins da ciência.
Ao relatar o espanto dos alunos diante do tempo que ele investe buscando um
resultado científico, o Prof. Vítor foi interpelado por sua interlocutora acerca da visão
de ciência que a maioria dos alunos constrói, como coisa pra gênio ou
superdotados. Em sua réplica, representou a voz dos alunos diretamente “Ah,
professor, você é muito inteligente” para confirmar que os alunos, de fato, exibem
esta visão de ciência. Entretanto, pelo todo do enunciado, é possível interpretar que
ele tenta desconstruir esta visão, mostrando que a ciência é uma questão de
insistência. Além disso, apontou a crítica como outro elemento da ciência e por isso,
estimula o aluno a não aceitar passivamente os ensinamentos científicos
139
apresentados pelos professores (“A ciência só chegou ao desenvolvimento a partir
das críticas, a partir de não concordar. Não aceitem o que eu falo passivamente”).
O Prof. Vítor disse recomendar aos alunos que questionem o professor no
campo profissional ou no campo científico. Entretanto, a crítica recomendada se
submete aos objetivos da aplicabilidade da ciência: “Pra poder chegar à aplicação
da ciência de uma forma mais estrita, né, de uma forma mais fundamentada, né?”.
g) Documentos oficiais
Em relação ao Projeto Político Pedagógico da escola A, o professor declarou
que esse documento praticamente não é utilizado. Apenas algumas normas, como,
por exemplo, o número de avaliações mínimas por bimestre e orientações para
formulação de questões de prova são consultadas. Em sua avaliação, o uso desse
documento pelos docentes ainda é mínima: “por conta dos docentes, da experiência
que eu tenho com os outros docentes, nos meus pares de trabalho, acho que ele
ainda é utilizado de uma forma mínima, né?”.
Foi possível tecer duas interpretações para seu silêncio em relação às leis
para a educação profissional de nível médio: a partir do texto da pergunta, o
professor pode ter entendido a legislação oficial como o projeto político pedagógico
da escola A. Sua resposta também pode indicar o desconhecimento da legislação
educacional.
h) O papel da pesquisa
Para falar do seu envolvimento com os alunos do curso técnico em projetos
de pesquisa, o Prof. Vítor justificou a realização das pesquisas, tanto do ponto de
vista pessoal (“eu gosto de pesquisa, sempre trabalhei em pesquisa, e eu sempre
tenho projetos de pesquisa”) como do ponto de vista do ensino (“um suporte pra
melhorar a sua disciplina, a sua aula, né, e você tem um aprendizado melhor”).
O Prof. Vítor ratificou o caráter elitista da ciência, ao relatar que seleciona “os
alunos que têm potencial” e que faz “um processo seletivo” para compor o seu grupo
de pesquisa. Em relação ao seu projeto de pesquisa, enfatizou a publicação de
papers e valorizou essa atividade: “é bom pra mim e bom para o aluno fazer essa
iniciação”. Supomos, assim, que a publicação de trabalhos acadêmicos seja
importante para o professor. Em relação aos alunos, não esclareceu por que seria
bom fazer a “iniciação” (científica).
140
O professor descreveu seus critérios de seleção que, de acordo com sua
explicação, seriam mais importantes que o “CR”: “Se ele consegue escrever bem, se
ele consegue ler bem, se ele é um aluno participativo da aula, se ele pergunta, se
ele é um aluno questionador da aula.”
Na sequência da enunciação trouxe para o seu discurso a questão de gênero
na ciência, com um tom de preocupação em relação ao impacto que poderia
produzir na sua interlocutora (“vou falar um negócio aqui que é até complicado”). O
professor declarou sua preferência pelas “meninas”, por serem “mais comprometidas
com as atividades”, fato que já havia observado em sua atividade profissional,
quando gerenciou “projetos com engenheiras” e observou que as “meninas têm um
comprometimento maior, são mais detalhistas, observam, são mais sinceras”, no
sentido de admitirem quando sabem ou não determinado assunto, conduzindo a
resultados “melhores” e “maiores”, comparados aos dos meninos.
i) Qualidade
Iniciou a resposta estabelecendo uma ordem para construir sua apreciação
valorativa de ensino: “Um dos primeiros pontos é a infraestrutura da instituição”. A
prioridade dada às condições físicas indica que o professor parece valorizar mais a
parte técnica que as questões humanísticas.
O segundo acento recaiu sobre a “carga horária”. Inferimos, aí, um
endereçamento explícito à interlocutora, pelo conhecimento comum da situação que
envolve esse fio trazido para o discurso, para tecer sua perspectiva de qualidade.
Ressoa, em seu enunciado, a discussão sobre carga horária docente, em pauta
atualmente na instituição, de conhecimento da pesquisadora. Arriscamos inferir um
tom reivindicatório, gerado pelo endereçamento, nos dizeres seguintes: “Não adianta
você ministrar várias aulas e ainda querer que aquele professor tenha um resultado
de pesquisa com os alunos.” Mesmo que o verbo querer tenha sido usado no
infinitivo, está claramente trazendo o outro, que representaria a instituição, para
dentro do seu discurso.
O terceiro “ponto” enunciado disse respeito a “ampliar a relação
empresa/escola, empresa/instituição”. Ao longo da descrição desse ponto, o
professor acabou confirmando sua concepção de formação profissional, já exposta
em enunciados precedentes: “é uma integração entre o que é desenvolvido na
escola como ciência, e o que é aplicado na empresa como trabalho, como resultado,
141
como processos produtivos [...] uma integração verdadeira que é unir o que a
empresa desenvolve, os problemas que ela apresenta e fazer essa ponte para que a
escola, para que a escola técnica, né, uma universidade, acaba desenvolvendo.”
Ecoam, nesta parte de seu enunciado, a voz institucional e a voz das esferas
governamentais, que apontam, como um dos principais objetivos da educação
científica da Escola A, o desenvolvimento e a prospecção de pesquisas aplicadas,
na interação entre a escola A e as empresas, objetivando atender às demandas
nacionais por inovação tecnológica.
Mais adiante, voltou a valorizar o papel da integração com a empresa para “o
desenvolvimento da ciência”, e por permitir que a escola tenha acesso aos
problemas reais que ocorrem na empresa, o que não seria possível sem esta
aproximação: “a escola, por mais que ela tenha acesso às informações, ela não tá
vivenciando o problema, quem vivencia o problema, né, as propostas de soluções é
justamente a empresa, mas ela tem que passar isso. Então, essa integração é muito
importante”. Observamos que, nesse terceiro ponto, o professor reduziu a integração
(que não tem nada a ver com a formação integral) à integração da escola com a
empresa, visando a formar profissionais capazes de atender perfeitamente às suas
necessidades e solucionar seus problemas. Assim, sua preocupação com a
formação se limitou às necessidades da empresa, desconsiderando outros aspectos
do sujeito a ser formado, como por exemplo, a cidadania, que seria objeto da
formação integral ou da formação humanística, com a qual dialogava, no início da
entrevista.
Finalmente, o quarto ponto que trouxe, para compor dialogicamente a sua
perspectiva de qualidade, está relacionada a “um maior investimento do governo, ou
da própria empresa, como acontece isso na Europa, nos Estados Unidos, nas
escolas.” Com essa concepção, constrói o sentido de qualidade atrelado à atuação
da iniciativa privada nos processos formativos da educação profissional brasileira, a
partir de modelos internacionais. Ele considerou que, assim, será possível
“desenvolver cada vez mais a ciência no Brasil” e tirar o país do “nível de
subdesenvolvimento” no qual se encontra.
142
6.5 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA CLEO
6.5.1 O contexto extraverbal
O horizonte espacial comum entre a Profa. Cleo e a pesquisadora, na
situação social de entrevista14, foi compartilhado em uma sala da biblioteca da
escola B, na qual se encontravam presentes apenas as interlocutoras. O local foi
escolhido pela professora por ser protegida contra ruídos, uma vez que a escola se
encontrava em obras e o ruído poderia interferir na qualidade do áudio. A entrevista,
que durou cerca de quarenta e cinco minutos, ocorreu em um ambiente de
tranquilidade, no qual não identificamos nenhum acontecimento que pudesse
influenciar seu andamento. Vale ressaltar que o nosso encontro para a entrevista foi
inaugural, o que constitui um horizonte comum mais estreito em relação a outros
professores entrevistados da escola A.
O conhecimento comum entre a Profa. Cleo e a pesquisadora, por serem
professoras do ensino técnico de nível médio, é que sabíamos que ela era
professora de Biologia das séries iniciais do Curso Técnico de Análises Clínicas da
escola B; sabíamos da existência dos PCNEM, das diretrizes curriculares nacionais
para a educação profissional e do projeto político pedagógico da instituição, ao qual
tive acesso no contexto da pesquisa; sabíamos das bases filosóficas marxistas que
norteiam as discussões de ensino profissional na escola B; vivenciamos, nos últimos
três anos, o momento pós-reforma da educação profissional durante o qual a
promulgação do Decreto Nº 5.154/2004 conferiu autonomia para a implementação
da modalidade de formação profissional integrada ao ensino médio; sabíamos que a
escola B permaneceu, até o ano de 2011, oferecendo o ensino médio e formação
profissional em diferentes turnos; sabíamos também das políticas educacionais
centradas na expansão da rede federal de ensino médio técnico no Brasil.
A avaliação comum da situação social da entrevista pode estar relacionada ao
fato de a professora considerar importante a oportunidade de falar do ensino de
biologia, a partir de sua experiência na escola onde trabalha e reconhecer esse
momento como uma oportunidade de fazer ecoar a sua voz na academia, ao
contribuir para uma tese de doutorado.
14
A transcrição completa da entrevista com o Profa. Cleo encontra-se no Apêndice 6 (p.236).
143
6.5.2 Perspectivas da professora Cleo
a) Objetivos do ensino de biologia
Ao se manifestar sobre a formação para o trabalho como o principal objetivo
da EPTM, a Profa. Cleo iniciou o seu enunciado explicitando o horizonte espacial do
qual iria falar (de uma escola politécnica) e pareceu fazê-lo intencionalmente, para
vincular os sentidos que irá construir relativamente a esse horizonte espacial.
Interpretamos essa vinculação como uma tentativa não só de localizar os sentidos
que compõem o seu discurso sobre o objetivo em questão, como também de
legitimar o sentido dado por ela aos objetivos do ensino de biologia na formação
profissional de nível médio. Aproximou, desse modo, suas concepções do princípio
marxista de formação integral, constituinte da proposta pedagógica da escola.
Dialogou, portanto, com o discurso institucional. Pelas marcas na superfície do seu
enunciado, percebida no conteúdo semântico referencial, (“entende o trabalho como
inerente ao ser humano”; “[...] as disciplinas sejam componentes do todo”) inferimos
que há, na fala da professora, leitura, estudos e filiação teórica ao princípio marxista
de formação integral. Ao estender às demais disciplinas o sentido dado ao ensino de
biologia de “formar para a vida”, parece indicar o quanto esse princípio também
baliza a prática dos outros professores.
Os sentidos produzidos na enunciação da Profa. Cleo sobre o objetivo de
formação para o trabalho ampliam essas finalidades para além daquelas exclusivas
de preparação para o mercado de trabalho, que, no seu ponto de vista,
representariam o objetivo de um ensino de má qualidade, uma vez que é “utilitarista”
e “instrumentalista”.
A Profa. Cleo referiu-se a outros objetivos para o ensino de biologia,
construindo, como sentido dessa disciplina, o de algo que sirva para a vida do aluno,
em oposição ao ensino baseado em memorização (“decoreba”), utilitarista ou
visando apenas à preparação para o vestibular.
O uso do recurso linguístico “decoreba,” na expressão “Fugindo dessa coisa
de decoreba”, produz um sentido de desqualificação do ensino tradicional, do qual
ela disse se afastar (“fugindo”). Observamos também a forma depreciativa como se
referiu ao termo em questão, evidenciada em sua fala pela expressão “dessa coisa”,
o que reforça a sua busca para superar o ensino pragmático de biologia e de
submissão ao vestibular.
144
Quando a Profa. Cleo respondeu sobre a seleção de conteúdos de biologia, é
possível considerar, pelo uso do recurso “a gente”, em “A gente segue o programa
oficial, o programa do MEC [...], mas, o programa não muda”, que o sentido de
submissão (“segue”), marca, discursivamente, a sua prática e a dos seus pares
profissionais, uma vez que o programa oficial é orientador das práticas em toda a
escola. Entretanto, parece não se submeter ao livro didático, flexibilizando-o (“a
gente tem um livro didático que eu posso ou não seguir a risca”). Ao introduzir a
sentença com a conjunção adversativa “mas” em “mas... é... o programa não muda”,
expressou seu pesar em relação ao engessamento conferido pelo programa que
está posto. Do ponto de vista de Bakhtin, o programa oficial parece se inscrever na
fala da Profa. Cleo como um discurso de autoridade, isto é, sendo oficial não se tem
a liberdade de concordar ou discordar com parte dele e, sim, de aceitá-lo na íntegra.
A Profa. Cleo, ao dizer que mesmo que o objetivo do ensino na escola B não
vise, de imediato, ao ingresso na universidade, ainda assim, os alunos obtêm bons
resultados em vestibulares e ENEM pelo acesso à formação integral. Subentende-se
que essa formação abrangeria tanto os conteúdos da formação geral quanto os da
formação profissional. É como se assumir declaradamente a preparação dos alunos
visando aos exames para a entrada imediata no ensino superior representasse o
não cumprimento da missão tradicionalmente estabelecida pelos legisladores da
educação para as escolas técnicas, a imediata inserção social no mundo trabalho.
Talvez, por esse motivo, a professora Cleo tenha salientado que o bom desempenho
dos alunos da escola B nos testes de larga escala seja uma “consequência” da boa
preparação que recebem e “não porque seja o nosso objetivo”. Pelo conhecimento
comum entre a professora Cleo e a pesquisadora, é possível considerar que esses
valores ideológicos disputam território nos discursos circulantes no âmbito das
escola A e B, tocando, também, os discursos dos pesquisadores sobre as relações
entre trabalho educação.
A Profa. Cleo justificou a necessidade de realizar constantes atualizações nos
conteúdos pela própria natureza da disciplina que ensina (“é que biologia está
sempre mudando, né?”). Assumiu para si a responsabilidade de fazer novas
inserções, sempre que a ciência se atualiza. Comprometeu-se, também, em mostrar
para os alunos as relações da biologia com a realidade, fato esse evidenciado pelo
uso frequente da forma verbal na 1ª pessoa do singular e do advérbio “sempre” -
“Então eu tento sempre ficar ligada nas atualizações”; “Então eu tento fazer sempre
145
essa ligação, como eu te falei: ligação com a realidade, com a biologia”. Ao enunciar
:“a gente escolheu, a equipe escolheu esses autores”, o marcador léxico “a equipe”
não deixa dúvidas de que o sentido de “a gente”, aqui, inclui, além da professora,
seus pares da área de química no âmbito institucional, como responsáveis pela
escolha do livro didático.
Relatou a apropriação que fez das tecnologias de comunicação e informação
(TIC), internet, facebook e e-mail institucional, como recursos facilitadores da
inserção de novos conteúdos, por meio da postagem de vídeos, buscando
complementar o que foi abordado em aula.
Na sequência enunciativa, emprestou um tom depreciativo à biologia, tal qual
ela em geral é ensinada no nível médio (“a biologia, que é aquela coisa, aquela
entidade cheia de nomes, então, daí eles entenderem pra que aquilo serve pra vida
deles, entendeu?”), para divergir, criticamente, de um ensino e de uma
aprendizagem baseados apenas na memorização de nomenclaturas e acentuar
valorativamente a importância do aprendizado dessa disciplina para a vida dos
alunos.
A Profa. Cleo demonstrou insatisfação com a sua metodologia, por não
conseguir realizar mais aulas práticas: “É... assim... eu sinto falta, ainda, de, não por
uma deficiência da escola, mas acho que de planejamento meu de mais aulas
práticas”. Queixou-se, discretamente, de o uso dos laboratórios ser destinado,
exclusivamente, para a formação técnica e demonstrou uma vontade de superar
todos esses obstáculos para intensificar a inserção de aulas práticas no seu
planejamento. Na sequência da interação discursiva, focou as excelentes
ferramentas das TIC e equipamentos audiovisuais que a escola possui e valorizou
seu uso: “a gente não vai falar da mitocôndria, a gente vai mostrar pra eles”.
Enfatizou, desse modo, a importância da visualização de imagens para o ensino da
biologia, tornando-a, portanto, mais atraente. Demonstrou satisfação com o ensino
que é realizado e atribuiu qualidade ao ensino de biologia desenvolvido na escola,
principalmente, pelo uso dos recursos audiovisuais e de informática, marcada pelo
adjetivo “excelente” (“uma gama de recursos audiovisuais, aqui, excelentes. Todas
as salas têm computador, todas as salas têm televisão, entendeu?”).
Retomou o assunto das aulas práticas, trazendo a voz do professor
preocupado em motivar e agradar os seus alunos – “eu acho que eles (os alunos)
iam gostar também... iam achar legal”. Reforçou a importância que dá às aulas
146
práticas, demonstrando o seu empenho em colher material para essas aulas “To
subindo, lá da Brasil pra cá... já peguei bicho pra trazer... já trago planta, de vez em
quando”.
Deixou claro o grande valor que atribui à aula prática como metodologia de
ensino, a ponto de considerá-la necessária e suficiente para melhorar o ensino de
biologia, marcado em sua enunciação por “É a única coisa que eu faria”. Este trecho
de seu enunciado indica satisfação com o ensino de biologia como ele é realizado,
na medida em que a única coisa que acrescentaria seriam as aulas práticas.
Em resposta à pergunta sobre avaliação, a Profa. Cleo teceu sua perspectiva
a partir da aferição de resultados nas provas que aplica aos seus alunos.
Reconheceu, como natural, as notas abaixo da média (seis) na primeira avaliação
que os alunos realizam, justificando: “É um choque que eles têm”. Com esse
comentário, mesmo sem referência direta, trouxe para o discurso a voz, quase que
consensual e circulante no meio escolar, que aponta o estranhamento dos alunos
diante do grande volume de matérias do ensino médio. Acredita-se que isso dificulte
a transição entre as séries finais do nível fundamental e o início do nível médio, e,
em geral, é associado ao baixo rendimento dos alunos na fase de transição entre um
segmento e outro. Além desse hiato entre os níveis fundamental e médio, referiu-se
à forma como esses conteúdos são apresentados no primeiro (“São ciências, -
biologia, química e física - que eles viam tudo junto, e na maioria das vezes, fora de
um contexto”). Acentuou a importância que dá ao sentido do conteúdo de biologia
construído pelo aluno (“ dizer alguma coisa pra eles”). Interpretamos que não se
trataria apenas de mostrar que a biologia está presente na realidade, é muito mais
do que isso, é relacioná-la com a vida. A sua voz se funde com a perspectiva da
formação integral, que ela demonstra buscar para superar um ensino de biologia
baseado em “decoreba”, e que julga como “maçante”. A recorrência desse sentido
na enunciação indica o quanto a Profa. Cleo se sente incomodada com o ensino de
biologia moldado em bases tradicionais. Atribuiu a melhoria do desempenho dos
alunos, nos trimestres seguintes, ao seu empenho em ensiná-los a “aprender a ler e
tirar as informações essenciais” para a prova.
b) O papel do laboratório no EC
Para a Profa. Cleo, o laboratório é um espaço onde se rompe com o status de
abstração do ensino de biologia e se aproxima do real (“é a prática”). Rejeita o
147
ensino baseado apenas em memorizações e desvinculado da realidade e da vida do
aluno – “Só não ficar naquela coisa: ah, sistema digestório... não sei o quê...”,
posicionamento que é reforçado ao emitir, logo a seguir, a frase exclamativa “Não!”,
apontando para o desejo determinado de mudança, de tornar esse ensino mais
significativo para o aluno. Percebe-se, também, uma tensão entre atender às
expectativas citadas e não abandonar o texto (o livro?) “abre o texto, mostra pra eles
lá, sabe?”. Ressoa, em sua fala, a voz do discurso oficial (do MEC) como uma
palavra de autoridade, determinadora dos conteúdos a serem ministrados em sala
de aula pelos professores, dentro de um determinado prazo. Encontra-se aqui outra
tensão: submeter-se às exigências do MEC ou romper com as amarras dessas
determinações, construindo outras perspectivas para o ensino de biologia? Ela se
cobra essa mudança “mas eu não desisti dessa ideia não”. O uso da primeira
pessoa e a entonação com a qual se expressou indicam que essa busca é sua,
independente de ser ou não compartilhada pelos seus pares.
c) Interesse e desempenho dos alunos
A Profa. Cleo constrói a sua perspectiva sobre o objeto do discurso de um
lugar específico, “turmas de primeiro ano”, e afirmou buscar “desconstruir” a biologia
ensinada no segmento do Ensino Fundamental (“Eles até chegam...”). Pelo todo do
enunciado, é possível considerar que a expressão “com pré-conceitos” completaria o
sentido da frase anterior. A ênfase dada ao verbo “desconstruir” mostra que ela
considera muito ruim o ensino de biologia do segmento do Ensino Fundamental, a
ponto de descartá-lo totalmente (“vamos começar do zero aqui”). É como se
dissesse aos alunos que nada do que aprenderam até aquele momento está correto
(“esqueçam tudo que vocês ouviram sobre esse assunto.”). Ao assumir esse
posicionamento, inferimos que se representa, no texto, pelo discurso de autoridade.
Isso porque parece acreditar ter o poder de eliminar os “pré--conceitos” com que os
alunos chegam ao Ensino Médio. Entendemos que a professora acredita poder
destruir as concepções espontâneas ou alternativas, que caracterizam o conjunto de
conhecimentos científicos que os alunos vão adquirindo ao longo da vida. E, assim,
a partir do que ela ensina, transformá-los para melhor, melhoria essa atestada por
ela, no segundo ano.
Os sentidos produzidos na enunciação para o desempenho e interesse dos
alunos, em relação ao ensino de biologia, relacionam-se, quase que exclusivamente,
148
com a forma como ensina, baseada na “desconstrução” do ensino de Biologia
realizado anteriormente, e na sua posterior transformação.
d) Formação Integral
Na concepção da enunciadora, a formação integral tem um sentido totalizante
do ser humano, uma vez que “não exclui nenhuma possibilidade de realização para
o ser humano”. O marcador linguístico “aqui”. em “ah, você tem todas as disciplinas
que uma escola tradicional tem, mas eu acho que é muito segmentado. A nossa luta
aqui [...] é tentar fazer isso de um modo integrado, sabe?”, pressupõe um “lá”. O
primeiro representa a escola onde trabalha e o segundo marcador, a escola
tradicional. Com isso, hierarquiza os dois espaços, colocando o seu espaço de
trabalho em posição superior ao da escola tradicional, porque “não engessa o ser
humano”.
Na sua concepção, o que caracteriza a educação profissional vigente no
Brasil são as atuais determinações de um país capitalista e relacionou essa
concepção econômica com as atuais políticas públicas do governo federal para essa
modalidade de formação. Ao fazê-lo, se contrapôs claramente à visão de educação
profissional do atual governo: “o governo, agora, só fala em educação profissional,
mas é outra perspectiva que ele tem, entendeu? É outra visão”.
A recorrência da palavra “luta” aponta para um sentido de mobilização
constante “diária” para alcançar a plenitude da formação humana proposta no
discurso institucional (“Tem uma luta, tem um ... o jogo está posto, está na mesa”), o
que indica o seu compromisso com o projeto da escola. Faz dele a sua perspectiva,
quando acentuou: “é um projeto lindíssimo, [...] sou fã dessa escola”. Em seguida,
trouxe outro fio para o seu discurso, para tecer mais um sentido para a integração,
que é o da interdisciplinaridade (“mas a interdisciplinaridade, ela é buscada e a
integração é buscada todo dia, toda hora, com os colegas e com a formação geral e
formação técnica e trazer o que tem na escola, articular com a realidade dos
meninos”). Nesse ponto da enunciação evidenciou sua preocupação em preparar o
aluno para vida, valorizando a formação profissional sem negligenciar a formação
humana, porque, ao mesmo tempo em que “o objetivo da escola é formar técnicos
para o SUS”, ela questionou: “Mas que trabalhador que a gente tá formando? Quem
é essa pessoa?”.
149
Buscando compreender melhor como estava se apropriando do conceito de
interdisciplinaridade, perguntei-lhe se conseguia realizá-la com facilidade, tendo ela
respondido que não. Ao discorrer sobre a interdisciplinaridade, enunciou duas
abordagens (“tanto a interdisciplinaridade dentro da formação geral, que já é uma
luta, entendeu, quanto à interdisciplinaridade de formação geral e formação técnica,
pra perder aquela coisa que eu te falei de disciplina instrumental”), reforçando o
quanto são difíceis de concretizarem, pelo uso do marcador léxico “luta”. A
professora Cleo acrescentou que sua intenção, com a busca que acabara de
enunciar, seria a de superar a visão de disciplina instrumental. O grau das reflexões
que se apreende em seu comentário, e que amplia a interdisciplinaridade para além
da integração entre as disciplinas curriculares, indica estudos sobre o tema.
A Profa. Cleo informou que, recentemente, ocorreu, na escola B, uma
mobilização para a elaboração de um projeto, uma disciplina integradora,
denominada Iniciação à Educação Politécnica (IEP) (“que se pretende como uma
disciplina integradora”). Tal sentido de mobilização é identificado no texto com o uso
reiterado das palavras “luta” e “busca”. Segundo a professora, a escola está criando
essa disciplina buscando concretizar a proposta de formação integral e legitimar os
princípios fundantes, mas esse processo se dá mediante luta diária contra as
amarras do sistema educacional.
Os sentidos de formação integral aqui identificados emergem da esfera social
de onde fala a Profa. Cleo: uma escola politécnica comprometida com a capacitação
permanente dos professores: “a escola bota a gente para trabalhar e pensar mesmo
[...] a gente tem várias instâncias de discussão o tempo inteiro”. O contexto imediato
no qual se insere influencia diretamente os sentidos que ela traz para a enunciação
sobre o ensino de biologia na formação profissional de nível médio.
e) Apresentação do conhecimento científico
Ao abordar o conteúdo referencial da pergunta, a Profa. Cleo remeteu seu
sentido à formação completa, relacionando-a à base filosófica “muito forte” ,
oferecida pela escola B e não em outro lugar, o que é marcado pelo uso do “aqui”.
Distancia-se do papel de protagonista dessa perspectiva de formação em sua prática
pedagógica quando a atribuiu à IEP (“A IEP faz bem essa função nos eixos que ela
trabalha”). Tal afastamento confirma-se na sequência dialógica, quando assume não
realizar tal prática, ao explicitar “Não trabalho com essa área diretamente não” e
150
“essa discussão é bem trabalhada com eles”, preferindo o “dito” ao “presumido”. A
Profa. Cleo acrescentou que “que o primeiro ano é um trabalho de desconstrução,
muita coisa, né, porque eles vêm meio que adestrados”. O “adestramento” no ensino
de ciências no nível fundamental entrou em seu discurso como um valor negativo e,
como tal, pressupõe sentidos para o ensino de biologia da escola B que,
conjecturamos, esteja ligado ao desenvolvimento da capacidade questionadora e de
autonomia do sujeito. Valoriza assim, em seu discurso, o trabalho pedagógico da
escola onde atua como um espaço de formação privilegiado em relação aos demais.
f) Documentos oficiais
A enunciadora optou por dizer que é “por um acaso” que teve acesso aos
documentos oficiais e relacionou esse acaso, em seu discurso, ao mestrado que
cursa na escola em que trabalha em educação profissional em saúde. Interpretamos
que a Profa. Cleo não precisa desses documentos para ser professora, mas, tendo
contato com eles, critica a concepção de educação profissional vigente no Brasil e
posiciona-se contra essa visão, ao expressar-se de forma depreciativa, evidenciado
por “Aquela coisa utilitarista, economicista” e traz para o seu discurso a voz
institucional para argumentar a favor de uma perspectiva diferenciada de trabalho “a
escola entende trabalho como... assim... característica do ser humano mesmo”. É
possível identificar em seu discurso o papel que ela atribui à escola B, na luta contra
a perspectiva do governo sobre educação profissional.
Entretanto, reconheceu os desafios a serem enfrentados para a
implementação dessa perspectiva de formação para o trabalho, evidenciados por
“mas essa luta está posta, né? Não terminou]”. É possível dizer que a professora
abordou a perspectiva do discurso institucional, preocupada em implementar a
formação integral, tal como concebida em seu projeto pedagógico. Dialogou com as
proposições contidas nos Decretos 5154 e 2208, cuja voz oficial ela trouxe para o
seu discurso para ratificar que, embora o Decreto 5154 tenha representado uma
vitória sobre o Decreto 2208, por aproximar-se das perspectivas de formação
integral constituintes da filosofia da instituição, a luta é diária, nada está posto. (“ A
gente tá matando um dragão por dia”) Nesse ponto, interpretamos que a perspectiva
que compõe a sua fala é a de que há uma total contraposição entre a visão de
formação integral que a escola B tenta implementar e o sentido apropriado pela
legislação oficial.
151
g) O papel da pesquisa
A professora Cleo respondeu à pergunta sobre o envolvimento dos alunos em
projetos de pesquisa declarando que não o pratica em relação a sua disciplina
(Biologia). Relatou que essa atividade se dá no terceiro ano, quando os alunos têm
uma monografia para apresentar e a disciplina de IEP. Disse que, desde o segundo
ano, eles procuram um professor para orientá-los “nos moldes de qualquer TCC”,
dando a entender que esse processo ocorre no formato dos trabalhos de conclusão
de graduação vigentes nas universidades. Ao desenvolver como este processo é
realizado, parece valorizá-lo, levando em conta o fato de os alunos escolherem os
temas de pesquisa e se familiarizarem com a “busca bibliográfica” e com a “escrita”.
Apontou um acento de valor dado ao gênero escrita científica, que, segundo a
professora, não visa apenas à monografia, mas à formação de um pesquisador (“É
muito legal. É o que eu falo: o objetivo não é nem a monografia em si. Eles saem
daqui pesquisadores”).
No enunciado seguinte, a professora acrescentou que está envolvida com
projetos de pesquisa com vários alunos de séries mais adiantadas e, pela
expressividade, demonstrou que é bastante procurada para orientação e parece se
orgulhar disso.
Em seguida, questionada a respeito dos princípios e valores que orientam a
pesquisa que realiza com os alunos, a professora voltou a valorizar o incentivo à
“disciplina” e ao “hábito” de pesquisa nas mais variadas fontes bibliográficas, com
base no rigor de uma pesquisa científica. Ao rememorar que, em geral, as pessoas
só aprendem a “recortar” o objeto de pesquisa quando se tornam pesquisadoras nos
cursos de pós-graduação, aprecia valorativamente o fato dos alunos já o realizarem
no nível médio, durante a formação profissional, já sendo, assim, iniciados “no
mundo mesmo da pesquisa”. A professora classificou essa inserção como mais
importante do que o tema a ser escolhido para a pesquisa, equiparando a autonomia
para a escolha do tema ao estímulo à investigação, por pesquisarem aquilo de que
gostam (“Acho que o tema acaba sendo consequência. Acaba sendo, assim, é como
se fosse um incentivo: eles escolhem um tema que eles gostam e aprendem a
pesquisar”), produzindo o sentido de que, para ela, o maior valor está em o
estudante aprender as práticas de pesquisa usuais no mundo acadêmico.
152
h) Qualidade
No Quadro 7, reproduzimos as perspectivas de qualidade, tais quais foram
registradas pela Profa. Cleo em uma ficha.
Quadro 7: Respostas da Prof. Cleo à atividade escrita sobre Qualidade
1. Ciência vida.
2. Ciência diferente de decoreba.
3. Proximidade Ciência realidade.
4. Aplicação prática do conhecimento.
5. Êxito em concurso = consequência e não objetivo.
Revisitando a análise dos enunciados precedentes, percebemos que o
conjunto de perspectivas elencadas pela Profa. Cleo reflete os elementos
acentuados, discursivamente, na situação de interlocução com a pesquisadora,
indicando que esse conjunto parece representar o seu posicionamento ideológico
diante da questão da qualidade do ensino da biologia.
O enunciado “Ciência vida”, assim representado, reflete o sentido tecido
pela professora para o ensino de biologia, ao longo da entrevista, marcado nas
expressões “a minha ideia de biologia é a de formação pra vida”; “a biologia é,
assim, a essência da vida”. Ao delinear esses objetivos, produz, discursivamente,
sentidos sobre a sua prática que negam a abordagem que visa à memorização dos
conteúdos e, prioritariamente, à preparação para o vestibular. Ao mesmo tempo,
ressalta outros valores que seriam a “Proximidade Ciência realidade”, cuja conexão
pode ser estabelecida com os sentidos apreendidos no comentário (“Eu ensino
biologia porque eu acho que é pra vida deles (dos alunos)”.
O sentido produzido pela última expressão registrada na ficha (“Aplicação
prática do conhecimento”) poderia ser interpretado como antagônico aos sentidos
apreendidos na expressão “a biologia é isso aí: é mais um componente da vida do
aluno e não uma coisa instrumental para o trabalho”; “não é assim pragmático”, o
que, na perspectiva bakhtiniana, não representaria nenhum problema, pelo caráter
dialético e dialógico que empresta às enunciações em sua filosofia da linguagem. No
entanto, revisitando os textos da sua entrevista, não foi possível correlacionar o
sentido de “aplicação prática” a “instrumentalismo”, mas sim ao sentido de relacionar
153
o conhecimento científico com o mundo real, da natureza. Por exemplo, isso ocorre
quando a professora se refere às aulas práticas: “eu poderia dar mais aulas práticas,
eu acho que eles iam gostar também, iam achar legal”; “Tô subindo lá da Brasil pra
cá, já peguei bicho pra trazer, já trago planta, de vez em quando mostro pra eles,
mas nunca planejei uma aula assim, entendeu?”.
6.6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR MURILO
6.6.1 O contexto extraverbal
No tocante ao horizonte espacial comum aos interlocutores, a situação social
de entrevista15 ocorreu na escola B, em um espaço reservado por ele na sala de
coordenação da área de biologia. Havia uma secretária em uma sala vizinha,
separada apenas por uma divisória. Em alguns momentos, pessoas passaram pela
sala, porque a porta de entrada era comum às duas salas, o que, aparentemente,
não trouxe problemas à interlocução. Entretanto, considero que o pedido do
professor para que não nos alongássemos muito, porque tinha compromissos
pessoais inadiáveis influenciou a entrevista, fazendo com que eu tenha administrado
a forma de conduzir algumas perguntas de maneira diferente. Por exemplo,
perguntei sobre alguns tópicos em uma mesma pergunta, conforme já exposto no
início deste capítulo.
O momento da entrevista foi o nosso primeiro encontro, portanto, o presumido
entre o entrevistado e a pesquisadora integrava um horizonte comum mais estreito
em relação a outros professores entrevistados da escola A. Por sermos professores
atuantes na educação técnica de nível médio, sabíamos da existência dos PCNEM,
das diretrizes curriculares para a educação profissional e do projeto político
pedagógico da escola, ao qual tive acesso no contexto da pesquisa; sabíamos das
bases filosóficas marxistas que norteiam as discussões de ensino profissional na
escola B. Também eram comuns os conhecimentos de que o professor Murilo
ministrava aulas no Curso Técnico em Análises Clínicas; atuava na parte específica
do currículo correspondente à formação técnica e na formação geral; sabíamos das
15
A transcrição completa da entrevista com o Prof. Murilo encontra-se no Apêndice 7 (p.240).
154
bases filosóficas marxistas que norteiam as discussões de ensino profissional na
escola B; vivenciamos o momento de reforma da educação profissional, no qual a
promulgação do Decreto Nº 5.154/2004 conferiu autonomia para a implementação
da modalidade de formação profissional integrada ao ensino médio; sabíamos que a
Escola B permaneceu, até o ano de 2011, oferecendo o ensino médio e formação
profissional em diferentes turnos e vivenciamos juntos o momento histórico de
intensificação da expansão da rede federal de ensino técnico.
A avaliação comum que ambos fazíamos da situação de entrevista estava
relacionada à importância dada à participação em uma pesquisa para uma tese de
doutorado em ensino, oriunda da UFRJ, instituição reconhecida pela relevante
produção científica. Outra avaliação comum era a de que suas contribuições seriam
endereçadas à academia e, portanto, poderiam produzir eco nesse meio e que
falava, também, para uma professora da escola A.
6.6.2 Perspectivas do professor Murilo
a) Objetivos do ensino de biologia
Questionado sobre os objetivos do ensino de biologia no contexto da
formação técnica, o Prof. Murilo disse que a resposta a ser dada poderia ser
examinada de duas maneiras: uma mais “tranquila” e outra mais “complexa”,
considerando a diversidade de habilitações profissionais oferecidas pela escola B.
Para ele, o aluno do curso técnico em análises clínicas tem “uma relação inequívoca
com a biologia, porque são conceitos fundamentais para ele desempenhar um bom
papel no campo profissional.” Em seguida, trouxe para o discurso a sua visão crítica
do currículo de biologia, por este estar “sofrendo com esse processo de
“vestibularização” do ensino médio.” Ao fazer uso da expressão “sofrendo”, criticou o
ensino médio, devido à finalidade única de preparar para o vestibular.
O sentido apreendido na classificação das maneiras de responder (tranquila
e complexa) é o de que, a depender do curso, esses objetivos estão postos ou não.
No curso técnico em análises clínicas, os objetivos do ensino estão dados, porque
os conceitos de biologia constituem a parte específica da formação técnica, estando,
assim, relacionados às solicitações do campo de atuação profissional. Em relação
aos demais cursos não profissionalizantes, nos quais a disciplina de Biologia não
155
compõe a parte específica do currículo, a resposta torna-se mais complexa, na
medida em que, apesar de o professor manifestar o desejo de permanecer com os
mesmos objetivos, alunos de escolas particulares e alguns de terceiro ano da escola
B tentam “entender um pouco mais a biologia a partir do que é pedido no vestibular”.
