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Memória indígena e indigenista: refletindo sobre o processo de organização,
salvaguarda e disponibilização do acervo do Cimi/Nordeste1
Lara Erendira Almeida de Andrade (UFPB / Paraíba)
Manuela Schillaci (UFPE / Pernambuco)
RESUMO
Este trabalho reflete sobre o conjunto de ações que estão sendo desenvolvidas para a
organização, salvaguarda e disponibilização de um dos mais importantes acervos sobre
a questão indígena no Nordeste brasileiro: o acervo do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi) / Nordeste. Este acervo contém material único que retrata os últimos
40 anos de memória dos povos indígenas, a história do movimento indígena e do
indigenismo na região. Ele reflete a intensa atuação da instituição junto aos povos de
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, norte da Bahia e Paraíba. O material foi produzido
principalmente pelos missionários do Cimi que, durante a atuação junto aos povos
indígenas, registraram e documentaram momentos importantes do movimento indígena,
como assembleias, encontros e mobilizações, a vida nas aldeais, festividades e rituais,
depoimentos dos índios, lideranças e anciões; como também a história do indigenismo
com registro de assembleias, missas e encontros de formação, dentre outros. Aqui
atemos nossa atenção às primeiras atividades desenvolvidas: a digitalização dos
materiais audiovisuais e sonoros, e o início da organização do acervo fotográfico. Este
conjunto de ações tem a finalidade de organização e salvaguarda, mas também traz
como preocupação central a socialização do material para os povos que ele retrata.
Palavras-chave: acervo; memória; Cimi/NE.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
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INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta as reflexões iniciais sobre um conjunto de ações que estão
sendo desenvolvidas para a organização, salvaguarda e disponibilização do acervo do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), regional Nordeste. Nosso interesse em
sistematizar esta experiência é movido por considerarmos relevante refletir sobre esse
processo em curso, portanto neste artigo observamos à importância de travar um diálogo
no âmbito acadêmico acerca do caminho percorrido até então. Ao longo do texto
também buscamos refletir sobre o processo social de construção deste acervo, cruzando
o histórico da instituição com a produção destes materiais.
O acervo do regional Nordeste do Cimi evidencia a atuação desta instituição, nos
últimos quarenta anos, junto aos povos e organizações indígenas da região.
Principalmente junto aos povos de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, norte da Bahia e
Paraíba. O material em sua grande maioria foi produzido pelos missionários do Cimi
que documentaram momentos importantes do movimento indígena, como assembleias,
encontros e mobilizações, a vida nas aldeais, festividades e rituais, registraram
depoimentos dos índios, lideranças e anciões; como também a história do indigenismo
com registro de assembleias, missas e encontros de formação, dentre outros.
Este conjunto de ações é apoiado pelo Cimi e está sendo desenvolvido por um
grupo de pesquisadores e indigenistas, formado por pessoas que foram das duas
principais instituições indigenistas em Pernambuco: o Centro de Cultura Luiz Freire
(CCLF) e o próprio Cimi2. As atividades estão sendo viabilizadas, principalmente, a
partir de projetos captados em editais do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura
(FUNCULTURA) da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(FUNDARPE).
O acervo do Cimi é constituído por vários tipos de materiais armazenados na
sede regional em Recife, entre os quais: audiovisual, sonoro, hemerográfico,
documental, fotográfico, de objetos, iconográfico e bibliográfico, conforme o
organograma a seguir:
2 Nós, autoras deste texto, compomos a referida equipe. Destacamos isso para situar os leitores que é a
partir deste local indigenistas/antropólogas/pesquisadoras que trazemos as reflexões deste trabalho.
