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FACULDADE DE LETRAS
UNIVERSIDADE DE LISBOA
Departamento de Estudos Clssicos
INTRIGAS PALACIANAS NOS ANNALES DE TCITO PROCESSOS E TENTATIVAS DE OBTENO DE PODER
NO PRINCIPADO DE TIBRIO: ESTUDO RETRICO.
Ricardo Miguel Guerreiro Nobre
MESTRADO EM ESTUDOS CLSSICOS LITERATURA LATINA
2008
FACULDADE DE LETRAS
UNIVERSIDADE DE LISBOA
Departamento de Estudos Clssicos
INTRIGAS PALACIANAS NOS ANNALES DE TCITO PROCESSOS E TENTATIVAS DE OBTENO DE PODER
NO PRINCIPADO DE TIBRIO: ESTUDO RETRICO.
Ricardo Miguel Guerreiro Nobre
DISSERTAO DE MESTRADO EM ESTUDOS CLSSICOS LITERATURA LATINA
orientada pela Professora Doutora
Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel
2008
i
NDICE
AGRADECIMENTOS iii
RESUMO / ABSTRACT.... v
LISTA DE ABREVIATURAS vii
INTRODUO 1
1. captulo A CONSTRUO E AS FRONTEIRAS DA INSTITUIO LITERRIA:
TCITO, LITERATURA E HISTRIA 9
1. Histria e Literatura. 10
2. Historiografia Antiga 15
3. O Plano do Historiador dos Annales. 20
3.1 As Fontes dos Annales 24 3.2 Fidelidade s fontes 26
2. captulo AVGVSTAE CONSCIENTIA, CAESARIS FAVOR 29
1. Augusto: estabelecimento de um modelo retrico 32
2. Eliminao da descendncia de Augusto.. 40
3. Germnico.. 48
3.1 O heri da Germnia 52 3.2 O heri da Histria.. 64
4. Piso e Plancina. A morte de Germnico.. 68
4.1 A morte de Germnico 73 4.2 A vingana de Germnico.. 79
3. captulo CONTINVAE ACCVSATIONES, FALLACES AMICITIAE. 91
1. Amizades falsas e perniciosas: Libo Druso. 95
2. Da morte de Druso ao isolamento de Tibrio 109
3. Ataque e destruio da casa de Germnico 123
3.1 A perseguio de Tcio Sabino 124 3.2 A casa de Germnico... 130
4. Liberdade de expresso: Cremcio Cordo. 132
ii
CONCLUSO.. 139
BIBLIOGRAFIA.. 141
INDEX NOMINVM... 157
INDEX LOCORVM.... 159
iii
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi acarinhado e rodeado por diversas pessoas que o ajudaram a
amadurecer. Chega a altura de lhes reconhecer a influncia e a importncia que tiveram
para que se tivesse atingido este resultado.
Professora Doutora Cristina Pimentel, que esteve a cargo da sbia e
apaixonada orientao, devo os diversos momentos de saudvel discusso e
aperfeioamento de ideias, alm de inmera bibliografia;
Professora Doutora Maria Lcia Lepecki, cujos ensinamentos iluminaram
sempre estas pginas;
Prof. Doutora Serafina Martins, pelo inestimvel auxlio em caminhos
difceis da teoria da literatura;
s Dr.as Manuela Baslio e Graa Lopes, do Servio de Emprstimos
Interbibliotecas, da Biblioteca da Faculdade de Letras, pelo incansvel trabalho na
busca e recolha de bibliografia inexistente em Portugal.
Uma palavra especial de reconhecimento para o Prof. Doutor Dylan Sailor, da
University of California, Berkeley, pelo incentivo e por ter tido a generosidade de me
ter feito chegar uma primeira verso do captulo sobre Cremcio Cordo, do seu livro
Writing and Empire in Tacitus (a publicar em Outubro na Cambridge University Press).
Finalmente, uma palavra de apreo para os meus amigos e colegas: Ana Cristina
Matafome, Ana Filipa Roldo, Ana Filipa Silva, Cristiana Silva, Hlio Silva, Joana
Serafim, Lus Simes Coelho, Paula Carreira, Rui Carlos, Susana Alves, e,
naturalmente, ao Hlio Vale. A todos, agradeo o apoio, o interesse e a inspirao.
Aos meus pais, sem o esforo dos quais a realizao desta tese teria sido
impossvel, dedico todo o trabalho.
v
RESUMO / ABSTRACT
Os Annales de Tcito so reflexo de uma sociedade cujo modelo poltico tinha
sofrido uma enorme mudana e que procurava ainda adaptar-se ao novo regime,
dominado por prncipes que chegam ao poder como resultado de operaes de
bastidores. A simulao a caracterstica mais visvel, pois com uma aparncia
enganosa que as personagens actuam, num regime que ele mesmo de cosmtica.
Partindo deste pressuposto, e com a conscincia de que a escrita histrica no alheia s
categorias da narrativa literria, o objectivo deste estudo o tratamento das intrigas e
traies de modo a identificar processos retricos dominantes, no enquadramento
narrativo-descritivo e no estilo do autor.
O estudo, que no tem como objectivo verificar no mbito da Histria e da
epistemologia a veracidade da narrativa, mas somente o estudo retrico do texto que
Tcito escreveu, encontra-se dividido em trs captulos: no primeiro analisam-se as
semelhanas formais entre a escrita historiogrfica e a literatura que, na legitimao
retrica, conhecem diversas sobreposies; o 2. captulo trata os passos mais
significativos em que se verifica uma actuao insidiosa at ao livro III; no 3. captulo,
estudam-se principalmente episdios representativos que configuram, pela actuao do
poderoso ministro de Tibrio, Sejano, e seus sequazes, exemplos de intrigas palacianas
(no livro IV).
Palavras-chave: Tcito, Historiografia Antiga, Retrica, Anlise Literria
The Annales of Tacitus are a reflex of a society whose political model had
suffered an enormous change. A society trying to adapt itself to a new regime
dominated by principes that ascended to power as a result of behind closed doors
actions. Simulation is the most visible characteristic. Characters act deceivably in a
regime that was by itself one of cosmetics. Having that in mind, and being conscious
that the writing of history is no strange to the categories of the literary narrative, this
study intents to treat the intrigues and betrayals in order to identify the rhetorical
processes in the narrative-descriptive framework and in the style of the author.
This study does not have as a purpose the verification of the narratives veracity
in the historic and epistemological realm. It presents a rhetorical study of the text that
Tacitus wrote. The study is divided in three chapters. The first one analyses the formal
vi
resemblances between historiography and literature that in the rhetorics know diverse
layers. The second chapter deals with the most significant passages in which insidious
actions are presented up to Book III. In the third chapter representative episodes of plots
in the imperial court (in Book IV), that were a result of the actions of Tiberius mighty
ministry, Sejanus, and its sequacious followers, are studied.