Este fato foi criticado pelo professor, quando ele trouxe para o território da
enunciação a sua visão crítica, confirmando o comentário anterior em relação ao
vestibular. Segundo ele, isso é “algo extremamente nocivo pro ensino médio”, o qual
não deveria se restringir a esse objetivo. Ao prosseguir, explicou por que considera o
vestibular nocivo: “um processo meritocrático, um processo de seleção bastante
excludente...”, seja pela falta de maturidade dos alunos ou pela ausência de
conexão entre o que é cobrado nesse exame e o que estão estudando na escola.
Além de considerar os conteúdos de biologia como centrais para o técnico em
análises clínicas, sua visão acerca da formação para o trabalho valoriza a seleção
de “saberes” que desenvolvam o senso crítico do aluno. A partir desse ponto de
vista, o professor criticou uma concepção utilitarista de educação profissional,
diferenciando essa visão da visão da escola B, em cujo grupo se inclui. Esses
sentidos foram apreendidos no comentário que fez logo a seguir, a partir de suas
experiências em outras escolas, que, segundo ele, entendem a formação do técnico
“como um mero reprodutor de determinados procedimentos, o que vai totalmente
contra o que a gente acredita.”
Contrapôs a essa noção, a filosofia de formação profissional da escola B, com
a qual concorda: “a gente acredita no trabalho como um principio educativo”. Ao
incorporar esse conceito ao seu discurso, dialogou diretamente com os princípios
marxistas de formação integral e o definiu como um dos “eixos desse componente
inter, transdisciplinar, multidisciplinar”, denominado de iniciação à educação
politécnica. Acrescentou à sua posição um sentido de busca, de esforço
empreendido por ele e seus pares, marcado na expressão (“a gente tenta
trabalhar”), o que também marca a dificuldade de se conseguir esse objetivo.
Ao ser questionado a respeito do estabelecimento de outros objetivos para o
ensino de biologia, além da formação técnica, o Prof. Murilo descreveu uma forma
“privilegiada” de ensinar a biologia, relacionando-a à realidade do estudante.
Aproximou essa forma ao pensamento de Paulo Freire. Em seguida, contrapôs o
ensino de biologia, que acabou de descrever, a outra forma de ensiná-la, a
156
conteudista, com base na associação (memorização) que depois será esquecida.
Classificou-a como “uma ferramenta pra alienação do estudante”.
b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação
Ao ser perguntado em que medida o estabelecimento de outros objetivos para
o ensino da biologia interferem na seleção de conteúdos, metodologia e avaliação, o
Prof. Murilo se remeteu à “ementa disciplinar”, afirmando que esta deve ser
continuamente discutida. Antes de prosseguir, confessou que esqueceu a pergunta
e, com um tom de brincadeira, entre risos, acrescentou que tem Alzheimer.
Após ouvir novamente a pergunta, o Prof. Murilo nos explicou que divide a
disciplina com outro professor e demonstrou valorizar essa prática, ao chamá-la de
“privilégio”. Ao descrever a metodologia que prioriza em suas aulas, fez ressoar em
seu discurso a perspectiva enunciada anteriormente: “a gente sempre tenta puxar
uma discussão, vou ser repetitivo aqui, pra junto da realidade do estudante”. O
professor, com atitude responsiva ativa, exemplificou com a metodologia usada para
ensinar “herança quantitativa dentro da genética e utilizar o exemplo da cor da pele”.
Nesse tópico, faz a relação com dois outros temas: “racismo” e “eugenia”. Seu
exemplo confirmou sua visão de formação integral, que aponta para uma inter-
relação ampliada entre o conteúdo da biologia e os fatos sociais, não se limitando
apenas ao contexto próximo ao estudante. Concluiu o exemplo com uma expressão
de valor sobre seu ensino: “tão importante quanto saber esses conceitos, são as
possíveis aplicações desses conceitos”. Na esteira dessa conclusão, questionou se
a ciência é imparcial e enunciou a visão institucional ou, pelo menos, a sua visão
(“Nós aqui entendemos que não, ou pelo menos eu entendo que não”). A partir
desse entendimento, justificou os objetivos do seu ensino: “a gente também vai
trabalhar de maneira mais enviesada”, ou seja, também não imparcial. Desta
discussão, depreendemos que, para o professor, diante de uma ciência considerada
não neutra, o ensino precisa ser não neutro.
No discurso sobre a sua prática, o professor acentuou o valor que dá à
abordagem crítica dos conteúdos de biologia, interpretada como a sua forma de
implementar a formação integral. A partir dessa apropriação, o Prof. Murilo, mais
uma vez, deixou clara a diferença entre a forma crítica de ensinar (“ fornecer
subsídios ali pra uma troca de ideias riquíssimas) e a forma alienante (“esquema
alienador pro estudante”).
157
c) O papel do laboratório no EC
Ao ser questionado sobre o uso do laboratório no ensino de biologia, o Prof.
Murilo, logo nas palavras iniciais de seu enunciado, expôs sua visão: “o laboratório é
maravilhoso”. Em seguida, nos explicou o ponto de vista enunciado: “o aluno ali tá
vendo conceitos muito práticos”. Na sequência, ao enunciar: “Mas, algumas vezes
talvez a gente abstraia demais, ou fazemos encadeamentos que fazem com que o
estudante se perca talvez um pouco no caminho”, manifestou sua preocupação em
equilibrar, no laboratório, o caráter abstrato do conhecimento nesse nível de ensino.
Nesse ponto, explicitou a disciplina com que trabalha (“Protozoologia”) e
descreveu discursivamente a sua prática no laboratório. Em sua descrição,
observamos que também no laboratório, o professor tem a preocupação, já
enunciada, de problematizar os conteúdos, relacionando-os à realidade social do
aluno, (“Não há saneamento básico ali, ou talvez essa água que é utilizada pra
irrigação, talvez não seja tratada ”) para além das técnicas que ele vai aprender.
Ao reconhecer que a carga horária total da disciplina que ministra não é
suficiente para formar “um expert em microscopia”, o professor contrapôs o conteúdo
que o aluno “vai aprender” às problematizações críticas relacionadas ao conteúdo. O
uso da expressão “vai aprender” remete a uma classificação da aprendizagem do
conteúdo em relação à visão crítica: o conteúdo poderá ser aprendido depois, na
vida profissional, já que não há tempo hábil para aprendê-lo totalmente na disciplina,
enquanto a visão crítica não é tão certa que será e, portanto, deve ser privilegiada
agora.
O professor acredita que os alunos irão ampliar o conhecimento técnico na
prática, ao exercerem a profissão, visão que construiu a partir da sua trajetória
profissional (“ tenho aí um rastro de trabalho técnico”), por ter adquirido grande parte
do conhecimento que detém “na bancada”. Porém, a visão crítica que, para ele, seria
necessária para uma “formação diferenciada”, seria o que valoriza o profissional
(“que um profissional, um chefe, um coordenador, entenda esse profissional como
algo muito maior que um simples reprodutor ali de coisas”).
d) Interesse e desempenho dos alunos
Em relação ao interesse e o desempenho dos alunos em suas aulas, o Prof.
Murilo considerou que os alunos gostam mais de biologia do que de física ou de
química. Atribuiu a origem do desinteresse nessas disciplinas aos “ preconceitos,
158
né, que esse estudante tem contato, seja dos pais, seja dos próprios professores
que acabam usando várias vezes a química e a física como exemplos de matérias
demoníacas”, mas reconheceu que há conteúdos de biologia pelos quais os
estudantes também não se interessam.
Na continuidade, relatou como desenvolve o seu trabalho nas turmas de
terceiro ano, considerando a maturidade dos alunos nessa etapa. Sua descrição
apontou para um aprofundamento das discussões na disciplina de “Protozoologia”, a
partir das análises dos altos índices de mortalidade, no Brasil e na África, causada
por doenças que existem há bastante tempo, índices esses, porém, pouco
divulgados. Expôs, também, sua intenção ao utilizar essa metodologia, que seria a
de “despertar os alunos para outros aspectos”. Indicou, pelo conteúdo temático do
enunciado, que se preocupa com os aspectos políticos e sociais no ensino da
biologia.
A seguir, comparou as consequências do mau desempenho na profissão
docente às consequências de um mau desempenho no trabalho técnico (“Olha, o
meu exercer a profissão de maneira ruim, é ele ter uma aula ruim. Mas, uma coisa
que ele pode na sua caminhada compensar. Um mau técnico, ele pode muitas das
vezes tá causando a morte de um paciente”), construindo a ideia de que as primeiras
têm como ser compensadas ao longo da trajetória do aluno, enquanto as últimas,
não.
O Prof. Murilo comparou ainda os objetivos da educação profissional da
escola B, na qual atua como docente, com os da escola A, onde recebeu a sua
formação técnica. Relatou que, na escola A, recebeu formação para a pesquisa, (“eu
fui formado, preciso dizer isso, pra pesquisa, tá?) e na escola B, “o aluno é “formado
para o SUS...”. A seu ver, a diferença entre esses objetivos pode implicar diferentes
direcionamentos para vida dos alunos. Trouxe para o discurso o exemplo da sua
trajetória profissional, para dizer que a formação técnica recebida na escola A o
direcionou para o trabalho com um pesquisador reconhecido na área, (“eu saí de lá,
fui trabalhar com Radovan Borogevick, que é um cara relativamente famoso”)
enquanto que, na escola B, o estudante sai direcionado para “estagiar num posto de
saúde, ele vai estagiar no INCA, né? É diferente, é diferente”). O tom usado, ao
verbalizar as palavras finais desse comentário, e o seu conteúdo temático sugerem
que o Prof. Murilo hierarquiza os objetivos de formação técnica das duas escolas. O
159
primeiro, da forma como foi enunciado, indica prestígio no meio acadêmico e o
segundo é como se fosse um objetivo cujo valor social não é reconhecido.
Ao discorrer sobre o objetivo da formação técnica oferecida pela escola B, o
Prof. Murilo pôs em tensão a formação técnica para o SUS e as expectativas dos
alunos em relação ao curso, inferindo que estes preferem a formação voltada para a
pesquisa à formação técnica, pois “um estudante de cada trinta dentro de uma sala
levanta a mão quando a gente pergunta quem quer trabalhar como técnico.”
Ele lamentou que o aluno formado pela escola B acabe não indo trabalhar no
SUS, ressaltando o quanto seria importante que fosse, talvez pela carência de
técnicos de boa formação nesse sistema, que acaba “recrutando o cara que tem
uma formação técnica totalmente mecanizada”. Concluiu seu enunciado pondo em
dúvida a hipótese que acabara de enunciar: “É isso. Eu tenho muito mais dúvidas do
que respostas”.
e) Formação Integral
O Prof. Murilo respondeu à pergunta sobre formação integral com uma
exclamação: “Que pergunta difícil!”, julgando-se incapaz de respondê-la, por
considerar que não tinha repertório suficiente para tal. Pelo uso do recurso
linguístico “viajar”, na expressão “tentando viajar sobre isso”, pareceu anunciar que
ia tentar elaborar, ou teorizar sobre esse tema à medida que respondia.
Passou a falar da formação integral a partir da realidade da escola B, e de
diferentes lugares sociais ocupados por ele nesse contexto, por atuar como
“coordenador da disciplina que visa integrar os conteúdos”, como professor da
disciplina técnica, como professor de biologia no ensino médio, já tendo sido,
também, professor de metodologia da pesquisa. Com a descrição dos diferentes
lugares que ocupa e que já ocupou, trouxe, para o discurso, o sentido de que a
convivência com os diferentes profissionais responsáveis pelas disciplinas já
enriquecem a percepção do estudante. Interpretamos que, ao fazer esse
comentário, o professor aproximou esse enriquecimento da formação integral.
Para explicar o que acabara de enunciar, o Prof. Murilo se referiu aos
profissionais que ingressam na escola B com a intenção de substituir o trabalho que
realizavam “na bancada há anos”, mas, que acabam chegando ao entendimento de
que o trabalho na escola B “é muitas vezes muito mais penoso do que você lidar
com camundongos, ou com célula”. A partir desse comentário, relacionou a
160
experiência vivida por esses profissionais como capaz de proporcionar-lhes “uma
formação inclusive humana”. Assim, esses profissionais da área técnica transformam
seu conhecimento, na escola B, em “algo mais pormenorizado”, que será
contextualizado, por outro profissional, “dentro do todo”. Interpretamos que o Prof.
Murilo compôs, a partir das trajetórias dos professores que atuam na escola B, uma
perspectiva de formação integral, resultante do inter-relacionamento entre o
conhecimento pormenorizado e o todo. Esta forma de compor sua concepção
também parece indicar a centralidade dada por ele à influência dos docentes no
processo formativo de seus alunos.
Tentando conceituar a formação integral por outras vias, mais uma vez ele
trouxe a sua experiência como estudante da escola A para classificar a formação
integral oferecida lá, em relação à formação integral oferecida pela escola B.
Concluiu que ela não existe nem em uma e nem em outra, mas que na escola B há
uma “tentativa” de implementá-la via “reorganização curricular”. Ele mostrou, por
meio de um “exemplo bocó”, a falta de integração na escola B, na medida em que as
disciplinas “de ensino médio” eram dadas em um turno e “o ensino técnico” em
outro. Ressaltou que essa organização está sendo modificada agora e será avaliada
em quatro anos.
Trouxe novamente o caso da escola A para enunciar a total falta de
integração, já em que as disciplinas são “muito mais entendidas como caixinhas” do
que como “parte maior de um todo.”. Para o Prof. Murilo, a visão integrada de ensino
que defende não hierarquiza as disciplinas, pelo contrário, tenta igualar a
importância das mesmas para a formação (integral) do estudante. Em seguida,
passou a discorrer sobre a visão “estigmatizada” do aluno em relação à disciplina de
Iniciação à Educação Politécnica (IEP), por não contemplar “um processo de
avaliação individual”. Em sua avaliação, o desinteresse demonstrado pelos alunos
deve-se à falta de maturidade dos mesmos, que acaba por impedir que estudem
com mais espontaneidade (“de peito mais aberto”). Interpelado pela pesquisadora
com o comentário de que os alunos gostam mesmo da disciplina que se dá em um
processo mais tradicional, com avaliação, ele complementou: “quase uma Síndrome
de Estocolmo” e, assim, associou a perspectiva de um “processo avaliativo
traumatizante” à perspectiva do estudante, mas, também, não discorda de sua
importância”.
161
Nas palavras finais do enunciado, o Prof. Murilo problematizou a formação
dos professores que atuam na escola B sem terem cursado a licenciatura. Para ele,
a licenciatura não deve ser considerada como “um penduricalho”, mas a reconhece
como espaço de amadurecimento das discussões acerca do que acontece e do que
é a sala de aula. Ao trazer essa perspectiva para o discurso, demonstrou, mais uma
vez, o quanto o professor valoriza o processo de formação de professores.
f) Apresentação do conhecimento científico
Para falar da apresentação do conhecimento científico na formação técnica, o
Prof. Murilo iniciou sua enunciação relatando que é necessário legitimar o
conhecimento que discute com os seus alunos, vinculando-o aos resultados de
pesquisas acadêmicas publicadas em periódicos. É possível considerar que o
professor lamenta o fato de ter de usar a autoridade do conhecimento científico para
legitimá-lo diante de seus alunos. Por outro lado, o professor pareceu valorizar a
experiência acadêmica dos estudantes da escola B, habituados a lidar com
periódicos, a frequentar congressos e incentivados a pesquisar em bases de
pesquisa, indicando o quanto o ensino na escola tenta aproximar os estudantes do
mundo acadêmico.
Tendo retomado o tema central da pergunta com a intenção de apreender o
modo como a visão de ciência é passada para os seus alunos, o Prof. Murilo, logo
nas palavras iniciais do seu enunciado, com o uso do verbo “desconstruir” em “a
gente tenta desconstruir isso”, pareceu se referir à autoridade atribuída à ciência,
mencionada anteriormente. (“Porque se eu falar pra ele pura e simplesmente, ele
não vai acreditar muito. Então, o estudante daqui ele tá acostumado com esse lidar,
com periódicos”) Em seguida, ele mencionou a disciplina IEP, que tenta fazer um
“resgate histórico” do que “a gente chama de ciência”.
O Prof. Murilo expôs uma contradição, na medida em que o esforço recém
descrito convive com uma visão “dentro de uma instituição de saúde”, na qual as
ciências biomédicas “muitas das vezes é colocada como algo soberano.”
O comentário acerca da “brincadeira” que faz com os alunos (“Pô, por que
você vai ao shopping, vai comprar um colchão com um cara que tá de jaleco?”), nos
permite interpretar que esta é uma forma de fazê-los refletir sobre a autoridade da
ciência na sociedade.
162
Ele mostrou o esforço de todos (“a gente tenta mostrar pra ele, eu tento
mostrar pra ele, vários outros profissionais, a escola oficialmente ”) ao discutir a
visão da ciência como algo soberano, mencionada anteriormente, e que agora
relacionou ao positivismo. Essa discussão mostraria que o conceito de eficiência
“talvez seja muito mais amplo que isso” e que “não é demérito um conjunto de
saberes não ser classificados como ciência”.
Ele deixou claro que não são todos os professores que compartilham essa
desconstrução, pelo contrário: “Eu acho que é tanto o professor que entra colocando
a minha ciência como algo acima do bem e do mal ”. O Prof. Murilo atribuiu a esses
professores o fato de essa desconstrução poder não seduzir os estudantes (“talvez
não os pegue muito não”).
Ele estendeu essa visão de Ciência (como instituição acima do bem e do
mal) ao curso superior e considerou que só quando o estudante estiver lidando com
quem faz ciência, vai entender “que existem várias outras coisas que envolvem aí
esse ambiente, do ego a, enfim, uma série de outros pontos que podem ser
analisados aí”.
g) Qualidade
Perguntado diretamente sobre o que é um ensino de biologia de qualidade na
formação técnica, o Prof. Murilo deixou ressoar, em seu enunciado, a perspectiva já
construída por ele ao longo da entrevista que é a do ensino que leva o aluno a
questionar, estimulando o senso crítico, independente de ser “utópico ou não”.
Na continuidade do seu discurso, comparou os estudantes de escolas
privadas de classe média alta com os alunos da escola B, para dizer que o segundo
grupo tem discussões “muito mais amadurecidas”, hierarquizando, assim, o ensino
oferecido pela Escola B como superior ao de escolas privadas.
Ele descreveu a escola/corpo docente como um “mosaico louco”, dando a
ideia da pluralidade de visões, fundamentalmente porque os profissionais têm as
“mais diferentes origens, com suas diferentes formas de trabalho, seus diferentes
entendimentos.”
Trouxe para o discurso o “regime integral” de ensino da escola B, para
compor a sua perspectiva de qualidade, uma vez que este propicia aos alunos
maiores oportunidades de orientação para a pesquisa e, ao mesmo tempo, uma
maior aproximação entre professores e alunos. Com essa perspectiva, o professor
163
apontou a importância dos encontros com os alunos fora de sala de aula, para
promover a formação do cidadão. Concluiu seu enunciado com um tom hesitante
(“não sei se é isso”).
Ao ser interpelado mais uma vez pela pesquisadora sobre o que ele considera
como fatores de qualidade na formação técnica, o Prof. Murilo construiu sua
perspectiva a partir do confronto entre a formação dos alunos da escola B, os quais
considera que saem da escola sabendo “fazer as técnicas básicas de uma maneira
eficiente”, com a má formação técnica oferecida em outros lugares. Nesse ponto, fez
uma ressalva para os técnicos da escola A, onde estudou, igualando o bom
desempenho destes ao da escola B. É possível perceber que o professor está se
referindo ao conhecimento técnico, quando enunciou: “o técnico da escola A e um
técnico da escola B dentro de um mesmo laboratório, eles vão ter ali o mesmo
desempenho”. A comparação com a escola A e a avaliação de que ambas oferecem
formação de mesma qualidade técnica podem estar relacionadas à posição social da
interlocutora, que representa a escola A.
O professor admitiu também a possibilidade de existirem alunos que saem
com uma má formação técnica, tanto da escola A como da escola B, chamando para
si e para os seus pares a responsabilidade por esta má formação (“tem uma relação
com a gente fazer tudo muito mais atropelado, fazer tudo muito mais a toque de
caixa.”). Argumentou que isso não acontece por “incompetência” ou
“irresponsabilidade” sua e dos demais professores, mas, “de acordo com a música
que toca no background que a gente também é obrigado a dançar muitas das
vezes.” Esse comentário produz um sentido de submissão à lógica de autoridade
que conforma as determinações superiores e a estrutura do ensino no âmbito
institucional.
Ao retomar explicitamente o tema da qualidade na formação profissional,
trouxe para o território da enunciação a visão de ensino de biologia que vai além da
formação técnica: “um técnico com qualidade eu acho que é um técnico que
entenda, não só o que acontece na bancada, mas o que acontece no entorno
daquele laboratório que faz com que a saúde caminhe numa direção boa, ou por que
demora tanto para algumas coisas, né?”. Nas palavras finais desse enunciado, o
Prof. Murilo questionou o ritmo lento das decisões e realizações no âmbito da saúde,
incorporando, ao seu discurso sobre qualidade da educação profissional, acentos
políticos e sociais da ciência. Interpretamos, assim, que, para ele, um técnico de
164
qualidade se aproxima do ideal da formação integral enunciado ao longo da
entrevista.
Concluiu, questionando e pondo em dúvida os encaminhamentos tomados
nas esferas acadêmicas que desenvolvem pesquisas para a área da saúde,
contrapondo o tempo de existência das doenças aos avanços significativos desses
estudos (“Como é que até agora a gente não teve nenhum avanço tão
significativo?”). Com essa atitude, o Prof. Murilo questionou a ciência, diante de
suas finalidades sociais, coerentemente com a visão de ciência já enunciada.
Ao término, o Prof. Murilo agradeceu e comparou a entrevista a uma sessão
de análise profissional, talvez por ter-lhe permitido que entrasse numa reflexão a
respeito de sua prática e outros aspectos para os quais, normalmente ele não tem
tempo ou espaço para fazer.
165
7 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA EPTM
Neste capítulo, as enunciações dos professores entrevistados serão
discutidas à luz das questões de estudo, que passam a estruturar o texto. Para
organizar esta estrutura, realizamos um processo de seleção de partes da análise
referentes à cada questão de pesquisa entendendo porém que poderão ser
trazidos, de outras partes, discursos dos professores, sempre que julguemos que
estes complementam as ideias do conjunto.
Para identificar as perspectivas de qualidade da educação científica dos
docentes, buscamos dar um passo à frente em relação à análise pormenorizada
apresentada no capítulo anterior, sintetizando, nas três primeiras seções, os pontos
de vista que julgamos centrais nas respostas ao tema de cada questão. Tais
sínteses foram colocadas em confronto no mesmo contexto escolar, buscando-se
localizar aproximações, afastamentos tensões e conflitos entre os sentidos de
qualidade da educação científica por eles tecidos. Acreditamos que este
procedimento, acrescido de trechos dos enunciados que julgamos representativos
citados ao final de cada análise ressalte as características que conformam cada
perspectiva. Esperamos assim, fornecer, ao final do processo, um leque no qual
contrastam as nuances que tonalizam as perspectivas individuais.
Na seção 7.4, as perspectivas de educação científica de qualidade no
contexto da EPTM do sujeitos investigados foram compostas a partir das sínteses
apresentadas nas seções anteriores.
7.1 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO ÀS FINALIDADES DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
7.1.1 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus I da escola A
O Prof. André e a Profa. Taís consideram legítimo o objetivo de formar para o
trabalho no contexto de uma escola de formação técnica profissional. Entretanto,
esse reconhecimento se dá com nuances diferentes. O Prof. André demonstra
166
preocupação com o processo formativo, se é crítico ou não. A Profa. Taís não
problematiza tal formação, atém-se ao cumprimento deste objetivo pela escola.
A Profa. Taís considera que o setor produtivo e a consulta ao aluno na fase
de estágio atestam a qualidade do seu ensino. Em sua visão, a formação em
química oferecida está, em grande medida, de acordo com o que o mercado exige e
com o que o aluno necessita saber para executar suas funções profissionais. Já o
Prof. André problematiza esta formação e se ressente da falta de parâmetros
institucionais para avaliar a sintonia entre os componentes curriculares e as
demandas do mercado. De forma crítica, o professor aponta a vulnerabilidade dessa
sintonia, acentuando a necessidade de fortalecimento dos vínculos com o setor
produtivo, que seriam, para ele, parâmetros da organização e reformulação
curriculares. Mas o desejo de aproximar instituição e mercado manifestado
discursivamente pelo professor produz o sentido de ampliar o universo de
possibilidades de inserção do aluno no mundo produtivo.
Enquanto a Profa. Taís diz que a escola A cumpre com excelência o objetivo
de preparar para o trabalho, o Prof. André questiona o atendimento a esse objetivo
pela escola, avaliando que este parece ser indevidamente, a preparação para a
universidade.
A apreciação de Taís em relação ao currículo do curso técnico parece
prescindir de qualquer questionamento, por considerar que os conteúdos postos na
ementa são necessários e suficientes para a atuação técnica dos futuros alunos. Os
professores divergem no que diz respeito à obrigatoriedade legal das disciplinas
humanísticas na composição do currículo do ensino médio, seja ele propedêutico ou
integrado ou concomitante à formação profissional. Ainda que a Profa. Taís
reconheça a importância da inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia no
curso técnico, por ser uma determinação da lei, ela lamenta que o tempo gasto com
essas disciplinas não seja dedicado à formação técnica.
O Prof. André constrói criticamente sua perspectiva em relação a essa
problemática, defendendo a inserção dessas disciplinas no currículo. Sua posição
avaliativa em relação à inserção curricular das disciplinas de Filosofia e Sociologia
se opõe a de seus pares quando parece acusar a formação técnica oferecida na
escola A de não humanística pela pouca importância dada no âmbito institucional às
disciplinas de História e Geografia.
167
Os sentidos de qualidade para a educação científica produzidos no discurso
da Profa. Taís foram aproximados às finalidades sociais mais amplas e culturais a
partir do valor positivo que atribui aos trabalhos interdisciplinares e artístico-culturais
que vêm acontecendo hoje na escola, à atuação política e solidária dos alunos no
interior da escola e às semanas acadêmicas desenvolvidas. No entanto, tais
atividades não foram relacionadas, por ela, ao ensino de Química pelo qual é
responsável.
O Prof. André aproxima suas perspectivas de qualidade às finalidades mais
amplas do ensino, ainda que projetadas em um futuro que transforme o cenário
atual, propondo que se instituam espaços de discussão sobre as orientações oficiais
e sobre o projeto político pedagógico da escola A. Manifesta o desejo de que a
educação científica seja discutida à luz da História e da Filosofia da Ciência,
disciplina que, segundo ele, deveria integrar o currículo na mesma medida das
disciplinas específicas para a formação técnica.
Ao construir a sua apreciação valorativa em relação à abordagem histórica e
filosófica da Ciência que realiza, o Prof. André acentua também a importância de ele
ter estudado sobre o assunto, produzindo o sentido de que a qualidade estaria,
neste caso, vinculado também à necessidade de formação para realizá-la.
A Profa. Taís ancora a sua concepção de qualidade metodológica de ensino
no tradicionalismo das aulas expositivas, nos desenhos das estruturas moleculares
na lousa e demonstra prescindir dos recursos multimidiáticos que seriam mais
apropriados, em sua opinião, para ensinar História e Geografia.
Ambos os professores atribuem o interesse e o desempenho de seus alunos
à seletividade dos alunos ao ingressarem na escola. Todavia, o Prof. André destaca
que esta motivação está ligada muito mais ao fato de a instituição poder oferecer um
ensino de qualidade e gratuito do que à formação profissional em si.
Acho que todas as matérias estão bem voltadas para a química, falo da química para o mercado de trabalho. (Profa. Taís)
O conhecimento de história e geografia que o aluno sai daqui, por exemplo, é pífio. (Prof. André)
168
7.1.2 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus II da escola A
Os professores Toni e Vítor reconhecem que formar para o trabalho é uma
finalidade legítima no contexto da escola técnica. Porém, ambos refutam,
explicitamente, a formação técnica com bases mecanicistas e defendem uma
formação na qual o técnico precisa refletir e tomar decisões embasadas
intelectualmente.
Entretanto, apesar de Toni e Vítor reconhecerem um papel importante para a
reflexão, o posicionamento deles é diferente. O Prof. Vítor acrescenta uma
apreciação à sua concepção dizendo que esta é capaz de conduzir o estudante ao
sucesso profissional. Interpretamos que o sentido que o professor dá ao sucesso ao
qual se refere, seja o de que uma formação técnica mais intelectual permitiria que o
técnico viesse a conquistar uma ocupação profissional, ao passo que atuando
mecanicamente, não.
O Prof. Toni defende para a formação técnica, o objetivo de formar também
para a cidadania, aproximando esse objetivo do conceito de alfabetização científica.
Ele valoriza a formação crítica, que viabiliza por meio da interação verbal e social
com os seus alunos, seja para discutir o currículo ou a relação entre o conhecimento
científico e a formação profissional. Essa postura crítica que ele chama de “formação
intermediária” indica coerência com o discurso sobre alfabetização científica que ele
propõe, uma vez que este conceito também se relaciona com a formação de
cidadãos capazes de analisar, interpretar, inferir e decidir em um processo
democrático de participação na sociedade.
Ao desenvolver a sua visão da formação profissional, Prof. Vítor compromete-
se com a construção de um mundo sustentável socialmente e valoriza a interação
interdisciplinar com profissionais das áreas de humanas, no sentido de fazê-lo
superar a autoridade do conhecimento científico que caracteriza a sua formação de
engenheiro e ampliar seus horizontes educacionais. Com essa intenção, promove a
formação profissional por meio de estudo de casos associado à busca de soluções
para problemas do mundo real, defendendo a aplicabilidade dos conhecimentos
científicos tratados no interior de cada disciplina, seja ela técnica ou não.
Interpretamos que assim, ele atribui um sentido eficientista ao papel da reflexão e ao
conhecimento científico na formação profissional.
169
A diferença entre as perspectivas de qualidade relacionadas às finalidades da
educação profissional se reflete nas apropriações que o Prof. Vítor e o Prof. Toni
realizam da organização e ênfases curriculares. Se por um lado, o Prof. Toni negocia
espaço na parte inicial do currículo para desenvolver nos alunos valores de
cidadania em que acredita e critica o ensino ainda tradicional da escola A, o nível
altíssimo do conteúdo curricular, o conteudismo e acusa o excesso de conteúdos
pelo apagamento de discussões realmente importantes, o Prof. Vítor questiona a
obrigatoriedade da inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia em todas as
séries e defende a incorporação ao currículo de conteúdos mais específicos e
contextualizados visando formar para as demandas do mercado. Ao trazer o
conceito de contextualização com dado sentido para o enunciado parece relacioná-
lo a princípios eficientistas (LOPES, 2002) em oposição à formação mais ampla.
Um ponto de contato entre as perspectivas dos professores está nas
finalidades da educação científica observadas no uso das TIC. Ambos os
professores partem do pressuposto de que o uso das TIC não garante qualidade ao
ensino. O modo como se apropriam das ferramentas e aplicativos tecnológicos
aponta para a superação estreita de seu uso, na medida em que propõem atividades
mais complexas do que simplesmente explicar uma projeção, como por exemplo,
discutir criticamente exemplos práticos do cotidiano, da futura atuação profissional,
buscando superar o ensino transmissivo.
O Prof. Vítor aprofunda discursivamente a proposta metodológica que
defende para a educação científica, quando a estrutura em etapas, de forma
prescritiva: ensino de conceitos, aplicação no estudo de casos e análise
interpretativa, que pode se dar a partir do que é divulgado na mídia. O Prof. Toni não
prescreve como fazer, mas ressalta a sua intenção ao ensinar ciências como sendo
a de desenvolver no aluno uma atitude questionadora, reflexiva e politizada diante
do currículo, da ciência e da vida em geral.
Um bom ensino é poder você colocar, primeira parte, dar os conceitos físicos e matemáticos, depois aplicação no estudo de caso e depois uma análise que ele faça essa interpretação. (Prof. Vítor)
As disciplinas elas às vezes, se perdem discussões mais importantes que são até pra própria formação do cidadão. (Prof. Toni)
170
7.1.3 As finalidades da educação em ciências para os professores da escola B
Os discursos dos professores Murilo e Cleo refletem e refratam o discurso
político e pedagógico da instituição em que atuam, contrário ao modelo “taylorista”
da educação profissional. Ambos partem do diálogo com os princípios marxistas de
trabalho, captados na superfície de seus textos, ou seja, nas palavras que
escolheram para expressar suas acepções de formação técnica. Assim, apropriam-
se do conceito de trabalho como princípio educativo em oposição ao
instrumentalismo e utilitarismo pragmático do ensino. A Profa. Cleo vincula este
conceito ao objetivo de ensinar Biologia para formar para a vida, estabelecendo
conexões entre os conteúdos e a vida do aluno. O Prof. Murilo evoca o pensamento
freiriano para legitimar o acento de valor dado aos vínculos que devem ser
construídos entre os conteúdos da Biologia e a realidade do aluno. Para tanto, os
dois professores se ancoram, criticamente, na oposição ao ensino maçante baseado
em memorização que visa ao vestibular. O Prof. Murilo qualifica esse objetivo como
um esquema alienante, excludente e meritocrático, portanto, nocivo ao estudante. A
Profa. Cleo destaca o bom desempenho dos alunos no vestibular como
consequência da formação que integra parte geral e específica no currículo, embora
saliente não ser este o objetivo do seu ensino.
Ambos fazem referência à ementa oficial, porém, com diferentes nuances. A
Profa. Cleo diz segui-la, atualizando-a em relação às mudanças ocorridas na
Ciência. Já o Prof. Murilo orienta-se pela ementa, mas ressalta que esta deve ser
constantemente discutida, valorando a importância na relação crítica entre Biologia e
questões sociais presentes ou não na realidade próxima ao aluno. Este professor
aprofunda as finalidades do ensino de Biologia no campo epistemológico, quando ao
criticar a sua neutralidade, evidencia a sua visão de conhecimento científico como
uma construção sócio-histórica e política.
Enquanto o Prof. Murilo fala dos seus caminhos metodológicos para ensinar
com base no confronto de pontos de vista diferentes e da abordagem crítica dos
conteúdos nas interações verbais e sociais que realiza com os alunos e seus pares,
a Profa. Cleo fala das aulas práticas como elemento de valoração na sua concepção
de ensino. Ela julga esse espaço como potencializador da aprendizagem, na medida
em que é capaz de motivar os alunos. Além das aulas práticas, diz se apropriar dos
171
recursos audiovisuais como meio de dar maior visibilidade aos elementos da
Biologia.
As dialogias estabelecidas pelos professores no que diz respeito às
finalidades do currículo são tecidas a partir de posições diferentes na atuação
docente. A Profa. Cleo aciona a dicotomia entre o ensino fundamental e médio em
relação à organização disciplinar do currículo como responsáveis pela má qualidade
na formação científica dos alunos. Ela propõe uma desconstrução de tudo que
aprenderam para ensinar de forma correta a partir do zero. O Prof. Murilo estabelece
outros diálogos confirmando a sua preocupação com questões políticas e sociais
que envolvem o conhecimento científico no contexto da formação técnica e seus
reflexos na sociedade. Critica a formação com ênfase na pesquisa acadêmica nos
moldes universitários e projeta uma ambição de que o sistema público de saúde seja
atendido por técnicos formados pela escola B por julgá-los capazes de agir no
mundo de forma crítica e reflexiva e dar um encaminhamento mais apropriado aos
problemas da realidade relacionados à saúde.
Biologia, ela é privilegiada porque vários dos saberes que a gente aborda em sala de aula pode ter a ver com a realidade do estudante. (Prof. Murilo)
As disciplinas sejam componentes do todo, que é a vida do aluno. (Profa. Cleo)
7.2 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
7.2.1 O conhecimento científico ensinado no campus I da escola A
A Profa. Taís concorda com a ideia de que as atividades de laboratório devem
visar ao conhecimento das técnicas na relação com o trabalho que o aluno
desenvolverá como técnico, ou seja, enquanto aplicação da teoria na prática. Outro
elemento de valoração que atribui ao laboratório é de natureza comportamental,
quando o avalia como espaço apropriado para observar a desenvoltura e autonomia
que os estudantes deverão ter no ambiente de trabalho.
Ainda que reconheça o instrumentalismo das atividades científicas inerentes à
formação técnica, o Prof. André julga que elas devem ser reformuladas. De forma
crítica, sugere que de um modo geral as atividades práticas com base na repetição
172
de roteiros sejam reprojetadas buscando superar a consolidação e aprendizagem de
técnicas. Demonstra ter acesso à literatura da área de ensino de ciências com a qual
diz concordar no que tange a uma visão mais crítica e menos ingênua das atividades
experimentais. Ele ambiciona planejar coletivamente, na instituição, atividades
científicas com ênfase na reflexão, na formulação e testes de hipóteses, no
confronto e diálogo possíveis.
O Prof. André critica a forma de apresentação do conhecimento científico na
formação técnica e a qualifica de “a mais careta possível” e mais adiante de “quase
positivismo lógico”. Nesse sentido, o seu discurso reflete descontentamento com a
forma atual do ensino de ciências no contexto da EPTM e o desejo de mudança que
avalia como possível a partir de um planejamento coletivo. A Profa. Taís acentua o
seu comprometimento com a boa atuação profissional técnica avaliada sob as lentes
do mundo produtivo. Pelo horizonte social comum, é possível presumir que privilegia
a responsabilidade em dar ao aluno condições de lutar por sua subsistência na
conquista imediata por uma ocupação profissional, implicando uma visão de Ciência
na formação técnica com ênfase na especificidade do conhecimento a ser aplicado.
Não é positivismo lógico mesmo por pouco, mas é tão ingênuo, tão careta quanto o positivista lógico. (Prof. André)
É juntar a teoria na prática. (Profa. Taís)
7.2.2 O conhecimento científico ensinado no campus II da escola A
O Prof. Vítor valoriza a realização de experiências, de atividades práticas e de
diferentes testes científicos com a intenção de ampliar o conhecimento científico do
aluno por meio da construção de modelos aplicáveis aos problemas da realidade
(estudo de casos). O Prof. Toni parte da crítica à acepção institucional de ciência
que dá ênfase à ratificação da teoria e ao dogmatismo científico que, segundo ele,
torna o aluno um mero reprodutor de ideias. Defende mudanças que teriam bases
reflexivas, questionadoras e críticas em oposição a uma postura científica passiva do
aluno. O professor não só qualifica os métodos usados na escola A de tradicionais
como, também, os aproxima do sentido estreito de ensinar a ciência, que a concebe
como verdade absoluta.