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Neste texto iremos centrar nossa atenção nas primeiras ações que estão sendo
desenvolvidas: a digitalização do acervo audiovisual (iniciada em junho de 2013)3 e o
início da organização do acervo fotográfico (iniciada em janeiro de 2014). Estas
atividades se configuram como primeiras ações dentro de um plano maior que
chamamos de “política de gestão dos acervos documentais do Cimi/NE”. Quando
falamos de política de gestão de acervos documentais, nos referimos a definição de uma
política e de critérios para o armazenamento e descarte dos acervos documentais; esta
política visa à organização, salvaguarda e disponibilização tanto dos acervos existentes,
quanto do material que vai ser recolhido futuramente pela instituição. Logo, a definição
de política de gestão dos acervos, é uma definição de política de memória. Em relação
aos acervos existentes, o conjunto de ações realizadas e previstas são esforços para a
preservação e disponibilização de um acervo da memória dos povos indígena e do
3 A digitalização do acervo audiovisual foi uma ação desenvolvida em Pernambuco no contexto do
projeto financiado pelo Edital do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), lançado pela
Fundação Património Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) no ano de 2012. Além da equipe
mencionada ao longo do texto, outras três pessoas participaram do processo como técnicos de catalogação e digitalização, citamos: Carmelo Fioraso, Larissa Serradela e Sérgio Romualdo dos Santos. Para a
realização desta, os membros da equipe do projeto passaram por um processo de formação específica nas
áreas de “Antropologia indígena no Nordeste” (formador: Prof. Estevão Palitot/UFPB), “Etnohistoria e
historia do indigenismo do Nordeste” (formadores: Prof. Edson Silva/UFPE e Saulo Feitosa/Cimi) e
“política de gestão de acervos documentais” (formador: Alexandre Gomes/PPGA UFPE); as diversas
fases do desenvolvimento do projeto foram acompanhadas e assessoradas pelos formadores da UFPE e
UFPB que proporcionaram um diálogo constante da nossa prática com a produção teórica da área e a
inserção deste processo de trabalho com o acervo do Cimi/NE no contexto mais amplo das discussões
sobre acervos, documentação indígena e memória.
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indigenismo no Nordeste.
Estas ações visam contribuir não apenas com a preservação mas também com a
disponibilização deste material, que é patrimônio dos povos indígenas de Pernambuco e
do Nordeste. Os acervos aqui trabalhados são particularmentes importantes uma vez que
contam com materiais imagéticos e sonoros de um período que conta com poucos
registros (nos referimos principalmente aos das décadas de 1970/80). Atualmente, o
material apresenta problemas de conservação e princípio de degradação, o que torna
urgente a necessidade de limpeza, digitalização, reorganização e catalogação desses
acervos.
Devido a atuação desta equipe na assessoria da Comissão de Professores/as
Indígenas em Pernambuco (COPIPE)4, temos como preocupação central a socialização
deste material nas áreas indígenas, de forma que ele possa ser utilizado como subsídio
de pesquisa para professores/as e estudantes indígenas, e para a construção de material
didático para as escolas indígenas dos povos.
A atuação indigenista no Nordeste: refletindo sobre o processo social de produção
do acervo
Para compreender a formação deste acervo e refletir sobre a história por ele
contada, é preciso indagar o processo social que proporcionou sua criação ao longo das
décadas de atuação do Cimi Nordeste. Deste modo, a tarefa de historiar o acervo é
considerada como um percurso de pesquisa apenas iniciado que, reconstruindo a história
do próprio acervo, traça a história da atuação indigenista no Nordeste e reflete aspectos
da história do movimento indígena na região. Assim, situar o Cimi Nordeste no
panorama da ação indigenista na região, bem como a caracterização desta ação e de seus
agentes é de suma importância para esta tarefa, esse percurso é narrado em documento
produzido pela instituição por ocasião dos seus vinte anos:
O CIMI iniciou suas ações no Nordeste em 1977 ainda como Regional
Leste/Nordeste através de Fábio Alves (Fabião), agente pastoral da Diocese de
4 A COPIPE, Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco, é a organização política do
movimento de educação indígena em Pernambuco que existe desde 1999 e atua nos espaços de debate
sobre as políticas públicas de educação escolar indígena. Hoje, há mais de 1000 professores indígenas no
estado de Pernambuco e a coordenação da COPIPE é composta por dois professores e uma liderança de
cada povo indígena no estado.
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Propriá/SE, recebendo, nesse período importante apoio de José Brandão, bispo
da referida Diocese. Há que se destacar ainda, no processo de surgimento do
CIMI na região o importante apoio de Dom Tiago Postma, então bispo
diocesano de Garanhuns/PE, que acolhe as assembléias e encontros indígenas
(…). Há também o apoio de outras dioceses como a de João Pessoa/PB, na
pessoa de D. José Maria Pires. (…). A partir de 1983, com a chegada de novos
missionários, o CIMI inicia um processo de expansão e consolidação
institucional, criando condições para a admissão de novos quadros e ampliação
das áreas atendidas, estabelecendo equipes em Alagoas, Bahia e Pernambuco com apoios em Recife e Maceió. (…) Esta base de atuação do CIMI permanece
até hoje, ampliando-se com articulações e contatos com as pastorais
indigenistas da Paraíba e do Ceará, principalmente neste último, onde é grande
o número de povos indígenas (CIMI, 1997, p. 6).