Keywords: Tacitus, Ancient Historiography, Rhetorics, Literary Analysis
vii
LISTA DE ABREVIATURAS
ErnoutMeillet = ERNOUT, Alfred e Antoine Meillet, Dictionnaire tymologique de la
langue latine: histoire des mots (4. ed., Paris: Klincksieck, 1959; reimpr. 2001).
Furneaux = The Annals of Tacitus, i, ed. Henry Furneaux (2. ed., Oxford: Clarendon
Press, 1896).
GerberGreef = GERBER, Arnold, Adolf Greef e Constantin John, Lexicon Taciteum
(Hildesheim: G. Olms, 1962).
Goodyear (1) = The Annals of Tacitus I.154, ed. Francis Richard David Goodyear
(Cambridge: Cambridge University Press, 1972).
Goodyear (2) = The Annals of Tacitus I.55II, ed. Francis Richard David Goodyear
(Cambridge: Cambridge University Press, 2004).
MartinWoodman = TACITUS, Annals, book IV, ed. Ronald Haithwaite Martin e
Anthony John Woodman (Cambridge: Cambridge University Press, 1989;
reimpr. 2001).
Miller = TACITUS, Annals, book I, ed. Norma Patricia Miller (Londres: Bristol Classical
Press, 1992; reimpr. 2001).
OLD = Oxford Latin Dictionary, ed. Peter G. W. Glare (Oxford: Oxford University
Press, 1982; reimpr. 2006).
WoodmanMartin = The Annals of Tacitus book III, ed. Anthony John Woodman e
Ronald Haithwaite Martin (Cambridge: Cambridge University Press, 1996;
reimpr. 2004).
1
INTRODUO
Quando o jovem Librio, personagem principal do romance A Via Sinuosa, de Aquilino
Ribeiro, adormece durante uma homilia e sonha que caminha no Paraso, ao encontrar-
se com Deus, assim recebido: Ol, Librio, bem-vindo sejas! Ento esse Tcito?1 O
reconhecimento de Tcito enquanto representao dos estudos de Latim, que ocupavam
grande parte da educao do devoto Librio, diz bem da sua importncia para a cultura
e formao individual. Por seu turno, Ea de Queirs admitia Afonso da Maia como
entusiasta de Tcito, e encontramo-lo a ler o historiador no primeiro captulo de Os
Maias2. No se pode dizer, porm, que a fama que estas referncias da nossa literatura
documentam tenha sido a mesma que Tcito conheceu na Antiguidade, pois apenas
Amiano Marcelino e, depois, Sulpcio Severo, Orsio, Sidnio Apolinar e Cassiodoro
parecem ter sido influenciados por ele apesar de a Historia Augusta referir que o
imperador Cludio Tcito mandou produzir cpias das suas obras, assim como ordenou
a ereco de esttuas em seu louvor3. Na Idade Mdia era um autor muito mal
conhecido e foi apenas no Renascimento (logo depois que se iniciou a edio da sua
obra) que comeou a ser apreciado e a servir de fonte de inspirao a outros escritores.
Com efeito, da vida daquele que considerado o maior historiador romano
pouco se sabe4. As incertezas acerca da sua biografia comeam pelo nome. O cdice
Mediceus I (o mais antigo, que data do sculo IX e transmite os Annales do incio ao fim
do livro VI) identifica-o como Publius Cornelius Tacitus, mas o cdice mais recente
(Mediceus alter, do sculo XI) e Sidnio Apolinar (Epistulae, 4.14.1 e 4.22.2) nomeiam-
-no Gaius. Contudo, as informaes seguras que existem sobre a vida de Cornlio
Tcito so recolhidas das suas obras, de algumas cartas de Plnio-o-Moo (de quem era,
alis, muito amigo5), e por algumas evidncias arqueolgicas.
1 A. Ribeiro, A Via Sinuosa (Lisboa: Crculo de Leitores, 2008), 51. 2 E. de Queirs, Os Maias (Lisboa: Livros do Brasil, s.d.), 11 e 186. 3 Como documenta a vida do imperador Tcito na Historia Augusta, 10.3. 4 V. A. R. Birley, The Life and Death of Cornelius Tacitus, Historia, 49/2 (2000), 230247. 5 Os dois foram herdeiros de L. Dasumico de Crdova (CIL vi 10229). famoso o episdio narrado por Plnio, em que, durante uns jogos, Tcito estava a falar sobre assuntos eruditos com um cavaleiro, que lhe pergunta: Italicus es an prouincialis?, ao que Tcito lhe responde Nosti me, et quidem ex studiis. E o cavaleiro pergunta Tacitus es an Plinius? (Plin. Ep. 9.23.23). Comprova-se que o historiador era um entendido em vrias matrias, um estudioso reconhecido, e at que teria sotaque diferente do romano. Assistia a espectculos no circo (Plin. Ep. 9.23.2) e o mesmo Plnio sugere em dada carta que tambm caava. De facto, Plnio sabe que Tcito iria rir com uma graa que este lhe conta, a propsito da sua produo intelectual durante uma caada, aconselhando-o a que tambm ele leve material de escrita para o bosque e aproveite o silncio da natureza (Ep. 1.6).
2
A data do nascimento, c.5558 d.C., deduzida pelas datas em que chega s
magistraturas; tambm se desconhece o seu local de nascimento, que, pela predileco
que demonstra por certas regies, talvez seja a Itlia Transpadana ou as Glias6. O seu
pai ter sido um cavaleiro, procurador da Glia Blgica, de que fala Plnio-o-Velho
(Nat. 7.76). A sua formao em oratria (Dial. 1.12, 2.1) permitiu-lhe auferir grande
prestgio como advogado e orador7 e escrever o Dialogus de Oratoribus (que data
possivelmente de 102), onde se discorre sobre as causas da decadncia da oratria.
durante o principado de Vespasiano que entra na vida pblica, encontrando-se
em Roma a partir de 75, provavelmente a preparar a carreira senatorial e a ouvir
discursos pblicos (Dial. 2.1). Por volta de 7677, casa com a filha de Gneu Jlio
Agrcola, de quem escreveu a biografia (De Vita Iulii Agricolae, em 98). Quando o
sogro morre (23 de Agosto de 93; Ag. 45.5), Tcito encontra-se fora de Roma, tendo
regressado de imediato e a permanecendo durante os ltimos anos do principado de
Domiciano (Ag. 23, 45). Esta ausncia explica-se pelo facto de ter estado em servio
pblico numa provncia (provavelmente como legatus pro praetore), depois de ter feito
parte do colgio dos quindecimuiri sacris faciundis, em 88 (ano em que promove os
jogos seculares; Ann. 11.11.1). Em 97, cnsul suffectus e pronuncia a orao fnebre
de Vergnio Rufo, vencedor de Vndice (Plin. Ep. 2.1.6). Por volta de 99100, processa
por extorso Mrio Prisco, ex-governador da Africa. De 102 a 104, talvez tenha
governado uma provncia imperial e, c.112113, foi procnsul da Asia, cargo de
prestgio em que atinge o topo da carreira senatorial8.