173
Assim, enquanto o Prof. Vítor idealiza uma Ciência crítica objetivando o
aplicável, o Prof. Toni coloca a necessidade de reflexão coletiva sobre a prática
científica realizada hoje, projetando um futuro diferente, em que a Ciência se
construa com base em perguntas em contraposição à repetição de respostas.
As visões de Ciência dos professores divergem claramente também, quando
o Prof. Vítor tenta desmitificar a ideia de seus alunos de que ciência é para gênio,
construindo o sentido de que é uma questão de persistência, dando mais
importância à dimensão metodológica da ciência do que às suas finalidades sociais.
O Prof. Toni critica a imagem de “verdade absoluta” que os alunos constroem da
ciência, atribuindo-a ao processo de ensino ao qual foram submetidos e muitas
vezes à forma positivista com que a mídia divulga a ciência.
A reflexão fica do lado de fora do laboratório. (Prof. Toni)
Uma visão um pouco mais aplicada com estudo de casos pela parte social, solução de problemas. (Prof. Vítor)
7.2.3 O conhecimento científico ensinado na escola B
Os professores Cleo e Murilo fazem referência ao aspecto da abstração que
marca o conhecimento científico no nível médio de ensino, avaliando como
necessário romper com este status, aproximando-o da realidade do aluno. A Profa.
Cleo enuncia essa perspectiva a partir da crítica ao ensino baseado em
memorização e o Prof. Murilo defende que prevaleçam as relações da ciência com
problemas sociais com enfoque crítico, evidenciando a visão de que o papel mais
importante e quase exclusivo da escola deve ser o de propiciar o desenvolvimento
da capacidade de crítica no aluno para que este possa ser um agente de
transformações sociais.
Ambos se remetem à disciplina de IEP como espaço institucional valorado
positivamente por emergir das bases filosóficas que estruturam a proposta de ensino
da escola B, segundo a qual é possível ensinar Ciência considerando a historicidade
dos conhecimentos e, assim, propiciar uma formação integral aos alunos. A Profa.
Cleo dá uma entonação a sua perspectiva de busca permanente pela atualização do
conhecimento científico e por romper com a submissão às determinações
curriculares oficiais para ensinar conteúdos mais significativos para os seus alunos.
174
A sua intenção é a de formar sujeitos pensantes, superando a perspectiva
adestradora de ensino na qual os alunos, segundo ela, são instruídos no nível
fundamental.
O tom que o Prof. Murilo empresta à perspectiva de ciência na formação do
técnico em saúde se diferencia do da Profa. Cleo na medida em que, primeiramente,
dialoga com o mundo produtivo, afirmando que essa formação crítica implicará
valorização profissional no ambiente de trabalho. Depois porque foi possível captar
em seu discurso, entre tensões e conflitos, os sentidos de Ciência em disputa que
tenta passar para os alunos, desconstruindo a valorização dada à comprovação
científica para legitimá-los e, assim, desacentuando a autoridade do discurso
científico e reconhecendo a apropriação de conhecimentos não científicos como
saberes igualmente importantes. Ele tenta mostrar para os alunos que no “fazer
ciência” entram aspectos para além do conhecimento em si, envolvendo desde
questões de realização pessoal até questões políticas mais amplas.
Biologia é isso aí é mais um componente da vida do aluno, e não uma coisa instrumental para o trabalho. (Profa. Cleo)
Devemos valorizar, mas não devemos dar ao método científico o poder de estar definindo sobre tudo. (Prof. Murilo)
7.3 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO À FORMAÇÃO INTEGRAL
E AO DISCURSO OFICIAL
7.3.1 A formação integral no campus I da escola A
Há divergências no modo como os professores André e Taís veem a
realização da formação integral no âmbito da escola A. O Prof. André chama
atenção para o cumprimento parcial da formação integral por considerar que há uma
hierarquização entre os saberes da formação geral e específica, na qual a segunda
ocupa um lugar superior. Ao apontar essa dificuldade, o Prof. André dá indícios em
seu discurso de que se sente desprivilegiado por atuar na formação geral
expressando os seus sentimentos por meio de metáforas que o colocam nessa
posição inferior.
175
A Profa. Taís tece o sentido de integração de conteúdos afirmando que hoje
não há separação entre a formação geral e específica, sendo todos os conteúdos
trabalhados de forma integrada. Diferentemente da Profa. Taís, o Prof. André afirma
que não há espaço para o diálogo entre as disciplinas da formação geral e
específica, indicando que não há integração curricular de fato.
Foi possível observar os valores sociais em disputa no discurso desses
professores, cada um sendo produzido de seu lugar social e ideológico. A Profa.
Taís está convencida de que a integração é realizada, na medida em que avalia
positivamente o desempenho dos alunos no vestibular ou no estágio supervisionado.
O Prof. André, além de complexificar a realização da formação integral relacionando-
a às relações de poder que envolvem disputas no âmbito do currículo, também
dialoga com a influência dos organismos internacionais na organização curricular.
Mesmo não tendo desenvolvido essa perspectiva, pela sua entonação expressiva,
deixou transparecer discordância em relação a esta orientação, tornando possível
aproximá-la do que defende Ramos (2008) a respeito de uma formação para o
trabalho em seu sentido mais amplo, no qual o trabalho é concebido como princípio
educativo, ou seja, não reduzido à atividade econômica específica, servindo apenas
às solicitações de um mercado capitalista.
Outra divergência observada entre as perspectivas que compõem os
discursos dos professores André e Taís sobre a formação integral está ligada à
obrigatoriedade legal das disciplinas humanísticas na composição do currículo da
formação profissional. Apesar de a Profa. Taís aceitar a inserção das disciplinas de
Filosofia e Sociologia no curso técnico por determinação da lei fica clara a sua
posição quando admite que tal inserção inflacionaria ainda mais o currículo da
escola, impedindo, inclusive, a ampliação dos componentes curriculares que
correspondem à formação profissional.
O Prof. André retoma essa problemática sobre a qual já havia enunciado em
outro momento da entrevista, apresentando-a como uma possibilidade de
implementar a formação integral, talvez por considerar que as reflexões advindas do
campo da Filosofia e da Sociologia possam ampliar as dimensões de análise dos
fenômenos sociais, das relações entre trabalho e educação na perspectiva da
integração. O professor associa a resistência de seus pares profissionais em relação
a essa inserção à falta de conhecimento sobre o que venha a ser formação integral,
176
seja pela ausência de discussões internas, seja por não terem contato com as
legislações.
Retomando o discurso da Profa. Taís sobre formação integral na interface
com a integração curricular, observamos que ela aciona o princípio da
interdisciplinaridade, apontando as dificuldades em realizá-la. Nesse processo, as
dificuldades são relacionadas à concepção tradicional de ensino de diferentes
pontos de vista, tais como a desorganização do programa, o uso do livro didático e a
sequência dos conteúdos disciplinares no fluxo do currículo. Observamos, de um
modo geral, que a professora expressa uma visão estreita de interdisciplinaridade
que mais se aproxima do valor negativo de uma subordinação a outros
conhecimentos no lugar de representar uma nova postura epistemológica para
estudar os fenômenos com base nos pressupostos desse princípio. Também
percebemos que ao indicar que a instituição não considera a interdisciplinaridade
enquanto elemento integrador parece procurar respaldo para a sua própria
concepção e, assim, escapar dessa prática, não entendendo que “a integração de
conhecimentos no currículo depende de uma postura nossa (dos professores) cada
qual de seu lugar” (RAMOS, 2008, p. 70) e não de uma ordem verticalizada seja da
escola ou das diretrizes curriculares nacionais.
Identificamos nos discursos dos professores André e Taís perspectivas de
formação integral que dialogam explicita e implicitamente com os discursos oficiais.
A concepção de formação integral oficial, com o sentido de indissociabilidade entre
formação geral e formação específica, foi apreendida em ambos os discursos
docentes, apesar de apresentarem nuances diferentes. No discurso do professor
André, além do sentido de integração supracitado, ao defender a inclusão das
disciplinas de humanas para a realização da formação integral, apreendemos o
sentido tanto de uma integração curricular mais ampla entre disciplinas gerais e
específicas, como a que se aproxima da formação para o trabalho com o sentido de
princípio educativo, também previsto no Documento Base para a EPTM (2007).
A interdisciplinaridade, isso aí é difícil. Isso é muito bonito, mas, é muito difícil. (Profa. Taís)
Essa formação integral na educação profissional é um simulacro, uma mentirinha, um fingimento. (Prof. André)
177
7.3.2 A formação integral no campus II da escola A
Apesar dos professores Toni e Vítor construírem sentidos para a formação
integral a partir do objetivo de preparar para o mercado do trabalho, esse propósito
acaba constituindo metas diferentes em função das relações dialógicas evidenciadas
em seus discursos.
Partindo de uma análise composicional, observamos que o professor Vítor, ao
construir o seu enunciado, produz um sentido de somatório para este princípio, nos
conduzindo à interpretação de que a integração é a formação específica (disciplinas
técnicas) “mais” as disciplinas de humanas em uma relação de subserviência às
primeiras, ou seja, as disciplinas da formação geral a serviço da formação de um
cidadão para o mundo do trabalho.
O professor Toni estrutura o seu enunciado de modo a deixar ressoar um
sentido de equiparar o objetivo pragmático de formação que visa ao mercado de
trabalho à dimensão reflexiva e política do sujeito. O professor se remete às
atividades de iniciação científica realizadas na escola A, construindo um sentido de
formação integral vinculado ao estímulo à pesquisa e à reflexão sobre os conteúdos
estudados, aproximados por ele à concepção de educação com ênfase na
autonomia do “sujeito reflexivo”.
Os elementos valorativos que representam impedimentos para a realização
da formação integral também são tecidos de diferentes pontos de vista pelos
professores. Para o professor Toni, é preciso superar o excesso de conteúdos que
caracteriza a formação técnica visando à conquista de espaços no currículo para
abordagens mais amplas dos conteúdos a serem ensinados.
Para o Prof. Toni, é preciso que os professores superem a atitude passiva
diante do modo fragmentado e isolado de ensinar as disciplinas escolares a partir de
uma maior interação verbal entre eles, com o intuito de desenvolverem uma atitude
interdisciplinar diante dos conteúdos comuns à química que ensina nas séries
iniciais e a parte específica e, entre estes e os demais conteúdos disciplinares. O
professor avalia essa alternativa de ensino como capaz de dar ao técnico em
formação uma visão integrada dos conhecimentos que irá favorecer as conexões
que ele necessitará fazer no futuro.
178
Para tecer outro sentido para a integração, age responsivamente apontando
alternativas que possibilitariam a integração dos conteúdos da química com
disciplinas da área de humanas. Nessa mobilização, dialoga com o discurso de
interdisciplinaridade circulante no meio educacional e com o discurso sobre
finalidades mais amplas da área de ensino de ciências. Entretanto, acrescenta uma
dimensão afetiva e emocional ao seu discurso: a disposição dos docentes para
alcançar esse ideal. É como se ele dissesse: tem que querer, tem que ter vontade de
realizar, porque a interdisciplinaridade não é algo trivial. Com esse posicionamento,
o Prof. Toni confirma a perspectiva que permeia o todo de sua entrevista de que os
projetos educacionais e as reformas curriculares visando a mudanças no ensino
devem emergir de discussões internas à instituição que mobilize a comunidade
docente.
Na visão do Prof. Vítor, a dificuldade para implementar a formação integral
está relacionada à concepção desarticulada de formação profissional e ensino médio
que, segundo ele, representa uma ruptura prejudicial à formação técnica integral,
particularmente, no caso dos alunos do regime subsequente. O professor fala desse
problema a partir da própria experiência com os alunos oriundos dessa modalidade
de formação técnica. Ele diz que quando o aluno está terminando o curso técnico
apresenta muitas dificuldades para elaborar o relatório final. É possível interpretar
que o Prof. Vítor acentua valorativamente que o aluno tenha uma boa base de
conteúdos oferecida no ensino médio propedêutico para sobre ela desenvolver as
disciplinas técnicas e conseguir alcançar um bom desempenho.
Assim, o Prof. Vítor defende que as disciplinas não específicas devam ser
integradas às específicas para proporcionar base às técnicas, produzindo um
sentido de “eficientismo” para formação integrada, que se refletiria na qualidade do
relatório final. Por outro lado, o Prof. Toni idealiza a integração entre os conteúdos
via o princípio de interdisciplinaridade realizando-a a partir da interação verbal e
social entre docentes, que em sua visão iria descompartimentar as disciplinas e,
assim, possibilitar que o estudante no futuro consiga estabelecer “conexões” entre
os conhecimentos.
Ao evidenciarem o sentido de indissociabilidade entre formação geral e
específica e o sentido de integração curricular dos conteúdos gerais e específicos,
os discursos dos professores Toni e Vítor passam a dialogar com o discurso oficial,
embora com apropriações semânticas diferentes como já analisado nesta seção. O
179
professor Vítor, ao criticar o regime subsequente, se refere explicitamente a uma das
formas de integração previstas no dispositivo legal do decreto 5154/2004. O
professor Toni, ao defender o estímulo à pesquisa, dialoga tanto com a Lei
11.892/2008 como com o Documento Base para a EPTM (2007) quando defendem
como objetivo o incentivo à pesquisa.
Nenhum conhecimento científico é desvinculado de razões políticas e de contextos históricos. (Prof. Toni)
A disciplina de propedêutica dá suporte para ele poder compreender melhor a parte técnica de química. (Prof. Vítor)
7.3.3 A formação integral na escola B
Os professores Murilo e Cleo apropriam-se do conceito de formação integral
estabelecendo diferentes diálogos com este objeto. A Profa. Cleo, pela entonação
expressiva e pelo aspecto composicional, se apropria deste princípio a partir de
relações que estabelece com os antecedentes dialógicos que marcam a sua
formação acadêmica e com os discursos institucionais de formação integral,
valorando-o positivamente.
Para explicar como as possibilidades de formação humana englobam todos
os aspectos da vida, a Profa. Cleo faz referência às diferentes áreas trabalhadas na
escola B, quais sejam as ciências, as linguagens, os desportos e a arte. A
apropriação que faz de formação integral é de ação libertadora e totalizante do ser
humano, por abrir-lhe outras possibilidades de escolha para a sua vida, que,
segundo ela, difere da que é proposta pelo atual governo federal pela submissão às
determinações de um país capitalista.
O Prof. Murilo apropria-se do conceito de formação integral aproximando-o de
seus percursos profissionais na instituição e ao que considera importante na vivência
dos alunos no interior da escola, sem estabelecer explicitamente vínculos teóricos
demarcados. Assim, relaciona a formação integral à convivência dos alunos com a
diversidade de formação e de trajetórias profissionais dos docentes que atuam na
escola por julgar esse contato enriquecedor para os alunos. O Prof. Murilo deixa
180
ressoar em seu discurso uma visão de formação humana que, em nossa
interpretação, seria o sujeito aprender com as diferentes experiências da vida.
No entanto, os discursos dos professores Cleo e Murilo se encontram quando
ambos trazem para seu interior o sentido de formação integral ligado à integração
dos conteúdos disciplinares. O Prof. Murilo rememora a sua experiência como aluno
do curso técnico da escola A para dizer que à época não havia essa integração
como também não há na escola B, porém, marca uma diferença entre elas dizendo
que na escola B há pelo menos tentativas para realizá-la. O Prof. Murilo tonaliza o
seu discurso sobre integração dando um acento de valor à organização curricular
que não hierarquiza os conteúdos, mas, que tenta igualar a sua importância.
A Profa. Cleo faz a análise do sentido de integração vinculado à
implementação da interdisciplinaridade, tanto entre os conhecimentos da formação
geral quanto entre estes e os específicos, mas, admite que não seja uma tarefa fácil
de ser realizada e tem que ser construída diariamente. Entretanto, deixa claro que
não prescinde da busca por alcançar esses objetivos, estando diariamente
mobilizada por essa luta, para imprimir qualidade ao seu ensino. A luta a qual se
refere indica algo que não está posto, mas que ela demonstra um grande desejo de
construir.
Foi possível apreender nas enunciações dos professores Cleo e Murilo,
relações dialógicas explícitas com os sentidos de formação integral propostos no
Documento Base para a EPTM (2007), tanto em relação ao sentido de formação
humana, que segue o conceito filosófico de omnilateralidade, como o sentido da
integração curricular, que busca a implementação da interdisciplinaridade.
Eu entendo formação integral como a formação que não engessa o ser humano que não exclui nenhuma possibilidade (de sua) realização. (Profa. Cleo)
A simples convivência desses diferentes profissionais para o estudante, faz com que ele enriqueça, tá, e muito a sua percepção não só enquanto cidadão. (Prof. Murilo)
181
7.4 PERSPECTIVAS DOS DOCENTES SOBRE A EDUCAÇÃO CIENTÍFICA DE QUALIDADE NO CONTEXTO DA EPTM
Nesta seção, partiremos de um quadro dos temas centrais mobilizados pelos
professores (Quadro 8), apresentado abaixo, ao enunciarem suas perspectivas para
compor uma síntese da perspectiva de qualidade da educação científica de cada
professor.
Quadro 8: Temas centrais mobilizados pelos professores e respectivos posicionamentos
TEMAS CENTRAIS
MOBILIZADOS
PROFA. TAÍS
PROF. VÍTOR
PROF. ANDRÉ
PROF. TONI
PROFA. CLEO
PROF. MURILO
Mercado de trabalho (MC)
Formação restrita às demandas
do MC
Formação analítica
restrita às demandas
do MC
Formação crítica
associada às demandas
do MC
Formação para além
do MC
Formação para além do
MC
Formação para além
do MC
Cidadania
Atividades extraclasse promovidas pela escola
Soluções técnicas ou humanas
para casos específicos
Conhecimen-tos técnicos
e das ciências humanas
Formação propedêutica
(ACT)
Formação para a vida
Formação crítica
Currículo Somatório Somatório Somatório Integração Integração Integração
Interdiscipli-naridade
Impraticável Necessária Não
menciona Necessária Necessária Necessária
Documento oficial / projeto
institucional
Concorda com o projeto
institucional da escola A
Concorda com o projeto
institucional da escola A
Critica o projeto da
escola A e a ausência de discussão
institucional
Critica a ausência de discussão
institucional
Concorda com o projeto institucional da escola B
Concorda com o projeto
institucional da escola B
Vestibular Parte da formação integral
Não menciona
Consequên-cia mas não objetivo da formação
profissional
Não menciona
Consequência mas não
objetivo da formação
profissional
Ferramenta de
exclusão e alienação
do estudante
Conhecimento científico
Aplicação da teoria na
prática
Ciência como
solução para
problemas reais
Critica a autoridade e
a visão positivista da
ciência
Critica a autoridade e
a visão positivista da
ciência
Considera a natureza
dinâmica do conhecimento
científico
Critica a autoridade e a visão positivista da ciência;
Formação integral
Aprovação no
vestibular somada à formação técnica
Formação geral
enquanto base para
a formação técnica
Formação geral do
ensino médio acrescida da
formação profissional
Formação profissional que inclui as
nuances políticas
Cidadania integrada à formação técnica
Cidadania integrada à formação técnica
182
Observando-se o posicionamento da Profa. Taís frente aos temas que
mobilizou, é possível depreender que sua perspectiva de qualidade defende a
formação para o mercado de trabalho como principal finalidade da educação
profissional, justificada pela necessidade de garantir a inserção dos alunos no
mundo produtivo, nos moldes de uma adaptação do sujeito às demandas da
empresa. Entende cidadania como participação dos estudantes em atividades
extraclasse apartadas do seu ensino de química e formação integral como a soma
da preparação para o vestibular à preparação profissional. Sua visão de ciência
aparece no papel do laboratório em proporcionar atividades de aplicação da teoria. A
interdisciplinaridade é considerada quase impraticável em qualquer situação de
ensino.
A perspectiva de qualidade da educação científica defendida pelo prof. André
concebe que a formação técnica tem que atender ao mercado, mas considera a
formação oferecida pela escola A como anacrônica em relação às demandas atuais.
Critica a “academização” e consequente “vestibularização” do ensino técnico
oferecido na escola A. Ao valorizar a inserção da história e filosofia da ciência no seu
ensino de Química, ao defender a inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia
no currículo e ao lamentar que o conhecimento de história e geografia dos alunos
seja muito baixo, depreendemos que o professor considera objetivos mais amplos
para a formação profissional. É crítico também ao classificar de positivismo lógico a
apresentação do conhecimento científico na formação profissional da escola A. A
formação integral seria o conjunto da formação geral do ensino médio com a
formação profissional.
A perspectiva do prof. Toni considera que o objetivo da educação profissional
seja a formação para o mercado de trabalho desde que associada à formação para
a cidadania, que ele relaciona à formação propedêutica oferecida pelo ensino médio
e ao conceito de alfabetização científica. Critica as atividades experimentais que
buscam a comprovação da teoria e a apresentação do conhecimento científico
enquanto verdade absoluta. Conceitua formação integral como formação profissional
que inclui as nuances políticas envolvidas na produção do conhecimento e mobiliza
o conceito de interdisciplinaridade para pensar a integração de conhecimentos,
processo no qual uma disciplina vai dando sentido e complementando a outra.
183
A qualidade do ensino de Química no curso técnico na perspectiva do prof.
Vítor é a de um ensino analítico e crítico, que ensine a planejar, pensar e avaliar,
distanciando-se de uma formação mecanicista. Buscando essa qualidade, se utiliza
de estudos de caso nos quais os estudantes podem relacionar diretamente a teoria e
a prática. Considera que a ciência pode gerar resultados bastante positivos desde
que haja insistência. Ao definir a formação integral, o professor a divide em duas
partes, o que sinaliza somatório e não integração: a formação geral, dada pelas
disciplinas de português e matemática, daria a base para a formação técnica se
desenvolver.
A perspectiva da Profa. Cleo amplia o objetivo da formação profissional para
além da formação para o mercado de trabalho, a qual classifica de utilitarista e
instrumentalista. Critica igualmente a submissão ao vestibular. O objetivo do ensino
de Biologia no contexto da EPTM seria o de formar para a vida. Sua visão de ciência
fica clara quando declara a necessidade de atualização constante de sua disciplina
pela própria natureza dinâmica do conhecimento científico. Dá à formação integral
um sentido totalizante na medida em que esta compreenderia todas as
possibilidades de realização do ser humano. Constrói este sentido em oposição à
visão de educação profissional do atual governo. Considera difícil a implementação
da interdisciplinaridade a partir dos programas como estão instituídos.
Na perspectiva do Prof. Murilo, os objetivos do ensino de Biologia de
qualidade no contexto da formação técnica são o domínio de conceitos científicos
para desempenhar um bom papel no campo profissional e o desenvolvimento do
senso crítico do aluno, rejeitando o técnico como mero reprodutor de procedimentos.
Considera nociva a “vestibularização” do ensino médio e critica o vestibular por ser
um processo meritocrático e excludente. Problematiza o conteúdo científico
relacionando-o à realidade social e busca desconstruir a visão soberana do
conhecimento científico que relaciona ao positivismo e considera prevalente na
instituição. Lança mão do conceito de trabalho como um princípio educativo para
formular sua visão de formação profissional (integral), que define como um dos eixos
do componente interdisciplinar da iniciação à educação politécnica.
184
8 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, buscamos identificar inicialmente, aproximações e
afastamentos entre os sentidos construídos pelos professores para a educação
científica e os discursos acadêmico e oficial. Em seguida, procuramos, por meio da
análise da relação entre o discurso e contexto extraverbal, compreender por que os
professores enunciam tais perspectivas. Finalmente, na última seção, elaboramos as
considerações finais em função dos achados e discussões anteriores.
8.1 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Nesta seção, discutiremos os resultados sintetizados nas seções anteriores,
em duas subseções: na primeira, procuraremos captar aproximações e
afastamentos que podem ser estabelecidos entre as perspectivas de qualidade
enunciadas pelos professores, os discursos oficiais para a EPTM e os discursos
acadêmicos das áreas de educação e de ensino de ciências. Essa discussão será
desenvolvida a partir dos temas centrais mobilizados discursivamente pelos
professores (Quadro 8).
Na segunda subseção, procuraremos, por meio da análise da relação entre o
discurso e contexto extraverbal, compreender por que os professores enunciam tais
perspectivas. Para tal, será feito um esforço no sentido de buscar nos dados
individuais e institucionais a compreensão dos resultados da pesquisa.
8.1.1 Perspectivas de qualidade frente aos discursos oficial e acadêmico
As finalidades do ensino da química e da biologia de um modo geral foram
relacionadas à formação para o mercado do trabalho, legitimando o objetivo das
escolas de formação técnica profissional no contexto sócio-histórico de origem e no
seu desenvolvimento. Entretanto, estabelecido este vínculo, os discursos dos
professores produziram múltiplos sentidos para as distintas finalidades sociais da
educação científica e para a concepção de formação integral, vinculando-os às
185
demandas e oportunidades no mundo produtivo, à organização curricular da escola,
ao desempenho no vestibular e a objetivos mais amplos para o ensino de ciências.
Dentre as referências à formação técnica profissional visando à atuação no
mercado de trabalho, destacamos, primeiramente, as perspectivas em defesa de
uma educação científica que se contrapõe à concepção de ensino instrumentalista e
mecanicista. Nesse caso, a ênfase foi dada à necessidade de uma abordagem
crítica e reflexiva dos conteúdos, como também, ao incentivo à atitude responsiva
ativa do aluno diante do conhecimento científico, apontando para o sentido de
busca por superação dos limites de uma formação reduzida a treinamento e
reprodução acrítica dos conteúdos da química/biologia apropriados pelos estudantes
durante o curso técnico. Este discurso encontra-se presente tanto nos documentos
oficiais orientadores da EPTM quanto nos discursos acadêmicos sobre formação
profissional e sobre alfabetização científica. No âmbito da formação profissional,
Kuenzer (2002) argumenta, frente às mudanças ocorridas no mundo do trabalho, a
favor de que sejam criadas situações significativas de aprendizagem na escola
através das quais os alunos desenvolvam competências cognitivas superiores de
modo a se constituírem como sujeitos críticos e criativos. Segundo a autora, além
do domínio dos conteúdos os alunos deverão desenvolver relações de produção e
divulgação com os conhecimentos, ações que ela considera necessárias, mas não
suficientes à superação da exclusão.
Como parte dessa concepção reflexiva e analítica do conhecimento científico,
foi defendida a relação linear com a capacidade de solucionar problemas científicos
e tecnológicos no contexto das demandas nacionais na contemporaneidade.
Considerando-se a contingência do momento histórico e político da criação dos
institutos federais, é possível considerar que esse sentido possa ter sua origem nas
concepções e diretrizes oficiais para a educação profissional, nas quais são
definidas as bases dos processos de formação vinculadas aos "arranjos produtivos,
sociais e culturais locais, identificados com base no mapeamento das
potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural no âmbito de
atuação do Instituto Federal” (Art. 7º, inciso III e IV, Lei Nº 11.892/2008).
Também foi captado o sentido de uma educação científica de “excelência”,
restrita à aplicação dos conteúdos científicos pelo técnico ao mundo produtivo,
apontando para a compreensão de que, tendo a escola cumprido com esse objetivo,
a qualidade do ensino teria sido alcançada.
186
É possível considerar, também, a relação deste posicionamento com a crença
de que atingido esse objetivo, os alunos conquistariam a sua subsistência
econômica, uma vez que, desempenhando a função de técnico de forma satisfatória,
as chances de empregabilidade aumentem. Notamos que essa concepção deixa de
fora reflexões acerca da complexidade que marca as concepções e relações sociais
de trabalho, na dimensão da formação humana. Nesse sentido, Frigotto (2005), nos
alerta para que a relação entre a educação técnica e o mundo do trabalho não seja
confundida com o imediatismo do mercado de trabalho e nem com o vínculo
imediato com o trabalho produtivo. Sua tese é a de que essa relação deve articular
conhecimento, cultura, tecnologia e trabalho para que a cidadania e a democracia
sejam efetivadas, e assim, possam ser cumpridos tanto o imperativo da justiça
social, como também, o acompanhamento das transformações técnico-científicas do
mundo do trabalho.
Para além da preocupação com a inserção dos estudantes no mercado de
trabalho, um dos valores projetados foi associado à educação técnica orientada para
a prática da cidadania, deixando, em alguns casos, ecoar no discurso dos
professores a voz da academia ao estabelecerem vínculos teóricos com uma
determinada concepção de alfabetização científica e tecnológica (ACT) e com a
noção de sujeito reflexivo. No que diz respeito à ACT, a formação cidadã proposta
pode ser aproximada à concepção de Fourez (2003), que a partir da confrontação da
formação do cidadão com a preparação de especialistas e do reconhecimento de
que configuram orientações educacionais distintas para o ensino de ciências,
defende a complementaridade entre essas duas abordagens.
Essa perspectiva também pode ser alinhada com a de Lemke (2006), para
quem a educação científica não deve se restringir ao ensino de princípios
conceituais abstratos de duvidosa utilidade prática ou de habilidades necessárias às
ocupações técnicas. Segundo o autor, o ensino de ciências deve objetivar a
formação de bons cidadãos em relação estreita com problemas sociais e valores
morais mais humanos.
Já Shamos (1995), tem uma visão diferente de ACT e de sua relação com a
cidadania. O autor faz a crítica à generalização desta relação que a torna, muitas
vezes, vazia de sentido. O autor alega que a promoção da cidadania responsável,
permitindo que o indivíduo a partir de uma base científica aja em questões sociais
com autonomia para fazer julgamentos, nem sempre é possível, sendo necessária a
187
expertise pessoal em tais assuntos. O que o autor quer dizer é que há problemas
sociocientíficos, e não são poucos, que requerem o conhecimento científico de
especialistas, o que não seria viável para todos os indivíduos.
A perspectiva de qualidade construída a partir da necessidade de estabelecer
relações com a realidade do aluno, evocou a ideia de "reformar o pensamento",
tendo citado o filósofo Edgar Morin. Morin (2003) diz que "a reforma do pensamento
é uma reforma não programática, mas paradigmática, concernente a nossa aptidão
para organizar o conhecimento" (p. 20). Em seu discurso, o autor relaciona essa
elaboração ao ensino, enunciando que "a reforma do ensino deve levar à reforma do
pensamento, e a reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino" (p. 21).
Além de se apropriar dessa perspectiva, o professor constrói o discurso sobre a
prática mobilizando outro sentido, que seria o de estimular o aluno a refletir acerca
daquilo que está sendo ensinado no sentido de formar um "sujeito reflexivo". Essa
expressão pode remeter a autores como Donald Schon, que pesquisou a
reflexividade na ação profissional e docente ou ao próprio Morin, citado por ele
anteriormente.
A preocupação com a cidadania foi intensa entre os professores da escola B,
que compartilham a concepção de trabalho em consonância com os princípios
marxistas de formação integral, na base dos objetivos delineados para a escola em
seu projeto político pedagógico. Nas perspectivas enunciadas, os acentos dados à
formação técnica foram vinculados na superfície dos enunciados ao sentido trabalho
enquanto princípio educativo, em oposição à formação técnica com ênfase na
reprodução de procedimentos. Esses princípios são defendidos por pesquisadores
da formação profissional, já referenciados no capítulo 2. Também registramos que
em um dado momento histórico, foram incorporados ao discurso oficial vigente para
a EPTM, como se pode depreender do trecho extraído do documento base para a
EPTM: "buscamos enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de
superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual” e a concepção de trabalho
“como realização humana, inerente ao ser”, segundo a qual a formação profissional
se opõe à simples formação voltada para as solicitações do mercado do trabalho
(BRASIL, 2007, p. 46).
Um outro sentido de cidadania pôde ser apreendido na ideia de que o ensino
de biologia deve servir para a vida dos alunos, apontando para uma ambição que vai
além da relação com o contexto imediato. Este sentido também está presente nas
188
discussões sobre as finalidades da educação científica e sobre alfabetização
científica, nas vozes de Lemke (2005, 2006), Chassot (2000) e Fourez (1997, 2003),
que defendem finalidades sociais mais amplas para a educação científica, visando
melhorar a vida das pessoas, individual e coletivamente.
A escolha dos alunos pelo ensino superior foi problematizada e confrontada
com a carência de bons técnicos para o mercado de trabalho, em particular, o
sistema público de saúde. Lamentou-se por esse sistema não ser abastecido por
técnicos de qualidade no sentido de atenuar os problemas sociais e políticos que
assolam a saúde no Brasil. Com essa dialogia, constrói-se para a educação
científica um sentido vinculado a expectativas sociopolíticas mais amplas, ainda que
se tenha tensionado a liberdade de escolha dos alunos ao se apropriarem dos
conhecimentos técnico-científicos durante a formação profissional.
Paralelamente, a preparação para o vestibular, considerado um processo
meritocrático, excludente e ferramenta de alienação do estudante, foi criticada em
diferentes perspectivas docentes. Embora tenham assim se posicionado, foi possível
perceber na análise das enunciações que não houve aqui o sentido de tirar dos
técnicos a possibilidade de ingressar em uma universidade, mas o sentido de que
este não deveria ser o objetivo fim da educação profissional.
Essas perspectivas se alinham com o pensamento de Ramos (2005), por
exemplo, quando nos lembra que uma educação profissional que propicie ao sujeito
o acesso aos conhecimentos e à cultura construída pela humanidade possibilita ao
jovem “a realização de escolhas e a construção de caminhos para a produção da
vida” (p. 62), de onde se depreende que tanto a inserção profissional quanto a
formação universitária são caminhos considerados legítimos.
Obviamente que as discussões sobre as finalidades da EC tocaram as
questões ligadas ao currículo. Essa interseção contempla sentidos que vão desde a
concepção restrita às solicitações do mercado de trabalho até objetivos mais amplos
da educação científica. No primeiro caso, o currículo foi apropriado como
condicionante para a inserção social no mundo produtivo, na medida em que deve
ser constituído prioritária e majoritariamente, por conteúdos específicos à formação
técnica. Essa visão produz sentidos de negação de qualquer possibilidade de
flexibilização curricular, como, por exemplo, a inserção de disciplinas da área de
humanas e das disciplinas da formação geral. Reflete, também, uma concepção de
“desintegração” entre os conhecimentos específicos e gerais.
189
Em relação aos conhecimentos científicos, esta perspectiva dialoga com a
concepção que os hierarquizam e os classificam, colocando o conhecimento técnico
como inquestionavelmente superior aos demais. Essa hierarquia tem sido
questionada por autores da área de ensino de ciências como Chassot (2003), por
exemplo, que considera que as ciências naturais e a matemática são ciências
humanas uma vez que são construções humanas e que portanto devem ser
igualmente consideradas.
Em relação à inserção de outras disciplinas no currículo, a análise de
Goodson (1997 apud LOPES, 2008) nos ajuda a compreender que a resistência pela
inserção das disciplinas de filosofia e sociologia no currículo da educação
profissional técnica envolve questões que não são somente as relacionadas com a
vontade de ensinar esse ou aquele conteúdo, mas aquelas relacionadas às
diferentes forças que estão em sua base, como por exemplo, os interesses dos
coordenadores, perspectivas defendidas por professores, gestores, além de
questões sociais e políticas mais amplas.
Ramos (2008) vincula a classificação entre formação geral e formação
específica, que encontramos nos discursos dos professores, ao reflexo do modelo
de formação recebido por professores, que sob a hegemonia do positivismo e do
mecanicismo das ciências, as fragmenta e hierarquiza.
Por outro lado, também encontramos a crítica ao excesso e aprofundamento
dos conteúdos científicos que, assim abordados, secundarizam ou negligenciam
discussões acerca de sua relação com a sociedade e com a política, no contexto da
formação técnica de nível médio. Essa crítica, apesar de ir ao encontro das atuais
discussões de autores sobre um ensino de ciências concebido para além de
objetivos economicistas (LEMKE, 2006) setorizou a realização da educação cidadã
nas séries iniciais da educação profissional, ao invés de propor integrá-la ao longo
do processo de formação técnica. Essa concepção curricular apontou para o
entendimento do senso comum de que a formação para a cidadania, neste caso
associada à ACT, não combina, não tem espaço, não pode ou não deve permear o
ensino do conhecimento científico mais especializado, e sim, o ensino médio
propedêutico.
A crítica à abordagem dos conteúdos de química aprofundada em demasia
também foi realizada com o viés que retrata finalidades para o ensino vinculadas a
interesses particulares de grupos de pesquisa da escola e equiparada ao nível
190
superior de ensino. Na área de ensino de ciências, Lemke (2006) critica a ênfase
excessiva em princípios puramente abstratos dos conteúdos científicos que,
segundo o autor, deveriam ser aprofundados pelos estudantes em estudos mais
avançados.
O "conteudismo" que engessa o currículo apontado nos discursos dos
professores também é criticado por Kuenzer (2002), para quem a seleção de
conteúdos e organização curricular na concepção "enciclopedista" com a finalidade
de reproduzir conteúdos legitimados pela cultura dominante deveriam considerar as
características socioculturais, os interesses e as necessidades dos alunos, da
comunidade e da região na qual a escola está inserida. A autora também defende
que seja promovida a capacidade de usar os conhecimentos científicos, tecnológicos
e sócio-históricos “para compreender e intervir na vida social e produtiva de maneira
crítica, produtiva, autônoma e ética” (p. 153).
Nas perspectivas dos entrevistados a aplicabilidade do conhecimento
científico permeou os objetivos da educação científica sob diferentes pontos de
vista. Um dos acentos de valor foi dado ao desenvolvimento da capacidade do aluno
de solucionar problemas técnicos e sociais do mundo real. Neste caso, foi
apreendido o sentido de um currículo mais “direcionado”, voltado para este objetivo.
Um segundo acento dado à relação entre o que é ensinado e a realidade do
aluno trouxe para o discurso uma dimensão política de ensino, aproximada
discursivamente ao pensamento de Paulo Freire, que se colocou contra o ensino de
conteúdos descontextualizados ("educação bancária") e defendeu perspectivas
críticas e reflexivas de ensino.