É importante frisar que a atuação política da entidade, ligada a Teologia da
Libertação, se desenvolvia principalmente em áreas de conflitos fundiários, isso foi
motivo de perseguição por parte da elite econômica da região de forma que e a presença
de seus agentes nem sempre era bem vista pelo clero. Por tal razão, como mostra o
trecho acima citado, o Cimi veio construindo relações e alianças com os bispos e
representantes da igreja local que apoioavam a causa indígena e que permitiam a
atuação da entidade junto aos povos da abrângencia da Diocese.
Deste modo, no final da década de 1970, a atuação indigenista na região começa
de forma sistemática com o trabalho de Fabião, ainda como agente pastoral da diocese
de Propriá, no contexto da luta pela reconquista da Ilha de São Pedro do povo Xocó/SE,
fato amplamente documentado no registro fotográfico da entidade a partir de 1978. Em
entrevista que realizamos com ele em 2013, Fabião rememora esse contexto inicial da
atuação no Cimi:
Em [19]78 [o Cimi entrou em contato] para eu visitar os Kariri-Xokó [AL], que
embalados pelos Xokó da Ilha de São Pedro [SE] ocuparam umas fazendas da
Codevasf que estavam lá abandonadas, com uns galpões enormes. Em [19]79
eu fiz um curso de indigenista em Alcobaça [...] Em março de [19]79 eles
pediram para eu assumir a coordenação do Cimi Nordeste ai eu deixei de dar
aulas5 e fui trabalhar na coordenação do Cimi. [...] Aí depois chegaram umas
irmãs aqui de Minas [Gerais], uma Dorotéia e uma Leila que foram trabalhar
com os Fulni-ô [PE], aí elas foram morar em Águas Belas. Depois tinha um
grupo com um trabalho bom de luta pela terra e de apoio lá entre os Potiguara
[...] Então tinha os Xokó da Ilha de São Pedro com a diocese de Propriá, os Pankararu e os Truká [PE] com a irmã Alzira, os Fulni-ô, e o Angelino visitava
essas comunidades assim dando apoio [...] Em Pesqueira eu lembro que
apareceu alguém também, mas eu nunca consegui entrar nos Xukuru [PE]. Aí
veio os Kapinawá [PE], eu comecei a frequentar os Kapinawá também [...] Os
Truká eu me lembro quando eu cheguei. Era do zero, a chegada era do zero,
ninguém tinha referências de nada, nem eles tinham referência de mim, nem eu
deles. Era tudo tateando, conversava com um, dormia na casa de um, na casa
de outro. E alí, aí criando os laços né?! (Entrevista com Fabião, 31 de agosto de
5 Nessa época Fábio dava aula como professor da rede de ensino público em Propriá.
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2013, Belo Horizonte).
O missionário assume a coordenação do Cimi em 1979 e permanece até 1984/85,
deste período encontramos significativos registros fotográficos e sonoros coletados por
ele; além da atuação junto aos povos citados no trecho acima, na mesma entrevista ele
menciona o trabalho junto aos Kiriri/BA e Pankararé/BA, amplamente documentado no
acervo sonoro.
Nesse contexto a ação missionária priorizava a atuação de forma que os agentes
do Cimi moravam ou nas aldeias, ou nas cidades de suas respectivas Dioceses. Essa
concepção mudou ao final da década de 1980, quando começam a serem estruturadas
sedes centralizadas que levou a uma maior institucionalização entidade. Assim, nos
primeiros anos não havia uma sede do regional e das equipes organizada no formato de
“escritório”, mas existiam locais de apoio, uma base, no mesmo lugar de moradia dos
missionários, aonde provavelmente os acervos eram armazenados.