Depois de Germania (De Origine et Situ Germanorum), escreveu as Historiae
em 12 ou 14 livros9 (em que trabalha at 108109; Plin. Ep. 6.16, 6.20, 7.20, 7.33.1,
8.7), obra na qual usa o esquema analstico para narrar as guerras civis de 69, os
principados de Vespasiano, Tito e Domiciano (dela sobraram apenas os quatro
primeiros livros e o incio do quinto, tendo-se perdido a parte respeitante a Domiciano e
a maior parte relativa a Tito).
Os Annales (ou Ab excessu diui Augusti, que retoma o ttulo da obra de Tito
Lvio) so a sua obra-prima. Perfazendo um total de 16 ou 18 livros, contam a histria
de Roma desde a morte do imperador Augusto at Nero. O livro V perdeu-se no 6 V. Mary L. Gordon, The Patria of Tacitus, Journal of Roman Studies, 26/2 (1936), 145151. 7 Plnio chama-lhe laudator eloquentissimus (Ep. 2.1.6) e diz que fala eloquentissime, com um estilo que se caracteriza habitualmente por ser , advrbio que significa com majestade, dignidade (2.11.17); cf. Plin. Ep. 4.13.10. 8 V. Orientis Graecae Inscriptiones Selectae, ed. W. Dittenberger (Hildesheim: George Olms, 1960), 487. 9 Sabe-se que, no total, as duas obras juntas completariam 30 livros.
3
Mediceus I e o Mediceus alter comea no livro XI, pelo que tambm no temos uma
poro significativa que inclua o principado de Calgula e o incio do de Cludio (livros
VIIincio do XI). Tambm o fim da obra se perdeu. Actualmente, termina com a morte
de Trsea Peto (16.35), mas presume-se que o seu fim fosse a narrao da morte de Nero.
Empregando, como o nome indica, o esquema analstico, prprio das primeiras
manifestaes da historiografia em Roma, Tcito ter redigido os Annales pelo menos
at 116, deduo que assenta na referncia campanha dos Partos e aos limites do
imprio em 2.61.2. possvel que, pela morte do autor, a obra tenha ficado inacabada,
teoria confirmada por uma alegada falta de reviso final, tais as diferenas de estilo
entre a primeira parte e a segunda10.
Sobre o estilo e interesse literrio da obra de Tcito, existem muitos estudos,
referidos na bibliografia11, mas no ser de mais referir algumas das caractersticas
reconhecidas no seu modo de escrever, a que este trabalho tambm presta ateno.
Recorde-se, como introduo, esta citao de Burnouf:
ce que tout lecteur doit admirer dans Tacite, cest ce style tantt vif et rapide, tantt calme et majestueux, souvent sublime, toujours simple dans sa grandeur, et toujours original et vrai, parce quil part dune me fortement convaincue et dun esprit qui pense daprs lui-mme ; cest cette prcision, qui consiste dire ce quil faut, rien de plus, rien de moins, et qui nexclut ni la pompe des expressions, ni lclat des images, ni lharmonie des priodes. La concision mme, quon reproche quelquefois Tacite, et qui, avare de paroles, enferme dans ses coupes heurtes et ses oppositions inattendues plus de sens que de mots, nest ordinairement quune heureuse hardiesse, un secret du gnie, qui conoit fortement sa pense et la dessine grands traits. Voil ce qui caractrise la diction de Tacite ; voil pourquoi on ne peut la comparer avec celle daucun autre crivain, pas mme de Salluste, qui, avec autant de nerf et de justesse, a peut-tre moins me et de vritable chaleur.12
Estas caractersticas manifestam-se em estratgias discursivas prprias, de que
decorre a fuso dos gneros (historiogrfico, potico, oratrio) e dos modos (poesia e
prosa13). Assim, o estilo de Tcito caracteriza-se, por um lado, pelo gosto pela novidade
(recuperando arcasmos, traduzindo literalmente expresses gregas, criando morfolgica
e sintacticamente formas, termos, sentidos, construes) e, por outro lado, pela contnua
busca de variedade (uariatio). De facto, ao mesmo tempo em que conserva processos 10 Cf. J. N. Adams, The Language of the Later Books of Tacitus Annals, Classical Quarterly, 22 (1972), 35073. 11 Em Furneaux, 3874, so compulsados os traos gerais do estilo dos Annales, podendo encontrar-se a exemplos de todas as caractersticas que a seguir se enunciam. 12 Oeuvres Compltes de Tacite, trad. J. L. Burnouf (Paris: Hachette, 1861), xixii. 13 A ttulo de exemplo, refira-se que h inmeros ecos de Verglio e de Horcio. A inteno enfatizar um enunciado ou dar proeminncia a uma palavra.
4
paralelsticos (como a anfora, simetria, agrupamentos binrios ou ternrios, isoclon e
homeoteleuto), verifica-se um esforo para evitar repeties (empregando sinnimos,
desfazendo a simetria de termos, casos, preposies, tempos e modos verbais). Na
sintaxe, os anacolutos variam as estruturas dos desenvolvimentos, assim como a
alternncia (tambm pelo nmero) de frases curtas e grandes, e a ligao das oraes faz
com que os enunciados ganhem cor e significado pela sua justaposio.
O estilo de Tcito caracteriza-se ainda pela abundncia de imagens vivas,
violentas, sombrias e nebulosas como os pensamentos, metforas (algumas emprestadas
de verbos de aco e de movimento), personificao da natureza e de entidades
inanimadas, objectos e abstraces. A ordem das palavras est, muitas vezes, ligada
musicalidade que os sons das palavras conferem narrativa.
A conciso outra grande propriedade do latim de Tcito, pois dela decorre o
vigor da sua escrita. certo que se conservam (principalmente nos discursos) o
pleonasmo, a hendadis e a amplificao oratria, mas so o assndeto, a elipse, o
zeugma, a substituio de oraes principais ou relativas por construes mais curtas,
apostas, e o particpio e ablativo absoluto que so mais importantes. A brevidade
resulta, porm, no obscurecimento do discurso, mas a eliminao de palavras inteis
reala o sentido das que esto expressas. De facto, Tcito usa to poucas palavras
quanto possvel e agrupa-as com significado semanticamente marcado. Alis, o sentido
prprio e a cor dos vocbulos so tomados do contexto.