O cumprimento do programa na íntegra foi outro valor negociado,
discursivamente, frente ao investimento na dimensão crítica do processo de
formação técnica. O sentido apreendido aqui foi o de que, em relação ao papel da
escola na formação técnica, a perspectiva crítica deve prevalecer sobre o conteúdo,
uma vez que este pode ser aprendido na própria função de trabalho, enquanto o
posicionamento crítico-reflexivo, não. Esse posicionamento é consistente com a
perspectiva da formação integral defendida pelos pesquisadores da formação
profissional referenciados no capítulo três, fundamento do projeto político
pedagógico da escola B.
Em relação ao conhecimento científico, muitas vezes foi assumido um
posicionamento crítico e idealizadas novas concepções de ensino que superem a
191
visão ingênua ainda prevalente nas duas instituições, que tende ao positivismo
lógico. A visão de ciência foi confrontada com questões políticas e históricas e com
todos os debates que determinada produção de conhecimento envolve. Por outro
lado, também foi identificada uma visão acrítica e desconectada de questões mais
amplas do mundo social, que poderia ser aproximada à visão restrita da ciência
enquanto “insumo produtivo” para o setor empresarial.
Sem abandono da ideia de que há um certo instrumentalismo inerente à
função técnica nas atividades experimentais, pretende-se que sejam incluídas
atividades a partir do levantamento de hipóteses e confronto de ideias. Esse sentido
aponta para a superação da visão de um fazer que engessa a ciência, colocando-a
como algo acabado e inquestionável, afastando a compreensão de que ela está
constantemente se renovando.
A crítica ao positivismo tem sido feita tanto na literatura em educação quanto
na literatura em educação em ciências e especificamente também por autores que
discutem a formação profissional. Kuenzer (2002), por exemplo, chama a atenção
para a necessidade de superação da visão dogmática de ciência ou da ciência como
sistema formal de natureza cumulativa. Do ponto de vista do ensino, Ramos (2008)
também defende a abordagem histórica dos fenômenos e do conhecimento como
capaz de dar vida aos conteúdos, uma vez que, conhecendo o contexto socio-
histórico dos cientistas e grupos sociais do passado que desenvolveram
determinadas teorias, poderíamos nos compreender, também, como sujeitos com
capacidade intelectual para dirigir os rumos de nossas vidas e os que a sociedade
pode vir a tomar.
Independentemente do contexto institucional, as perspectivas de formação
integral foram estruturadas no discurso docente a partir do sentido da
indissociabilidade entre formação geral e específica tal como defende Ramos (2008).
A partir daí identificamos os sentidos que mobilizaram tanto a aprovação no
vestibular somada à formação técnica, como também a formação geral somada à
formação específica, integrando a perspectiva crítica e cidadã. Embora não tenha
havido um aprofundamento acerca da visão de integração como totalidade
defendida no documento oficial e no discurso acadêmico, ainda assim identificamos
como aproximações entre eles o acento de valor dado à crítica, ao questionamento,
à reflexão e à base de conhecimentos a qual os alunos devem ter direito
192
(FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005), seja para atuar no mundo do trabalho
como cidadão consciente seja para tomar decisões em relação à própria vida.
O sentido da formação integral estruturado a partir da integração entre
conhecimentos gerais e específicos indica mais afastamentos do que aproximações
no que diz respeito à perspectiva teórica de totalidade curricular. Encontramos o
sentido de interdisciplinaridade no qual tornam as disciplinas da formação geral
apenas como instrumentais às disciplinas da formação profissional. Se por um lado a
interdisciplinaridade foi considerada necessária e relevante, por outro foi
problematizada em relação à dificuldade de ser implementada chegando a ser vista
como impraticável pela forma como o currículo está estruturado.
Apesar de o sentido de integração que expressa a concepção de formação
humana omnilateral com base na integração das dimensões fundamentais da vida
(trabalho, ciência e cultura) não ter sido evidenciado na superfície dos discursos dos
professores da escola A, é possível considerar a aproximação parcial de uma das
perspectivas a essa concepção quando apontada a preocupação com uma formação
técnica na perspectiva crítica, que proporciona “a compreensão das dinâmicas sócio-
produtivas das sociedades modernas e [...] o exercício autônomo e crítico de
profissões, sem se esgotar a elas" (RAMOS, 2008, p. 64).
Uma dada perspectiva apontou fragilidades quanto à realização da forma
subsequente da educação profissional. O sentido apreendido foi o de que, apesar
dos alunos terem cursado o ensino médio regular, a escola de origem e o tempo de
formação, interferem no seu desempenho escolar. Ramos (2008) nos explica que
essa forma de educação profissional deve se constituir como formação continuada e
não como compensatória do ensino superior, ou seja, uma espécie de prêmio de
consolação para aqueles que não tiveram oportunidade. O que compreendemos é
que a educação subsequente não pode ser concebida como um "reparo" para quem
não teve a oportunidade de cursar uma faculdade, mas, deve ser praticada com o
sentido de que todos têm direito ao conhecimento. Esse é o desafio que se impõe
para a educação profissional na forma continuada.
193
8.1.2 Interpretando as perspectivas de qualidade: relações do texto com o contexto
Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum
o fato de atuarem na educação científica no contexto da EPTM. No entanto, os
professores pertencem a contextos individuais e institucionais diferentes, atuando
em campi diferentes da mesma escola ou em escolas diferentes. Se por um lado, o
referencial bakhtiniano não estabelece uma relação de identidade entre os autores-
criadores e autores-pessoa, ele afirma a influência do autor-pessoa no ato da
criação do enunciado. A partir desse entendimento, a intenção nessa subseção foi
buscar estas influências.
Neste sentido, a primeira análise que parece pertinente é avaliar
afastamentos e aproximações entre as perspectivas de qualidade da educação
científica encontradas em cada contexto institucional. Esta seção buscará especular
sobre alguns desses fatores, como por exemplo, a formação do professor, o tempo
de atuação na escola, a parte do currículo em que atua e o posicionamento do
docente em relação ao projeto institucional.
8.1.2.1 Afastamentos e aproximações discursivos na escola A
Partindo das análises realizadas, foi possível perceber que o fato de os
professores da escola A atuarem em partes diferentes no currículo do curso técnico
em química (formação geral e específica), pode ter implicado diferença de valores
em disputa, evidenciada em suas perspectivas de qualidade para a educação
científica. Observamos no confronto de suas enunciações, disputa por ênfase
curricular, valorização social e avaliações apreciativas diferentes das relações entre
formação técnica e mercado de trabalho e da formação técnica em si, indicando
diferentes sentidos para a educação científica.
Percebemos que as críticas direcionadas ao currículo, à instituição e aos
colegas vieram dos professores da formação geral enquanto que as respostas
ganharam um tom mais descritivo e menos crítico nos discursos oriundos da
formação específica. Essa diferença pode estar relacionada às diferenças
hierárquicas que moldam essas duas etapas do currículo na escola A. Sendo a parte
194
específica mais valorizada, os professores se sentem mais satisfeitos com seu
trabalho, enquanto o oposto pode ocorrer com os professores da formação geral.
As perspectivas que integram finalidades educacionais mais amplas
(perspectiva crítica, reflexiva e cidadania) para a formação técnica receberam uma
maior ênfase nos discursos dos professores que atuam na formação geral, tanto no
campus I como no campus II. Esses professores, além de atuarem na mesma parte
do currículo, são contemporâneos e, recentemente, cursaram doutorado na área de
educação. Consideramos que a inserção nesse campo de especialização amplia as
reflexões em relação aos valores e às intenções que integram os sentidos
produzidos por eles para a educação científica no contexto da formação técnica
profissional. Embora os professores não tenham feito referência explícita ao curso
realizado, os vínculos teóricos estabelecidos em suas enunciações constituíram
indícios que nos levaram a considerar essa hipótese. Obviamente que essa não é
uma relação linear que possa explicar todas as convergências ou divergências entre
as perspectivas enunciadas, ela apenas complementa a nossa apreciação avaliativa
ao considerarmos o lugar social de onde os professores falam.
A apropriação discursiva do conceito de formação integral associada à
organização curricular com o sentido de somar formação geral e profissional marcou
o discurso sobre integração na escola A. As principais divergências encontradas
dizem respeito às finalidades de uma e de outra. Encontramos a perspectiva de
formação integral enquanto somatório da finalidade de preparar para o vestibular
(atribuída à formação geral) ao da formação para o trabalho de acordo com as
demandas do mercado (atribuída à formação específica). Esta perspectiva que
produz o sentido de currículo instrumental (vestibular e mercado), emergiu do
contexto de atuação na formação específica associado ao maior tempo de atuação
no campus mais antigo, nos remetendo, assim, a um vínculo ideológico com a
tradição de qualidade presente nos discursos que circulam no contexto da escola A.
Em outra perspectiva de formação integral, enunciada por professor do
campus I, captamos o sentido que articula formação geral e formação profissional,
mas não incorpora no discurso, outros valores a essa concepção. Esse fato pode
estar relacionado ao acento à formação integral comum no campus I, no qual
prevalece o aspecto estruturante do currículo dos cursos técnicos sobre reflexões de
outra natureza.
195
No campus II, as perspectivas também são diferentes entre si, embora
originadas de contextos extraverbais semelhantes (atuação em campus recém
criados, equivalência no tempo de atuação, formação no nível de pós-graduação).
Se por um lado nessa realidade tenham sido acrescidas nuances políticas e críticas
ao sentido de formação integral, também foi destacado o sentido de integração de
conteúdos gerais e específicos segundo a concepção de que os primeiros
instrumentalizam os segundos visando à solução de problemas da realidade social.
Nesse caso, é possível considerar que o discurso tenha refletido as marcas da
natureza da formação acadêmica e da especificidade dos percursos profissionais.
O conceito de interdisciplinaridade foi mobilizado para compor a perspectiva
de formação integral no plano do currículo. Embora tenha sido reconhecida como
relevante e necessária, também foi levantada a dificuldade de implementá-la. Nesse
caso, os contextos individuais, temporais e espaciais deixaram marcas nas
enunciações no que diz respeito às construções argumentativas em relação ao
direcionamento da responsabilidade por não conseguir realizar. O currículo
estruturado e o vestibular como obstáculos para a implementação da
interdisciplinaridade constituíram uma das perspectivas na voz oriunda da formação
específica. Em outra perspectiva, foi defendida a necessidade e a importância de
romper com o isolamento das disciplinas. Nesse caso, a dificuldade apontada foi
atribuída ao processo positivista de formação dos professores e à ausência de
discussão e ações propositivas mais amplas no âmbito institucional que
possibilitassem reflexões a respeito.
Outra perspectiva de educação científica oriunda da formação específica
reduziu o sentido de interdisciplinaridade ao caráter instrumental dos conhecimentos
gerais como base para os específicos, associada ao sucesso profissional e à
solução de problemas do mundo real. Essa visão traz as marcas da formação
acadêmica em engenharia, legitimadas nos discursos da atuação profissional. No
entanto, ela se afasta da perspectiva de interdisciplinaridade enunciada por Ramos
(2005), na medida em que não considera na base da sua formulação a capacidade
dos conhecimentos específicos evidenciarem "o caráter produtivo concreto" dos
conhecimentos gerais. O que a autora defende como interdisciplinaridade vai além
de instrumentalizar as disciplinas específicas, visão esta que caracterizou a
organização curricular dos cursos implementados sob a Lei 5692/71 e as DCN
atuais para a EPTM. Sua perspectiva de interdisciplinaridade parte de uma postura
196
epistemológica, recorrendo aos princípios e pressupostos da interdisciplinaridade
que não se coadunam com “somatório, superposição ou subordinação de
conhecimentos uns aos outros, e sim da integração na perspectiva da totalidade”
(p.108).
Houve também perspectivas nas quais os professores construíram sentidos
de educação científica estabelecendo relações entre o ensino e as questões
históricas, políticas e sociais mais amplas presentes no campo científico,
problematizando a soberania e a visão de neutralidade da ciência. Estas foram
apreendidas com diferentes nuances e focalizações nos discursos dos professores
pós-graduados, não necessariamente em educação, advindas de escolas que
guardam diferenças entre o tempo de criação, projeto político pedagógico e inserção
curricular. Nesse conjunto, o elemento comum que os aproxima, além da formação
em nível de pós-graduação, foi o tempo de atuação na formação profissional que
gira, no máximo, em torno de dez anos.
A perspectiva do professor que atua na formação geral, doutor em educação,
reclama a ausência de um debate coletivo necessário sobre as legislações para a
EPTM e sobre o projeto político pedagógico da escola A para a definição de políticas
institucionais. Na voz desse professor, embora não tenha havido aprofundamento,
identificamos, também, referência à influência dos organismos internacionais na
organização curricular dos cursos técnicos e o seu reflexo sobre as finalidades
educacionais da escola.
8.1.2.2 Afastamentos e aproximações discursivos na escola B
Os professores da escola B são contemporâneos e atuam há poucos anos na
escola B como professores de Biologia, um na formação geral e outro na formação
geral e específica além de coordenar o projeto de uma disciplina integradora que
pretende efetivar a realização da formação integral na escola.
O fato de atuarem em diferentes partes do currículo do curso técnico em
análises clínicas não produziu afastamentos importantes entre suas perspectivas. A
atuação de ambos no ensino médio regular parece ter sido mais determinante em
imprimir mais aproximações do que afastamentos entre suas perspectivas de
educação científica na formação técnica.
197
Ao enunciarem sobre o objetivo de formar para o trabalho, ambos (os
professores) o remeteram às finalidades educacionais mais amplas, colocando a
preocupação com o aluno no centro de suas intenções educativas. Com diferentes
nuances os professores explicitaram, discursivamente, as suas perspectivas de
formação humana. No contexto da formação geral seria ensinar biologia para a vida
do aluno e no da formação específica seria proporcionar uma formação técnica não
excludente e não alienante. A perspectiva teórica marxista apreendida na superfície
de suas enunciações se relaciona tanto com seus percursos acadêmicos como com
o projeto político pedagógico da escola B.
O forte vínculo discursivo com a perspectiva teórica institucional de formação
integral e politécnica reflete e refrata a realidade institucional, produzindo sentidos
para a educação científica que rechaçam o vestibular como objetivo fim da formação
técnica de nível médio e enfatizam no território da enunciação, perspectivas políticas
e sociais mais amplas. Nesse sentido, a formação cidadã não é idealizada por
justaposição, ela é constituinte da formação técnica na perspectiva da formação
integral.
Ao falar do conhecimento científico, o professor que atua na formação geral e
na específica questiona a soberania e a visão positivista e neutra de ciência,
confrontando-a com problemas políticos e interesses individuais que passam ao
largo do bem coletivo. Neste caso, ao contrário do que supúnhamos no contexto da
escola A, a relação entre os sentidos de qualidade apreendidos na enunciação
colocam em xeque a pressuposição de que a pós-graduação em educação teria
influenciado os elementos ideológicos defendidos em seu discurso, pois, essa voz é
detentora de um percurso acadêmico e profissional em bases tecno-científicas
(técnico em química e mestre em biologia parasitária). Tal influência parece-nos
estar relacionada muito mais ao projeto político pedagógico da escola B do que à
trajetória acadêmica deste professor.
8.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo pretendeu contribuir para a área de pesquisa em educação em
ciências, apreendendo sentidos de qualidade da educação científica na voz de
docentes da educação profissional técnica de nível médio. A perspectiva teórica
198
utilizada permitiu considerar as perspectivas de qualidade do ensino como produtos
históricos e culturais e compreender como, em diferentes contextos educacionais,
professores da educação profissional constroem discursos e visões de ciência,
currículo, objetivos educacionais, que conformam o processo educativo e têm
impacto na qualidade da educação em ciências.
De um modo geral, as tensões e perspectivas levantadas no discurso dos
docentes das Ciências Naturais por Rezende et al. (2011) em relação à educação
profissional foram contempladas também no discurso dos sujeitos do presente
estudo. Se olharmos para nossos resultados como um todo, foi possível identificar,
igualmente, dois polos: de um lado, a educação científica como preparação da força
de trabalho e de outro, como formação integral, para todas as dimensões da vida.
Mas consideramos que foi possível avançar, justamente quando conseguimos captar
nuances dessas perspectivas. Por meio do escrutínio que realizamos, chegamos a
visões de qualidade particulares, que nos mostraram a importância dos docentes
enquanto protagonistas do processo educativo, capazes de conformar a qualidade.
Por meio dessa consideração, que defendemos desde o projeto maior que originou o
presente trabalho, ficou claro que a qualidade da educação não pode ser vista
apenas pelos índices oficiais como ENEM e IDEB.
Nossos resultados deixam patente o quanto esta visão reduz a complexidade
da qualidade, quando os confrontamos com o ranking do ENEM 201116 no estado do
Rio de Janeiro, segundo o qual as escolas A e B ocupam praticamente a mesma
posição17! O sentido dessa classificação para a sociedade em geral é o de que
essas escolas supostamente apresentam a mesma qualidade. A divulgação recente
deste dado nos proporcionou, assim, um contraponto ao que defendemos nesta
tese. Afinal, conseguimos mostrar que a qualidade está longe de ter o mesmo
sentido para os docentes dessas duas escolas.
Assim, a partir de uma análise “bakhtiniana”, foi possível chegar a uma
diversidade de perspectivas de qualidade, dentro de um contexto educacional tão
particular como o da educação profissional. Essa diversidade é maior na escola A,
mesmo quando consideramos um mesmo campus. Na escola B, encontramos mais
aproximações do que afastamentos entre as perspectivas de qualidade enunciadas
pelos sujeitos entrevistados. Essa síntese é capaz de mostrar que a atuação do
16
Disponível em: <www.inep.gov.br> 17
28º e 27º lugares, respectivamente (O GLOBO, 23 de novembro de 2012).
199
professor na educação profissional não produziu necessariamente uma visão
hegemônica de qualidade para a educação científica, assim como o contexto
institucional não produziu uma única visão de qualidade em cada instituição.
É possível depreender, portanto, que outros fatores estão em jogo. Há de se
considerar, inicialmente, o endereçamento dos enunciados, principalmente no
contexto da escola A, na qual a pesquisadora atua como gestora.
Surpreendentemente, a o duplo papel do destinatário não provocou reações
idênticas nos docentes. O posicionamento com tendência acrítica que dá um tom de
concordância com o ensino de ciências conforme instituído na escola parece ter
colocado em jogo uma determinada imagem do destinatário suposto, como a de
alguém que poderia julgar ou avaliar a prática do entrevistado. Em contrapartida, o
posicionamento discursivo crítico, que apontou fragilidades do ensino realizado na
escola, provavelmente dialogou com uma outra imagem da audiência, a de um
mensageiro de suas reivindicações. No âmbito do presente estudo, não há como
obter maior compreensão dessa diferença.
De qualquer forma, nos cabe interpretar a diversidade de perspectivas
encontradas para além da influência subliminar do destinatário suposto. Um dos
caminhos é relacioná-la ao processo de recontextualização (no sentido de
apropriação, como colocado no quadro teórico) do projeto político da escola pelo
corpo docente.
Embora não tenha sido nosso objeto de estudo, a pesquisa permitiu
vislumbrar diferenças no processo de apropriação das orientações político-
pedagógicas pelas instituições educacionais investigadas, sinalizadas pela maior
dispersão entre as perspectivas de qualidade encontradas na escola A em relação à
escola B, ainda quando levamos em conta um mesmo campus.
Os professores da escola A reconheceram que não conheciam o projeto, não
utilizavam e não havia discussões pedagógicas coletivas. As perspectivas de
qualidade encontradas são, assim, fruto da assimilação de um possível senso
comum sobre o conceito de formação profissional que circula nas instituições
educacionais, ancorado em legislações passadas, na formação acadêmica do
professor ou até na mídia. Além disso, alguns criticaram o direcionamento
pedagógico da escola e vários outros aspectos curriculares e ideológicos.
A relação discursiva dos professores da escola B com o projeto político
pedagógico é completamente diferente. Ambos mencionaram aspectos do projeto,
200
sempre se manifestando positivamente. Um deles teceu elogios e se disse fã da
escola.
Essa diferença nos contextos institucionais das escolas pode estar na origem
da maior diversidade de perspectivas entre os professores da escola A. Enquanto a
escola B promove a discussão do currículo, do projeto pedagógico e da legislação,
permitindo o embate de perspectivas, mas também a construção coletiva e a adesão
dos professores a um projeto comum, a escola A não promove atividades que levem
ao compromisso com um projeto coletivo. Consideramos um caminho importante
tomar esse resultado como uma hipótese a ser perseguida em estudos futuros.
Diante dos nossos achados, também é possível considerar que a formação
acadêmica tenha influenciado ideologicamente a visão de Ciência enunciada pelos
professores entrevistados. Na escola A, os professores com formação pós-graduada
em Educação apresentaram uma visão crítica à ciência positivista, enquanto aqueles
que não tinham tal formação, não se posicionaram criticamente. Entretanto, essa
relação não se confirma na escola B, já que o professor crítico não tem este nível de
formação. Interpretamos que o papel que a formação acadêmica desse professor
tem em moldar sua perspectiva de qualidade foi sobrepujado pelo compromisso do
professor com o projeto pedagógico da escola. A discussão coletiva, o
compartilhamento de ideais e de valores (neste caso, críticos) moldaram as
perspectivas de qualidade da educação científica (neste caso específico, a visão de
ciência) igualmente ou mais fortemente do que sua formação acadêmica.
Retomando a primeira questão de pesquisa (Que perspectivas de qualidade
são construídas discursivamente pelos professores da EPTM em relação às
finalidades do ensino de ciências?), foi possível perceber a complexidade dialógica
que pautou a construção dos sentidos apreendidos, envolvendo confrontos de
atribuições valorativas com as demandas efetivas do contexto de trabalho e com as
expectativas de um ensino de qualidade alinhadas com outros discursos. Foi
possível identificar dialogias tecidas a partir de pontos de contato com os discursos
circulantes na escola, com os discursos oficiais, institucionais e acadêmicos.
Na pesquisa sobre a qualidade do ensino de ciências (REZENDE et al., 2011)
realizada com docentes de nível médio, passo que deu origem ao presente estudo,
foi percebida a recorrência do sentido da falta de qualidade atribuído no discurso dos
professores à educação científica de nível médio. Diferentemente, no presente
estudo, os professores construíram sentidos para a qualidade a partir dos valores
201
que defendiam para o seu ensino, produzindo sentidos para as suas práticas, em
meio a embates e buscas pela qualidade que idealizavam. Talvez aí tenha se
identificado uma pista que afasta a qualidade desses dois contextos da educação
pública, na voz docente: a educação de nível médio regular e a educação
profissional. Uma hipótese para justificar esta diferença pode estar relacionada ao
maior investimento público na educação profissional nos últimos anos.
Observamos, também, diferentes pontos de partida que os professores
elegeram para tecer a sua perspectiva de qualidade. Alguns tomaram por referência
as ações da própria instituição para legitimar ou não as finalidades do ensino,
respondendo ativamente com críticas, comparações, acordos e desacordos.
Notamos pouca referência às políticas públicas para a EPTM na atual conjuntura
social, seja para indicar divergências entre os sentidos de educação profissional
oficial, docente e institucional ou indicar o conhecimento sobre sua influência na
definição de finalidades educacionais. Outros rememoraram suas trajetórias
acadêmicas e profissionais para dar sentido ao discurso sobre a sua prática e a
partir daí projetarem suas ambições para a formação técnica.
Foi possível apreender que o direito ao conhecimento e à reflexão sobre o
conhecimento, defendido para a formação técnica de nível médio por discursos dos
pesquisadores da educação profissional, foi apontado tanto na perspectiva que
defendeu a inserção no mercado de trabalho como finalidade educacional primeira
quanto na perspectiva que incluiu, além dessa, finalidades sociais mais amplas. Isto
pode ter sido derivado, nos contextos investigados, de dois pontos de vista: daquele
que é fruto de mudanças na concepção de educação, seja pela escolarização
ampliada, seja por questões ideológicas e culturais ou daquele ponto de vista que já
assimilou o fato de que a sociedade capitalista contemporânea aguarda por técnicos
que saibam pensar diante das novas configurações científicas e tecnológicas do
mundo produtivo.
No entanto, Ramos (2008) nos alerta para que não sejamos iludidos por um
discurso "ideológico e dispersivo intrínseco à dinâmica do capitalismo no qual os
sujeitos serão empregáveis dependendo de sua carteira de competências e de suas
qualificações", uma vez que há contraposições em relação à lógica que lineariza a
relação entre formação e emprego (p. 71).
202
Em relação à segunda questão de pesquisa (Que perspectivas de qualidade
são construídas discursivamente por docentes da EPTM em relação ao
conhecimento científico?) conseguimos captar uma tendência no sentido da defesa
de um ensino de ciências crítico-reflexivo que instigue o questionamento diante do
conhecimento científico. O ensino de ciências também foi problematizado mais
radicalmente pelos professores a partir de questões políticas, sociais e históricas
que tocam a soberania e a não neutralidade da ciência engendradas pelas relações
de poder presentes nos contextos de sua produção.
Divergências entre as perspectivas de qualidade do ensino de ciências foram
observadas tanto em campos disciplinares diferentes como dentro de uma mesma
comunidade disciplinar. Ainda que este estudo não tenha tomado às especificidades
e singularidades dos campos epistêmicos, neste caso, química e biologia, como
ponto de partida para as análises, entendemos que não conseguimos captar sinais
de que esses aspectos tenham interferido diretamente em nossos resultados,
embora seja possível admitir que estão imbricados nos sentidos apreendidos.
O exame das aproximações e afastamentos entre as perspectivas de
qualidade dos professores e o conceito de formação integral e o discurso oficial,
nossa terceira questão de pesquisa, apontou mais aproximações no contexto da
escola B, principalmente se levarmos em conta que o discurso oficial pode ser visto
como o discurso oficial institucional. Uma vez que o conceito teórico de formação
integral, defendido pelos docentes enquanto qualidade, fundamenta o projeto político
pedagógico da escola B, é fácil ver a aproximação. Se levarmos em conta que essas
mesmas bases teóricas foram apropriadas pelo Documento base (2007) para a
EPTM, ainda que saibamos da existência de sentidos contraditórios que possam
habitar uma mesma palavra, é possível ver também aí, aproximações com o
discurso oficial do governo. Além disso, encontramos nessa escola, indícios de um
esforço coletivo que aproximou as perspectivas de um sentido próprio para a
qualidade, mesmo que as apropriações incorporem ressignificações dos valores,
intenções e interesses dos sujeitos envolvidos.
Consideramos como promissora uma inserção maior na escola B para
aprofundar as relações entre as apropriações do princípio de formação integral pelo
discurso institucional e os sentidos que os docentes dão às suas práticas nesse
contexto, assim como suas lutas e os embates para implementá-la. Essa
consideração constitui outra escolha possível a ser focalizada em um novo estudo.
203
Os professores da escola A não construíram os sentidos para a formação
integral pelo discurso diretamente relacionado à legislação ou a princípios
pedagógicos, tendo declarado também não haver discussões institucionais e nem
consulta aos documentos. Isso não nos autoriza afirmar que não existam pontos de
contatos entre os sentidos que dão às suas finalidades educacionais e os princípios
de integração presente no documento oficial, mas que não foi possível captá-los nos
limites deste estudo.
Embora os professores da escola A tenham declarado não consultarem ou
discutirem os documentos oficiais, sejam eles leis, decretos ou projeto político
institucional, identificamos pontos de contato entre suas perspectivas e as
finalidades educacionais expressas nos discursos oficiais para a EPTM,
considerando, por exemplo, a lei que institui os institutos federais de educação.
Afinal, os discursos circulam entre diferentes épocas e contextos sociais na situação
de interação verbal, trazendo as ressonâncias de discursos precedentes, por
exemplo, sobre as finalidades educacionais da formação técnica engendradas na
esfera social na qual esses professores atuam. Por exemplo, uma das perspectivas
encontradas se aproximou ao de “realizar pesquisas aplicadas, estimulando o
desenvolvimento de soluções técnicas e tecnológicas, estendendo seus benefícios à
comunidade” (Art. 7º, incisos III e IV, Lei N.º 11.892/2008).
Ainda na voz que representa a formação geral, tanto no campus I como no II,
captamos questionamentos críticos em relação a ausência de espaços para
discussões coletivas sobre a legislação ou sobre o projeto pedagógico que
incluíssem, por exemplo o currículo, no sentido de implementar a formação integral,
operar “enxugamentos”, acentuar valorativamente outros conhecimentos além do
científico.
Apenas uma das perspectivas apreendidas na escola A relacionou as
finalidades educacionais da formação técnica aos interesses que constituem o
contexto de definição e de produção de políticas para a EPTM no âmbito
governamental. Nos demais discursos, houve a tendência de cobrar da escola
(corpo docente, coordenadores, gestores) por ações e posicionamentos mais
efetivos que visem implementar mudanças consideradas necessárias ao ensino
técnico.
Com exceção dessa relação, e de uma perspectiva crítica originada na escola
B, percebemos um silenciamento das tensões envolvidas na política atual de
204
expansão da educação profissional no Brasil e da problematização das propostas
oficiais de governo na produção de sentidos para a qualidade. Consideramos esse
quadro preocupante porque mesmo quando críticas, as perspectivas enunciadas –
sobretudo no contexto da escola A, que participa efetivamente desse movimento de
expansão – se circunscrevem à realidade institucional imediata e deixa de
questionar a o contexto político mais amplo. Esse embate é dificultado também por
representar a luta contra visões hegemônicas vivenciadas no sistema capitalista e
acentuadas nas políticas neoliberais que vêm se estabelecendo no Brasil desde a
década de 90.
205
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APÊNDICE 1 - ROTEIRO DA ENTREVISTA
Pergunta 1 O ensino de ciências, segundo as DCN para a EPTM, tem como um de seus principais objetivos, a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso? Pergunta 2 Você estabeleceria outros objetivos além deste para o Ensino de Biologia/Química neste tipo de formação? Pergunta 3 O que orienta a seleção de conteúdos para ensinar Biologia/Química? Pergunta 4 O que orienta suas metodologias para o ensino de Biologia/Química? Pergunta 5 Qual a sua visão sobre avaliação da aprendizagem? Pergunta 6 Como você vê o papel dos laboratórios para o Ensino de Biologia/Química? Pergunta 7 A EPTM voltou a ser oferecida à sociedade na modalidade integrada à partir do Decreto Nº 5.154/2004. O que você compreende por formação integral? Pergunta 8 Qual é a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado nos cursos de formação técnica? Pergunta 9 Você já teve acesso aos documentos oficiais que definem as diretrizes curriculares para EPTM? Em que medida essas diretrizes influenciam o seu trabalho pedagógico? Pergunta 10 Como você avalia o desempenho e o interesse de seus alunos em suas aulas? Pergunta 11 Você costuma envolver os seus alunos em projetos de pesquisa? Pergunta 12 Na sua visão, o que seria um ensino de química/biologia de qualidade no contexto da educação técnica profissional?
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APÊNDICE 2 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR ANDRÉ (ESCOLA A – CAMPUS I)
ENUNCIADOR ENUNCIADO
Pesquisadora O ensino de ciências, segundo as DCN para a EPTM, tem como um de seus principais objetivos, a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso?
Prof. André
Sobre a formação para o trabalho das Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino profissional, para mim é um objetivo central. Com certeza importante. Tem que ver realmente como essa formação se dá. Mais crítica. Aqui, na instituição, aqui hoje a formação para o trabalho tem uma característica muito estranha. Não tem uma tradição de formação. Tenho certeza que não fez nenhuma reavaliação com relação à sua própria história e é necessário. Acho que esse campus especificamente, dentro da instituição, estou falando mais da função do Campus A, ela tem algumas questões que são anacrônicas, estão fora da perspectiva que nós temos hoje em relação à questão do trabalho. Acho que existe uma carga voltada para um segmento que não mais é necessário. Acho que não há um acompanhamento em relação à questão da demanda do profissional realmente. Essa relação nos institutos ou nas instituições que estão dedicadas à formação para o trabalho, o contato com o mercado e com as instituições que vão absorver esses profissionais, é extremamente importante. Eu acho que esse laço com o mercado que hoje é completamente débil, muito frágil, completamente inexistente. As instituições, elas aproveitam os profissionais ancorados em um momento histórico de alta deficiência e num momento em que essa instituição era quase a única provedora desse tipo de profissional. Ainda há uma grande demanda. Ou seja, eu vejo os profissionais, eles se formam, mas a gente não tem parâmetros, indicadores como avaliar de que maneira esse profissional está sendo voltado para uma função de trabalho, qual é o padrão da formação profissional desse cara. Eu vejo que se dá mais uma formação para o lado acadêmico. Os profissionais ligados ao curso técnico de biotecnologia, na verdade, querem ser médicos. Eles estão num curso de biotecnologia para ter uma carga poderosa com relação à área de biologia, por algum motivo para conseguirem ser médicos mais rapidamente, têm muita atração por isso. Eu não vejo aqui nesse Campus o desejo coletivo ou até a necessidade coletiva da formação desse sujeito para o trabalho. É diferente em até outros campus, eu acho. Esse campus é uma espécie de estorvo no padrão dos IFs ou no projeto dos institutos federais, no sentido da formação para o trabalho. Ele pode continuar caminhando assim, de uma forma comum, com um processo isolado dessa discussão para o trabalho, tanto do ponto de vista para a formação específica para o trabalho. quanto do ponto de vista para a formação integral. Porque eu também acho que existe aqui um conjunto de pessoas selecionadas e com muita motivação e que encontram aqui um de espaço de liberdade. Então elas vão se realizando um pouco pessoalmente em torno da liberdade, e vão recebendo uma carga de conhecimento muito grande, porque a jornada horária de disciplinas é muito grande. Mas isso, principalmente, em função das disciplinas exatas ou biológicas. O conhecimento de história e geografia que o aluno sai daqui, por exemplo, é pífio. A não ser que ele procure uma complementação maior, mas em relação à matemática, física, química, biologia é extremamente grande. Então a minha visão sobre os objetivos para a formação para o trabalho, eu tenho alguma visão, porque a minha formação está relacionada a esta discussão também. Eu tive cadeiras no mestrado e no doutorado que trataram dessa situação da formação para o trabalho, mas os professores daqui, stricto sensu, não têm nenhuma noção de qual é a demanda ou as orientações nacionais para a formação do trabalho. Eu tenho certeza disso. Até porque não há encontros, seminários, motivações, orientações. Eu mesmo desconheço qual é o projeto político pedagógico desta instituição, no sentido da formação para o trabalho. Eu já perguntei pelo projeto várias vezes e ninguém responde. Gostaria de, antes de sair dessa instituição,
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ver esse documento. Então, na verdade, eu acho que esse documento não existe, mas eles não reconhecem isso como um problema, porque o que reconhecem de importante é manter a sua própria história. Uma história que vai se perdendo por essa mudança de nomes, por essa descaracterização. Na verdade, tem um processo psicológico muito legal, digno de um estudo antropológico, psicológico, sociológico, uma coisa muito interessante. As pessoas estão aqui, e elas só têm a própria história, porque elas não têm mais o nome da instituição, os documentos oficiais não valem mais, não sabem onde estão os registros do passado intensamente. O que acontece aqui é que as pessoas só têm uns aos outros, mas, ao mesmo tempo, elas têm muitas diferenças. Então, estão em um processo, assim, esquizofrênico, uma coisa muito louca, um negócio interessante, que merecia uma intervenção psicológica. Não que fosse colocar o dedo em nada não, mas alguém que ficasse observando esse perfil, que trabalhasse isso.
Pesquisadora Agora, em relação à química, você estabeleceria outros objetivos para o ensino da química na formação para o trabalho? Que objetivos você considera mais importantes para o ensino da química?
Prof. André
Volto a dizer que seria importante que nós tivéssemos seminários, encontros, resultados, um projeto, um trabalho sobre o que o mercado aponta de necessidade na formação. É isso. Eu estaria aberto a escutar isso. Pessoas que fizessem esse estudo e dissessem que o mercado hoje... A gente ouve falar que precisa de gente para trabalhar na área de petróleo, mas é uma audição coletiva. Não teve nenhum processo sistemático, uma coisa organizada, um trabalho sobre isso, para que a gente possa até reorientar os discursos. As questões aqui até reorganizar o curso, mas a questão da química, ela se fundamenta numa tradição, numa perspectiva analítica. Eu acho. O profissional que sai daqui hoje é um profissional formado estritamente, acho que ainda é numa perspectiva analítica. É um sujeito que está muito habilitado para trabalhar em laboratório. A gente sabe que essa não é o único universo de possibilidades para o nosso aluno do ensino profissionalizante, há outras questões interessantes, mas não se tem esse retorno. Devia ter um estudo no mercado para ver se está configurado dessa forma hoje, para focalizar esse tipo de questão, de conceito, de perfil. Seria interessante que a gente focalizasse esse tipo de questão. Não se muda, porque sempre foi muito bom. Porque nós somos muito bons. Nós somos os melhores e porque somos os melhores, nós devemos continuar tudo do jeito que está. Como quase que completamente alheios a alguma orientação. Eu não conheço o texto, então não me coloco nesse conjunto também. Mas acho que deveria ser uma orientação institucional, mas também não é feita. A função pedagógica ou didática nesta instituição se refere muito a uma espécie de burocracia pedagógica, então pensar curricularmente essa instituição, sob o ponto de vista de novas práticas, novas abordagens é praticamente um tema proibido. Porque somos muito bons. Isso é muito pessoal daqui. Acho que nos outros campi isso não acontece muito não, até porque eles têm que olhar por essas diretrizes. Alguém de outro campus já conhece a diretriz, já sabe como formular isso, mas aqui é tudo mais difícil.
Pesquisadora Em relação ao ensino da química, o que orienta a sua seleção de conteúdos, suas metodologias, suas avaliações? Um conteúdo novo, além dos propostos pelo currículo oficial? Como você faz isso?