Neste percurso o regional Nordeste começou tendo como referencia Propriá/SE
e depois, ao longo da década de 1980 teve equipes com sede em Paulo Afonso/BA,
Garanhuns/PE e João Pessoa/PB. Nos anos de 1990 ainda havia equipes em Paulo
Afonso/BA, Garanhuns/PE, Bahia da Traição/PB e Pesqueria/PE, bem como uma sede
em Maceió/AL cuja equipe atuava também no estado de Sergipe e, mesma época em
que começou a atuação no Ceará junto com a pastoral indigenista.
Entre 1984 e 1985 é instituída uma representação do regional Nordeste no
Recife, no prédio da Conferencia Nacional dos Bispos Brasileiro (CNBB NE II) aonde
dividia a sala com a Pastoral Rural, que mais tarde se chamaria de Comissão Pastoral da
Terra. Esta escolha foi estratégica pela consideração que muitas instituições tinham sede
na capital, principalmente, a administração da Funai que abrangia vários estados do
Nordeste. A representação do Cimi/NE no Recife destinava-se a apoiar os povos
indígenas que vinham a capital para fazer denúncias e reivindicar seus direitos frente
aos órgãos (SILVA, no prelo). Neste período o Cimi se dedicou a um trabalho capilar,
dando visibilidade a causa indígena dentro da igreja, dos movimentos sociais, nas CEBs:
era de fundamental importância uma articulação dessas mobilizações com os
movimentos sociais, parlamentares, a sociedade civil, as pastorais, a imprensa
etc. E ainda, conquistar espaços para divulgar a chamada causa indígena junto
às universidades, escolas, igrejas, comunidades populares etc., com palestras, eventos por ocasião da Semana do Índio e iniciativas outras (SILVA, no prelo).
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Um exemplo disso é a criação do GRACI – Grupo Recifense de Apoio à Causa
Indígena, grupo de discussão e mobilização em apoio à causa indígena ativo de 1984 a
1986.
Esse resumido panorama da atuação do regional Nordeste do Cimi nos ajuda a
situar o conteúdo deste acervo e compreender o contexto de sua produção. Por se tratar
do acervo do regional, composto pelas várias equipes, os povos retratados no acervo são
os povos do Nordeste nos quais tiveram atuação indigenista desta instituição,
especificamente, os povos de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Paraíba. A
atuação prioritária da instituição sempre foi a de apoio à demarcação dos territórios
indígenas, configurada no contexto das lutas indígenas na região:
Final dos anos setenta. Os povos indígenas da região estão na luta pelo
reconhecimento étnico e buscam, através de ações junto ao Estado brasileiro, a
demarcação de seus territórios. Cansados de esperar pela resolução, resolvem
fazer retomadas em parcelas de suas terras tradicionais. Isso acontece com os
povos Xocó (Ilha de São Pedro-SE), Kariri-Xocó (Fazenda da Codevasf/Sementeira-AL) e Xukuru-Kariri (área do ritual na Mata da Cafurna-
AL) entre outros. Década de oitenta. Durante a nova República, essa forma de
luta tem continuidade, ampliando-se para outros povos da região, devido ao
processo de articulação feito através de visitas e assembléias indígenas, que são
espaços de troca de experiência e discussão dos problemas comuns. Nesse
período, destacam-se as retomadas feitas pelos povos do Norte da Bahia,
Kaimbé e Kiriri (Serra Boa Vista e Serra da Cafurna). (…). Com a nova
Constituição Federal, na década de noventa os povos indigenas do Nordeste
fazem novas ocupações, como forma de exigir do governo federal o
cumprimento dos dispositivos conquistados, especialmente a demarcação de
suas terras, através das “disposições transitórias”, que sugerem ações urgentes, em tempo definido. Nessa fase ocorrem retomadas realizadas pelos povos:
Xucuru de Ororubá (Pedra D'Agua e Caipe), Karapoto (Fazendas Coqueiro e
Taboado), Kariri-Xocó (Cercado Grande), Truká (Ilha da Assunção), Kiriri
(Mirandela) e Xukuru -Kariri (Fazenda Jiboia, Aparecida e Bubu). Além disso,
o povo Pankararu faz a autodemarcação de seu território (CIMI, 1997, p. 15-
16).