Com efeito, os vocbulos so escolhidos com rigor: na prosa de Tcito lem-se
os termos apropriados, expressivos com intensidade (por exemplo, a hiprbole traduz a
indignao que sente perante os acontecimentos que narra). E a atitude pedaggico-
-didctica resulta em sententiae, que surgem sobretudo no fim de um desenvolvimento:
Son expression est aussi pleine que sa pense.14 Estes enunciados epigramticos so,
de acordo com Miller, fonte de uma profunda e muitas vezes trgica experincia de
vida; so elegantes e retoricamente elaborados, mas tm alguma coisa de importncia
para dizer algo que pode ser amargo ou cnico, mas nunca artificial ou afectado
(Miller, 1018).
O estilo do autor plasma, assim, a concepo que Tcito tem de Histria, cuja
funo revelar a psicologia do ser humano tendo em vista a identificao dos bons e
maus exemplos. Esta perspectiva justifica o desinteresse do autor por descries
14 Tacite, Annales, i (livres iiii), ed. e trad. P. Wuilleumier (Paris: Les Belles Lettres, 1979), l. Cf. ltimas frases dos captulos 6, 8, 55, 69, 73 e 81, do livro I.
5
realistas de corpos e expresses. Na verdade, a ele se adequa a afirmao de Axel
Mnthe: Para aqueles a quem a psicologia interessa, um retrato corrente dum rosto
humano tem um valor mnimo.15
Ao fazer uso destes recursos, Tcito no pretende entreter o leitor, seno
surpreend-lo, chamando a sua ateno para o ponto de vista expresso. Nas suas frases
sinuosas pode ser vista no s a busca pela variedade, mas a intensidade e a amargura
dos seus pensamentos. Concluindo, pode dizer-se, juntamente com P. Wuilleumier, que
Tacite domine toute la littrature latine. Par sa sensibilit dhomme, sa loyaut
dhistorien, sa clairvoyance de moraliste, sa pntration de psychologue et son talent
dartiste, malgr les lacunes de linformation, les excs du pessimisme et les abus de la
rhtorique, il sinscrit parmi les plus nobles figures et les plus riches crivains de
lhumanit.16
Apesar de o novo regime poltico romano se basear numa sucesso por
hereditariedade (na medida em que Augusto adopta aqueles que renem capacidades
para assegurar o poder), na obra Ab excessu diui Augusti, Tcito mostra, explcita ou
implicitamente, que, no Principado, o poder no alcanado por testamento sem que
haja influncias alheias. So intrigas polticas, urdidas com fins imediatos diversos,
como a retirada coerciva da cena poltica de oponentes que poderiam oferecer
resistncia na assuno de poderes ilegtimos, onde se incluem falsas acusaes
(especial relevo tm as acusaes de maiestas) e relaes amorosas que configuram
traio conjugal. Mesmo que a intriga aparea nos Annales enquadrada em diferentes
moldes, o seu objectivo ltimo normalmente um: a obteno ou manuteno de poder.
Os Annales so reflexo de uma sociedade cujo modelo poltico tinha sofrido uma
enorme mudana e que procurava ainda adaptar-se ao novo regime, dominado por
prncipes que chegam ao poder como resultado de operaes de bastidores. A simulao
a caracterstica mais visvel, pois com uma aparncia enganosa que as personagens
actuam, num regime que ele mesmo de cosmtica. M. Comber, que reala o lado
intriguista da historiografia imperial, reconhece a vertente especulativa da verso da
Histria desse tempo: Much imperial history () took place behind closed doors and
was shrouded in mystery. Hard facts were difficult to come by. There was, therefore,
15 A. Mnthe, O Livro de San Michele, trad. J. Corteso (16. ed., Lisboa: Livros do Brasil, 2001), 269. 16 Tacite, Annales, i (livres iiii), ed. e trad. P. Wuilleumier, l.
6
considerable scope for speculation and dramatic recreation.17 Partindo deste
pressuposto, e com a conscincia de que a escrita histrica no alheia s categorias da
narrativa literria, o objectivo deste estudo o tratamento das intrigas e traies de
modo a identificar processos retricos dominantes, no enquadramento narrativo-
-descritivo e no estilo do autor.
O estudo encontra-se dividido em trs captulos. O primeiro, mais curto, tem um
forte componente terico. Nele, analiso as semelhanas formais entre a escrita
historiogrfica e a literatura que, na legitimao retrica, conhecem diversas
sobreposies. Trata-se de um captulo em que se demonstram igualmente as tnues
fronteiras entre a criao literria e a Histria, nomeadamente a sua relao com a
Verdade. Esta ideia vem reforada por alguns apontamentos sobre o papel da
historiografia na antiguidade. Meio de promoo poltica e de elevao nacionalista, a
Histria era vista como um gnero literrio que no s tinha algo a ensinar, mas
sobretudo tinha de o fazer de forma ldica e retoricamente elaborada. Por isso,
importante atentar no testemunho do historiador, autor dos Annales. Pondo em relevo os
momentos da narrativa em que a voz diegtica se assume como protagonista, dou a
conhecer o plano do historiador, no s em passos em que se verifica uma posio
doutrinria relativa historiografia, mas tambm no uso e fidelidade de Tcito
relativamente s suas fontes.
Os captulos 2. e 3. inserem-se noutro mbito. Ainda que neles inclua alguns
preceitos da teoria literria, eles debruam-se essencialmente sobre o texto dos Annales
e analisam-no na prtica. O 2. captulo trata os passos mais significativos em que se
verifica a actuao insidiosa de algumas personagens. O pouco que Tcito escreveu
sobre o principado de Augusto permite estabelecer um modelo retrico que se espelha
noutros passos, no s pelo vocabulrio e construes empregues, mas sobretudo pelos
motivos ambguos que levam perpetrao de tais actos. Tambm analisada a
eliminao da descendncia de Augusto, a fim de colocar Tibrio no poder. Quando este
o assume, Germnico surge como uma das personagens com mais preponderncia na
narrativa, pelas aces que empreende e pelo que representa para outras personagens,
principalmente para o povo. O seu papel no enredo da histria, as isotopias a si ligadas,
a sua relao com Tibrio e Piso, bem como a sua morte sero objecto de
pormenorizada anlise. Morto Germnico, Piso, o seu alegado assassino, julgado e
17 M. Comber, Re-reading the Roman Historians, in M. Bentley (ed.), Companion to Historiography (Londres, Nova Iorque: Routledge, 1997), 52.
7
acaba por se suicidar ainda no decorrer do processo: estudam-se esses passos,
juntamente com os que do conta da absolvio vergonhosa de Plancina, a sua esposa.
Assim, apresento um estudo retrico de alguns episdios que considero mais relevantes
em que Augusto, Tibrio, ou Lvia Augusta surgem como (possveis) responsveis por
crimes, mediante intrigas ocultamente orquestradas.