Prof. André
O currículo que eu uso é o que já estava instituído para o instituto. Eu até hoje não fiz nenhuma modificação nele, pois, ele é consensual para a disciplina que eu dou: química geral I e II e inorgânica. É um arranjo consensual, tendo em vista que atendem a um processo de formação básica para servirem de elementos a questões posteriores. E como é um ensino profissional, a gente tem algumas questões mais a fundo, porque as disciplinas mais a frente vão usar esses conceitos da química mais a fundo também. Então esse arranjo curricular, sobre seleção dos conteúdos, já estava aqui quando eu cheguei e eu continuo fazendo do jeito que sempre foi feito. Agora, eu introduzo sim questões, principalmente na química geral I e agora, recentemente, na inorgânica, que eu passei a dar. Na química geral I, as questões de história e
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filosofia da ciência. Eu coloco essas questões na química geral I, porque há conteúdos que permitem isso e têm uma aproximação muito grande com esse tipo de abordagem, a partir da história e da filosofia da ciência. Eu coloco sim. E, na verdade, na química inorgânica houve uma reformulação, reorganização dos conteúdos há pouco tempo. Quando o professor Rui veio para cá fez essa reorganização e ela é muito interessante, principalmente para química inorgânica, pois permite que a gente discuta várias questões que me interessam muito, que são história e filosofia da ciência. Essa seleção que eu faço, de colocar novos conteúdos para os alunos, se dá a partir da minha formação. Eu creio que tenho formação e competência na área de história e filosofia da ciência para discutir essas questões com os alunos na sala de aula, colocar provocações, confrontar questões que estão na apostila, nos livros didáticos. Mas isso se dá a partir da minha formação. Eu acho que tenho competência para fazer isso, mas essas inserções e discussões sobre história e filosofia da ciência, eu faço por causa da minha formação.
Pesquisadora E em relação aos laboratórios? Como você vê papel dos laboratórios para o ensino da Química nesse contexto do ensino profissionalizante?
Prof. André
Eu vejo o laboratório com função diferente do ensino experimental, das atividades práticas, como o ensino de ciências geralmente discute. A gente tem um percurso na atividade experimental de consolidação e aprendizagem de técnicas. Por exemplo, devemos situar o aluno em relação à segurança, como ele vai pipetar, medir os volumes, usar a balança. Nesse sentido a gente escapa completamente daquelas discussões sobre as atividades experimentais no ensino de ciências, que têm que ser mais críticas, menos ingênuas, não ser uma repetição de roteiros. Temos uma parte que é exatamente isso. O sujeito vai repetir maciçamente, vai pipetar várias vezes, vai medir aquela massa, usar a balança várias vezes. Como é uma formação profissional, essa atividade repetitiva faz parte da atividade profissional que ele vai desenvolver. Uma aula bem careta, eu diria. O cara vai aprender a lidar com a técnica, manipular aquela vidraria, instrumental. E têm alguns trabalhos em laboratório que têm esse suporte, essa questão de confrontar questões da teoria que a gente vê em sala de aula. Eu confesso que aqui, hoje, nesta instituição, a atividade experimental, tirando de lado essa atividade instrumental que tem que ser, ela ainda tem o cunho de repetir roteiros, com pouca reflexão, formulação de hipóteses, poucos testes, poucos diálogos, o confronto é pouco. A gente precisa reformular isso. Essa ansiedade que o grupo tem há algum tempo e a gente não consegue arrumar tempo para reformular essas atividades experimentais. Algumas reformulações já foram feitas no processo on the job, ou seja, alguém chegou e disse: eu vou fazer assim mesmo. Alguém para e faz essa pergunta e depois continua. A gente reorganizou um pouco essa atividade experimental porque alguém trouxe uma sugestão, a gente gostou e passou a usar, entendendo que essa era melhor que a anterior. Mas está faltando ainda sentar e reorganizar melhor.
Pesquisadora
Você trabalha na parte do curso que é de formação geral da educação básica, que está sempre atrelado a embasar as disciplinas do técnico. E em relação aos alunos, como você avalia o interesse, o desempenho dos alunos em relação à sua disciplina?
Prof. André
Os alunos têm muito interesse, porque vieram para cá... Mas interesse em quê? É uma pergunta que a gente até estava fazendo outro dia. A minha leitura é que eles têm muito interesse em ensino de qualidade, não em ensino profissional. A minha opinião é que eles não veem aqui um espaço de ensino profissional. Eles vêm para cá para se tornarem profissionais e entendem que essa é a possibilidade para a vida deles. Ser um profissional do ensino técnico e atuar no mercado. Sei lá por que razões. Eles vêm aqui em busca de ensino de qualidade gratuito. É isso. Eles são bons alunos porque eles são filtrados. Grande parte deles é de bons alunos. Uns com mais dificuldades, outros com menos, mas a motivação deles é o ensino de qualidade gratuito.
Pesquisadora A educação profissional voltou a ser oferecida à sociedade nessa modalidade integrada, a partir do Decreto 5154/04. Em sua opinião, o que é formação
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integral? Você acha que consegue realizá-la? Como é que isso se dá ou poderia se dá na sua prática?
Prof. André
Acho que essa formação integral seria o sujeito ter, além da expectativa da formação do sujeito em ensino médio, ele ter acesso a conteúdos, atividades, questões que tivessem a ver com a formação profissional, porque vão chancelar ele em uma habilitação específica. Aqui, eu acho que a formação não é completamente integral, no sentido de você ter a formação de um sujeito na perspectiva do ensino médio e complementar com a formação profissional. Acho que ele tem uma carga de formação profissional muito grande e a formação mais ampla fica colocada de lado. Um exemplo importante disso, queria até deixar registrado, é a discussão a respeito da inclusão de disciplinas filosofia e sociologia, que é uma orientação para o ensino médio, né? E que, no sentido dessa instituição oferecer ensino integral, é uma orientação para essa instituição também, que foi uma temeridade, porque algumas disciplinas entenderam que isso não poderia acontecer, é um absurdo, pra quê, na verdade a pergunta é “pra que filosofia e sociologia o tempo todo?” É justamente por não entender essa formação integral. É uma espécie de simulacro. Vou deixar claro que é uma palavra que eu gosto muito. Essa formação integral na educação profissional é um simulacro, uma mentirinha, um fingimento. E esse processo da necessidade de incluir as disciplinas de disciplinas filosofia e sociologia, aqui na instituição, deixou bem claro isso. As pessoas não estão dispostas a perder nada do que têm hoje, porque o currículo, em qualquer lugar, atende a idiossincrasia, do conjunto de pessoas daquela instituição, né? Se você tem fulano, que é hábil naquela disciplina, então tem uma porção daquela disciplina. Se você tem fulano, que dá aquilo, tem uma porção daquilo. Então o currículo acaba indo para o lado das pessoas e não para o lado da instituição. Depois disso é que vêm os acordos internacionais. Eu vejo assim. Eu acho que esse exemplo da filosofia e da sociologia foi temeroso, ou seja, esta situação está parada hoje. Aconteceu discussão em determinado momento, mas está parada. Isso exigiria mais professores de sociologia e filosofia e, do jeito que está colocado na lei, existiria mais professores de filosofia do que outras disciplinas que são consideradas importantíssimas aqui. O aluno teria, de repente, mais aula de filosofia do que até da própria química ao final do curso. Enfim.
Pesquisadora E em relação à integração das disciplinas que estão no conteúdo curricular do ensino médio e do ensino profissional. Como isso se dá em termos de integração?
Prof. André
Não tem integração. Essa relação de diálogo, não tem diálogo. As funções básicas, as disciplinas básicas são espécie de serviço sujo que as disciplinas da ponta não querem fazer. Eu já coloquei em várias reuniões que a gente tem várias dificuldades, porque recebe o aluno cheio de dificuldades, ou seja, tem uma marca da instituição, de rigor conceitual e o regime da instituição é semestral, diferente do regime que o aluno já conhece, que é o regime anual. Isso exige uma nova adaptação. Então a gente vem experimentando nas disciplinas iniciais um processo de reprovação muito grande. Isso é ruim, mas é bom para as disciplinas que estão na frente. É um processo de dificuldades que a gente vem atravessando que é bom para os outros, porque, na verdade, isso reduz a quantidade de alunos na sala de aula do quinto período, e gera para a gente uma demanda de não sei quantas turmas, porque ficou muita gente reprovada. Isso tudo acontece em prol da defesa da qualidade institucional, porque sempre fomos bons assim, exigindo muito. Temos recebido alunos com novos perfis, novas dificuldades, porque esse mundo lá fora vem mudando também, é um aluno que vem com mais dificuldades, que passa pelo processo, pelo mesmo processo seletivo, mas como no processo não existe uma eliminação mínima, é um processo classificatório, na verdade, então esses primeiros classificados estão chegando, em boa medida, com mais novas dificuldades para abraçar esses temas dos primeiros períodos do que aqueles que chegavam há dez anos. E o diálogo é um diálogo só pró-forma. É claro que as disciplinas que estão na frente entendem a necessidade das disciplinas iniciais da mesma forma como entendemos a necessidade do lixeiro... a gente precisa do lixeiro, mas quer que ele fique cada vez mais longe da gente. É
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necessário que eu vá lá, deixe o lixo e ele pega. Se eu não encontrar com ele, ótimo. É um serviço que eu preciso que seja feito, e bem feito. Assim como é bom que o lixeiro pegue o lixo na hora certa, né, senão eu vou começar a ter problemas aqui. Se a gente aprova todo mundo, é um manifesto que eu já coloquei aqui, já propus aos meus colegas que aprovássemos todos os alunos durante um ano e que todas as disciplinas do final do curso recebessem trinta e seis alunos. Hoje eles têm dez, quinze alunos em sala de aula. Gostaria que eles recebessem trinta e seis alunos, até para entender as questões.
Pesquisadora
Mas, em temos de uma formação integral, uma formação mais ampla, você acha que realiza isso, acha que a instituição se preocupa com isso? Que os professores de química, especificamente, estão preocupados com esse tipo de formação?
Prof. André
Eu acho que sim. Mas acho que por uma posição pessoal. Isso não é uma posição institucional, nem curricular. Eu acho que é o sentido dado à formação integral. Então são tentativas, ou seja, não há um acordo de júri, um acordo de verdade em prol disso e, nesse sentido, não se tem diretrizes para isso acontecer - a formação integral. Então eu não sei exatamente se toco na formação integral desse sujeito. A resposta concisa seria que eu não sei. Não sei por que não há diretrizes, se há, há, deve, há diretrizes nos decretos, nos documentos oficiais, nas diretrizes curriculares nacionais para a educação profissional de nível técnico e médio. Com certeza há, mas agora eu também tenho certeza que os professores não sabem dela. Logo, o que a gente tem é um festival de boa vontade, é a legião da boa vontade da química. Mas é só isso que tem, ou seja, a gente vai trazendo questões para a cena da questão ambiental sim. Colocar, mas não de uma forma organizada, conhecendo as diretrizes e depois fazendo avaliação em cima disso, né? Ou isso tomando parte do processo de avaliação. Vou chamar aqui só uma coisa, que é muito importante: essas questões todas que podem estar pontuadas como itens de uma formação integral, elas têm que, em algum momento, estar incluídas no processo de avaliação daquele sujeito. Senão não faz parte... Não faz parte desse sujeito, porque não fica claro para esse sujeito que isso está sendo contado para que ele progrida no curso, sendo observado. Isto tem que estar claro. E a gente, eu acho, eu tenho certeza que a gente não sabe o que quer... Quais são os itens a contar numa avaliação, numa formação integral, porque não se tem noção, não se conhecem esses documentos oficiais. Eles não são os documentos orientadores da atividade docente. Incrível, né, impressionante, mas não são... Mas isso não é só aqui não. É em qualquer lugar. Eu acho.
Pesquisadora E a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado nos cursos de formação técnica?
Prof. André
É a mais careta possível. Impressionante, impressionante... A questão do conhecimento científico é uma questão cara para mim, para a minha formação. É uma questão que eu discuto até formulação de relatórios de avaliação, a forma como escrever os relatórios, os termos que eles usam nos relatórios. A gente conversa sobre isso. Eu percebo na relação por conta de centenas que essa forma de conhecimento científico é uma das formas mais caretas, ingênuas. Para deixar registrado aí, que eu atribuiria assim, quase positivismo lógico, quase, quase... Não é positivismo lógico mesmo por pouco, mas é tão ingênuo, tão careta quanto o positivista lógico. Enfim...
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APÊNDICE 3 - ENTREVISTA COM A PROFESSORA TAÍS (ESCOLA A – CAMPUS I)
ENUNCIADOR ENUNCIADO
Pesquisadora O ensino de ciências, segundo as DCN para a EPTM, tem como um de seus principais objetivos, a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso?
Profa. Taís
Olha, sempre tem que levar em consideração o que você quer da escola, se é o que está mais próximo ao mercado de trabalho que você está querendo. Eu acho que o nosso curso é de excelência, tá? Acho que todas as matérias estão bem voltadas para a química, falo da química, para o mercado de trabalho. Eu vejo isso nas visitas que eu faço de supervisão de estágio. Você sabe o que isso significa? O aluno está estagiando e a escola vai a essa empresa e ela mantém uma entrevista com o aluno para saber se ele está satisfeito, se está à vontade, se os conteúdos que ele aprendeu, ele está conseguindo aplicar lá com facilidade, se tem alguma coisa que ele não sabia fazer e a escola é responsável por ele não saber aquele conteúdo... As mesmas perguntas que a gente faz basicamente ao aluno, a gente faz ao coordenador dele ou à aquela pessoa a quem ele está subordinado, e eu sempre observo que os dois lados sempre estão sempre bem. Que os alunos são elogiados por essas pessoas: “não, eles são ótimos, eles têm excelente conteúdo”, mas, agora, tem um ou outro teste específico daquela empresa que aí a gente não pode ficar ensinando, porque são diversas empresas diversificadas e aí é complicado, mas, no geral, nós atendemos o mercado de trabalho no currículo, é certo, pelo que eu observo quando eu vou fazer todas essas visitas.
Pesquisadora Você estabeleceria outros objetivos além deste(s) para o ensino de química nesta modalidade de formação?
Profa. Taís
Outros objetivos?... A escola trabalha bem cidadania, a gente nota que são alunos que são bem politizados, em sua grande maioria. Eles estão sempre envolvidos em defender os direitos deles. Nós temos o CART, o grêmio... Então a gente sempre vê que os alunos têm esse lado bem politizado. E cidadania, toda vez que tem uma campanha de alimentos, arrecadação de roupas para fazer doação... Há pouco tempo, eles fizeram arrecadação de livros que eles iam levar para a cidade de Teresópolis, Friburgo, onde perderam tudo. Então eles levaram lápis, caderno, borrachas. Então eu acredito que esse lado da cidadania deles também, aqui na escola, é trabalhado. Outra coisa que eu participei há pouco tempo e me deixou, assim, emocionada foi uma apresentação, que foi da Revolta da Chibata e aí teve uma reapresentação da escola como teatro e foi a coisa mais linda. Quer dizer, a escola, também, tem seu teatro, que é bem procurado pelos alunos. Haja vista, na semana de química, a quantidade de peças apresentadas pela escola. Temos o coral. O coral está imenso. Ele dava volta no auditório e os alunos cantando... Alunos de primeiro, segundo período... Até alunos que você olhava assim, que, na sala de aula são supertímidos e estavam no coral, cantando, tocando piano, tocando pandeiro. Então eu acho que a escola trabalha todo o conjunto. E prepara o indivíduo para a vida profissional, para seu desenvolvimento como cidadão também ela trabalha. Acho que ela trabalha, assim, todas as áreas, ela procura desenvolver o aluno para a pesquisa, né? Nós temos a semana de química, que a gente vê todos os alunos sempre envolvidos com os trabalhos. Eles ficaram pesquisando meses e meses. Eu acho que ela tem esse lado bom também.
Pesquisadora O que orienta a seleção de conteúdos para ensinar química?
Profa. Taís
De certa forma, como eu me oriento para desenvolver, para selecionar os conteúdos... Bom, os conteúdos já estão selecionados desde que eu entrei na escola. A gente tem uma ementa e, dentro daquela ementa, a gente desenvolve aqueles conteúdos que a gente... e eu ensino o tradicional... o que todos os livros abordam e a gente tem que abordar também, porque são os conteúdos que eles vão precisar para desenvolver o trabalho deles, tá? E em cima deles eu desenvolvo as minhas provas.
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Pesquisadora O que orienta suas metodologias para o ensino de química?
Profa. Taís
A metodologia eu uso quadro e giz, porque eu preciso que o aluno tenha uma visão da minha molécula... é a mesma coisa que ensinar matemática. Você precisa de quadro e giz. Se vai ser quadro negro, quadro branco isso aí é outra coisa. Você está num quadro. Para você escrever, não é verdade? Para você desenvolver toda uma ação. A mesma coisa é química orgânica, principalmente. A gente precisa de um quadro... é diferente de uma história, de uma geografia, que o professor pode vir trazer uma aula em Power Point , em multimídia. Você pode até mostrar umas coisas, mas 60 ou 70% da sua aula é no quadro, não é verdade? A mesma coisa acontece com química: a gente trabalha assim, na base do exercício, da correção dos exercícios, trabalhos em grupos, listas de exercícios, entendeu? Mas essas aulas assim, tipo multimídia são muito pouco usadas, pelo menos na minha matéria. Tem uma reação química, tem que mostrar todo o mecanismo daquela reação. Você sabe como é integral, tem que mostrar todas aquelas etapas. A mesma coisa somos nós. Temos que usar o quadro, entendeu?
Pesquisadora Qual a sua visão sobre avaliação da aprendizagem?
Profa. Taís
Procuro observar se ele aprendeu a minha matéria, né? Se ele não aprendeu no primeiro momento, mas agora vem se desenvolvendo ao longo do período... Não foi lá na primeira, mas, ao longo do período, veio o crescimento, ele conseguiu aprender e também, às vezes, a gente tem aquele aluno que não consegue tirar a nota, mas você observa esse aluno em sala de aula, vê que ele não falta, participa, faz os exercícios, quer dizer, tudo isso serve de avaliação na hora da... para dizer se ele vai ser aprovado ou reprovado. Não é numericamente. Não é por uma nota, né? Tem toda uma análise qualitativa também do aluno.
Pesquisadora Como você vê o papel dos laboratórios para o ensino de química?
Profa. Taís
Bom, conhecimento das técnicas é importante para ele desenvolver lá o trabalho dele. E importante a desenvoltura dele, né? Que ele tenha, comece a ter autonomia do trabalho dele. A princípio ele chega meio encabulado, com medo de pegar um tubo de ensaio... Sabe aquela pessoa que nunca pegou num computador, que vai dar os primeiros toques, tem aquele medo... vai escangalhar, vai quebrar. Mas à medida que eles vão começando, vão pegando, tendo intimidade com o laboratório, eles vão tendo intimidade, vão começando a desenvolver com mais tranquilidade as tarefas que lhes são dadas, fora o conhecimento, né, onde a gente junta, é... o conhecimento da teoria, aplicando na prática, que é importante você ter, juntar os dois, porque fica bem mais fácil o ensino, o entendimento pelo aluno e... educá-lo também como se comportar num laboratório é importante. Tem que ter seriedade dentro do laboratório.
Pesquisadora
Taís, nós vivemos um período aqui na escola em que a formação profissional foi obrigatoriamente separada da formação geral e voltou a ser oferecida a sociedade na modalidade integrada a partir do Decreto 5.154/2004. O que você entende por formação integral? Você acha que consegue realizar essa formação?
Profa. Taís
É ... planos, conteúdos, ensino médio e profissional? Acho que sim. Pelo menos é o que eu vejo nos meus alunos. Eu vejo que nós temos um alto índice de aprovação no vestibular ou a gente tem sempre uma parte de aceitação e de elogios quanto à escola, na parte profissional. Acho que a gente consegue atender, sim, essa formação integrada.
Pesquisadora Como você acha que essa integração pode se dar, em termos de conteúdos de química, entre a formação geral e profissional?
Profa. Taís
Aqui na escola não tem essa parte: essa aqui é da educação profissional, essa aqui é do núcleo comum. Aqui não tem isso. A gente trabalha tudo ao mesmo tempo. A gente não tem essa separação. Nós tínhamos naquela época, né, que os cursos foram separados. Ai a gente separou um pouco. Na verdade ficou até mais ou menos parecido, por que o que acontece no curso técnico? São os mesmos conteúdos, aprofundadamente, e algumas outras matérias, né? Eu acho que a escola contempla os dois. Agora, você está falando da interdisciplinaridade das matérias?
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Pesquisadora É.
Profa. Taís
Isso aí é difícil. Isso é muito bonito, mas é muito difícil disso acontecer tanto na escola particular, como aqui., Aqui não. Aqui a gente não tem essa preocupação, não. O ensino interdisciplinar, não. Tem a preocupação de que o meu conteúdo atenda aos cursos, aos períodos que vêm, mas, em termos de interdisciplinar, a escola não tem essa preocupação, não.
Pesquisadora O que dificulta isso?
Profa. Taís
Primeiro, eu acho que o programa já é especificado pra você pelo livro didático, pela escola, que já te dá o programa. Esse é o programa do vestibular que você deve cumprir. E, além de você não ter tempo, às vezes, o teu colega vai ter que mexer em alguns conteúdos que, se tirar fora de ordem, fica um capítulo só no outro livro, que aí vai dificultar, que o pai vai comprar um livro que... você está entendendo? Os volumes únicos, que são muito utilizados na escola particular, são livros muito vazios. É mais uma pincelada dos conteúdos e exercícios. Quer dizer, eu acho que é muito complicado você juntar todo mundo e todo mundo estar falando daquele mesmo assunto, cada um com a sua visão, naquele dado momento.
Pesquisadora Por quê?
Prof. Taís
Porque a gente tem que montar um programa que é sempre cobrado no vestibular. Não pode mudar a ordem, senão você não consegue estabelecer a sua ordem, porque você ainda não deu o conteúdo antes, que precisa ser dado, para atender esse, pra poder juntar com os outros, entendeu? Eu acho que é complicado, a não ser que mude toda a nossa abordagem. Mude todo o programa.
Pesquisadora Qual é a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado nos cursos de formação técnica?
Profa. Taís
Olha, a coisa é toda muito gradativa, né? À medida que vou passando os períodos, eu vou apresentando isso, aquilo e, à medida que ele vai aumentando de período, a parte técnica, todos esses conteúdos técnicos é que são passados pra eles. Em maior quantidade, nos três últimos períodos, como se diz assim...né? Onde acabam as disciplinas do núcleo comum e aí é que existe mais um aprofundamento e existe mais as matérias técnicas. Mas é assim também. Aquilo que eu falei: o mercado elogia o nosso profissional.
Pesquisadora Você já teve acesso aos documentos oficiais que definem as diretrizes curriculares para EPTM? Em que medida essas diretrizes influenciam o seu trabalho pedagógico?
Profa. Taís
Já. Eu já li alguns capítulos. Por exemplo, agora mesmo, a escola está em um impasse, porque é obrigada a ter sociologia e filosofia em todas as séries. Quer dizer, a escola já tem uma grade curricular apertada e você incluir em todas as séries dois tempos de filosofia e sociologia, você há de convir que ela vai ficar muito mais apertada ainda. Fora isso ainda tem o espanhol, que é uma língua agora que, desde 2010, 2011 está tendo que ser obrigatória no ensino de... não sei se de quinta a oitava, mas ensino médio também. Então isso engessa um pouco a escola, né, porque se a gente pudesse estar usando esses tempos... A gente já não tem esses tempos, mas se a gente tivesse e pudesse usar na formação do aluno, na formação profissional... Não estou dizendo que não seja importante, não. Todos os três são de grande importância na formação do cidadão. Haja vista que eles estão sendo incluídos. Agora, na formação profissional, se a gente pudesse usar esses tempos na formação profissional, poderia estar formando profissionais melhores ainda, mas o negócio é que a nossa grade é muito grande, muito extensa, né, devido a parte prática dos laboratórios.
Pesquisadora Como você avalia o desempenho e o interesse de seus alunos em suas aulas?
Profa. Taís
Aqui a gente tem um lado muito bom. Na verdade, existem até alguns professores que reprovam alguns alunos. Eu acho que eles nunca trabalharam em escola particular, ou do Estado, entendeu? Estariam, tipo, criticando os alunos... Que os nossos alunos já são alunos concursados. São alunos onde tem quatro mil candidatos para duzentas e quarenta vagas. Então você há de convir que já é um aluno que tem o hábito de estudo. Só uma coisa não ajuda muito, que é a idade. É a idade que eles estão se descobrindo como
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adolescentes. Então, quer dizer, tem aquele que dá um pouquinho mais de trabalho. Têm alunos que dá menos. Estamos com índice de reprovação grande nos dois primeiros períodos. A escola também está preocupada com isso. Quando eu pego o aluno no terceiro período, ele já está um pouco calejado. Ele já levou umas pancadinhas no primeiro e no segundo período. Então eles estão mais calmos. Eu vejo que o aluno já está criando um hábito de estudo... Eles são tranquilos para trabalhar com eles... Eu acho ótimo, em termos de interesse... participam...”
Pesquisadora Professora, você envolve os alunos em trabalhos de pesquisa?
Profa. Taís
No meu período, não. Mas nos outros períodos, sim. O que a gente sente na escola é que eles procuram o professor. Eles têm uma ideia para a semana de química, digamos, e eles procuram um professor que venha ajudá-los a desenvolver aquilo. É muito mais deles do que nosso. Do que a gente arrumar o aluno para desenvolver o trabalho que a gente tem. Às vezes o aluno vem e fala: “Professora, o que é que eu faço com esse [assunto] o que é que a senhora poderia me orientar nesse trabalho?”. Pergunto: qual é o seu trabalho? Aí a gente vai ver qual o trabalho dele e ver qual é o professor que se encaixa melhor naquele perfil. Mas eu acho que é uma coisa que parte muito mais do aluno do que do professor.
Pesquisadora Você acha esse envolvimento dele com o projeto é importante?
Profa. Taís Acho, acho, acho sim. A parte de pesquisa é muito importante para o desenvolvimento dele.
Pesquisadora E, assim, em sua opinião, quais os princípios e objetivos devem nortear essa pesquisa?
Profa. Taís
Bom, eu tenho acesso ao orientador. Aí o professor orienta: esse é o teu assunto. Então você vai procurar tais e tais e tais artigos referentes a esse assunto. Aí eles vão, pesquisam os artigos que o professor falou, pesquisam na internet outras variantes do trabalho deles e, a partir daí, traçam uma linha de pesquisa. E é muito interessante que existem trabalhos apresentados na semana da química e eles continuam desenvolvendo e, no outro ano, eles já estão com a pesquisa mais desenvolvida e eles apresentam de novo aquele trabalho, muito mais aprofundado do que foi antes, entendeu? Mas existe um professor orientador que dá as diretrizes porque são muito novos, né? O tipo de pesquisa que eles fazem é colar, corte e cola, né? E aí não. Eles começam a ter que ler artigos sobre aquele assunto, então eles já vão se aprofundando mais naquele determinado assunto que eles que escolheram. Isso que é importante. Eles escolheram. Às vezes você fala algo na sala de aula e, a partir daí, eles: “Ah, vou fazer um trabalho sobre isso”.
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APÊNDICE 4 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR TONI (ESCOLA A - CAMPUS II)
ENUNCIADOR ENUNCIADO
Pesquisadora
Toni, segundo as legislações que regulam a EPTM, um dos principais objetivos do ensino de ciências é a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso? Assim, pensando do ponto de vista do ensino de química, você concorda ou discorda das propostas?
Prof. Toni
É, o ensino de química na Escola A tem essas diretrizes que apontam pra essa formação voltada pro mercado de trabalho, mas eu percebo que na formação do aluno, ainda existe uma formação muito teórica nos períodos iniciais, né? As disciplinas que mais tentam se aproximar do mercado de trabalho, da formação profissional, de atuação do técnico em Química mesmo, são as disciplinas mais do final do período, né? As disciplinas que eu percebo dos períodos iniciais são disciplinas que têm a química num nível que tenta ser um nível intermediário, né, um pouco maior que a química dada no ensino médio, mas que, ao mesmo tempo, é um intermediário que se aproxima mais do nível universitário. Os alunos, eu acredito que, nessa parte inicial, nessa formação nos períodos iniciais, eles não têm ainda maturidade, né, pra alguns conteúdos, pra algumas formas de abordagem, né? A química, nessas matérias iniciais, ela acaba tendo uma dimensão muito mais próxima da universidade do que do ensino médio. Eu acho que, assim, se a gente pretende formar um cidadão que vai atuar no mercado de trabalho, a gente pode fazer isso sem perder de vista as próprias discussões que envolvem o ensino médio, a formação pra cidadania mesmo, né? Então, assim, quando se fala de química com relação ao técnico em Química, eu percebo que as disciplinas ainda têm um conteudismo muito presente, né? As disciplinas, elas, às vezes, se perdem em discussões mais importantes que são até pra própria formação do cidadão, né? O técnico em Química, ele vai atuar no mercado de trabalho, mas ele vai ser um cidadão. Então, eu acho que, pra mim, o ideal seria se as disciplinas dos períodos iniciais tentassem primeiro procurar uma formação mais voltada pra questões de cidadania, e, no decorrer do período, a partir do meio do período pro final, que elas tivessem um olhar mais voltado pra essa questão prática, pra essa questão do aluno, do mercado que ele atua, do que ele vai desempenhar. Afinal de contas é um curso técnico, né, então eu acho que as duas formações devem ser contempladas, né, a formação, essa que tenta dar uma alfabetização científica pro indivíduo, e na sequência a formação, digamos, mais específica, essa formação que vai formar o técnico em Química, né, não sei se...
Pesquisadora Então, pelo que você me disse, eu entendi que você estabelece outros objetivos, além de só formação para o mercado de trabalho, na formação técnica?
Prof. Toni
Na verdade, até esse objetivo de só formação pro mercado de trabalho, ela não acontece, né? O que eu percebo, como eu disse, nas disciplinas iniciais, eu falo aí, de repente até o quarto período, ou o quinto período, as disciplinas, elas são muito mais próximas a abordagens teóricas, digamos, mais sofisticadas, assim, o ensino técnico, ele tenta fazer um intermediário entre o médio e a universidade, mas, em muitas disciplinas ainda presentes no currículo, você percebe que esse campo intermediário, ele tá mais próximo do universitário do que do ensino médio. Então, assim, os conteúdos são abordados numa profundidade que eu acho que às vezes não precisa pra formação do técnico, né, eu acho que não precisa. Então, com relação a isso que eu estava querendo dizer, eu acho que a gente precisa ainda avançar, e eu acho que até o Instituto tá investindo em alguns, em algumas atitudes pra isso, né, houve há pouco tempo a imersão, que foi o encontro pra se debater o currículo, pra se enxugar, pra se repensar, eu acho que esse é o caminho, né, se deve de fato repensar o currículo pra ver se a gente consegue nos períodos iniciais oferecer uma boa bagagem de
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alfabetização científica de formação do cidadão, e, nos períodos finais, que ele consiga ter esse olhar mais voltado pra dimensão prática mesmo, a formação pra atuar no mercado de trabalho, né? O que a gente tem hoje, o que eu percebo hoje, né, e aí eu falo, mas eu tenho que também pontuar que no ensino técnico eu atuo basicamente até o quarto período, eu não chego às disciplinas finais. Mas, pela estrutura curricular que eu percebo, eu noto que o aluno, ele de fato é formado, digamos assim, com o olhar mais pro trabalho, com essa dimensão, digamos assim, mais pragmática mesmo, né? Até o quarto, o quinto, de repente até o sexto período, ele tem muitas disciplinas que abordam conteúdos que exageram, digamos assim, na profundidade, né? Conteúdos que, às vezes, são até temas de pesquisas, né, conteúdos teóricos que, às vezes, não permeiam o cotidiano profissional daquele futuro técnico, né? Então, assim, a gente tem que de fato começar a repensar o currículo, na minha opinião, e tentar colocar esse currículo mais adequado pro cidadão que a gente pretende preparar, né? Um cidadão que tenha a formação técnica em Química, né, mas que tenha um conhecimento amplo com relação à química, não um conhecimento, né, estilo, metaforicamente falando, escavando. Conhecer profundamente cada tipo de cada nuance da química, a ponto de chegar bem próximo ao conteúdo dado ao ensino superior. Eu acho que a gente perde um pouco a mão nisso aí. Eu acho que a gente deveria tentar de fato ficar numa posição intermediária, sem esquecer os objetivos que o próprio ensino médio deve cumprir, de formação de cidadão e tudo mais, entendeu?
Pesquisadora
Entendi. E como tudo isso influencia a seleção de conteúdos, a sua avaliação, sua metodologia de ensino, o que você acredita ser interessante pra esse tipo de formação que você propõe em termos de conteúdos, em termos de metodologia, em termos de avaliação?
Prof. Toni
É. A gente recebe, quando a gente vai lecionar uma disciplina, a gente recebe obviamente a ementa da disciplina, e existe todo, digamos, um peso, até a própria instituição coloca isso, do ensino de qualidade e tal, então tem todo um tradicionalismo por trás disso. E aí, eu recebo aquela ementa, eu vejo os conteúdos que eu tenho que lecionar, obviamente em alguns casos até acho um pouco de exagero, alguns tópicos, né, na minha opinião.
Pesquisadora Quando você fala que tá um pouco exagerado, você tá falando sobre a química, ou você tá falando da grade de um modo geral?
Prof. Toni
Eu tô falando sobre a química. Que é o que eu tenho de fato conhecimento. Então, assim, apesar de perceber que existem alguns tópicos que perdem um pouco, né, que se aprofundam demais e tal, eu tento cumprir, né, mas tento cumprir usando outras estratégias, né? Eu costumo, nas minhas aulas, debater com os alunos, né, tentar mostrar como aquele tipo de conhecimento pode ajudá-lo na sua atuação profissional, né? E tento ouvi-los também com relação a isso, que eles também... Quando a gente começa a ter um tipo de aula onde o que move a aula é a pergunta, a gente obviamente tem que tá preparado pra ter um tipo de aula que o aluno vai interromper o tempo todo, que o aluno vai perguntar. E às vezes eles perguntam: “pra que serve, né, pra que, por quê?” ele tem que aprender aquilo, por que ele tem que saber daquele detalhe. Às vezes eu consigo defender, né, digamos assim, alguns conteúdos, mostrando que, de fato, aquilo ali tem uma dimensão que vai afetar a vida profissional dele, que ele tem que saber. Em outros casos a gente acaba discutindo e até debatendo as fragilidades do currículo, né? Eu falo pra ele: “Olha, de fato isso aqui tem uma aplicação que não se enxerga com muita facilidade na sua vida profissional”. E eu acho que isso também acaba sendo válido pro aluno, porque ele começa a se conscientizar que é difícil também, né, inovar e tal. É difícil fazer uma reforma curricular, né, a gente tá tentando. Eu tento expor isso pra eles, tento conversar com eles quando eles questionam sobre algum determinado conteúdo que eu começo a falar: “Olha, isso de fato...”, eles começam a refletir junto, começam a pensar e começam a ser mais críticos com outros professores também, né?
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Então, eu acho que de inovação, digamos assim, o que eu procuro fazer é estimular a reflexão do meu aluno, é tentar fazer com que ele saia dessa posição pacífica de só assistir aquele conteúdo como se ele já tivesse sido convencido desde que pisou na instituição que tudo o que vai ser dito ali é importante pra ele, como na verdade a nossa instituição tem algumas fragilidades, né? A grade de química tem algumas fragilidades em termos de conteúdo que precisam ser enxugadas. Então, eu acho que é importante trazer isso, colocar isso pro aluno mesmo, pra ele refletir, pra ele pensar junto, eu acho que é isso o que eu tento fazer.
Pesquisadora Você tenta trazer algum conteúdo novo para as aulas, você tenta introduzir algum conteúdo que está fora da ementa, para além da ementa?
Prof. Toni
Tento, tento. Mas, confesso que não sou tão ousado assim não. Assim, por exemplo, na parte de química geral mesmo, né, na parte de química geral tem um conteúdo chamado funções inorgânicas que, no caso dos alunos do técnico em Química, é vista numa profundidade muito grande comparada ao ensino médio. Mas ali, dentro de funções inorgânicas, existem algumas funções que estão muito presentes no cotidiano deles, né? Inclusive algumas que fazem parte de debates sobre meio ambiente e tal. Eu busco fazer esses debates com eles, né? Busco falar sobre a questão da chuva ácida, sobre a questão do efeito estufa. Por exemplo, em questões que envolvem outra parte da matéria, que é estequiometria, que envolve reações químicas,eu tento conversar sobre processos industriais, né, sobre a questão de energia, a energia envolvida naquelas reações. Eu tento, dessa maneira, inovar em cima daquele conteúdo, né? Então, tem um roteiro a seguir, mas eu procuro inserir alguns debates, e aí eu uso as redes sociais também, eu posto alguns vídeos sobre determinados assuntos que a gente encontra no youtube, peço pra que eles façam trabalhos. Há pouco tempo eu pedi pra uma turma de físico-química, fazer um vídeo, uma edição, editar um vídeo a partir de vídeos que eles têm no youtube sobre um tópico específico da matéria: deslocamento de equilíbrio. Mas eu queria uma visão e eu deixei isso claro pra eles, que ultrapassasse a mera explicação, né, eu gostaria de exemplos práticos, exemplos do cotidiano, exemplos até que vão permear a vida profissional deles, mesmo sabendo que essa minha disciplina é de formação básica, mas já pra tentar desenvolver no aluno esse olhar mais crítico, né? Eu acho que a gente começa a mudar quando a gente começa a reformar o pensamento, né? Morin, fala muito sobre isso, né? Eu acho que a mudança acontece quando existe reforma de pensamento, então eu tenho que tentar priorizar, eu tenho que tentar estimular o meu aluno a sempre refletir acerca daquilo que tá sendo ensinado pra ele, né? Claro que, volto a dizer, tem que ter certa disposição pra fazer isso, né? Confesso que não é, digamos assim, nem todo mundo tem a paciência pra se dispor a ser bombardeado por perguntas, o tempo todo questionar e tal, mas eu acho que os professores precisam começar a mudar a sua prática, né? Eu percebo, às vezes, no ensino técnico, conversando com alguns colegas e tal e, quando você começa a ter um tipo de aula assim, os alunos começam também a falar sobre outros assuntos e outras disciplinas também. Então, assim, o retorno que alguns alunos me trazem, até alguns colegas que eu converso na sala dos professores, ainda pinta um cenário muito tradicional de ensino, né? Eu tenho alguns alunos que reclamam que alguns professores não estão preocupados em responder perguntas, coloca o que tá, a matéria no quadro e é aquilo ali e ponto. E se algum aluno tem alguma curiosidade, traz alguma coisa que ele leu em algum lugar e tal, o professor ignora. Então, assim, claro, eu acredito e tenho certeza que não são a maioria na instituição, mas existem professores que de fato não aproveitam esse potencial. São alunos de uma geração que tem um acesso absurdo à informação. Se falar um tópico em sala de aula, eles podem vir na aula que vem com cinco mil temas em cima daquele tópico que você falou. Eles vão colocar no Google, eles vão pesquisar, eles vão no youtube, eles vão
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fazer uma série de questionamentos, vão levantar reportagens. Eu acho que esse tipo de estímulo é muito válido, né, eu acho que a gente forma pessoas mais interessadas, pessoas mais politizadas, quando a gente começa a formar pessoas que estão o tempo todo refletindo, buscando saber, né, o que é que tá por trás daquilo, pensando das conexões que podem ser feitas com aquele conteúdo, acho que é por aí.