O Movimento Indígena brasileiro começa se organizar na década de 1970 e é
resultado de uma mobilização que envolveu os povos indígenas com apoio de ONGs, da
Igreja Católica, do Conselho Indigenista Missionário e de universidades (LACERDA,
2008). É a partir desse processo de organização que surgem as primeiras organizações
indígenas de abrângencia nacional e os processos de organização regional. No Nordeste
particularmente, é neste período que são construídas e tornadas públicas uma série de
reivindicações de povos indígenas que até então não eram reconhecidos nem pelo órgão
indigenista oficial, nem constavam nas literaturas etnológicas conhecidas (OLIVEIRA,
1999). Nesse contexto o Cimi tem papel central na denúncia das violências contra os
índios e no trabalho de base para o apoio à reivindicação da demarcação dos territórios.
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A instituição empenhou-se de forma significativa e continuada na formação política de
lideranças indígenas e na promoção das assembléias indígenas, momentos de encontro e
fortalecimento das relações interétnicas, de troca de experiência entre os demais povos,
de articulação e mobilização. Estes encontros estimulavam a discussão sobre os direitos
indígenas, a troca de informações entre os grupos e podem ser considerados uma das
bases de fundação do movimento indígena (LACERDA, 2008; K. OLIVEIRA, 2013).
Na definição de Kelly Oliveira a proposta do movimento indígena é,
uma proposta de mobilização voltada para a arena política. Uma proposta de
mobilização em que as distinções entre os diversos povos são abrandadas
frente a criação de uma identidade étnica particularizada, baseada no
reconhecimento de necessidades semelhantes entre os povos e de um posicionamento político que marque uma 'união' dos povos para o dialogo
frente à sociedade não indígena (K. OLIVEIRA, 2013, p. 78).
O acervo: contando historias de resistência indígena no Nordeste.
Como descrevemos na sessão anterior, o acervo indigenista é fruto do trabalho
do Cimi junto aos povos indígenas e se caracteriza por sua grande diversidade e pela
abrangência temporal de quase quatro décadas, retratando de forma bastante sistemática
a atuação da agência indigenista e do movimento indígena na região. Os registros são
geralmente realizados pelos missionários do Cimi que, durante sua atuação,
documentaram os fatos por meio de fotografias, registros sonoros e audiovisuais;
paralelamente a isso, na sede da instituição foi feito um trabalho sistemático de seleção
e organização de material sobre a temática indígena no acervo hemerográfico e
bibliográfico, bem como, foram coletados e organizados os documentos produzidos
pelos povos indígenas, pelos orgãos governamentais e instituições não governamentais,
entre outros.
Aqui enfocaremos os acervos que estão em fase de reorganização/salvaguarda:
fotográfico, audiovisual e sonoro (os últimos dois já em fase de digitalização). Estes
contam com três tipologias de registros, a partir de seus conteúdos: (1) registro da vida
quotidiana nas aldeias (imagens de lideranças tradicionais, festividades, rituais, dos
territórios e das atividades produtivas etc.); (2) registro das mobilizações e encontros do
movimento indígena (participação no processo da Constituinte, assembléias, encontros
estaduais, regionais e nacionais dos povos indígenas, manifestações etc.); (3) registro do
indigenismo no nordeste (encontros, missas, formações etc.).
O trabalho com o acervo fotográfico ainda está em fase inicial, até o momento
9
foi feito um “diagnóstico panorâmico” do acervo que conta com uma listagem dos
álbuns, informação sobre os povos retratados e sua localização, data do registro e estado
de conservação em que se encontram as fotografias. Este acervo conta com cerca de
7.500 peças fotográficas, 380 slides e cerca de 25.000 negativos que contém
significativos registros no período de 1978 aos anos de 1990, referentes aos povos
indígenas de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Paraíba. As peças do acervo
fotográfico, por sua abrangência temporal de quase quatro décadas, retratam de forma
bastante completa a sistemática de atuação do Cimi e ilustram densamente essas três
tipologias de materiais apontadas no parágrafo anterior, a exemplo disso, as fotos
abaixo mostram a participação dos índios do Nordeste na Assembléia Constituinte de
1987/1988.
Figuras 1, 2 e 3: participação dos índios do Nordeste na Assembléia Constituinte de 1987/1988
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Outro exemplo são as fotografias que retratam a atuação do Cimi junto aos
Kapinawá no início dos anos de 19806 e contam com registros: do ritual; de uma missa
em defesa dos Kapinawá, que foi organizada pela instituição e aconteceu na sede do
município de Buíque em 1981; e uma fotografia que mostra o integrante do Cimi Fabião
com os Kapinawá. Esta imagem foi feita por uma equipe de filmagem alemã que esteve
na terra indígena em 1983 e produziu um vídeo sobre os conflitos fundiários entre
indígenas e fazendeiros que tentavam invadir a Mina Grande, uma das aldeias do
território Kapinawá.