Finalmente, no 3. captulo, estudam-se principalmente episdios representativos
que configuram, pela actuao do poderoso ministro de Tibrio, Sejano, e seus
sequazes, exemplos de intrigas palacianas: a seduo de Lvia Jlia, que aquele torna
cmplice da morte de Druso, filho de Tibrio; a perseguio de amigos de Germnico
com o intuito de melindrar Agripina e os filhos (estuda-se o caso de Tcio Sabino pelo
desenvolvimento que conhece na obra, mas o de Gaio Slio e Ssia Gala so tambm
significativos); a tentativa de eliminao da casa de Germnico18. Como exemplo da
influncia dos clientes de Sejano, apresenta-se o caso da perseguio de Cremcio
Cordo, que denuncia um ataque liberdade de expresso que caracterizava a evoluo
do regime imperial. O captulo inicia-se, porm, com o estudo do episdio da acusao
de maiestas lanada sobre Libo Druso, sem que Sejano seja agente provocador da
mesma. No entanto, por ter sido o primeiro caso deste gnero, o narrador d-lhe especial
importncia e na sua anlise podero reconhecer-se vrios elementos que o aproximam
dos sequentes.
Pode, assim, verificar-se que este trabalho incide sobretudo sobre os quatro
primeiros livros dos Annales, focando primeiro as intrigas antes de Sejano, e em seguida
as orquestradas depois que a sua influncia comea a fazer-se sentir. natural que
assim acontea, tendo em considerao a perda do livro V, e atentando no facto de o
livro VI se debruar j sobre crimes perpetrados no por meio de intrigas19, mas como
resposta cumplicidade e amizade de Sejano, num primeiro momento, e, depois, sob a
sinistra actuao de Macro. Por outro lado, tratam-se apenas casos ocorridos na corte
18 O estudo do plano do ataque a Agripina e aos filhos de Germnico dificultado pelo facto de se ter perdido a poro de texto relativa morte de Nero, o primognito, e ao exlio de Agripina, no livro V. 19 Para a natureza das acusaes de maiestas no livro VI, v. B. Walker, The Annals of Tacitus: a study in the writing of history (Manchester: Manchester University Press, 1952), 105108. Neste livro dos Annales, verifica-se a fraca presena de vocabulrio indicador de intrigas dolus, fraus, insidiae, ambitus surgem no livro VI referentes, e.g., a fraus financeira (6.16.2) ou relativa Astrologia (6.21.1), e mais significativamente no episdio da deposio de Artabano do trono dos Partos, e sequente recuperao do poder por parte deste (6.3133, 6.3637) e de ocultao (occultus, obscurus). A isotopia aparnciarealidade no se manifesta com a proeminncia de outros livros: apenas 6.6, 6.39.2 e 6.51 so significativos desse tema, se se atender quilo a que B. Walker, The Annals of Tacitus, 49, identifica como the practice of inferring motives which make an action appear hypocritical or at least give it a meaning unlike the obvious one.
8
imperial ou que envolvem o poder em Roma, deixando-se de lado episdios relativos ao
poder nas provncias (nomeadamente no que Armnia e Prtia diz respeito).
Como se v, o estudo que agora se apresenta no tem como objectivo verificar
no mbito da Histria e da epistemologia a veracidade da narrativa, mas somente o
estudo retrico do texto que Tcito escreveu. Tambm por isso, mas sobretudo porque
j no existem muitas das fontes em que o autor se baseou para escrever a sua obra,
neste trabalho no se enveredou pela confrontao com verses de outros historiadores.
De facto, se autores como Suetnio e Don Cssio escreveram a histria do principado
de Tibrio, tambm verdade que so escritores posteriores (ou, no limite,
contemporneos, no caso de Suetnio) e que o seu estilo e linguagem so muito
diferentes20.
A edio adoptada a da Oxford Classical Texts (de 1906), preparada por C. D.
Fisher, no s por ser a edio utilizada na elaborao do Oxford Latin Dictionary,
como por ter vindo a ser considerada como meritorious e com poucos obvious
demerits21. Consciente de que o texto estabelecido j em 1906 tem alguns problemas,
houve a necessidade de divergir dele em alguns casos, assinalando-os devidamente
(verses alternativas ou pontuao diferente22); foi ainda adoptada a grafia u em vez de
v e a diviso em pargrafos a que comummente se utiliza em trabalhos acadmicos
sobre Tcito, originria das edies da Teubner.
As referncias dos passos remetem para livros, captulos e pargrafos dos
Annales, salvo quando indicada a obra por meio de abreviaturas de autores e ttulos, de
harmonia com as consagradas pelo Oxford Latin Dictionary. Pela necessidade de
citao recorrente de alguma bibliografia ao longo do trabalho, fez-se uma lista de
referncias abreviadas. Todas as datas so da nossa era, a menos que o contrrio seja
indicado. Os nomes prprios surgem em portugus, seguindo, naturalmente, o
Vocabulrio da Lngua Portuguesa de F. L. Rebelo Gonalves; quando no
contempladas nessa obra, a sua transposio para portugus obedeceu aos preceitos
adequados.
20 Isto no quer dizer, naturalmente, que no se apresentem, em casos pontuais, a verso consagrada pela Histria (mediante outras fontes e o uso da arqueologia). 21 V. Goodyear (1), 16 e 20 n.1. 22 Outros problemas, como o apontado por Goodyear (1), 20 n.1, acerca de alguns acusativos do plural em is, quando o manuscrito testemunha es, no influenciam o trabalho de interpretao.
9
1. captulo
A CONSTRUO E AS FRONTEIRAS DA INSTITUIO LITERRIA:
TCITO, LITERATURA E HISTRIA
Esta reflexo inicial sobre a natureza literria (i.e., literariedade) de um texto pretende
legitimar o discurso histrico como artefacto literrio1, a fim de se proceder sua
anlise retrica. Com efeito, o que se verifica a propsito da elaborao esttica de um
enunciado literrio tem de ser dito do discurso da Histria, nomeadamente se se estiver
a falar de uma historiografia como a que se praticava na Antiguidade, onde se
encontram vrios testemunhos da elaborao da Histria com fins retricos e ldicos.
De facto, a atitude institucionalizada em relao Histria tem vindo a evoluir
desde Herdoto, mas h um elemento programtico universalmente comum a todas as
pocas: a Histria o relato da verdade () e nesse facto que se pode contrapor
ao da literatura. Se as primeiras manifestaes de prosa narrativa so do gnero
historiogrfico2, a concepo de Histria na Antiguidade tem, ainda assim,
caractersticas que a isolam da concepo moderna, que est por seu turno contaminada
pelos preceitos positivistas e pela tentativa de independncia desta rea do saber
relativamente aos estudos literrios. A distncia temporal e a evoluo do conceito da
resultante levam a que A. J. Woodman afirme que ancient and modern historiography
are two quite different things3, pois que se esperam coisas diferentes de cada uma
delas. Por isso, quaisquer que sejam as concluses relativas ao papel dos estudos
literrios no domnio da historiografia, tem de se aceitar que, na Antiguidade, a escrita
da Histria era um exerccio eminentemente esttico e literrio4.