Pesquisadora Em relação as suas avaliações, sua visão de avaliação?
Prof. Toni Minha visão de avaliação, pois é.
Pesquisadora Como você pratica isso?
Prof. Toni
É, é. Eu aplico prova, eu aplico prova, né? Aplico prova, mas não é minha única avaliação, né? Além da prova, eu passo alguns trabalhos, como eu te falei, com relação a essa construção de vídeos, né, que eu coloquei, mas tem outros trabalhos que eu passo também tentando avaliar essa questão mais reflexiva. Mas, confesso que existe uma força, né, que nos enlaça nesse tradicionalismo que é a prova. Eu não sei nem se os alunos estão preparados a, de repente, ter uma disciplina que não tenha provas, né? Eu não sei se eles se sentiriam confortáveis, assim também, né? Então eu tento, eu tô tentando romper aos poucos com isso, né? Confesso que eu ainda aplico prova. E também não acho que, de repente, aplicar prova seja algo negativo, também não penso dessa maneira, não sou extremista a ponto: “Ah, olha, a disciplina vai ser sem provas”. Não, também não acho que seja. Mas eu acho que a gente tem que tentar ter um equilíbrio, né, tentar conciliar atividades como provas e outras atividades onde a gente dá outras avaliações, que a gente consiga dar espaço pro aluno se pronunciar, dar espaço pro aluno, enfim, colocar o que ele pensa, as impressões dele, isso eu acho importante também.
Pesquisadora Prof. Toni, e o papel dos laboratórios no ensino de química, como é que você vê isso?
Prof. Toni
Olha, eu acho isso... Essa é uma questão pra mim muito importante porque eu tenho um pensamento que eu costumo até dividir com alguns alunos com relação às práticas de laboratório. As práticas de laboratório que nós temos no curso técnico, assim como as práticas de laboratório que eu tive no ensino superior, são práticas de laboratório que visam ratificar a teoria. Então, assim, o professor explica um determinado fenômeno em sala, explica a lei proposta pra explicar aquele fenômeno, e os alunos depois vão pra sala, pro laboratório, melhor dizendo, reforçar, comprovar aquela lei. E aí, nessa comprovação, o que sai fora de controle, o experimento que deu “errado”, normalmente é descartado. Eu tenho uma visão que confesso que é distinta dessa. Pra mim, os laboratórios, as aulas práticas, não deveriam ser nesse formato, né? Eu tentei fazer isso quando eu lecionava em outro Campus, foi complicado pros alunos no início, mas depois eles começaram a se adaptar. Eu levava os alunos pro laboratório e trazia um problema pra eles, em laboratório. Um problema pra ser resolvido com o que tem no laboratório. Isso bota o cara pra pensar, é diferente do cara chegar com roteiro pronto e reproduzir um roteiro e, por exemplo, um experimento onde você vai perceber que o tubo de ensaio, a solução do tubo de ensaio, ela, após adicionar um determinado reagente, ela vai ficar azul. Então, todo mundo vai buscar a cor azul, ninguém vai refletir por que ficou azul. Ninguém vai refletir por que é que com aquele reagente fica assim, se iria ficar assim com outro reagente, né? A reflexão fica do lado de fora do laboratório, né, as pessoas estão ali no laboratório preocupadas em comprovar aquilo que foi dado em sala de aula, reforçar a teoria. Eu acho que deveria ser o contrário, eu acho que a gente deveria ir pro laboratório pra ter mais perguntas, ir pro laboratório pra encher a galera de interrogação. Até pra que eles percebam que as leis que os teóricos falam, as leis da física, as leis da química, todas elas têm a suas fragilidades, né? A gente vive hoje uma época do fim das certezas mesmo, né? Então, assim, qualquer equação que se propõe explicar qualquer fenômeno, essa equação tem sempre limites, ela não serve pra qualquer coisa, pra qualquer faixa de temperatura, pra qualquer faixa de pressão, tem sempre seus limites. Eu acho que é importante o
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aluno refletir sobre isso, pra que ele não comece a pensar de repente, que a química é uma ciência feita de verdades, verdades dogmáticas, né? Na verdade não é, né? Eu acho que a gente nesse sentido peca, né? Não que não seja importante de repente ele ir pra um laboratório fazer um procedimento e tal, mas uma ou outra prática deveria botar o aluno pra pensar, uma ou outra prática deveria ser aquele tipo de prática que o cara, né, ele tem aquele material nas mãos e ele tem que cumprir o objetivo, e aí, sem roteiro, sem nada. Como é que você faria? Que tipo de estratégia você iria traçar? Que vidraria você ia selecionar? Eu acho que isso forma o cara que vai atuar muito melhor e vai resolver problemas no mercado de trabalho, do que um cara que só foi programado durante sua formação a comprovar aquilo que foi dito em sala de aula, através de experimentos. Acho que a experimentação tem que cumprir outro papel, a experimentação tem que levar interrogação pro cara, não tem que levar a exclamação. A experimentação tem que ser a mola motriz de uma série de outras questões, ela não tem que ser afirmativas, declarações, né, comprovações daquilo que você viu em sala de aula, né? Eu acho que, eu penso dessa maneira. Mas é difícil fazer isso. É difícil por quê? Volto a dizer, a gente esbarra, e eu falo agora como professor que integro uma equipe, a gente esbarra com todo um tradicionalismo, com apostilas experimentais que já estão prontas, e assim, até, às vezes, você pode começar a se indispor com outros colegas, se você começa a fazer o diferente do script, né? Então, a gente precisa, eu acho que, e aí nesse caso, esse tipo de coisa só começa a melhorar se a gente começar a se encontrar, professores começarem a se reunir pra refletir o que está sendo feito, pra pensar em outras maneiras, pra que a coisa comece de fato a mudar, né?
Pesquisadora Você costuma consultar os documentos oficiais das diretrizes curriculares nacionais para o ensino técnico, ensino de química? Você teve acesso a esses documentos alguma vez?
Prof. Toni Tive, tive sim.
Pesquisadora Por iniciativa própria?
Prof. Toni
Tive sim. Mas assim, confesso a você que os contatos que eu tive com esses documentos foram motivados por outras intenções. Eu tive contato com esses documentos pra de repente pautar, fazer em sala de aula ou não, não foi. Na verdade, assim, em alguns momentos durante... Enquanto eu lecionei, leciono ainda, né, na Escola A, em alguns momentos eu orientei trabalho de conclusão de curso, né, orientei trabalhos na área de educação. E por conta disso, eu tive um contato maior com essas diretrizes, né? Mas, não existe, em termos institucionais, um trabalho de divulgação, ou de debate em cima dessas diretrizes, né? O professor quando... O professor recém-concursado, ou o professor substituto, que entra pra dar aula na instituição, ele recebe mais ou menos o que ele tem que fazer, né? “Olha, tá aqui a ementa, as aulas são tal horário, você tem que cumprir até aqui”. E é isso, né? Não se tem uma preocupação com essa questão de diretrizes, de orientações pro trabalho dele. Não, não. Se dá a ementa e fim.
Pesquisadora Em relação ao projeto político pedagógico da instituição, você costuma consultar?
Prof. Toni
O projeto político pedagógico da instituição, tive acesso, mas também por outras questões, por outras intenções. Eu acho que também seria uma coisa que deveria ser mais amplamente debatida, né? A gente tá vivendo agora um momento institucional delicado, né, estamos aí em greve, alguns professores estão se reunindo, inclusive pra poder debater essas demandas que existem no instituto, né, a gente chama de demandas internas. Eu acho que nessas demandas, uma delas é a própria divulgação e debate da proposta, né? Então, acho que a gente ainda tá caminhando em passos lentos, mas pelo menos estamos caminhando, estamos começando a discutir.
Pesquisadora Prof. Toni, como é que você avalia o interesse, o desempenho dos seus alunos em suas aulas, nas aulas de química?
Prof. Toni Pois é, eu costumo falar com eles isso, dar aula pro curso técnico em Química é muito bom. É muito bom por quê? Porque os alunos eles são muito
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interessados, né, eles gostam muito de química. Eu acho que talvez o complicado num curso técnico em Química, seja lecionar de repente outras disciplinas que não tenham a ver com química. Eles já entram no curso técnico em Química querendo ver cada vez mais química, e isso acaba me deixando um pouco preocupado, mas é uma preocupação que é boa, né? Como assim? Os alunos nos períodos iniciais, eles são ávidos por tudo o que você fala, tudo o que você debate, eles pesquisam e tal. E eu percebo que às vezes esses alunos no decorrer do curso vão se silenciando, né? E assim, não que o professor seja responsável por tudo, ou por esse silenciamento, mas eu acredito que às vezes a gente não consegue manter esse estímulo, né? Eu não sei se, de repente, no meio do caminho, isso vai ficando, né, cansativo pra eles, eu não sei. Eu percebo isso, às vezes os alunos de períodos mais avançados, alguns alunos, né, ficam mais quietos e menos interessados, né? Outros não, outros conseguem manter o gás até o final, mas outros ainda começam a ficar mais silenciosos e tal, não participam muito em sala de aula, né, e isso acaba me preocupando. Porque eu dou aula no primeiro período e dou aula também no terceiro e no quarto período, então eu consigo ter essa visão, né, de como era esse aluno no início, quando ele teve contato com a instituição, logo no início, como é que ele vai, né, com o passar do tempo alguns vão silenciando e outros vão até ficando cada vez, digamos, mais apagados, mais silenciosos. Isso é uma coisa que me preocupa, né, e que reforça pra mim a ideia de que a gente precisa de fato se reunir mais, discutir mais, né, reformar o currículo, né? O ensino técnico, volto a dizer, eu acho que o currículo do ensino técnico ele não consegue cumprir um papel intermediário, né, entre o médio e o superior, né? A formação do mercado de trabalho ainda tá muito setorizada nos períodos finais, né? Eu acho que o ideal seria que nós conseguíssemos um currículo onde o aluno, desde o primeiro período, fosse aos poucos sendo preparado pro mercado de trabalho, sem perder de vista essas questões mais reflexivas de atuação dele como cidadão, né? Então, acho que ainda faltam algumas reuniões pra gente começar a repensar e pôr em prática as mudanças nesse currículo.
Pesquisadora Você já falou pra mim, um pouquinho, a respeito da forma como o conhecimento científico é apresentado para os alunos. Qual é a sua visão sobre a forma como a química é apresentada?
Prof. Toni
É, eu acho que o conhecimento cientifico ainda é apresentado de uma forma tradicional, né? Eu acho que assim, o ideal seria que nós tentássemos apresentar o conhecimento científico, mas com todas as fragilidades que esses conhecimentos apresentam, né? Eu tenho pra mim que, na cabeça de alguns alunos, determinados conteúdos da área científica são, de fato, verdades absolutas, né? Talvez até pelo próprio empenho que o professor tem em passar essa verdade como algo incontestável, como algo que funciona sempre e tal. Então, assim, eu acho que esses conhecimentos científicos ainda estão sendo passados como se fossem, né, verdades incontestáveis. Eu, particularmente não acredito nisso, né, então acho que falta esse debate, falta essa tentativa de mostrar que: “Olha, não é bem por aí”, né? O que acaba também gerando, volto a dizer, um determinado incômodo no aluno, né, porque ele fica satisfeito com o “é sempre assim”, né? É sempre assim que vai ser? É dessa maneira? Ah, então toda vez que for assim é assim, né? Botar esse aluno sempre numa posição de reflexão, de perceber que aquilo ali é frágil e tal, isso abala também um pouco a segurança que ele tem com relação, porque ele também acredita que aquilo ali seja um conhecimento que tem uma verdade inabalada, né? Eu acho que isso acaba vindo de outras referências, de outros lugares, né? Eu acho que na própria trajetória de vida desse aluno, eu acho que aí a mídia contribui com isso também, os outros professores que ele teve no ensino
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fundamental também contribuem pra isso e tal, a vida traz pra ele uma visão de ciência muito, né, inabalada, a ciência que... O cientista como uma pessoa que tem um conhecimento que é pouco acessível, e um conhecimento que, por ser apoiado em experimentos, é um conhecimento, digamos assim, que é estável, né? Então, assim, como ele traz todos esses referenciais, você desconstruir isso em sala de aula, começar a falar que: “Olha, não é bem por aí, isso aqui funciona, mas só em determinadas condições. Isso aqui é frágil. Olha, essa lei é uma lei que só funciona pra determinados casos”. Isso acaba mexendo com a própria bagagem que esse aluno traz de conhecimento científico, né? E eu acho que é desse incômodo, esse incômodo que a gente tem que utilizar pra tentar, né, de fato construir novos conceitos, né? Mas, é complicada essa questão do conhecimento científico, voltando pra pergunta, eu acho que ainda é passado de forma tradicional, né? Eu vejo poucos professores que eu tenho contato, dos que eu converso, que de fato se preocupam em revelar alguma fragilidade daquele conhecimento, né? Eu acho que a maioria coloca aquilo, né, mesmo não intencionalmente como se fosse algo inabalado, constante, né, uma verdade absoluta.
Pesquisadora
Assim, eu não sei se você acompanhou, mas nós tivemos reformas, na história da educação profissional no Brasil, que se caracterizaram por um “vai e vem” em relação a integrar o ensino médio com o ensino técnico. Atualmente, essa oferta pode ser integrada, concomitante ou subsequente. Toni, o que você entende por formação integral? Você acha que consegue realizar, você acha que a instituição está preocupada, como você vê isso?
Prof. Toni
Olha, eu acho que a instituição tenta, tenta, porque, assim, a gente percebe que o aluno no curso técnico hoje, né, e eu falo, a referência que eu tive, né, eu estou lá há seis anos, eu percebo isso. O aluno do curso técnico ele não... Eu não acredito que ele esteja sendo, digamos assim, formado pra apertar botões, né? Eu acho que a instituição tem uma série de programas, iniciativas, a própria iniciação científica pra esses alunos que estimula a pesquisa e tal, isso acaba promovendo também reflexão em cima de conteúdos, enfim. Então, eu acho que o aluno do técnico, hoje, ele tem uma formação mais próxima dessa, digamos, formação integral, que, na minha concepção, é um tipo de formação que cumpre o que tem que ser cumprido com relação ao mercado de trabalho, né, sem deixar de lado todas as nuances políticas, todos os debates que aquela produção de conhecimento possui, né? Mesmo admitindo aqui, né, nessa entrevista, que a gente tem algumas disciplinas da Química que precisam de enxugamentos curriculares, alguns tópicos que eu acredito que não são necessários, mesmo admitindo que a gente precisa se encontrar mais, enquanto professores, pra tentar buscar outras abordagens, eu ainda acho, eu ainda acredito que o que a gente tem atualmente, né, vem produzindo bons frutos. Claro que eu espero que melhore cada vez mais, tem fraquezas, tem fragilidades, eu sei. Mas, o aluno do curso técnico hoje da Escola A, ele tem contato com pesquisa, o aluno do ensino técnico, ele se envolve em projetos de monitoria, ele se envolve em uma série de projetos que alargam o conhecimento dele, né? E muitas vezes ele é remunerado por isso, né, eu acho que na maioria das vezes ele é remunerado por isso. Então, existe um incentivo da instituição pra que esse aluno consiga ter uma abertura maior em termos de conhecimento, que esse aluno consiga ser capaz de visualizar aquele conhecimento de maneira mais ampla, né? Então, às vezes, algumas, digamos, algumas falhas que acontecem em sala de aula podem ser compensadas com iniciações científicas, enfim. Então, eu acho que a gente hoje se aproxima dessa formação integral, apesar de reconhecer que tem ainda coisas a melhorar, mas a gente se aproxima.
Pesquisadora É uma busca, né?
Prof. Toni É, é uma busca, é uma busca. Eu acho que a gente tem sempre que tentar colocar o aluno como sujeito reflexivo, né? E aí, colocar o aluno como sujeito reflexivo requer, entre outras coisas, algumas mudanças também em sala de
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aula, né? Essa talvez seja uma das críticas que eu faça, mas fora isso, tirando só esse condicionante de sala de aula, os outros, com relação a projetos de pesquisa e tudo mais, eu acho que a gente consegue alargar o conhecimento do aluno, a gente consegue fazer com que o aluno reflita, então acho que se aproxima dessa proposta de ensino integral.
Pesquisadora Essa formação integral, ela tem várias visões, vários sentidos. Tem o sentido político, estrutural como acabamos de falar. O curso do Campus B, ele é integrado, né?
Prof. Toni É.
Pesquisadora É um curso que se assemelha ao que era do Campus A, atualmente ?
Prof. Toni Isso, isso.
Pesquisadora Em uma mesma matrícula oferece formação de ensino médio e técnico.
Prof. Toni E ensino técnico, é.
Pesquisadora E também tem a visão da integração dos conteúdos das disciplinas, da química geral dos primeiros períodos com a química da parte técnica ou ainda com as outras disciplinas. Você acha que consegue realizar isso?
Prof. Toni
São duas perguntas essa. Eu visualizo muitas conexões, visualizo muitas. Assim, inclusive acontece na química, do aluno ver um determinado conteúdo em físico-química, e vê o mesmo conteúdo em química analítica. Só que o que falta? Agora é a segunda pergunta, a comunicação entre os professores, pra que eles tentem ter uma atitude mais interdisciplinar. Assim, se fala muito de interdisciplinaridade e tal, mas eu acho que a gente tem que tentar mostrar pro aluno que essas conexões são possíveis, pra gente começar a tentar educar esses alunos pra que, mais adiante, eles consigam visualizar essas conexões, né? Eu costumo falar isso pra alguns amigos meus. Eles recebem uma série de envelopes, né, envelopes disciplinares, mas, por vezes, eles não conseguem rasgar esses envelopes, ele acha que um determinado conteúdo de físico-química pertence a físico-química. Então, é quase um pecado esse conteúdo aparecer em química analítica, aquele conteúdo é de físico-química, como é que pode, né? É a mesma coisa, de repente, eu falando em físico-química de uma equação de reta e começar a falar da equação de reta, do coeficiente angular, do coeficiente linear. Eles chiam: “Espera aí, isso é matemática”. Como assim, isso é matemática, tem dono, tem etiqueta? Não tem, né? Isso é conhecimento, isso tá tudo junto. Eu tento fazer essas conexões, mas eu confesso que às vezes fico sozinho, fico sozinho, né? Porque não encontro eco, eu divido com alguém, aí ele fala: “É mesmo, isso eu também falo em química analítica. O que você acha da gente fazer uma coisa conjunta e tal? Não sei, será que vai dar certo e tal”. Existe, às vezes, esse medo do professor e isso também acaba remetendo a própria formação que esse professor teve, eu não sei qual foi a formação que ele teve, eu não sei, de repente, se ele se sente confortável em colocar a disciplina dele de outra maneira, né, em sair dessa zona de conforto, desse estrato do jeito que tá e mostrar: “Olha, isso aqui faz parte daquela disciplina, daquela outra também. Faz parte da outra também”. É tudo química, é tudo química, né, a separação foi só didática. Mas, eu percebo isso, a gente vai entregando os envelopes pros alunos e às vezes eles assumem esses envelopes como intocáveis e ninguém pode rasgar. Aquele pacote é da físico-química, aquele outro pacote é da química orgânica, aquele pacote é da química analítica. E aí, se você coloca o problema que mistura orgânica, analítica e “fisqui”, o cara fica, às vezes, parado, imóvel, estático, porque ele não tá habituado a rasgar os envelopes e ver o que... daquela mistura, quais são as partes comuns, quais são as interseções, né, o que é comum às disciplinas.
Pesquisadora E em relação a outras disciplinas, ciências, mais de Humanas; geografia, história, sociologia, filosofia.
Prof. Toni Se eu percebo que tem...
Pesquisadora Você acha possível fazer, você consegue fazer algum tipo de interdisciplinaridade como você falou, alguma integração?
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Prof. Toni
Perfeitamente possível. Assim, nesse primeiro período, eu consegui fazer um debate com a professora de geografia, né, que eu estava começando a falar sobre leis ponderais, leis ponderais é um assunto que dá base pras relações de massa na química, só pra tentar resumir. E as leis ponderais, elas foram criadas por iluministas, né, e aí eu comecei a debater com os alunos essa questão do eurocentrismo presente no ensino, né? Do quanto o ensino ainda é eurocêntrico e tal. E aí, como eu falei pra você, né, o ambiente em sala de aula, na minha aula é aquele ambiente de muitas perguntas, de liberdade pro aluno conversar e falar o que pensa pra mim, a gente vai conversando e tal. E aí, o debate foi sendo conduzido, as perguntas foram sendo conduzidas até que a gente chegou num ponto que a gente começou a falar sobre mapa mundi. A discussão é por que o mapa é desse jeito que nos é apresentado, né, com a América do Sul, América do Norte, quem é que tá lá em cima, quem é que tá lá embaixo? Será que existe um referencial pra dizer se a Terra tá de cabeça pra baixo ou de cabeça pra cima? Quem é que fez isso, né? E aí, acabou a aula e eu não consegui, dividi com a professora de geografia, ela já estava falando sobre isso, mas ela estava falando sobre isso, na verdade, ela estava começando a falar sobre essa questão dos mapas. Aí ela... a gente acabou conversando, numa conversa informal em sala, na sala dos professores, a gente começou a fazer um trabalho em conjunto. Então assim, é perfeitamente possível fazer essas conexões, a geografia é riquíssima, a sociologia também, a história, enfim. A matéria, na área de Humanas, ela integra a cultura geral, integra o conhecimento, né? Nenhum conhecimento científico é desvinculado de razões políticas e de contextos históricos, todos têm, né? E quando a gente se aprofunda nesses contextos históricos, a gente consegue entender melhor o porquê foi daquele jeito, por que aconteceu daquela forma. Então, assim, eu acho que a gente precisa se educar também a tentar trazer, tornar isso mais presente pros alunos, né? Eu sei que isso vai gerar impacto, porque é estranho mesmo pra eles, né? É estranho, de repente, numa aula de física o professor falar um pouco sobre iluminismo, numa aula de química o professor falar sobre os déspotas esclarecidos, sobre o que foi o séc. XVII, o séc. XVIII e o séc. XIX, a Revolução Industrial, as bases da Revolução Industrial com relação à química, onde é que a química entrou pra contribuir nisso aí e tal. Mas é riquíssimo, eu acho que é o tipo de coisa que dá sentido pra outras matérias, né? Dá sentido pra... As matérias se ajudam, é um mutualismo que só rende frutos, porque uma vai dando sentido pra outra, uma vai complementando a outra e tal. Mas, né, requer também certa disposição pra isso, né?
Pesquisadora Prof. Toni, você costuma envolver seus alunos em projeto de pesquisa?
Prof. Toni Agora eu estou no Campus B há um ano, né? Como agora que tá tendo a primeira turma de terceiro período, eu ainda não envolvi nenhum aluno com projeto de pesquisa, não, mas costumo envolver sim, costumo envolver.
Pesquisadora Você acha importante?
Prof. Toni
Acho importante, acho importante. Acho importante porque é um momento que você consegue fazer com que aquele aluno não só reflita sobre o que ele está pesquisando, como ele também comece a buscar a ler mais, a pegar outros artigos, a inventar, né, em cima daquele que tá sendo pesquisado, acho super importante, super importante.
Pesquisadora Quando você se envolve com seus alunos em um projeto de pesquisa, que tipo de princípios, de valores, enfim, quais os principais aspectos que norteiam o projeto de pesquisa?
Prof. Toni
Eu acho que eu tentaria localizar aquela pesquisa em outras áreas, assim, tentar dar sentido àquela pesquisa com debates que vão pra outras áreas, né? Por exemplo, na pesquisa que aborde uma questão energética, tentar promover debates com relação à sustentabilidade, a coisas do tipo, tentar alargar, né, aquele tema de pesquisa pra outras áreas. Isso é um exercício que eu faria com o meu aluno, mas sem trazer nada pronto pra ele, seria uma construção mesmo, né? Tentar a gente pensar, os dois pensando juntos, em como aquele tema poderia ser alargado. As outras nuances que aquele tema tem em outras
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áreas, por exemplo, né? Eu acho que isso seria um principio interessante pra qualquer pesquisa. E eu estendo isso, eu acho que não só nas pesquisas que a gente realiza no ensino técnico, como também qualquer pesquisa, né, nível universitário e tal, pós-graduação, ela precisa ter esses limites alargados, assim, né, essas reflexões, assim...
Pesquisadora Mais amplas.
Prof. Toni Mais amplas. Isso.
Pesquisadora Prof. Toni, o que pra você seria um ensino de qualidade, uma educação científica de qualidade no contexto da educação profissional? A que referenciais de qualidade você associaria a educação científica na formação profissional?
Prof. Toni Ai, ai, ai .
Pesquisadora Pode pensar.
Prof. Toni
Não, assim, eu acho que nessa entrevista eu fui pontuando de fato algumas opiniões sobre isso. Eu acho que a gente tem um formato de escola que é bem interessante, um ambiente que é propicio pra essa educação de qualidade, nós temos uma escola que oferece pesquisa pros seus alunos, que tem uma biblioteca com bom acervo, né? Que tem condições também, e aí eu falo dos campi que eu lecionei Campus B e C, em termos de infraestrutura, né, são campi que não deixam nada a desejar, né, a estrutura é muito boa, mesmo sabendo que a realidade de outros campi não seja talvez a mesma. Mas, voltando à questão. Diante desse ambiente, eu acho que pra gente ter um ensino técnico de qualidade, a gente precisa ampliar os debates entre os docentes sobre que tipo de cidadão queremos formar, né? Eu acho que, com uma infraestrutura boa, só falta talvez uma vontade, digamos assim, mais institucional, de promover reuniões pra que os professores comecem de repente a refletir, e alguns até, quem sabe, serem convencidos de que algumas reformas são necessárias, né? De que a gente pode formar um bom profissional sem perder um bom cidadão, né? Então, eu acho que nós temos um ambiente propício pra isso, eu acho que falta, de fato, começarmos a melhorar o que diz respeito à sala de aula, né, eu acho que a gente pode debater mais, reformar o currículo a ponto de ter um tipo de ensino de fato integral, né? Um ensino que prepara um profissional pro mercado de trabalho, mas um profissional politizado, um profissional participativo, um profissional que tenha a consciência ambiental, um profissional que reflita acerca de questões políticas, né? Eu acho que a gente tem o ambiente pra isso, o que falta mesmo é começarmos a amplificar os debates, alguns debates já acontecem, mas a gente tem que amplificar esses debates pra tentar formar um corpo docente mais coeso com relação às ideias, né, as ideias de formação. Então, eu acho que é isso o que eu penso.
Pesquisadora Professor, muito obrigada!
Prof. Toni Eu que agradeço.
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APÊNDICE 5 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR VÍTOR (ESCOLA A - CAMPUS II)
ENUNCIADOR ENUNCIADO
Pesquisadora Tudo bem então?
Prof. Vítor Vamos lá!
Pesquisadora Professor, as legislações, as diretrizes curriculares nacionais que regulam a formação profissional de nível técnico, elas preveem como objetivo central da educação científica neste contexto, a formação para o trabalho.
Prof. Vítor Certo.
Pesquisadora Então, eu queria que você falasse um pouco sobre a sua visão em relação a esse objetivo de formação para o trabalho no nível técnico.
Prof. Vítor
Eu vejo que a visão da formação técnica ela tem que tá fundamentalmente estruturada pra capacitar o futuro profissional técnico para as atividades de busca de solução de problemas, não existe receita de bolo. Não é apenas apertar parafuso, abrir e fechar de uma forma mecânica, tem que pensar. E a minha experiência como técnico, né, no início, de uma formação como técnico, ela foi muito voltada dentro do antigo CEFETEQ, que você tinha que planejar e conseguir entender o que o chefe, o coordenador de um determinado projeto, atividade, fazia. Pedia, você tinha que parar pra pensar, não era atividade mecânica. Então, eu acho que hoje, né, antes e hoje, o que vai garantir um sucesso profissional de um aluno, né, na sua carreira como técnico, é uma visão mais analítica e crítica dessas funções que eu tenho que executar. Então, hoje, as estruturas curriculares têm que estar cada vez mais voltadas pra essa parte, que é fazer o aluno pensar, fazer o aluno ter uma visão crítica, planejar, pra poder chegar a um determinado resultado de uma forma mais específica. Não é meramente executar as operações de forma mecânica. Eu tenho uma experiência interessante que é um estaleiro. Ele contratou, estava precisando de uma mão de obra, aí fez um contrato com uma escola, não sei qual foi a escola, não era uma escola técnica, onde teve que capacitar alunos pra fazer soldagens do navio. Então foi algo mais mecânico. Após a conclusão do projeto, quando foram testar essas soldas, todas as soldas estavam erradas, tiveram que refazer o trabalho. E um dos diagnósticos desse relatório é que os alunos foram apenas ensinados a como fazer de uma forma direta, sem planejar, sem uma qualidade no trabalho. Então isso, eu li essa matéria num determinado tempo atrás, eu acho que isso tem muito a ver com o que eu tô explicando, que você tem que planejar, não é meramente chegar e treinar pra executar de uma forma dura, né? Tem que planejar, eu acho que é uma coisa mais de software, que é planejar, pensar, e avaliar como é que vai desenvolver determinadas atividades. Foi esse o exemplo.
Pesquisadora Então, além desse objetivo no curso técnico, você estabeleceria outros objetivos educacionais pra essa formação, além da formação para o trabalho?
Prof. Vítor
Sim, sim, eu colocaria sim. A minha experiência também lá na Escola A, onde nós temos antropólogos, sociólogos, filósofos, nós fizemos algumas discussões lá no Campus B da Escola A. E a minha visão é estritamente técnica, aquele engenheiro, né, do século passado, aí onde tem uma visão de execução mesmo da parte técnica, ou seja, a tecnologia pode tudo. Eu sempre pensei assim. Mas aí, nesses últimos tempos, eu começo a refinar, refutar esse conceito um pouco antigo. Acho que tem que inserir o profissional hoje no mercado de trabalho, mas com uma visão mais social, uma visão mais humanista. O que seria essa visão humanista do pouco que eu aprendi nessas discussões com antropólogos, sociólogos, até pedagogos? Que não basta apenas ter uma visão estritamente técnica, mas tem que ter uma visão um pouco mais social e humanista, que tá associado como construir um mundo melhor, um mundo mais sustentado do ponto de vista social. Então, eu acho que é fundamental agora, pro aluno, né, pro curso técnico, ter
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essa disciplina da parte social. Agora, o currículo foi mudado, onde... o currículo que eu tô falando, cursos integrados de Química, foi mudado onde agora todos em todos os períodos estão colocando filosofia e sociologia. Não vou dizer que é o correto em todos os períodos, mas a necessidade de ter essa disciplina, na visão social pra o mundo do trabalho, ter uma visão um pouco mais humanista, até construir uma visão mais sustentável, eu acho até relevante, é extremamente relevante. E é uma opinião de um engenheiro, né, que acredita sempre na ciência acima de tudo, assim, na parte da engenharia hardware, né, do cálculo, cálculo, né? Então, eu começo a ver que existe uma mudança, então eu considero importante ter uma visão, além do que eu falei da parte técnica, de ter uma visão também um pouco mais social, um pouco mais filosófica, né? A ciência... O crescimento da sociedade como um todo, é isso que eu quis dizer.
Pesquisadora Isso influencia de alguma maneira a sua seleção de conteúdos? Você consegue acessar algum conteúdo, além dos determinados pela ementa que, em geral, a gente recebe para trabalhar?
Prof. Vítor
Certo. É, em relação... Eu sempre busco nas disciplinas que eu aplico, que é a parte da aplicação mais específica, eu sempre tento buscar estudo de casos associados à solução de problemas do mundo, de um mundo real. Então eu busco experiências, vamos dizer assim, às vezes prazerosas, não prazerosas, em relação aos resultados sociais que aquela atividade vai buscar em, por exemplo, um acidente do trabalho, né, quais são as expectativas, né, a parte do estresse psicológico. Então, sempre tem que fazer um link, uma analogia, uma visão que, às vezes, extrapola um pouco a parte técnica de uma ementa, de um programa que é apresentado. E isso eu sinto um pouco que não é... Nós fizemos uma revisão agora do curso integrado de Química, onde eu acho que tem pouca especificidade na estrutura do conteúdo, acho que tinha que ter algo um pouco mais direcionado. Quais são os estudos de caso que seria a apresentar? Qual é uma visão holística e aplicada de algumas disciplinas? É lógico que em algumas disciplinas isso não cabe. Exemplo: a matemática vamos dizer assim, a matemática ou a física nos cursos iniciais. Agora, a matemática e a física, na fase final do curso, onde são as aplicações específicas, eu acho que caberia uma visão um pouco mais aplicada com estudo de casos pela parte social, solução de problemas. Eu acho que é isso que o país precisa, de uma forma geral, é isso o que o país tá precisando de forma imediata, ou seja, busca identificar potenciais problemas específicos associados ao conteúdo de cada disciplina, seja disciplina técnica ou não técnica.
Pesquisadora E quanto às suas metodologias de ensino, a forma como você ensina?
Prof. Vítor
Eu procuro sempre dinamizar as aulas, uma crítica que eu faço aquele show de Power Point. Não apoio o show de Power Point, eu converso muito com os alunos, e também sou aluno, então passar o Power Point direto, ou ficar escrevendo no quadro de uma forma direta, eu tenho uma visão crítica que isso não motiva o aluno. E eu ainda ministro aulas, principalmente à noite, onde você tem que ser uma espécie de, um showman, do ponto positivo da palavra. O que seria esse showman? Você motivar o aluno a prestar atenção. Como? Mostrando casos práticos, tangíveis pra ele. Então, uma técnica que eu adoto, né, não sei se é correto, né, ou é errado, mas os alunos têm uma resposta positiva, que é mostrar estudo de casos práticos de coisas que são tangíveis ao mundo dele. Como eu ministro a aula? Pros alunos do curso técnico e também alunos de graduação, né, na universidade, eu vejo que isso é cada vez mais imperativo, que é você mostrar casos práticos, pra que o aluno da noite, né, o aluno às vezes de uma aula de... duas horas de aula, né, que ele fique motivado a apresentar. Aí, tem que pegar, porque tem que tá sempre estudando, pegando caso do jornal, pegando casos práticos. Por exemplo, hoje eu estava olhando o jornal de
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manhã cedo, aí vi esse caso da explosão lá no Porto, no Cais do Porto, e vou aplicar uma prova hoje. Então, o que eu vou fazer? Vou pegar uma questão da prova, vou pegar o recorte do jornal, xerocar, colocar na prova e vou mandar ele fazer uma análise crítica do estudo de caso da disciplina de análise de risco. Então, eu acho que isso faz... isso tenta inserir o aluno num mercado de trabalho, num contexto mais realista e algo que ele tá visualizando. Eu acho que, no ano passado também, fiz outro estudo de caso que foi aquele acidente que aconteceu no Centro da cidade. Teve uma explosão onde morreu uma pessoa numa cozinha industrial. Aí, peguei esse caso e mandei ele analisar, aplicando os fenômenos físicos, os fenômenos químicos associados a isso. Então, na minha opinião, uma boa aula, um bom ensino é poder você colocar, primeira parte, dar os conceitos físicos e matemáticos, depois aplicação no estudo de caso e depois uma análise que ele faça essa interpretação. Então, acho que isso é uma metodologia. É lógico que na minha disciplina pode ser até um pouco mais fácil, porque eu ministro aulas com exemplos de projetos e processos, né, então um pouco mais fácil, mais tangível pro aluno visualizar. Talvez outras disciplinas, como a matemática, a física, já é um pouco mais difícil. Mas que isso aí tem que ser buscado, senão perde-se, né? É muito difícil, a aula se torna um pouco mais, vamos dizer assim, torna a velocidade da aula um pouco mais lenta, né, então acaba não motivando o aluno. Tem que motivar o aluno a pensar, né, porque tem uma teoria interessante que você tá explicando, né, então nos primeiros dez minutos ele tá antenado, nos próximos cinco minutos ele perde, depois desse tempo ele já não consegue mais absorver as informações. Então, você tem que tá sempre motivando, alterar o tom de voz, né, colocar Power Point, fechar o Power Point e ir pro quadro, depois fechar o... não copiar mais no quadro, né, na lousa, e ir pro Power Point, fazer gestos com as mãos, trazer modelos de lego. Tô com um projeto que agora que tentaram desenvolver modelos de lego pra explicar projetos de petróleo. Então é uma técnica que eu tô buscando, que eu vi, eu observei isso na pós-graduação lá na UFF, eu acho a técnica extremamente válida, onde os alunos ficaram... aula de sábado, né, oito horas de aula de sábado, então os alunos foram extremamente positivos. Então, usar a técnica do lego, onde ele mete a mão, consegue observar. Então, essa é a forma de você ministrar uma melhor aula, não é somente show de Power Point, eu ficar copiando e falando na mesma entonação, principalmente à noite. Essa é a minha visão.
Pesquisadora E sobre a avaliação, qual a sua visão sobre o papel da avaliação educacional?