Figura 4: Fábio Santos (Coordenador do Cimi/NE) e índios Kapinawá
Fonte: acervo do Cimi, fotografia tirada durante a gravação do filme KAPINAWÁ – wir dürfen wieder Indianer sein7 | Data: 08/10/1983
6 Parte das fotos foi digitalizada no ano de 2013 por Lara Erendira Andrade, autora deste artigo. São cerca
de 60 fotos que retratam os Kapinawá e foram digitalizadas com duas finalidades: para o uso na formação
com professores/as indígenas deste povo e para ilustrar a dissertação da pesquisadora que trata do povo
Kapinawá. 7KAPINAWÁ – wir dürfen wieder Indianer sein / Schroeter: Kapinawá – temos direito de ser indígenas
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Figura 5: Cruzeiro na Furna da Mina Grande
Fonte: Acervo do Cimi, terreiro da Furna da Mina Grande, 1983
Figuras 6 e 7: Missa em Frente a igreja de Buíque,
índios Kapinawá na praça à frente
Figura 8: Pajé Zé Índio
Fonte: acervo do Cimi, missa em defesa dos Kapinawá, Buíque/PE | Data:21/06/81
de novo.
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Em relação aos registros audiovisuais e sonoros, o processo de digitalização
destes está em fase de finalização. A diversidade de tipos de suporte destes registros,
demonstra o arco temporal documentado pelo material do acervo, conforme
demostramos no esquema a seguir:
O acervo sonoro conta com cerca de duzentas peças no formato de fita cassete e
minicassete, em sua grande maioria datadas entre a segunda metade dos anos de 1970 e
fins dos anos de 19908. Existem fitas com material editado, como gravações de
programas de rádio sobre a temática indígena e álbuns musicais. No entanto, a maior
parte do material é de áudios sem edição (material bruto), onde se encontram registros:
de missas em solidariedade, por exemplo, ao povo Xokó e Kapinawá (cf. fotos na
página anterior); registros das assembléias indígenas; gravação de cantos, rezas,
novenas e torés de diversos povos, entre os quais os Pankararé, Kariri-Xocó, Kiriri,
Kapinawá, Atikum, Potiguara e Truká; há ainda depoimentos de indígenas de grande
número de povos do Nordeste.
Muitas vezes os registros têm como objetivo documentar os conflitos, relatar
violações e situações de violência que afetam os povos indígenas, causadas pelos
conflitos fundiários no contexto da luta pela demarcação dos territórios tradicionais no
Nordeste. Um exemplo disso é a gravação da posse do cacique Lázaro nos Kiriri de
8 O material em formato de CD é quantitativamente menos relevante e trata-se de fontes secundárias, de
forma que não iremos ater-nos.
13
Mirandela/BA e do processo de luta pela demarcação da Terra Indígena Kiriri. Sérgio
Romualdo dos Santos, técnico de digitalização e catalogação do projeto descreve o
conteúdo de um desses áudios:
A Fita k7 tombada como C293 foi gravada na aldeia Mirandela do povo
indígena Kiriri, Ribeira do Pombal/BA. Esta gravação contém o discurso de
posse do cacique Lázaro Kiriri, o qual também narra os problemas
enfrentados pelo povo para conseguir suas terras de volta, relata a lentidão da justiça e sua ida ao Rio de Janeiro para pedir a demarcação da Terra Indígena
Kiriri, e também a reprimenda que leva do Chefe do Posto indígena por ter
desobedecido-o e viajado sem autorização. O Cacique Lázaro responde às
varias perguntas do entrevistador e este faz a leitura da carta do Gabinete do
Ministério do Interior, Fundação Nacional do Indio, gabinete do presidente
em Brasília, datada 7 de novembro de 1978, em resposta à carta enviada pelo
cacique Lazaro pedindo a demarcação da terra. Conforme trecho da carta:
'Caro Lázaro recebi a sua carta pedindo a demarcação da Terra Indígena
Kiriri, mandei examinar a possibilidade de realizar o seu pedido. Infelizmente
a Funai recebe verbas somente do governo, e as mesmas são insuficiente para
atender a todas as necessidades, no corrente ano não temos dinheiro para realizar qualquer demarcação, a tua área só poderá ser demarcada em 1979
(…)'. Carta de Ismar de Araújo Oliveira, presidente da FUNAI. Após a leitura
da carta inicia o toré Kiriri (provavelmente trata-se de três gravações
realizadas em momentos diferentes).