1 H. White The Historical Text as Literary Artifact in R. H. Canary e H. Kozicki (eds.), The Writing of History: Literary Form and Historical Understanding (Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1978), 4162. 2 G. A. Kennedy, The evolution of a theory of artistic prose, in id. (ed.) The Cambridge History of Literary Criticism, i: Classical Criticism (Cambridge: Cambridge University Press, 1989), 184. 3 A. J. Woodman, Tacitus Reviewed (Oxford: Oxford University Press, 1998), 18. 4 A. D. Leeman, Orationis Ratio: the stylistic theories and practice of the Roman orators, historians and philosophers (Amesterdo: Adolf M. Hakkert, 1963), 329363, fornece uma perspectiva alargada sobre o modo como a Antiguidade entendia a Histria, bem como a sua relao com a Retrica.
10
1. Histria e Literatura
No sculo XIX, os positivistas continuaram um processo iniciado no Sculo das
Luzes de institucionalizao da Histria como cincia autnoma5, reclamando-a para o
mbito da epistemologia e resgatando-a da rea da Retrica, onde ocupara um
importante lugar. porm larga a discusso acadmica acerca do conceito de Histria,
sua prtica e metodologias, e, mais significativamente, acerca da forma como ela
escrita. A tentativa de isolamento e de afastamento da produo esttica e artisticamente
elaborada (que caracteriza a escrita literria e que parecia contaminar a da Histria) tem
vindo a ser posta em causa por diversos historiadores, ao mesmo tempo que outros
repudiam essa aproximao. Defende G. R. Elton que, para os historiadores, lutar
contra as pessoas que submeteriam os estudos histricos aos ditames da crtica literria
equivale a, de certa maneira, lutar pela nossa prpria sobrevivncia6.
Autores como Paul Veyne7, Hayden White8, E. H. Carr9, Lionel Gossman10, ou
Louis O. Mink11 tm outra perspectiva. Declaram estes crticos literrios e historiadores
que a Histria tem, na sua redaco e exposio, uma vertente literria, quer a nvel
lingustico (literariedade), quer a nvel de ficcionalidade. Por isso, o objectivo de
historiadores e de romancistas semelhante. Afirma H. White que the extent to which
the discourse of the historian and that of the writer of imaginative fictions overlap,
resemble, or correspond with each other, uma vez que the forms of their respective
discourses and their aims in writing are often the same. Concomitantemente, the
techniques or strategies that they use in the composition of their discourses can be
5 V. A. Schaff, Histria e Verdade, trad. M. P. Duarte (2. ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1988), 85116; E. Neff, The Poetry of History (Nova Iorque: Columbia University Press, 1961), 189202. 6 G. R. Elton, Return to Essentials: Some Reflections on the Present State of Historical Study (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 49, citado por R. J. Evans, Em Defesa da Histria, trad. C. A. S. e Silva Pereira (Lisboa: Temas e Debates, 2000), 20. No entanto, como se ver, a relao entre Histria e literatura opera-se, antes de mais, do ponto de vista do processo de escrita, narrativo, e no do ponto de vista epistemolgico. 7 Autor que esbate a distino entre as duas formas de escrita, nomeadamente na obra Comment on crit lHistoire: essai dpistmologie (Paris: ditions du Seuil, 1971). 8 H. White, The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical Representation (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1987), 4162; H. White, The Fictions of Factual Representation in A. Fletcher (ed.), The Literature of Fact (Nova Iorque: Columbia University Press, 1976), 2144; H. White, Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1985); cf. A. Munslow, The Routledge Companion to Historical Studies (Londres: Routledge, 2000), s.v. White, Hayden. 9 E. H. Carr, Que a Histria?, trad. A. M. P. D. da Rocha (Lisboa: Gradiva, 1986). 10 L. Gossman, History and Literature in R. H. Canary e H. Kozicki (eds.), The Writing of History, 339. 11 L. O. Mink, Narrative Form as a Cognitive Instrument in R. H. Canary e H. Kozicki (eds.), The Writing of History, 129151.
11
shown to be substantially the same, however different they may appear on a purely
surface, or dictional, level of their texts12.
Esta sobreposio explica-se porque quer historiadores, quer romancistas wish
to provide a verbal image of reality. The novelist may present his notion of this reality
indirectly, () by figurative techniques, rather than directly, () by registering a series
of propositions which are supposed to correspond point by point to some extra-textual
domain of occurrence or happening, as the historian claims to do. Nesta medida,
legtimo afirmar-se que history is no less a form of fiction than the novel is a form of
historical representation13.
Mesmo ao defender-se que a Histria tem de mostrar os factos passados, apoiada
em fontes (documentais escritas ou arqueolgicas, por exemplo), no se pode admitir a
existncia de uma concepo expositiva da Histria: enunciar um facto ocorrido numa
determinada data e em certo local no Histria. Esta exige a criao de um sistema de
seleco, organizao e arranjo de informao e uma arquitectura narrativa que a
transmita. G. M. Trevelyan chegou a afirmar que a Histria era uma fuso de
elementos cientficos (pesquisa), fantasiosos ou especulativos (interpretao) e literrios
(apresentao), observando tambm que, no que respeita ocorrncia dos
acontecimentos, a recolha de factos e a avaliao dos testemunhos so, sob certos
aspectos, cientficas; contudo, tal no se aplica descoberta das causas e dos efeitos
inerentes aos mesmos acontecimentos14.
Por seu lado, o termo literatura tem vindo a ser entendido como confinado
identificao de obras de valor esttico reconhecido15. Contudo, no se pode deixar de
notar um pendor narrativo na actividade de escrita da Histria, em cujo contexto
possvel encontrar projectadas tcnicas narrativas consagradas pelo romance
(caracterizao das personagens, retrospectivas, etc.), como diz Carlos Reis16.
Entendo, juntamente com os crticos citados, que no s a escrita da Histria
literatura, na medida em que as qualidades da escrita daquela se misturam com as do
texto literrio, mas tambm que a literatura inclui no seu mbito a historiografia. A
12 H. White, The Fictions of Factual Representation, 21. 13 H. White, The Fictions of Factual Representation, 22 e 23. 14 As citaes de G. Trevelyan so de R. J. Evans, Em Defesa da Histria, 39. 15 Para a definio de literatura, v., e.g., V. M. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura (8. ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1987), 142. 16 C. Reis, O Conhecimento da Literatura: Introduo aos Estudos Literrios (2. ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1999), 118.