Prof. Vítor
É, avaliação. Avaliação pra ter um... pra medir um grau, pra ter um grau, eu acho que é um dos instrumentos mais importantes. Tem que ter uma parte prática, uma parte prática e uma parte teórica. Nem sempre é possível. Essa parte teórica seria avaliação normal, né, uma prova, né, de um a dez, né, desenvolver, mas as questões têm que tá extremamente associadas para o conteúdo com estudos práticos. E outros são trabalhos em grupo, eu particularmente não gosto muito de fazer trabalho em grupo de quatro ou cinco, gosto de trabalhar em grupo de dois ou três. Por quê? A minha experiência mostra que quando você trabalha num grupo de quatro, cinco, né, tem aquela expressão, né? Vou colocar aqui, na aba, né, então sempre fica um aluno na aba. Eu sou aluno hoje, e às vezes tem trabalho de quatro, cinco, às vezes também fico na aba, ou seja, fico esperando resultado e a sua participação é uma participação mínima. Então, às vezes, quando você coloca um número menor de alunos, dois alunos, três alunos, eles são obrigados a participar de uma forma maior. Então, a tendência é que isso ocorra. Então, sempre fazer uma avaliação teórica, uma avaliação prática, acho que é a melhor forma de fazer. E escolher bem as questões, onde tem uma ponte entre o que você ministrou na aula aplicada ao mundo... Então, essas são as questões que fazem, não são questões teóricas, eu detesto questões de
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decoreba. O que são questões de decoreba, né? Fala lá, quais são os ácidos? Aí fala o nome de cada ácido. Eu particularmente não gosto muito dessa abordagem, eu gosto mais de você, tudo o que for como decoreba, você dá esse instrumento como a ferramenta de trabalho, e fazer ele raciocinar, ele fazer refletir. Porque na verdade, eu aprendi isso na minha graduação, que o que a gente aprende mesmo é buscar onde estão essas informações e como usar as informações. O cérebro tem uma capacidade limitada de armazenar, então o conceito é que é o fundamental. Então, cobro muito a aplicação de conceito nas minhas avaliações. O conceito é que vai fazer o aluno, o futuro profissional a buscar o livro ou ir à internet, e analisar aquelas informações. Então usar a internet como ferramenta de trabalho, usar o livro como ferramenta de trabalho e aplicação de conceitos. Basicamente isso que eu cobro nas minhas avaliações específicas.
Pesquisadora Você usa o laboratório, professor?
Prof. Vítor Não, eu não uso. A disciplina que eu ensino normalmente não tem laboratório.
Pesquisadora Na sua opinião, qual o papel do laboratório para o ensino de química?
Prof. Vítor
Laboratório é importante. Como técnico em Química, né, fui técnico em Química, então laboratório é onde você faz as práticas, as experiências, onde você tem diferentes alternativas de testes, que são os laboratórios. Então, se pudesse eu sempre usaria. Por exemplo: o uso de um lego é como se fosse um laboratório em sala de aula, pra você demonstrar pro aluno quais são os equipamentos, qual é um arranjo submarino, qual é um equipamento que pode explodir ou pode pegar fogo, né? A montagem de determinados equipamentos com um determinado protótipo, desenvolvimento de protótipos, né? Então às vezes, por exemplo, nós temos as feiras de ciência, né, a SEMATEC, a Semana de Ciência e Tecnologia na Escola A, onde eu busco sempre construir um protótipo, que é um laboratório, onde você vai maximizar o conhecimento do aluno é construir um protótipo específico, onde ele vai poder pegar, ou seja, a parte, o top físico, isso aí é fundamental. Onde ele vai poder testar as diferentes observações, as alternativas de projeto, ou as experiências mais lúdicas, né, basicamente isso o que eu faço.
Pesquisadora Professor, você já chegou a acessar algum documento oficial das legislações, o projeto político pedagógico da instituição? Você concorda com eles ou não, acrescentaria alguma coisa?
Prof. Vítor
É, consultar pra usar não. Nós fizemos uma análise como atuo também, como Coordenador do curso técnico, nós fizemos uma análise do projeto político pedagógico. E a estrutura da Escola A, ela tá ainda em desenvolvimento e eu acho que poucos são os parágrafos dessa norma que são utilizados de uma forma estrita. Eu acho que é utilizado de uma forma mínima, né? Então, por conta dos docentes, da experiência que eu tenho com os outros docentes, nos meus pares de trabalho, acho que ele ainda é utilizado de uma forma mínima, né? O que é basicamente efetivado? O número de avaliações, a gente... Qual é o número de avaliações mínimas, né? Duas avaliações mínimas por cada bimestre. As orientações de questões, de elaboração das provas, isso a gente acaba avaliando, mas ainda é de uma forma muito incipiente a meu ver.
Pesquisadora Como é que você avalia o interesse e o desempenho dos seus alunos na sua aula?
Prof. Vítor
O interesse, como eu tento buscar sempre uma aula dinâmica, eles gostam da parte dinâmica, eu noto isso, né, nas entrevistas, nas avaliações, eu acho que eles gostam da parte dinâmica da aula, onde tem exemplos. Eles gostam mais quando são apresentados os exemplos práticos, o estudo de casos associados às atividades, mas eles não gostam das provas. Por quê? Eles acham que as provas são ... as perguntas são muito complexas, eles dizem que não sabem o que tá sendo perguntado. Fazendo uma autocrítica, eu até concordo com eles, porque às vezes tem uma questão que eles não sabem por que estão sendo perguntados em relação a isso, porque às vezes você tem que se transportar para o ambiente de trabalho, para um mundo real de um projeto de engenharia de petróleo, uma
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petroquímica. Então, como eles não têm, mesmo com as visitas técnicas que são realizadas, eles ainda não têm a expectativa, não conseguem ver como o que tá querendo ser perguntado. E são às vezes, quer dizer, ao ver do profissional que já trabalha alguns anos nisso, acho as perguntas fáceis, mas quando passa pro aluno ele não sabe o que é um tanque de petróleo, o que é uma bomba, o que pode vazar, quais são as propriedades físico-químicas da substância A, B ou C, em termo de toxidade. Que são questões que ele tem que saber, e acaba ele não conseguindo responder, então às vezes são respostas esporádicas. Então, a parte da aula eles gostam, mas na avaliação das provas eles questionam muito. Isso é uma unanimidade nos quatro, cinco períodos que foram ministradas as aulas.
Pesquisadora
Entendi. E assim, qual a visão de ciência que você busca passar para os seus alunos? Você se preocupa com a visão de ciência que os alunos constroem nos cursos técnicos? Professor, se você quiser que eu dê um pause, em qualquer momento, é só falar, tá?
Prof. Vítor
Não, tô ouvindo, essa pergunta é difícil. Eu tento passar pra eles a visão de que a ciência, ela sendo bem utilizada, sendo bem conduzida, ela resulta em... ela gera resultados bastante positivos, mas tem que pesquisar continuamente. E tem que insistir, tem que insistir mesmo pra dar um determinado resultado. Então, busco que os grandes descobrimentos, as grandes descobertas, foram feitas basicamente por acaso. Ele não estava planejando encontrar aquele determinado resultado. Então, eu tento mostrar pros alunos, até mesmo pra mim, que às vezes você desenvolver um modelo matemático, você acaba passando um tempo muito maior e buscando outros resultados.
Pesquisadora Outras descobertas.
Prof. Vítor
Então eu acabo... Eu até expliquei pra eles, que, às vezes... eu recebi a incumbência de um aluno, né, de um amigo, pra fazer uma modelagem de matemática, de uma conversão de unidades. Eu fiquei... eu achei que era fácil, fiquei quatro, cinco meses pra achar o resultado, trabalhando uma hora por dia, duas horas por dia. Aí, quando eu conto isso pros alunos eles ficam, assim, espantados, porque é um nível de insistência pra chegar a um determinado resultado.
Pesquisadora E muitas vezes eles pensam que a ciência é coisa pra gênio, né? É coisa pra superdotados, não é?
Prof. Vítor
Não, eles falam isso. Aí, eu falo pra eles assim: eu sou, olha aqui, eu sou ... fui um aluno mediano e tô aqui ministrando aula aqui pra vocês, né, e vocês: “Ah, professor, você é muito inteligente”. Não, eu sou um aluno mediano, então me tenho como exemplo, vocês podem também ir além, né? Então, não precisa ser um gênio, né, um “cdf” pra poder chegar a alguns resultados práticos, resultados positivos na sua carreira profissional. Então, tem que insistir, não tem jeito. É uma constância, tem que ler muito, aplicar, refutar, sempre criticar. A ciência só chegou ao desenvolvimento a partir das críticas, a partir de não concordar. Não aceitem o que eu falo passivamente. Eu comento, não aceitem porque nós, professores, nós seres ... nós podemos errar, então não aceitem, refutem. Nós podemos pesquisar, chegar a um consenso, mas não aceitem o que eu falo. O que às vezes eu falo pode estar errado. Então, eu sempre passo isso pra eles, pra eles questionarem o professor no campo profissional, no campo bastante científico, isso é o que eu sempre falo pra eles. Pra poder chegar à aplicação da ciência de uma forma mais estrita, né, de uma forma mais fundamentada, né?
Pesquisadora Então, agora em relação a forma como ensino médio e a formação profissional se estruturaram ao longo da história. Eu não sei se você chegou a acompanhar, mas você foi aluno do técnico ... .
Prof. Vítor Eu fui aluno do técnico.
Pesquisadora Você deve lembrar que esse ensino era oferecido de forma integrada.
Prof. Vítor Certo.
Pesquisadora Você saía com o ensino médio e a formação profissional, na ocasião em que
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você se formou certo?
Prof. Vítor Foi, foi.
Pesquisadora Depois veio a Lei em 97 que, obrigatoriamente, separou o ensino médio e a formação profissional. Isso foi compulsório, não é?
Prof. Vítor Obrigatório, pelo governo.
Pesquisadora
Essa compulsoriedade valeu até o ano 2004, quando veio o Decreto 5154 que permitiu que as escolas voltassem a oferecer o integrado, mas também, deu liberdade para outras possibilidades, como o concomitante e o subsequente. Então, professor, o que você entende por formação integral? Formação integral do técnico, né, no caso aí do Técnico em Química?
Prof. Vítor
A formação integral é dividida basicamente, pro curso técnico, eu vejo que é dividido em duas partes, muito claras. Uma é a formação da parte técnica do mundo do trabalho, das disciplinas específicas da parte técnica; e a outro é a formação onde ele vai ter aulas de português, geografia, matemática, sociologia, pra poder integrar sua formação técnica. Então, quando é um ensino integrado, tem que unir essas duas áreas, essas duas áreas temáticas pra formar o cidadão. Então, a formação do cidadão não é essencialmente, né, a parte técnica ou apenas a formação do antigo 2º grau.
Pesquisadora Só acadêmica ou propedêutica, como é chamada.
Prof. Vítor
Acadêmica, né? Propedêutica, né, falando o termo mais específico. Então, a formação do cidadão para o mundo do trabalho, de uma forma integrada, tem que ter essas duas áreas muito bem associadas. E uma dá suporte pra outra, então a disciplina de propedêutica, né, dá suporte para ele poder compreender melhor a parte técnica de química, física, né, porque você tem que interpretar justamente os textos, as leituras, e às vezes estão entre as linhas, então você tem que ter um bom ensino da parte de... da gramática, do português, desenvolver um bom relatório. Às vezes você tem uma questão de matemática onde não é a matemática que tá dificultando, é a interpretação do texto da pergunta, né, interpretação do questionamento. Então, é fundamental isso tá muito bem integrado. Quando foi feito, isso no passado, né, essa ruptura, botar o ensino num determinado turno, é isso, né? Eu acho que isso perdeu, eu acho que fez uma ruptura, onde teve uma dissociação, eu acho que quem saiu perdendo foi muito o aluno. Não, eu acho que tem que tá de uma forma justamente mais integrada, não pode tá separado. “Ah, você agora vai fazer o curso técnico, vai pegar só disciplinas técnicas. Você agora vai ter a formação acadêmica normal”. Eu acho que isso não foi um bom resultado.
Pesquisadora Então às vezes essa formação integral também ela é falada do ponto de vista do conhecimento, de integrar conhecimentos, da parte de formação geral com a específica ou profissional, ou dentro da própria parte profissional ou geral.
Prof. Vítor Certo.
Pesquisadora E, como é que você vê isso? Você consegue realizar isso, você acha que na instituição as pessoas estão preocupadas com isso? Se não conseguem, o que você acha impede isso?
Prof. Vítor
Olha, eu vejo que não conseguem, fazendo uma análise crítica. Uma experiência que nós temos lá, nós estamos formando alguns alunos onde a parte técnica fica um pouco deficiente na fase final do curso, que é na elaboração de um relatório. Então, eu vejo o seguinte, que você tem lá, o primeiro, o segundo, terceiro, quarto; quando chega na fase final, é uma fase mais importante, que é elaboração de um trabalho ao longo do que você aprendeu nos últimos períodos. E você às vezes observa a deficiência na elaboração de relatório, na gramática, o que você quer dizer com o texto, como vai pesquisar, como vai elaborar um determinado relatório. Então, isso acaba interferindo, no meu ponto de vista, só pra deixar um pouco mais específico, na minha opinião, eu vejo que, no final do curso, onde o aluno vai comprovar tudo aquilo que ele aprendeu nas últimas disciplinas e que devem estar integradas, há uma certa deficiência. No curso, eu observo isso de uma forma bem díspar. No curso integrado, os resultados são muito melhores, agora no curso subsequente, os resultados são muito ruins, muito ruins mesmo. Por quê? Ele às vezes fez o curso numa outra
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instituição que não foi a Escola A, e fez somente a parte técnica, aí quando vai somar esses resultados, é muito ruim no curso subsequente. No curso concomitante é um pouquinho melhor. Agora, o melhor resultado é quando é o curso integrado. Então, eu vejo que os professores, às vezes, têm que integrar um pouco mais, principalmente das disciplinas de português, de matemática, né? Eu acho que às vezes as aprovações estão sendo um pouco, assim, automáticas pra não... pra ter um número, né, ter um determinado número que é a aprovação. Eu tô começando a observar isso, não tenho dados quantitativos, mas eu começo a observar que às vezes alguns alunos passam de uma série pra outra, o curso subsequente, apenas pra cumprir tabela, pra cumprir número. E isso, você vai ver esse resultado no final do curso, que é elaboração de relatório, interpretação, como vai fazer uma pesquisa, colocar... vai ser avaliado de uma forma mais específica, eu vejo que isso aí é um ponto crítico.
Pesquisadora Você chega a envolver seus alunos em projeto de pesquisa?
Prof. Vítor A minha linha é essa.
Pesquisadora Quais os princípios que você costuma valorizar pra realizar os projetos de pesquisa?
Prof. Vítor
Exatamente. Quer dizer, eu gosto de pesquisa, sempre trabalhei em pesquisa, e eu sempre tenho projetos de pesquisa, né? Então, eu busco que fazer pesquisa é bom para o aluno, que não ficar só... pro professor não ficar somente em sala de aula, então ele tem que também ministrar a parte da sala de aula e trabalhar com projeto de pesquisas que acaba dando um suporte pra melhorar a sua disciplina, a sua aula, né, e você tem um aprendizado melhor. Eu vejo que os alunos que tem potencial, faço um processo seletivo, quem tem potencial eu acabo chamando, então eu sempre tenho três ou quatro alunos em projeto de pesquisa. Onde a gente publica papers em congressos, lá desenvolve trabalhos, papers em congressos, né, é bom pra mim, é bom pro aluno fazer essa iniciação. Como eu faço essa seleção? A minha seleção primeiro é pelas provas, eu vou avaliando o aluno sem ele saber. Então eu vou começar a identificar quais são os alunos que tem maior potencial de desenvolvimento de pesquisa ao longo do curso. Então, eu só vou selecionar o aluno depois que ele fez um período comigo. Então, ele estudou um período comigo, ele passa pra outra fase, aí eu vou avaliando. Então, o que eu busco com esse aluno? Se ele consegue escrever bem, se ele consegue ler bem, se ele é um aluno participativo da aula, se ele pergunta, se ele é um aluno questionador da aula. Então, esses são alunos que eu acabo selecionando pro projeto de pesquisa, que ele questiona, que ele pergunta, participa de uma forma mais efetiva. Não somente a nota, essa coisa de CR pra mim fica em segundo plano, o mais importante é a atividade do aluno. Talvez o aluno tirou uma nota 6, que é uma nota mediana, mas ele é extremamente proativo, participativo. E também vou falar um negócio aqui que é até complicado, eu às vezes tenho uma certa preferência pelas meninas. Não por eu ser menino, mas porque eu observo que as meninas são mais comprometidas com as atividades que são colocadas, observo isso, eu já gerenciei projetos com engenheiras, né, com quatro ou cinco, posso até falar com um pouco de experiência, então eu vejo que as meninas têm um comprometimento maior, são mais detalhistas, observam, são mais sinceras. Quando sabem, não sabem, você vai, acaba explicando. Então, os resultados de projeto de pesquisa com as meninas, por incrível que pareça, são ligeiramente melhores, pra não falar maiores, né, do que com os meninos. Mas, os meninos têm certa vantagem, eles são mais... arriscam mais. Então, às vezes num determinado projeto pra desenvolver, motivar, às vezes você colocar um determinado menino, né, um jovem desse eu acho que ... ele arrisca mais, ele é mais impetuoso, né, pra determinadas atividades. Então acaba tendo que ... eu sempre tento mesclar um número maior de meninas, um número menor de meninos nos projetos de pesquisa que eu faço.
Pesquisadora Professor, assim, pra terminar, mas não querendo te cercear, a gente tem o tempo que você quiser, o que pra você significa uma educação científica de
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qualidade no contexto da educação profissional? Na sua visão o que é uma educação de qualidade na formação profissional?
Prof. Vítor
Educação profissional. Um dos primeiros pontos é infraestrutura da instituição: laboratórios, salas de aulas com múltiplas opções de você trabalhar com projeto multimídia, com computadores, uma boa lousa, laboratórios. Então, isso é um dos pontos principais que é a infraestrutura. Outra parte é a carga horária. Eu vejo que pra fazer uma pesquisa, né, pra dar um determinado resultado a pesquisa associada ao curso, você não pode, por exemplo, um curso técnico em Química onde você vai fazer uma pesquisa de sociologia que não tem uma integração. Então, um curso integrado de Química que tenha áreas associadas, então você tem que ter uma disponibilidade para que o professor faça a sua pesquisa com uma carga horária extremamente compatível com as disciplinas. Não adianta você ministrar várias aulas e ainda... e querer que aquele professor tenha um resultado de pesquisa com os alunos. Eu vejo que isso aí é incompatível, né? O terceiro ponto que eu falo é ampliar a relação: empresa/escola, empresa/instituição. Isso aí tem que tá muito bem associado, que é uma integração entre o que é desenvolvido na escola como ciência, e o que é aplicado na empresa como trabalho, como resultado, como processos produtivos. Então, fazer essa integração não na essência da palavra, uma integração verdadeira que é unir o que a empresa desenvolve, os problemas que ela apresenta e fazer essa ponte para que a escola, para que a escola técnica, né, uma universidade, acaba desenvolvendo. Então, essa integração é muito boa, essa parceria ela é muito importante para o desenvolvimento da ciência, porque são os problemas reais que tem. Por exemplo, a escola, por mais que ela tenha acesso às informações, ela não tá vivenciando o problema, quem vivencia o problema, né, as propostas de soluções, é justamente a empresa, mas ela tem que passar isso. Então, essa integração é muito importante. E o quarto item é um maior investimento do governo, ou da própria empresa, como acontece isso na Europa, nos Estados Unidos, nas escolas. Quando as escolas, ou o governo, que é um investimento específico para as instituições que buscam, que tem esse perfil, né, eu acho que isso aí vai desenvolver cada vez mais a ciência no Brasil, principalmente nós que somos um país aí que a gente tá nesse nível de subdesenvolvimento, necessita cada vez mais disso. Acho que essas cinco linhas que eu acabei de apontar, elas sendo implementadas, acho que, de médio prazo, acho que vai ter um resultado. Perfeito?
Pesquisadora Tá ótimo, professor! Muito obrigada. Quer acrescentar algo mais?
Prof. Vítor Eu agradeço aí por essa entrevista, eu espero ter contribuído aí, né?
Pesquisadora Muito, contribuiu muito.
Prof. Vítor Com os resultados aí, né, e tenha sucesso aí na sua pesquisa aí, tá, que seja muito bem usado. Obrigado.
Pesquisadora Obrigada.
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APÊNDICE 6 - ENTREVISTA COM A PROFESSORA CLEO (ESCOLA B)
ENUNCIADOR ENUNCIADO
Pesquisadora Cleo, de acordo com as DCN para a EPTM, o principal objetivo desta escola é a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso? Sobre o ensino de biologia na formação para o trabalho?
Profa. Cleo
Esta é uma escola politécnica, mas porque ela optou pela politecnia como princípio pedagógico, né? Então é um princípio marxista de formação integral e aí eu vejo assim a minha ideia de biologia, de formação pra vida, eu acho que se encaixa totalmente na diretriz da própria escola, porque forma para o trabalho sim, porque entende o trabalho como inerente ao ser humano, mas a biologia não tem um enfoque utilitarista aqui na escola. Não é, assim, instrumental, sabe? Não só a biologia, as disciplinas, pelo menos, o que se pretende aqui é que as disciplinas sejam componentes do todo, que é a vida do aluno, entendeu? Então a biologia é isso aí, é mais um componente da vida do aluno, e não uma coisa instrumental para o trabalho. Essa é a nossa filosofia aqui.
Pesquisadora Fale um pouco sobre outros objetivos que você estabeleceria para o ensino de biologia nessa modalidade de formação.
Profa. Cleo
Eu gosto muito de ensinar... desde que eu comecei a dar aulas, eu tento dar o enfoque... é... como é que eu vou te dizer? Fugindo dessa coisa de decoreba... sabe? Eu acho que os nomes vão vir como consequência, então eles têm que entender o sentido daquilo. Quando começar a fazer sentido aquilo que eles estão aprendendo em sala de aula, aí eles vão passar pras outras coisas, aprender nome, aprender não sei o quê. A minha preocupação toda é essa. Eu adoro dar aula e acho que biologia é assim... é a essência da vida. Então eu faço porque acredito mesmo que é importante pra eles, independente se é matéria de vestibular, independente se é matéria de... sabe? ... da utilização que eles vão fazer daquilo que eles estão aprendendo em sala de aula. Eu ensino biologia porque eu acho que é pra vida deles. É isso... eu acho...
Pesquisadora O que orienta a seleção de conteúdos para ensinar biologia?
Profa. Cleo
A gente segue o programa oficial, o programa do MEC, como eu te falei, a gente tem um livro didático, que eu posso não seguir à risca, mas, o programa não muda. Tanto assim, que o aluno sai daqui e. a escola costuma ter bons resultados em ENEM, nos vestibulares. Nossos alunos todos entram na faculdade, mas não porque seja nosso objetivo, é porque a preparação deles é integral e acaba que eles saem preparados mesmo, a ponto de fazerem a prova e entrar. O nosso programa é o mesmo do MEC, né? As orientações são as mesmas. Não tem nada de diferente, não. A biologia está sempre mudando, né? Então eu tento sempre ficar ligada nas atualizações. O livro, ele é atualizado sempre também. A gente escolheu, a equipe escolheu esses autores por conta disso: porque eles trazem sempre informação nova, às vezes os alunos ficam até confusos: “ah, mas eu li não sei onde”, então eu falei: mas isso aqui é muito recente. E aí tenho que mostrar as duas coisas para ela... até... era assim... mas pode ser que haja... é...é... vocês vejam em algum lugar alguma coisa perguntando nesse sentido, mas hoje em dia está mudando para isso, entendeu? E aí eu mostro pra eles. Aqui a gente tem... os alunos têm muito contato com a gente do... pela internet... a gente tem internet, a gente tem email institucional, né? Então eu costumo passar indicações... as turmas todas têm email, então eu costumo passar indicações pra eles de vídeos, de coisas que têm na internet... é... vários alunos têm facebook, aí, de vez em quando, eu posto um vídeo, uma coisa que eu achei interessante, que eu esteja comentando em aula, algum dia, entendeu? Então eu tento fazer sempre essa ligação, como eu te falei: ligação com a realidade, com a biologia... que é aquela coisa, aquela entidade cheia de nomes... então, daí eles entenderem pra que aquilo serve pra vida deles, entendeu? Então é...é... não que eu traga conteúdos diferentes, mas eu estou sempre buscando alguma coisa nova.
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Pesquisadora O que orienta suas metodologias para o ensino de Biologia?
Profa. Cleo
É... assim... eu sinto falta, ainda, de, não por uma deficiência da escola, mas acho que de planejamento meu... de mais aulas práticas... É... assim... a gente tem laboratórios aqui na escola e eles são usados, muitos, na parte técnica, entendeu? A formação geral não costuma usar muito os laboratórios, não. Isso eu ainda sinto falta, mas, assim, é uma coisa que eu tô me programando pra botar mais... mais aulas práticas pra eles. Mas, de modo geral, a gente tem um... um... assim... uma gama de recursos audiovisuais, aqui, excelentes. Todas as salas têm computador, todas as salas têm televisão, entendeu? Dar aula... fica aquela coisa... a gente não vai falar da mitocôndria... a gente vai mostrar pra eles. Tem ligação com a internet, então se a gente quiser acessar, a gente pode passar, entendeu... pra eles... é... então dá pra fazer um trabalho bem dinâmico, mesmo em sala de aula. A única ressalva que eu falo é que, assim, na minha parte, eu poderia dar mais aulas práticas... eu acho que eles iam gostar também... iam achar legal. Já trouxe... já peguei bicho no caminho pra cá, que eu venho de ônibus... To subindo, lá da Brasil pra cá... já peguei bicho pra trazer... já trago planta, de vez em quando... mostro pra eles, mas nunca planejei uma aula assim, entendeu? É a única coisa que eu faria.
Pesquisadora Qual a sua visão sobre avaliação da aprendizagem?
Profa. Cleo
Acho muito natural que a primeira avaliação aqui, eu falo isso pra eles também, é muito natural que a primeira avaliação seja muito... que o resultado seja baixo. Mas eu vou te dizer: você pega um canhoto meu aqui, de primeiro trimestre, está muita nota vermelha, porque a média é seis, então abaixo de seis já é vermelha. Você pega um canhoto meu, está assim: quase metade da turma com nota vermelha. Chega no final do ano, eu tenho três turmas... às vezes, eu tenho um, no máximo dois alunos em recuperação comigo, entendeu? Porque eles desconstroem mesmo essa noção de decoreba... essa noção, sabe, de biologia... aquela coisa maçante... não... eles começam a aprender a estudar. Esse ano eu já sentei com aluno. Aluno ficou chateado com a nota e tal... vem cá, me diz o que você está fazendo pra estudar. Ah, estou fazendo resumo. Deixa eu ver o seu resumo. Ai a gente vê o resumo, aquela coisa, né, decorar número, tantos por cento disso. Eu digo: gente, eu não vou perguntar quantos por cento disso numa prova... Isso aqui não é uma informação essencial pra você, entendeu? Então vocês têm que aprender a ler e tirar as informações que são essenciais pra vocês e aí... é... espero que o resultado já melhore. E melhora. Naturalmente o resultado melhora. Tenho certeza disso. É um choque que eles têm. Mas é. Tanto na biologia, quanto na química, quanto na física, entendeu? São ciências que eles viam tudo junto e, acho que, na maioria das vezes, fora de um contexto... Então, o que a gente tenta fazer é... é tentar fazer a coisa... dizer alguma coisa pra eles, né? Fazer as matérias dizerem alguma coisa pra eles. Então o começo é chocante mesmo... natural... não se espanta não.”
Pesquisadora Como você vê o papel dos laboratórios para o ensino de biologia?
Profa. Cleo
Justamente... eu acho que nesse sentido da minha intenção de tentar trazer uma coisa mais real pra eles, acho que o laboratório seria, assim, fundamental, porque é a prática, né? É mostrar pra eles. Só não ficar naquela coisa: ah, sistema digestório... não sei o quê? Não! Abre o texto, mostra pra eles lá, sabe? É isso que eu estou com muita vontade de começar a fazer... porque é assim, como eu te falei: a gente segue o programa do MEC, a gente tem o calendário do MEC, né? Então, o programa acaba ficando imenso e num tempo muito curto. Então, é complicado, mas eu não desisti dessa ideia não.
Pesquisadora
A EPTM voltou a ser oferecida à sociedade na modalidade integrada a partir do Decreto 5.154/2004. O que você compreende por formação integral? Você acha que consegue realizar uma formação desse tipo? Como ela se dá aqui na Escola?
Profa. Cleo
É o que eu te falei: o projeto é muito bonito. Eu entendo formação integral como a formação que não engessa o ser humano, que não é, como é que eu vou te dizer? Que não exclui nenhuma possibilidade de realização pro ser humano. Então ele tem todos os aspectos da vida, ele tem noções de todos os aspectos da vida contemplados. A gente tem formação aqui na área das ciências, a
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formação das linguagens, a gente tem os desportos aqui, a gente tem três opções... quatro opções, agora, esse ano, de educação artística. Então, acho que... assim... todas as áreas de formação humana aqui são contempladas e... e... acho que desse jeito você não... não segmenta. Acho que... ah, você tem todas as disciplinas que uma escola tradicional tem, mas eu acho que é muito segmentado. A nossa luta aqui, não digo que a gente consiga, mas acho que a luta, aqui na escola, é tentar fazer isso de um modo integrado, sabe? Que seja entendido, realmente, como várias facetas de uma mesma coisa: que é o ser humano. Agora, a gente vive numa sociedade que não é, não é comunista. É uma proposta marxista, a gente vive num país capitalista, a gente vive, né, com várias determinações, o governo, agora, só fala em educação profissional, mas é outra perspectiva que ele tem, entendeu? É outra visão. É o trabalho que a gente vende aqui. Então, a gente tenta não se colocar, também, sabe, afastado da realidade. Tem uma luta, tem um... o jogo está posto, está na mesa. A gente está lutando, mas a gente não tenta viver, sabe? Naquele castelo, aquela coisa literal, né, na [Instituição na qual leciona], mas é o que eu estou te dizendo: a luta é diária. É uma busca, é constante. Não estou dizendo que está pronto... não... parece uma coisa muito bonita quando a gente... o projeto é lindíssimo... vou te dizer: sou fã dessa escola, mas a interdisciplinaridade, ela é buscada e a integração é buscada todo dia, toda hora, com os colegas e com a formação geral e formação técnica e trazer o que tem na escola, articular com a realidade dos meninos. A gente está formando técnicos do SUS, entendeu? É o objetivo da escola formar técnicos pro SUS, sabe? Mas, que trabalhador que a gente está formando? Quem é essa pessoa? Ele vai viver num mundo que... não... sabe? Eles vão sair daqui um dia... Então, acho que a preocupação da gente é essa: tentar dar uma... uma... lutar por uma causa, mas dentro da realidade, sabe, com o pé no chão. É aquele negócio... A interdisciplinaridade de jeito nenhum é fácil. Tem duas maneiras de encarar: tanto a interdisciplinaridade dentro da formação geral, que já é uma luta, entendeu, quanto a interdisciplinaridade de formação geral e formação técnica, pra perder aquela coisa que eu te falei de disciplina instrumental. A escola, ela tem uma...,é um projeto, uma disciplina, hoje, para os alunos, que é a IEP. É a Iniciação à Educação Politécnica, que se pretende como uma disciplina integradora mesmo. Ela está dividida em eixos, né, ciências, saúde, trabalho... e tem outra que eu esqueci. E... aí vai... e... agrega professores de todos os laboratórios, entendeu? E a busca é totalmente essa, entendeu? É ser uma disciplina que faz a integração da teoria com a prática, integração entre as disciplinas, mas, como eu falei: Não é fácil não. A gente está construindo ainda.
Pesquisadora Qual é a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado aqui nos cursos de formação técnica?
Profa. Cleo
Eu acho que é uma visão bem completa. Eles têm o embasamento filosófico aqui muito forte. A IEP faz bem essa função nos eixos que ela trabalha. Então, essa parte de... epistemológica, ela já é dada aos alunos desde o primeiro ano. Não trabalho com essa área diretamente, não, mas acompanho o trabalho dos colegas, e assim e na medida do possível, são selecionados textos, né, acessíveis, coisa e tal, mas essa discussão é bem trabalhada com eles, desde que eles entram aqui. É o que eu te falei: acho que o primeiro ano é um trabalho de desconstrução, muita coisa, né, porque eles vêm meio que adestrados, né. Muitos procuram a escola por causa dos resultados que ela tem e, quando chegam aqui, meio que reformulam as ideias, sabe? Eu acho isso muito legal.
Pesquisadora Você já teve acesso aos documentos oficiais que definem as diretrizes curriculares para EPTM? Em que medida essas diretrizes influenciam o seu trabalho pedagógico?
Profa. Cleo
Especificamente da área de educação profissional? Por acaso, sim, porque, como eu te disse, eu faço mestrado aqui na escola e o mestrado é em educação profissional. Em saúde, né? Então eu tenho acesso aos decretos, a toda trajetória, à luta da educação profissional e aí que eu te falo: a escola tem um papel importante para tentar mudar essa concepção de educação profissional vigente, né, no Brasil. Aquela coisa utilitarista, economicista, então, a escola entende trabalho como...
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assim... característica do ser humano mesmo e se propõe a recusar a visão instrumental de disciplinas, sabe? Então... é... mas essa luta está posta, né? Não terminou... esse decreto, o 5154 foi uma vitória em relação ao 2208, né, mas não é nada que a gente possa estar tranquilo agora. Não. Eu acho que a luta, agora, está aí. A gente tá matando um dragão por dia.
Pesquisadora Como você avalia o desempenho e o interesse de seus alunos em suas aulas?
Profa. Cleo
A grande maioria gosta muito e eu acho que entende desse jeito que eu te falei, sabe? Eles até chegam... eu pego as turmas de primeiro ano... eu adoro pegar o primeiro ano, porque eu adoro desconstruir isso pra eles, sabe? Da biologia... sempre falo pra eles: esqueçam tudo que vocês ouviram sobre esse assunto... vamos começar do zero aqui, sabe? Então, quando chega ao segundo ano, é legal a diferença, sabe? A transformação deles. Eles já não chegam com tanto preconceito, sabe? No sentido mesmo de pré-conceito. Não chegam com tanto. Já sabem que é de outro jeito. A grande maioria adere totalmente ao projeto, como eu disse, né, não tem... assim... os alunos todos são apaixonados por biologia? De jeito nenhum. Sei que não, mas eu consigo um resultado muito legal deles.
Pesquisadora Cleo, você envolve os seus alunos em algum projeto de pesquisa? Considera esse envolvimento importante?
Profa. Cleo Na formação geral, bom, na formação geral, não, assim, não em termos da minha disciplina. Mas, eu não sei se vocês sabem, que, no terceiro ano, eles têm uma monografia, eles têm trabalho de conclusão de curso.
Pesquisadora Não sabia.
Profa. Cleo
Então, isso também é trabalhado na IEP. Eles são orientados e aí, desde o segundo ano, eles já buscam o professor orientador, nos moldes de qualquer TCC que a gente vê, entendeu? Escolhem um tema de pesquisa e começam a se familiarizar com as técnicas de pesquisa, procura bibliográfica, exercitam a escrita e normas técnicas e aí, no final, no terceiro ano, eles apresentam a monografia deles. É muito legal eles saem daqui ... é o que eu falo: o objetivo, assim, não é nem a monografia em si. Eles saem daqui pesquisadores.
Pesquisadora Você já orientou algum aluno aqui na escola?
Profa. Cleo
Tô com quatro... (risos)..., tô com quatro esse ano e já tenho três pro ano que vem. Três me chamaram já no segundo ano, porque eles começam no segundo ano, né? No ano passado, eu orientei uma menina, foi o primeiro “terceiro ano”, né, que eu orientei e esse ano peguei quatro, ano que vem já tem três me chamando.
Pesquisadora Então, Cleo, quais são os princípios que norteiam a pesquisa que você procura orientar? Os valores que são colocados?
Profa. Cleo
Então, o que eu acho, assim, que eu considero que seja mais importante é cultivar o hábito e a disciplina da pesquisa, né, que a gente sabe que tem que ter, então eles começam a ter contato com as fontes, né, bibliográficas, tanto fonte eletrônica quanto mídia impressa, né, a coisa do recorte do objeto, entendeu? Porque eles chegam com umas coisas, assim, megalomaníacas, então a gente, o nosso papel é ir recortando o objeto pra eles e eles vão e acabam aprendendo isso. Todas essas técnicas que a gente, na maioria das vezes, só vai aprender quando vai fazer monografia na faculdade, às vezes, até na pós-graduação. Não, aqui, no terceiro ano, eles já começam a ter isso, sabe? Não pode ser uma coisa muito ampla. Você tem que recortar. Recorte do tempo, recorte do espaço, sabe? Que tipo de pesquisa eu vou fazer ? Internet serve? Ah, não, vou ver periódicos. Periódicos servem? Ah, livro? Qual a bibliografia que eu vou utilizar? Sabe? Na biblioteca daqui não tem, então vai lá embaixo ver se tem. Vai na UFRJ ver se tem, entendeu? Então eles começam a se familiarizar com esse mundo mesmo da pesquisa. Eu acho que isso é mais importante, independente do tema que eles escolham. Acho que o tema acaba sendo consequência. Acaba sendo, assim, é como se fosse um incentivo: eles escolhem um tema que eles gostam e aprendem a pesquisar. Acho que essa é a intenção do TCC.
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APÊNDICE 7 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR MURILO (ESCOLA B)
ENUNCIADOR ENUNCIADO
Pesquisadora
Então, professor Murilo, segundo as legislações, as diretrizes curriculares nacionais e o projeto político pedagógico vigentes para a Escola B, o ensino de biologia no curso técnico tem, como objetivo central, a formação para o trabalho. Qual é a sua visão sobre este objetivo, sobre o ensino de biologia na formação profissional?