Por fim, cabe destacar que o material audiovisual tem a mesma expressão do
fotográfico e sonoro, com a diferença que no acervo audiovisual se encontram com mais
frequência materiais usados pelas equipes no trabalho de formação com os povos
indígenas9. As gravações estão em suporte VHS, VHS-C, mini-DV, mini-DVD e DVDs,
entre outros.
As fitas em VHS contam com material com abrangência temporal que vai da
década de 80 ao início dos anos de 2000; as VHS-C contém imagens entre 2000 e 2008;
os DVDs são o material mais recente. Ao reorganizar o acervo, catalogamos as peças a
partir do conteúdo nas categorias de materiais editados e materiais brutos. As gravações
em mini-DV e mini-DVD, por exemplo, quantitativamente menos relevantes no acervo
audiovisual, são registros dos últimos seis anos e contam com imagens que tratam da
Transposição do Rio São Francisco e as grandes obras10
de forma geral, material usado
para a produção do filme “O Elefante Branco. Resistência Indígena a Transposição do
Rio São Francisco”11
.
9 O acervo sonoro contém uma quantidade bem menor de peças destinadas ao trabalho de formação, a
exceção das gravações de alguns programas de rádio. 10 Nos referimos aqui aos grandes empreendimentos desenvolvimentistas promovidos pelos governos e
em parte contemplados no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. 11 Trata-se de um documentário produzido pelo Cimi/NE e realizado em 2012 por Manuela Schillaci,
autora do artigo, Martina Feliciotti e Lorenzo Grimaldi. O documentário está disponível em:
14
Entre os materiais editados do acervo audiovisual encontramos desde materiais
de formação, passando por vídeos que tratam de forma genérica a questão indígena no
país, até chegar a filmes e documentários sobre povos específicos do Brasil produzidos
por universidades, pelos indígenas e pelo próprio Cimi. O material bruto do acervo
audiovisual se assemelha, por conteúdo temático, aos conteúdos do acervo sonoro,
porém com um recorte temporal que alcança os dias de hoje. Trata-se de gravações de
assembleias interétnicas, audiências públicas, depoimentos de indígenas, mobilizações,
a exemplo da manifestação dos 500 anos em Porto Seguro e das imagens do
Acampamento Terra Livre (ATL).
Algumas considerações sobre o trabalho desenvolvido e os caminhos possíveis
A sitematização desta experiência, a partir do trato do acervo como fruto do
processo social que levou a sua produção, visa esboçar uma idéia do contexto social em
que o acervo indigenista foi produzido. Este contexto é o da atuação indigenista no
nordeste e do surgimento e afirmação do movimento indígena na região e sua atuação
até os dias atuais12
. O trabalho de reconstrução da “história potencial” contida no acervo
é compreendido como um processo de pesquisa mais amplo e profundo, apenas iniciado.
Como mencionado na introdução deste texto, este conjunto de ações tem a
finalidade de organização e salvaguarda, mas também traz como preocupação central a
disponibilização do material para os povos que ele retrata. A finalidade é que, na
medida em que o processo de salvaguarda e organização do material for finalizado,
consigamos avançar para o processo de socialização destes materiais, isso é
vislumbrado a partir do que consideramos a seguir.
O acervo do Cimi/NE é uma fonte importante de registro da história dos povos
indígenas, como mencionado. Ele tem uma relevância particular para (1) os estudantes e
professores indígenas, constituindo suporte para pesquisas e produção de material
didático a ser utilizado nas escolas indígenas13
, como publicações e produções
<https://vimeo.com/92090061>. 12A partir dos anos de 2000 a prática de registro audiovisual e fotográfico tem aumentado e se pluralizado,
é preciso destacar que esta tem sido realizada principalmente pelos próprios povos indígenas, a exemplo,
em muitos povos há grupos de jovens que trabalham com registro e edição audiovisual. Portanto, a prática
de documentar e registrar do Cimi NE não tem sido tão sistemática como nas décadas precedentes. 13Hoje Pernambuco conta com aproximadamente 1000 professores/as indígenas; 227 escolas indígenas de
Ensino Fundamental I, 08 escolas indígenas de Ensino Fundamental II e 03 escolas indígenas de Ensino
Médio (MEC 2005), com um total de cerca de 10.088 alunos (Seduc 2009).