12
diferena baseada no referente real e emprico das aces narradas, ou seja, no campo
epistemolgico, atenuada pelo aparecimento dos romances histricos17, ao mesmo
tempo que o Romantismo e o Realismo e Naturalismo trouxeram ainda textos ficcionais
baseados em verdades alegadas18.
Carlos Reis observa: a interaco literatura/Histria formula-se de modo
explcito. Referimo-nos aqui, naturalmente, quelas obras em que se concretiza a
incorporao de temas histricos; o que acontece com a epopeia, com o romance
histrico e com o drama histrico. Essa incorporao no esgota, contudo, as
possibilidades de representao literria da Histria, observvel tambm em obras
literrias de diferentes tempos histricos. O autor exemplifica com Os Maias, obra que
centra o fundamental da sua aco no devir de uma intriga () e na ilustrao de
episdios da vida romntica, sem que isso iniba o privilgio de aspectos importantes
da Histria de Portugal; a emergncia do vintismo, as lutas liberais, os exlios que elas
suscitaram, a Regenerao, constituem componentes importantes do cenrio do
romance, lembrando possveis conexes existentes entre ele e o Portugal
Contemporneo de Oliveira Martins. Ora o que torna Os Maias uma obra a todos os
ttulos fascinante o dilogo entre a Histria e a fico19.
H que lembrar que essa representao no obedece aos protocolos de
comportamento do historiador propriamente dito. No est em causa, portanto, nem
nOs Maias nem em nenhuma outra obra literria, a reconstituio fiel de
personalidades e cenrios histricos, mas antes a articulao de elementos ficcionais
com essas personalidades e cenrios histricos, no contexto de uma interaco
Histria/fico quase sempre muito complexa20.
17 Para os quais os romancistas fazem trabalho de investigao heurstica e hermenutica semelhante ao de um historiador: cf. J. Saramago, Histria e Fico, citado por C. Reis, Conhecimento da Literatura, 500503. Um estudo do romance histrico portugus, com uma breve introduo terica, fornecido por M. F. Marinho, Um Poo sem Fundo: Novas reflexes sobre Literatura e Histria (Lisboa: Campo das Letras, 2005). 18 Camilo Castelo Branco um exemplo flagrante desta tcnica de incorporao da realidade nas suas obras. Por exemplo, Amor de Perdio baseia-se em livros de antigos assentamentos das cadeias de Relao do Porto e mesmo se a histria de Simo Botelho fosse verdica, a construo do discurso narrativo ficcional. Outro exemplo do mesmo autor o texto de A Sereia, um relato verdico que tambm se baseia num documento autntico. Para a discusso deste elemento, v. S. Martins, Prefcio in C. C. Branco, A Sereia, ed. S. Martins (Porto: Edies Caixotim, 2005), 722. 19 C. Reis, Conhecimento da Literatura, 8788. 20 C. Reis, Conhecimento da Literatura, 88. De notar ainda que, em obras literrias de carcter histrico, representam-se, num contexto ficcional, figuras, eventos e lugares cujas propriedades fundamentais o escritor respeita, como forma de assegurar o seu reconhecimento enquanto entidades histricas. Sobre a diferena da profundidade da construo de personagens na Histria e na literatura, v. Cap. 2, sec. 3.
13
Numa outra perspectiva, a literariedade (literaturnost) tambm se pode aplicar
escrita histrica. De facto, literaturnost uma noo desenvolvida por Roman
Jakobson, no contexto do formalismo russo21, que postula que a linguagem literria
tinha de se distanciar dos esteretipos, dos lugares-comuns, da linguagem desgastada
pelo uso quotidiano; da a ateno dada aos processos capazes de provocarem a
sensao de estranhamento, como resume Maria Vitalina L. de Matos22. Esta distino
entre os registos de linguagem revela-se j em Aristteles23:
, , ,
24.
Neste sentido, lembra ainda Carlos Reis: A escrita literria pode ser entendida
como prtica dotada de um certo ndice de especificidade tcnica, empreendida por um
sujeito que a leva a cabo num contexto cultural a que dificilmente indiferente e
assumindo uma atitude diversa da de outros sujeitos quando enunciam outras
linguagens. Posto isto, poder concluir-se que escrever literatura (...) um acto
deliberadamente esttico25. A literariedade de um texto , pois, colocada ao servio da
esttica, elemento considerado fundamental para entender qualquer texto literrio26.
No entanto, a funo esttica da linguagem defendida por Jakobson tem sido
posta em causa pelos Estudos Literrios do sculo XX27, no sendo, assim, possvel
uma definio de literatura com base na caracterizao da linguagem literria, como
nota Maria Vitalina L. de Matos28. Esta postulao verificada ainda que as marcas
lingusticas que caracterizam a linguagem literria tenham vindo a ser identificadas ou
21 R. Jakobson, Questions de Potique (Paris: ditions du Seuil, 1973), 15. 22 M. V. L. de Matos, Introduo aos Estudos Literrios (Lisboa: Editorial Verbo, 2001), 246. 23 A diferenciao feita por Jakobson entre a linguagem no-marcada (do dia-a-dia) e a linguagem marcada (literria) tem por isso antecedentes antigos. 24 Potica, 1449b: tragdia a imitao de uma aco elevada e completa, dotada de extenso, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes (...). Por linguagem embelezada entendo a que tem ritmo, harmonia e canto. As tradues do grego so da edio de Aristteles, Potica, trad. A. M. Valente (2. ed., Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007). H uma linguagem para cada momento da tragdia, assim como o resultado final tem de ser distinto da produo lingustica do dia-a-dia. Este registo da linguagem comum referido em 1459a: , , , nos [versos] imbicos, porque se imita o mais possvel a linguagem corrente, convm as palavras que se usariam na lngua falada. So elas a palavra corrente, a metfora e o ornamento. 25 C. Reis, Conhecimento da Literatura, 105 e 103, respectivamente. 26 P. Waugh (ed.), Literary Theory and Criticism: an Oxford Guide (Oxford: Oxford University Press, 2006), 3581. 27 V. M. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 4579. 28 M. V. L. de Matos, Introduo aos Estudos Literrios, 253.
14
definidas pelos formalistas (estranhamento), estruturalistas (desautomatizao) ou
pelo new criticism (ambiguidade)29. Carlos Reis defende:
o discurso literrio no reclama uma especificidade expressiva que o autonomize claramente em relao s utilizaes no artsticas da linguagem verbal. E se algumas propriedades formais parecem poder responsabilizar-se por essa especificidade (o verso, a rima, a conotao, etc.), deve acrescentar-se que tais propriedades ocorrem tambm em discursos no literrios, continuando a ser, por si ss, insuficientes para a determinao formal da literariedade30.