Prof. Murilo
Acho que aqui, ao mesmo tempo em que a resposta se torna mais tranquila, ela se torna também mais complexa, porque nós temos diferentes habilitações aqui. O estudante de análises clínicas tem uma relação inequívoca com a biologia, porque são conceitos fundamentais aí pra que ele possa desempenhar um bom papel no campo profissional. Apesar de eu realmente entender a biologia, ou o currículo de biologia, contendo dentre muitos outros também, né, contendo como estando sofrendo com esse processo de “vestibularização” do ensino médio. Então, bizarramente, tentando fazer aqui uma correlação entre alguns estudantes de escola particulares constantes daqui, no terceiro ano parece que o daqui também, ele tenta focar, ele tenta entender um pouco mais a biologia a partir do que é pedido no vestibular. Por que eu tô falando isso? Alguns estudantes de terceiro ano, eles não veem talvez com muitos bons olhos uma separação do que a gente trabalha em sala de aula, com aquilo que é pedido no vestibular. Então, eu tento, a todo momento, deixar claro pra eles a minha opinião, por exemplo, de que o vestibular ele é algo extremamente nocivo pro ensino médio, porque o ensino médio deveria ter outros objetivos que o vestibular, né? Que é um processo meritocrático, um processo de seleção bastante excludente, bastante nocivo, porque a gente entende que vários estudantes não têm talvez a maturidade suficiente pra desempenhar um bom papel nessa prova, mas muitos talvez apresentem essa maturidade, mas ao mesmo tempo, quando chegam lá, se deparam com uma prova que talvez não faça tanto sentido com relação àquilo que ele tá estudando.
Pesquisadora A formação para o trabalho.
Prof. Murilo
A formação do trabalho, eu acho que qualquer recorte de saberes que trabalha junto a um fomento, ao senso crítico do estudante, eu acho que vai estar auxiliando. Até porque na maioria das escolas que trabalham com educação profissional, elas... Tenho medo de generalizar, mas acho que algumas experiências que eu tenho entendem aquele técnico como um mero reprodutor de determinados procedimentos, o que vai totalmente contra ao que a gente acredita. Que a gente acredita no trabalho como um principio educativo, sim, tanto que ele é um dos eixos desse componente inter, transdisciplinar, multidisciplinar, que a gente chama de iniciação à educação politécnica, que a gente aqui na escola tenta trabalhar, e tenta deixar um pouco mais claro pro estudante esse nosso posicionamento, de que existem muitos outros saberes que estão relacionados com a formação desse estudante para o seu trabalho, né, ou com a sua habilitação profissional, a partir daí.
Pesquisadora Você estabeleceria outros objetivos para o ensino da biologia?
Prof. Murilo
Eu acho a biologia, ela tem uma... ela é privilegiada, porque vários dos saberes que a gente aborda em sala de aula pode ter a ver com a realidade do estudante. Nesse ponto, dentro das minhas muitas limitações acadêmicas, fecha um pouco com o que o Paulo Freire realmente fala, e tento trabalhar isso em sala de aula, a todo momento, mas a biologia também pode ser da mesma forma uma ferramenta pra alienação do estudante, se ele trabalha simplesmente por trabalhar ali aqueles saberes, conteudistas do Ciclo de Crebs, o Ciclo de Crebs ele vai entender a biologia como uma simples associação, ou junção de uma série de nomes que pode fazer sentido pra ele naquela prova,
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mas depois no final das contas se esquece, né?
Pesquisadora Como que essa sua visão dos objetivos para o ensino da biologia influencia a seleção de conteúdos, metodologia de ensino e sua avaliação?
Prof. Murilo
Recortando aqui eu tento, a gente tem uma ementa disciplinar que já foi discutida já há alguns anos, eu acho que sempre vale a gente tá em contínuo processo de discussão referente a esses termos. Desculpa, eu esqueci a pergunta. Desculpas, eu tenho problemas, eu tenho Alzheimer, eu tenho Alzheimer. ( RISOS, BRINCADEIRA)
Pesquisadora
Não tem problema nenhum. Eu perguntei em relação à definição de outros objetivos pra formação profissional, do ponto de vista do ensino da biologia, como que isso influencia sua seleção de conteúdos, a sua metodologia, sua avaliação?
Prof. Murilo
Eu tento priorizar, eu tenho outro privilégio aqui que é dar aula em dupla de biologia, com outro professor, professor Ariel. E a gente tenta, nós temos uma hora e meia por semana, então a biologia é uma das matérias que tem uma carga mais pesada aí de conteúdo. A gente tenta priorizar dentro daquilo que já está definido, pra que nós trabalhemos em sala de aula com os estudantes, mas a gente sempre tenta puxar uma discussão, vou ser repetitivo aqui, pra junto da realidade do estudante. Então, se a gente vai falar de herança quantitativa dentro da genética e utilizar o exemplo da cor da pele, a gente vai falar de racismo, a gente vai tentar abordar aí dentro das possibilidades de tempo, falar um pouco sobre a eugenia, tentar passar um filme. Então, por exemplo, já numa caminhada dessas, passei um filme bem interessante chamado “Homo Sapiens 1900”, que aborda o mesmo cara que fez a “Arquitetura da destruição”, que é um filme relativamente famoso sobre, um diálogo de pensamento sobre a II Guerra. Esse filme aborda, por exemplo, alguns entendimentos de eugenia, não só no caso mais clássico da II Guerra Mundial, do nazismo, mas alguns experimentos trabalhados nos Estados Unidos, na União Soviética, então, tentar trabalhar com estudante que, no final das contas, é tão importante quanto saber esses conceitos são as possíveis aplicações desses conceitos. Então, será que a ciência é tão parcial realmente assim, como dizem? Nós aqui entendemos que não, ou pelo menos eu entendo que não. Então, dentro de sala de aula a gente também vai trabalhar de maneira mais enviesada. Aí, então a gente sempre tenta trabalhar, eu sempre tento trabalhar com um olhar mais crítico sobre aquele conteúdo que tá sendo abordado. Repito, ao mesmo tempo em que esse conteúdo, quando “bem” abordado pode nos fornecer subsídios ali pra uma troca de ideias riquíssimas, também pode ser usado mais uma vez pra um esquema alienador pro estudante.
Pesquisadora E como você vê o papel dos laboratórios no ensino de Biologia?
Prof. Murilo
Não preciso nem me delongar muito, o laboratório, ele é maravilhoso porque o estudante tá vendo ali alguns conceitos muito práticos, né? O estudante, ele no ensino médio, talvez ele tenha que trabalhar um pouco mais com a abstração. Mas, algumas vezes, talvez a gente abstraia demais, ou fazemos encadeamentos que fazem com que o estudante se perca talvez um pouco no caminho. Essa ida ao laboratório, o olhar uma célula, um realizar uma prática de extração de DNA, uma observação de parasitas, eu trabalho com uma disciplina de protozoologia, onde a gente vai estudar os parasitas, recortando dos protozoários, e a gente faz uma prática que os alunos adoram, que é pedir pra eles trazerem alface de feiras livres, pra nós observarmos formas de resistência desses parasitas. Daí, protozoários e helmintos também, e não só trabalhamos como fazer, mas conversamos sobre isso. O que leva ao encontro de um cisto de ameba, por exemplo, numa plantação. Não há saneamento básico ali, ou talvez essa água que é utilizada pra irrigação, talvez não seja tratada, oriunda de um lugar onde... Eu tento sempre na medida do possível, e dentro das minhas muitas limitações também, estar problematizando isso junto ao estudante, né? Então, além daquele saber que ele vai adquirir ali com aquele método centrífugo, flutuação, método onde ele vai...
Pesquisadora Mais técnico?
Prof. Murilo Mais técnico, exatamente. Não faz sentido pra mim eu tentar trabalhar com a
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alface que o garoto compra em feira livre, a gente sempre acha alguma coisa, infelizmente, tu sempre tá problematizando com ele. É isso. É normal isso aí mesmo então, né? O que a gente não estaria vendo, né? Isso eu sempre trabalho muito com eles uma ideia verdadeira. Quarenta e cinco horas de disciplina, não tem como ele sair um expert em microscopia para exames parasitológicos. Não há, não há. Então isso ele vai aprender, e aí eu converso muito com eles com relação a minha caminhada de aprendizado. Eu tive o privilégio de trabalhar em diferentes lugares com diferentes inserções, e tenho aí um rastro de trabalho técnico que me permite trocar com um pouco mais de intimidade com esse estudante acerca desses saberes. As poucas coisas que eu sei, muitas delas eu aprendi exatamente na bancada, mas problematizando tudo aquilo que me é passado dentro do laboratório. Porque, no final das contas, se a gente não for para além disso, esse profissional, ele tá sendo cada vez mais substituído por máquinas. Só que essa formação diferenciada sempre fará, dentro do meu entendimento, que um profissional, um chefe, um coordenador, entenda esse profissional como algo muito maior que um simples reprodutor ali de coisas, e possa ajudá-lo a utilizar alguns processos, a realmente reavaliar alguns processos, e por aí vai.
Pesquisadora Você costuma consultar alguns dos documentos oficiais, as legislações, as diretrizes curriculares nacionais, os objetivos que são ali definidos para a EPTM, o projeto político pedagógico da escola?
Prof. Murilo
Não há muito tempo hábil pra isso, de forma muito sincera. Mas, essa escola com relação a seu modo de funcionamento, ela permite que existam espaços de discussão e de maior compreensão de determinados documentos. Então essa escola, ela tem uma câmara técnica de ensino, onde, por exemplo, acho que a Bia falou aqui, a gente tá... já está pautado em um início de discussão para que nós reformulemos, rediscutamos o projeto político pedagógico dessa escola. Então, ao mesmo tempo em que não há realmente tempo hábil, a gente pode tentar se inserir dentro desses espaços e pode tá somando. Em teoria, eu acredito que era pra todo professor dessa escola estar participando disso, só que, realmente, a gente tem noventa e poucos alunos nessa escola, todos eles... Noventa e poucos alunos nessa escola, perdão, no terceiro ano. Desses alunos, onde todos qualificam os seus projetos, eu, por exemplo, eu estou em treze bancas, eu tô em um sexto das bancas dos alunos dessa escola do terceiro ano. Não há tempo pra gente poder acumular mais conhecimento sobre esses assuntos, mas a gente, aos trancos e barrancos, vai tentando...
Pesquisadora Como que você avalia, Prof. Murilo, o interesse e desempenho dos alunos nas suas aulas?
Prof. Murilo
Eu tenho o privilégio, mais uma vez, gosto muito de falar isso, de estar em várias salas de aula ao mesmo tempo. Existem muitos estudantes que gostam de biologia. Então, no ensino particular, por exemplo, e quando você tenta traçar essa estratégia de estar associando os saberes a serem trabalhados ali com o cotidiano do estudante, ajuda, né, ajuda. Biologia eu acho que talvez tenha mais um percentual de alunos interessados do que física, sei lá, por exemplo, do que a própria química, que já vem cheia de... já vem carregada de preconceitos, né, que esse estudante tem contato, seja dos pais, seja dos próprios professores que acabam usando várias vezes a química e a física como exemplo de matérias demoníacas, ou o simples fato do aluno não ter entendido o conceito de átomo, por exemplo, mas se interessam. Porém, existem conteúdos que não despertam tanto interesse do estudante, dentro da própria biologia. Dentro da protozoologia, eu trabalho com alunos num grau de maturação mais avançado, eu dou aula para o terceiro ano dessa escola, que hoje, nesse momento, é o último ano. A gente fez uma reforma curricular onde a gente passou aí o ensino médio para quatro anos. Devido à maturidade, aí eu também tenho que tentar valorizar um pouco o meu procedimento dentro de sala de aula. Eu tento trabalhar esse entendimento com relação às doenças, com alguns dados que tornam a coisa mais alarmante. Então, quando eu falo pro estudante que ele tem... que malária é importante de ser estudada, porque você tem um número de quinhentos milhões de casos por ano, né, dois milhões e meio de mortes, a cada trinta segundos morre uma
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criança na África, vítima de malária. Ou que aqui no Brasil, mesmo ele não vendo em nenhum telejornal, você tem seiscentos, setecentos mil casos de malária por ano, concentrados na região norte. Tento fazer com que isso chame a atenção do estudante sobre algum aspecto. E brinco muito com eles, por exemplo, eu falo pra eles: “Olha, o meu exercer a profissão de maneira ruim, é ele ter uma aula ruim”. Mas, uma coisa que ele pode na sua caminhada compensar. Um técnico que trabalha de forma equivocada, ou um mau técnico, ele pode muitas das vezes tá causando a morte de um paciente, e ele vai trabalhar aqui diferente da Federal de Química, aqui ele é formado para o SUS, diferentemente da Federal de Química de quando eu fui formado, eu fui formado, preciso dizer isso, pra pesquisa, tá? Então, eu saí de lá, fui trabalhar com Radovan Borogevick, que é um cara relativamente famoso. O estudante sai daqui, ele vai estagiar num posto de saúde, ele vai estagiar no INCA, né? Então, é diferente, é diferente. Ao mesmo tempo, se você perguntar pro estudante que tá aqui, eu acho que ele ia querer ser formado para trabalhar na pesquisa, porque um estudante de cada trinta, dentro de uma sala, levanta a mão quando a gente pergunta quem quer trabalhar como técnico. Interessantemente, tristemente, esse estudante que a gente tá formando como técnico, ele não vai trabalhar como técnico, e o SUS precisa desse cara. O SUS acaba recrutando o cara que tem uma formação técnica totalmente mecanizada. É isso, eu tenho muito mais dúvidas do que respostas.
Pesquisadora
Mas isso é ótimo! Murilo, historicamente, a educação profissional e a educação geral já foram integradas, separadas, obrigatoriamente, em 97. Depois em 2004, o Decreto 5154, ofereceu novamente a possibilidade de formação integrada. Não sei se lembra disso...
Prof. Murilo Lembro.
Pesquisadora Eu gostaria que você falasse pra mim sobre a sua visão de formação integral. Você acha que consegue realizar essa formação, você acha que a instituição consegue, há esta preocupação, quais são as dificuldades?
Prof. Murilo Que pergunta difícil! Eu, talvez não consiga te responder, não tenha repertório pra te responder sobre...
Pesquisadora É a sua compreensão, a sua visão...
Prof. Murilo
Sobre a utopia de uma formação integrada, mas tentando viajar sobre isso nesse momento, eu tendo pegando como experiência aqui, tá? A gente tem... Eu lido com professores... Pra começo de conversa, eu acho que eu sou coordenador da disciplina que visa integrar os conteúdos, porque eu faço parte, porque eu dou aula de uma disciplina técnica, estou inserido na habilitação profissional, estou inserido no ensino médio regular, via biologia, e ao mesmo tempo trabalhei dando aula aqui de metodologia da pesquisa, que é uma disciplina que existe aqui que tenta instrumentalizar o estudante pra que ele possa desenvolver o seu projeto de monografia. A simples convivência desses diferentes profissionais, para o estudante, faz com que ele enriqueça, tá, e muito, a sua percepção não só enquanto cidadão. E por que eu estou te falando isso? Nós aqui recebemos uma série de profissionais que estavam há anos em pesquisa de bancada e que vem pra cá. Quando ele vem pra cá, muitos deles querendo, muito louco isso, não mais trabalhar como trabalhavam antes, mas muitos quando chegam aqui decidem trabalhar e entendem que o trabalho daqui é muitas vezes muito mais penoso do que você lidar com camundongos, ou com células pura e simplesmente. Então, acho que isso proporciona, de forma totalmente desconexa na resposta, uma formação inclusive humana pra esse profissional que começa a reaprender uma série de coisas aqui dentro dessa escola. O estudante, ele vai ter algo mais pormenorizado advindo desses profissionais, ao mesmo tempo ele precisa de outro profissional que o auxilia a contextualizar esse pormenor dentro do todo. Então, eu sou oriundo de uma formação de ensino médio regular, lá na Federal
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de Química, onde eu acredito, dentro da minha leitura de estudante daquela época que não havia uma integração, assim como não há aqui, mas aqui eu vejo uma tentativa, inclusive com esse processo de reorganização curricular da gente estar mudando isso. Um exemplo bocó era de que, dentro de uma escola integral e integrada, você tem as mais variadas disciplinas, porém, todas até o ano passado, do ensino médio eram dadas pela manhã, e o ensino técnico à tarde. Pelo simples fato da gente tá modificando esses horários, então por que o professor do técnico não pode tá aqui oito horas da manhã em sala de aula? Parece até uma relação de poder, muito louco isso, né? Então, forçamos isso, começamos a modificar isso, nem todo mundo gosta, nós não sabemos aonde vai parar, porque começamos agora um processo que vai durar quatro anos pra que nós avaliemos aí essa primeira caminhada, esse arcabouço aí, e vamos ver como vai ser. Agora, sem dúvida alguma, tentando pegar um exemplo da minha irmã, que entrou na Federal de Química depois que eu saí, que já pegou essa dissociação do ensino médio regular com o ensino técnico, parece que eles colocam, parece que as disciplinas são muito mais entendidas como caixinhas, tá, quando você dissocia, do que elas como sendo parte maior de um todo, tá, onde ela é tão importante pra formação desse estudante, como o professor de literatura, como o professor de IEP, que é uma disciplina aqui, por exemplo, um pouco mais estigmatizada pro estudante como tranquila, porque não tem um processo de avaliação individual, nem sempre há, na maioria das vezes não há, então, ele já chega achando que tá tudo certo. Mas ele ainda não tem a maturidade de, exatamente por causa disso, ele poder estudar de peito mais aberto, pelo contrário, ele não quer estudar.
Pesquisadora Quer estudar aquela disciplina em um processo mais tradicional, com avaliação...
Prof. Murilo
Quase uma Síndrome de Estocolmo, né? Gosta mesmo dessa de ser refém desse processo avaliativo traumatizante, né? Mas, ao mesmo tempo também é importante, eu não vou tirar aqui a importância da prova, quem sou eu pra falar isso. Mas eu acho a riqueza dessa amplitude muito maior do que ele venha a entender como educação, do que ele venha a entender como um professor. Aqui tem tudo quanto é tipo de professor, né, com seus muitos bônus, com seus também muitos ônus. Uma vez você dentro de uma escola dessa, você não precisa ter um professor com uma formação de licenciatura, né? A formação de licenciatura, ela existe e a meu ver ela não tem que ser considerada como algo... como um penduricalho. Então a gente precisa que o professor tenha amadurecido ali algumas discussões referentes ao que acontecerá na sala de aula, como o que é a sala de aula, né? Porque senão ele vai entrar ali e vai se comportar como um palestrante, e a gente sabe que...
Pesquisadora Qual a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico, a biologia é apresentada aos alunos?
Prof. Murilo
Aqui, mais uma vez, é uma visão singular, porque quando a gente discute de cota, sobre cotas com o estudante, por exemplo, eu tenho que falar pra ele que existe um artigo acadêmico mostrando que o desempenho de cotistas formando numa graduação, ele é melhor do que o não cotista. Porque se eu falar pra ele pura e simplesmente, ele não vai acreditar muito. Então, o estudante daqui ele tá acostumado com esse lidar, com periódicos, com esse lidar com periódicos, com essas diferentes publicações científicas. Os estudantes daqui, ele vai a congresso, a gente leva um número reduzido de estudantes, tá, no terceiro ano, eu sou um dos responsáveis por isso, junto a FESB, que é um congresso de várias sociedades de biologias experimentais. Então ele, não obstante, apresentar a monografia dele, que muitas vezes é mal vista pelos integrantes e pelos congressistas da FESB, porque ele muitas vezes não consegue fazer um experimento, porque ele não tem tempo. Eu fui orientador de uma menina há dois anos atrás, que ela tinha sido, eu acho que a segunda aluna que apresentou a monografia experimental. Tô indo agora para uma terceira, então eu tô aqui desde 2009... 2009, 10, 11, 12, 13, e até
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agora, de vinte anos pra cá, você só teve três, quatro monografias experimentais. Mas ele tem contato a todo o momento com isso. Entram em sala, a todo o momento, profissionais que estão lidando com esses saberes, estão digerindo esses saberes e tentando torná-los mais palatáveis a esses estudantes. Eu mesmo faço isso com a minha disciplina técnica. Então, uma das minhas... a minha forma de avaliação pra conhecer estudantes, na minha disciplina técnica, é dividi-los em grupos e cada grupo vai apresentar um seminário, cuja base é um artigo científico, cuja base é um artigo de 2012, 2012 por exemplo. Ele vai lá e vai estudar determinadas proteínas presentes na célula da Entamoeba Histolytica, assuntos que lhes interessam. Então, eu peço pra que eles, vamos à biblioteca, vamos aqui conhecer o PUB médio, o CIELO, vamos pegar um artigo que vocês gostem, vamos apresentá-lo. Então eu tento fazer isso com o terceiro ano, mas sei que desde o inicio aí os professores estão tentando...
Pesquisadora Prof. Murilo...
Prof. Murilo Não sei se eu tô seguindo...
Pesquisadora Tá ótimo! Professor, como é apresentada a visão de ciência, da biologia para os seus alunos?
Prof. Murilo
A gente tenta desconstruir isso, né? Inclusive um dos componentes, uma das disciplinas que fazem parte desse eixo maior que a gente chama de IEP, aqui, uma das disciplinas é o chamado eixo ciência, onde ele vai fazer aí um resgate histórico, tá, do que a gente chama de ciência. Mas, dentro de uma instituição de saúde como é a Escola B, as ciências biomédicas, elas, muitas das vezes, é colocada como algo soberano, né? E eu vivo brincando com eles: “Pô, porque você vai no shopping, vai comprar um colchão com um cara que tá de jaleco?”. Então, a gente tenta discutir um pouco essa visão que a Escola B coloca muito como algo soberano porque tudo isso né, vem lá do positivismo e aqui a gente entende o mundo como só existindo uma verdade absoluta. Faz um recorte aqui nas ciências biomédicas, né? E a gente tenta mostrar pra ele, eu tento mostrar pra ele, vários outros profissionais, a escola oficialmente tenta mostrar pra esse estudante, que o conceito de eficiência talvez seja muito mais amplo que isso, né? E que não é demérito um conjunto de saberes não ser classificados como ciência, em vez de sociologia, sei lá, né, não vou meter muito na seara dos outros. Mas, ao mesmo tempo em que a gente tenta desconstruir isso, muitos dos nossos estudantes do curso de análises clínicas, eu acho que eles... acho que isso talvez não os pegue muito não. Eu acho que é tanto professor que entra colocando a minha ciência como algo acima do bem e do mal, que ele talvez saia daqui um pouco seduzido com essa ideia. Se ele for pra faculdade, ele vai ter essa ideia corroborada, né? Talvez ele só consiga desconstruir isso quando ele estiver lidando efetivamente com quem faz a ciência, conseguir entender que existem várias outras coisas que envolvem aí esse ambiente, do ego a ... enfim, uma série de outros pontos que podem ser analisados aí.
Pesquisadora Prof. Murilo, então, diante de tudo que a gente conversou aqui, da sua visão de ensino, o que pra você é um ensino de biologia de qualidade na formação profissional?
Prof. Murilo
O ensino... eu acho que qualquer ensino de qualidade, independente de biologia ou qualquer outro, é um ensino que esteja somando, agregando ali ao fomento de senso crítico desse estudante, junto com a autonomia intelectual dele. Ele tem que saber como ele vai encontrar as informações que ele está a fim, ele tem que saber perguntar, ele tem que saber problematizar aquilo, e tem que entender que não existe uma única verdade, você tem diferentes pontos de vista. Só que a biologia, ela é uma matéria meio ingrata talvez um pouco pra isso, porque a gente vive... não é uma ciência exata, talvez como com a matemática, ou a química, você vai ter sempre aquela resposta, é a ciência talvez das exceções, mas a gente é ainda muito regrado pelo método científico,
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o método cientifico tá há mais de cem anos moldando aí a forma como a gente enxerga, né? Com todo valor, com todo respeito, meu mestrado, ele só se materializou graças ao método científico, graças às experimentações. Devemos valorizar, mas não devemos dar ao método científico o poder de estar definindo sobre tudo. Tô falando isso porque muitos dos alunos justificam pensamentos que a meu ver são um pouco equivocados, através do simples raciocínio lógico. Ora, muitos alunos falam: “Olha, se a favela tem bandido, se nasce muita gente na favela, por que você não tem ali um controle de natalidade?”. Muitos deles, quando ouvem a frase do Sérgio Cabral que “a favela é fábrica de bandido”, ou é “uma produção em massa de marginal”, acham que é isso aí, porque a partir disso é importante, devido a esse encadeamento, lógico, controlar a natalidade dos outros, né? Mesmo, aí eu falo pra ele problematizar, o Sérgio Cabral ele tem cinco filhos, ele pode falar o que, de quem? Então, tentar buscar alguma forma, a gente não dá senso crítico a ele, jamais. Mas, fomentar a usar a esse ponto aí, sei lá se é utópico ou não. Mas, os estudantes daqui eles são... aí, vamos voltar ao começo, quando eu comparo com os estudantes de ensino médio, de escola particulares de localidades classe média alta, você vê que o daqui ele está com algumas discussões dentro da mente dele muito mais amadurecidas, muito mais amadurecidas, entendeu? Então eu acho que é esse mosaico louco, estranho, de uma série de profissionais das mais diferentes origens, com suas diferentes formas de trabalho, seus diferentes entendimentos. E nós aqui somos além de uma escola que trabalha em regime integral, a gente orienta o estudante, então a gente tá em contato a todo o momento com os estudantes. Eu chego pra trabalhar aqui oito e meia da manhã, antes das nove já tem um aluno querendo tirar uma dúvida sobre uma lista de exercício que eu passei, ou querendo uma reunião de orientação, ou um aluno que vem entregar um projeto do qual vou fazer parte da banca. Então, nós estamos em contato a todo o momento com esses estudantes. Enquanto eu estava esperando você pra fazer essa entrevista, vieram dois, três alunos ali, tiraram algumas dúvidas comigo, conversaram algumas coisas. Então, esse trabalho fora de sala de aula, aqui dentro dessa escola, eu não sei se é isso, mas eu acho isso também um componente que auxilia a formação do cidadão.
Pesquisadora
E quando ele sai daqui formado como técnico para atuar no SUS, conforme você já disse, quando você avaliaria: “Esse técnico é um técnico que foi formado com qualidade”? O que você considera que seriam fatores de qualidade na formação dele?
Prof. Murilo
O aluno que sai daqui, ele sai com uma formação em análises clínicas. Ele sai com uma boa noção técnica, ele sabe fazer as técnicas básicas de uma maneira eficiente, o que já dá a ele toda a diferença quando ele chega em um laboratório com essa formação, tá? Primeiro que ele se destaca devido a má formação dos seus outros colegas, tá formado em diferentes lugares, não obviamente um técnico da Escola A, mas o técnico da Escola A e um técnico da Escola B dentro de um mesmo laboratório, eles vão ter ali o mesmo desempenho. Por quê? Eles além de saberem uma série de coisas, eles sabem como aprender, eles sabem como questionar, eles sabem como elucidar mecanismos, tá, presentes dentro daquela rotina dele, e ele sabe pensar em cima de determinado objeto, de determinado recorte. Isso pra ele faz toda a diferença. Isso pra mim sempre fez muita diferença, onde eu estivesse, com todas as minhas limitações e meus senões, mas isso pra Escola A, isso a Escola B, eu acredito que apresente aos estudantes e aí vai de cada maturidade, ao mesmo tenho também não tenho como não te falar, vão existir alguns aqui que vão sair e quando chegarem num local profissional não vão desempenhar um bom papel. Na Escola A, também não. Isso talvez vá... tem uma relação com a gente fazer tudo muito mais atropelado, fazer tudo muito mais a toque de caixa, não por incompetência nossa, ou
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irresponsabilidade nossa, mas muito de acordo com a música que toca no background que a gente também é obrigado a dançar muitas das vezes. Mas, um técnico com qualidade, eu acho que é um técnico que entenda, não só o que acontece na bancada, mas o que acontece no entorno daquele laboratório que faz com que a saúde caminhe numa direção boa, ou por que demora tanto para algumas coisas, né? Então eu brinco muito com eles isso. A Doença de Chagas é uma doença que tem mais de cem anos de descoberta, mais da metade dos laboratórios da Fiocruz trabalham com Doença de Chagas. Como é que até agora a gente não teve nenhum avanço tão significativo? Somente a produção de um fármaco. Não foi da Fiocruz. Como é que uma doença que atinge um milhão e meio de pessoas no Brasil, e você tem Far-Manguinhos, você tem Bio-Manguinhos, você tem o Instituto Osvaldo Cruz, a UFRJ, você tem a USP, e ninguém até agora trabalhou de forma sinérgica, com todo o respeito, a biologia desse parasita, mas talvez a gente possa, tá, melhorar e muito a nossa forma de trabalho fora a bancada, fora aquele experimento, que nos permita aí atingir um patamar que a gente considere mais aceitável. Não sei se eu tô sendo claro naquilo que eu tô...
Pesquisadora Muito claro, professor, agradeço.
Prof. Murilo Quem agradece sou eu. Obrigado.
Pesquisadora Pela entrevista.
Prof. Murilo Quase uma sessão de análise profissional, né?
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APÊNDICE 8 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu, _________________________________________, após receber explicações orais da pesquisadora do Programa de Pós-graduação do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde em Educação em Ciências e Saúde (NUTES/UFRJ), estou ciente do(s):
1. Objetivo da pesquisa
Esta pesquisa tem como finalidade investigar os sentidos de qualidade da educação científica, na voz dos professores da educação profissional técnica de nível médio, considerando os diferentes horizontes sociais de cada professor.
2. Procedimentos
a. A coleta de dados da pesquisa será realizada por meio de uma entrevista. b. Para o registro das entrevistas será utilizado um gravador MP3, cujas gravações em áudio serão posteriormente transcritas por esta pesquisadora. c. Como foi informado pelo pesquisador, no início das atividades todos os sujeitos envolvidos na pesquisa terão garantia de que sua identidade será mantida em total sigilo.
3. Riscos e desconforto
Esta pesquisa não traz nenhum risco nem desconforto aos seus participantes, na medida em que não há possibilidade de danos a qualquer dimensão do ser humano (item II.8 e II.9, da resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde), pois os procedimentos acima descritos asseguram a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos sujeitos de pesquisa, dando garantia a estes sujeitos de que sua identidade será mantida em total sigilo durante todo o processo, tendo somente sua condição de professor das disciplinas de Ciências Naturais do Ensino Médio mencionada nos textos que divulgarão os resultados da pesquisa. 4. Garantia de recusa
Caso eu não queira participar de qualquer parte da pesquisa comunicarei aos pesquisadores do meu desejo de não participar e este será respeitado.
5. Garantia de acesso aos dados, resultados e ao grupo de pesquisadores
Sempre que considerar necessário tirar dúvidas, acessar dados e resultados, recorrerei à pesquisadora do (NUTES/UFRJ) pelo endereço eletrônico flaviarezende@uol.com.br ou pelo telefone: (21) 25626345 ou (21) 25626614. Sendo assim, consinto participar da pesquisa como está explicado neste documento.
_________________________________________
Local e data
Assinaturas:
__________________________________________
Participante
__________________________________________
Coordenação do Projeto
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ANEXO 1 - MATRIZ CURRICULAR DO CURSO TÉCNICO DE QUÍMICA
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E
TECNOLÓGICA
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro
Campi Duque de Caxias, Maracanã, Nilópolis e São Gonçalo
MATRIZ CURRICULAR DO CURSO TECNICO DE QUÍMICA
INTEGRADO AO ENSINO MÉDIO – 2012
Anexo à Resolução ConSup nº 07 de 25 de janeiro de 2012.
Objetivo do Curso
Formar profissionais técnicos de nível médio da ÁREA PROFISSIONAL QUÍMICA, na habilitação Técnico em Química, de acordo com as tendências tecnológicas da região e em consonância com as demandas dos setores produtivos.
Perfil Profissional de Conclusão
O Técnico em Química apresentará competências e habilidades para atuar como analista de laboratórios de controle, de pesquisa e desenvolvimento e como operador e controlador de processos industriais, cuja base científico-tecnológica dos insumos, produtos e processos sejam a Química ou áreas afins.
Duração e Carga Horária do Curso
Duração do curso: 8 semestres. Total de horas do Curso Técnico: 3699 horas. Total de horas de Estágio Curricular: 480 horas.
Diploma
Diploma: Técnico em Química. Registro Profissional: Conselho Regional de Química. Área Profissional: Química
Base Legal: Decreto Federal no 5154/2004
Itinerário Formativo
As etapas do curso são seqüenciais. Não há terminalidades parciais. Após a conclusão do último período, o aluno receberá o diploma de técnico, com certificação do ensino médio, desde que tenha realizado, com aprovação, o estágio curricular.
Público Alvo
São candidatos ao curso Técnico de Química estudantes oriundos da 8ª série do ensino fundamental ou que já tenham concluído esse grau de ensino.
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Períodos e Componentes Curriculares do Curso Técnico de Química
1º Período: Carga horária no período: 486 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL (h/a) CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira I T 4 54 Educação Física I T/P 2 27 Artes I T 2 27 Sociologia I T 2 27 Geografia I T 2 27 Filosofia I T 2 27 Matemática I T 4 54 Física I T/P 6 81 Biologia I T/P 6 81 Química Geral I T/P 6 81 Total 36 486
T = atividades teóricas P = atividades práticas 2º Período: Carga horária no período: 486 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL (h/a) CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira II T 4 54 Educação Física II T/P 2 27 Artes II T 2 27 Sociologia II T 2 27 Geografia II T 2 27 Filosofia II T 2 27 Matemática II T 4 54 Física II T/P 6 81 Biologia II T/P 6 81 Química Geral II T/P 6 81 Total 36 486
3º Período: Carga horária no período: 486 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL
(h/a)
CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira III T 4 54 Educação Física III T/P 2 27 Geografia III T 2 27 Matemática III T 4 54 Física III T/P 4 54 Química Orgânica I T/P 6 81 Físico-Química I T/P 6 81 Biologia III T 2 27 Química Inorgânica I T/P 6 81 Total 36 486
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4º Período: Carga horária no período: 486 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL
(h/a)
CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira IV T 4 54 Educação Física IV T/P 2 27 Geografia IV T 2 27 Matemática IV T 4 54 Física IV T/P 4 54 Biologia IV T 2 27 Química Orgânica II T/P 6 81 Físico-Química II T/P 6 81 Química Inorgânica II T/P 6 81 Total 36 486
5º Período: Carga horária no período: 486 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL
(h/a)
CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira V T 4 54 Educação Física V T/P 2 27 História I T 4 54 Sociologia III T 2 27 Matemática V T 4 54 Inglês Instrumental I T 4 54 Química Orgânica III T/P 4 54 Química Analítica Quantitativa I T/P 6 81 Química Analítica Qualitativa I T/P 6 81 Total 36 486
6º Período: Carga horária no período: 486 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL
(h/a)
CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira VI T 2 27 Educação Física VI T/P 2 27 História II T 4 54 Inglês Instrumental II T 2 27 Estatística T 2 27 Bioquímica T 4 54 Química Analítica Quantitativa II T/P 6 81 Química Analítica Qualitativa II T/P 6 81 Síntese e Análise Orgânica T/P 6 81 QSST T 2 27 Total 36 486
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7º Período: Carga horária no período: 405 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL
(h/a)
CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira VI T 2 27 Inglês Instrumental III T 4 54 Microbiologia T/P 4 54 Análise Instrumental I T/P 6 81 Tratamento de Dados T 2 27 Fundamentos de Metrologia T 2 27 Processos Inorgânicos T 6 81 Processos Orgânicos I T 4 54 Operações Unitárias T 4 54 Total 34 459
8º Período: Carga horária no período: 378 horas.
DISCIPLINAS
ATIVIDADES
CARGA HORÁRIA
SEMANAL
(h/a)
CARGA HORÁRIA
SEMESTRAL
(horas) Análise Instrumental II T/P 4 54 Instrumentação Industrial T 4 54 Processos Orgânicos II T 4 54 Processos Bioquímicos T/P 4 54 Processos Produtivos e Meio Ambiente T/P 2 27 Corrosão T 4 54 Operações Unitárias T 2 27 Total 24 324
Total de Horas do Curso: 3699 horas.
Total de Horas de Estágio Curricular: 480 horas.
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ANEXO 2 – MATRIZ CURRICULAR DO CURSO TÉCNICO DE LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS
Objetivo:
Consolidar a Educação Básica, possibilitando o prosseguimento dos estudos e a preparação básica para o trabalho em saúde e para o exercício da cidadania, nos termos dos artigos 35 e 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, do Decreto 5154/2004, da Resolução Nº1/2005, na forma Integrada à Educação Profissional Técnica de Nível Médio.
Descrição:
A formação geral correspondente aos estudos do Ensino Médio como última etapa da Educação Básica. Os conteúdos da formação geral são organizados nas seguintes áreas de conhecimento: - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; - Ciências Humanas, Filosofia e suas Tecnologias. O processo de ensino-aprendizagem se baseia na problematização, contextualização e sistematização dos saberes teóricos; no desenvolvimento de saberes operatórios e na iniciação à cultura do trabalho e da investigação científica, por meio de atividades disciplinares e interdisciplinares.
A quem se destina:
Alunos que já tenham concluído o ensino fundamental.
Carga Horária:
4 anos
Titulação:
Diploma de conclusão da Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na habilitação cursada.
Disciplinas:
Biologia
Educação Artística (Música, Teatro, Artes Plásticas e Visuais e Produção de Audiovisual)
Educação Física (Desporto ou Expressão Corporal)
Filosofia
Física
Geografia
História
Língua Estrangeira (Inglês ou Espanhol)
Língua Portuguesa
Literatura Brasileira
Matemática
Química
Sociologia
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Componentes curriculares específicas Curso Técnico em Análises Clínicas (Biodiagnóstico)
Série Disciplina CHT
1 Animais de Laboratório 45
1 Técnicas Básicas em Laboratório 60
1 Boas Práticas Laboratoriais e Biossegurança
30
1 Manutenção Preventiva 45
1 Fundamentos de Química Analítica 60
1 Morfologia 120
1 Iniciação a Educação Politécnica (IEP)
240
Total 600
Série Disciplina CHT
2 Bioquímica 120
2 Biologia Molecular 60
2 Técnicas Histológicas 120
2 Imunologia 60
2 Hematologia 60
2 Fluidos Corporais 30
2 Bioestatística 30
2 IEP 120
Total 600
Série Disciplina CHT
3 Protozoologia 45
3 Helmintologia 45
3 Micologia 30
3 Virologia 45
3 Bacteriologia 45
3 Estágio 300
3 IEP 90
Total 600
Total incluindo estágio: 1800 horas Total sem estágio: 1500 horas