15
audiovisuais, cada vez mais utilizadas em sala de aula. Da mesma forma, o arquivo
poderá ser um recurso de pesquisa para os (2) 160 pesquisadores indígenas dos 12
povos de Pernambuco que frequentam a Licenciatura Intercultural do Centro
Acadêmico do Agreste da UFPE, em Caruaru, ingressos no ano de 2014. Este acervo já
foi recurso para a pesquisa da turma que se formou em 2013, em uma das atividades do
PET na qual alguns estudantes/professores de cada povo procuraram fotografias que
retratassem seus antepassados, tendo como finalidade a publicação da pesquisa dos
formandos indígenas.
A ideia é compartilhar este recurso também com (3) as iniciativas coletivas que
já existem nestes povos de organização da memória, catalogação de materiais e
produção de acervos, a exemplo dos diversos museus indígenas, casas de memória,
coleções ou ainda em pontos de cultura.
Também consideramos que a organização e digitalização deste acervo poderá
contribuir para pesquisas de acadêmicos e pesquisadores não-indígenas na área da
antropologia visual, etnologia indígena e história. E ainda com a implementação da Lei
11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história indígena na
educação básica, tornando o acervo uma importante fonte de documentação e produção
de materiais didáticos a serem utilizados nas escolas da rede pública do estado.
Por fim, queremos trazer como última reflexão a ideia de que o processo de
construção da memória sempre tem um sentido político. É fato que nos registros
coloniais e na historiografia oficial os povos indígenas foram representados a partir de
uma determinada visão, produzida pelo viés da subalternidade e da representação
preconceituosa e estereotipada. A salvaguarda e disponibilização deste acervo tem como
objetivo contribuir para pluralizar as visões sobre os povos indígenas, a partir de
registros feitos em outra perspectiva. É preciso partir para a análise sobre a função da
memória frente ao projeto político da invisibilização dos indígenas na região Nordeste.
Algumas questões elencadas por João Pacheco de Oliveira (2011) ajudam a refletir
sobre este processo:
1) Que processos de submissão foram concretamente usados contra os
indígenas e que graus de eficiência tiveram em torná-los dependentes
dos colonizadores e cada vez mais invisíveis no conjunto da
população? 2) Como se engendrou e se manteve a representação sobre
a inexistência e a invisibilidade dos indígenas no Nordeste? 3) Por
quais caminhos os indígenas saíram da condição de invisibilidade e de
caboclos e se transformaram em índios? (p.11)
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Partirmos daí para considerar que é preciso aprofundar a compreensão específica
da presença indígena para “estabelecer como funciona o regime da memória que associa
ações, narrativas e personagens, prescrevendo-lhes formas de construir significados”
(OLIVEIRA, 2011, p. 12) e destacar o papel da investigação de narrativas, imagens,
documentos histórico, objetos e tudo que é tido como memorável.
Acreditamos que a preservação desta memória e dos processos sociais que
levaram a formação deste acervo, tem um sentido político porque envolve o tema da
construção de sentido da História. A partir do trabalho em curso e da reflexão sobre o
papel da memória junto aos povos indígenas, pretende-se contar outra versão da
Historia do Brasil, a do nordeste indígena e sua resistência, principalmente quando
recontada pelos próprios sujeitos: os povos indígenas.
Referências Bibliográficas
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. 20 anos de história junto aos povos
indígenas. Recife: CIMI/NE, 1997.
LACERDA, Rosane. Os Povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988. Brasília/DF:
Cimi, 2008.
OLIVEIRA, João Pacheco. (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2011.
______________________. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. In__(org): A viagem da volta: etnicidade, política e
reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999.
OLIVEIRA, Kelly de. Diga ao povo que avançe! Movimento Indigena no Nordeste.
Recife: Fundaj/Massangana, 2013.
SILVA, E. A importância do CIMI-NE no Recife: contribuindo para discussões. Recife:
no prelo, 2013.