O desvio da norma , em termos lingusticos, algo inexistente pelo simples facto
de, no limite, no haver norma, mas tambm no haver linguagem que no seja,
ontologicamente falando, desvio, metfora, idiossincrasia. Aguiar e Silva salienta que
h perodos como o Barroco, o Simbolismo, o Decadentismo e movimentos de
vanguarda em que h a tentativa de a literatura descolar do normal tendo em vista
uma ornamentao e enriquecimento que no se vem, por exemplo, em correntes
como o Romantismo e principalmente o Realismo, mas antes um esforo de reduzir, ou
eliminar, a distncia comunicativa em relao a um pblico leitor cada vez mais
extenso ou ento com o objectivo de apreender mais directa, fiel e transparentemente
a realidade do mundo fsico e social31.
Esta proximidade legitima que, ao longo da Histria, muitos tenham sido os
textos que foram sendo transpostos para o campo do literrio, situao que remete para
a problemtica das fronteiras do campo literrio e do cnone32. Se, por exemplo, do
cnone literrio portugus fazem parte obras como a Histria de Portugal de Alexandre
Herculano ou as Crnicas de Ferno Lopes porque associamos essa elaborao a
uma atitude literria, at ao ponto de podermos ser induzidos a operar a transferncia
institucional de textos em princpio no literrios para o campo do literrio33. So
autores que recorrem, nos seus textos, a procedimentos tcnico-estilsticos de
ressonncia literria34.
29 Roland Barthes sublinha a natureza mimtica de todo o discurso, algo que impossibilita um discurso no marcado, ideia secundada por H. White, The Fictions of Factual Representation, 23: all written discourse is cognitive in its aims and mimetic in its means. And this is true even of the most ludic and seemingly expressivist discourse, of poetry no less than of prose, and even of those forms of poetry which seem to wish to illuminate only writing itself. 30 C. Reis, Conhecimento da Literatura, 117118. 31 V. M. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 165166. 32 P. Waugh, Value: criticism, canons, and evaluation in ead. (ed.), Literary Theory and Criticism, 7081. 33 C. Reis, Conhecimento da Literatura, 72 e 124. 34 C. Reis, Conhecimento da Literatura, 21, recorda que o contrrio possvel e legtimo: no raro, as obras literrias revestem-se de um certo significado histrico-cultural, em conexo directa com a sua capacidade de dialogarem com a Histria, com a Sociedade e com a Cultura que as envolvem e que enviesadamente as motivam.
15
2. Historiografia Antiga
Se verdade que historia, em latim, significa narrativa de eventos, conto,
fbula, histria, a origem grega da palavra revela um carcter eminentemente
epistemolgico, do campo do saber por se ter assistido ao vivo35. Pode pensar-se que
toda a informao utilizada para a construo de um entrecho historiogrfico originada
pelo testemunho in loco da aco ou fenmeno descrito, ainda que essa informao
directa nem sempre seja possvel. Dessa forma, entra-se numa sucesso de fontes que se
baseiam noutras fontes e que alteram, mais ou menos significativamente, a informao
de raiz. A alterao que essa informao recebe resultado de um tratamento
essencialmente retrico onde tambm flui a imaginao. Tal tratamento comprovado
quando se pode confrontar o texto com a fonte: os acrescentos, as omisses e as
alteraes de estilo so permitidos ao historiador tal como so ao criador literrio.
O processo de modificao estilstica de um texto-base explorado e descrito
com rigor por A. J. Woodman36, que sustenta que os historiadores romanos were
hardly great travellers, doing on-the-spot research into the distant places they described
in their works37, recorrendo ento imaginao ou experincia pictrica fornecida
pela Retrica, a fim de colorir e complexificar a sua narrativa38. Tem particular relevo,
nesse domnio, a descrio de paisagens e de grandes batalhas39.
Esta estratgia discursiva, ainda segundo o mesmo autor, explica que
determinados episdios se repitam em momentos histricos diferentes40: as
coincidncias ou so invenes ou derivaes da verdade. A criao do ambiente
onde ocorrem e a adaptao de aces reais mais no fazem do que tentar responder ao
gosto e sensibilidade dos leitores.
35 O vocbulo relaciona-se com o verbo : P. Chantraine, Dictionnaire tymologique de la langue grecque: histoire des mots (Paris: Klincksieck, 1999), s.v. . 36 A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 120. 37 A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 10. 38 A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 718, exemplifica com descries de Tito Lvio e, mais significativa-mente, de Quinto Crcio Rufo, que descreve paisagens com vegetaes que nunca existiram nesses locais. O historiador respondia, assim, ao gosto do pblico pelo extico mais do que ao rigor cientfico. 39 Sabe-se que a era um dos que formavam os oradores na Antiguidade: Progymnasmata. Greek Textbooks of Prose Composition and Rhetoric, trad. G. A. Kennedy (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2003), 4547, 86, 117120, 166168 e 218221; L. Pernot, Rhetoric in Antiquity (Washington DC: Catholic University of America Press, 2005), 148. 40 Referindo-se a Tcito, Woodman reala esta estratgia em episdios isolados descritos no meio de outras narrativas (de batalhas ou viagens): irmos que se encontram no campo de batalha e decidem no lutar entre si, um narrado em Hist. 3.51 e outro em Hist. 3.25.23. Tem ainda especial interesse a aproximao dos episdios em que, nos Annales, Germnico chega ao campo onde jazem as legies de Varo, a devastao a encontrada (1.612), e a imagem semelhante que aparece nas Historiae, no momento em que Vitlio visita Bedraco e depara com um cenrio de devastao idntico (Hist. 2.70): A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 1314 e 7085.
16
A Rhetorica ad Herennium ensina que, se os ouvintes comearem a ficar
cansados (defessi) do discurso, o orador deve dizer algo que provoque o riso (risum
mouere). Uma maneira de o fazer usar a historia, que neste contexto entendida como
uma curiosidade histrica com graa41. Nesse sentido, tambm Quintiliano aponta as
caractersticas retricas da Histria: uerbis remotioribus et liberioribus figuris narrandi
taedium euitat. No mesmo contexto, a Histria sucintamente definida por
aproximao poesia: est enim [historia] proxima poetis et quodammodo carmen
solutum, et scribitur ad narrandum non ad probandum42. A aproximao da Histria
poesia43 havia sido feita j por Aristteles:
... ,
, .
,
44.
O entretenimento proporcionado pela Histria tambm notado por Plnio-o-
-Moo, que afirma que historia quoquo modo scripta delectat45. Por seu lado, Vitrvio,
ao escrever sobre arquitectura, lamenta-se da sua matria por ser rida, pois historiae
per se tenent lectores; habent enim nouarum rerum uarias expectationes46. Quintiliano
refere-se s qualidades da Histria que devem ser cultivadas pelo orador, mas com
algumas precaues: historia (...) alere oratorem quodam uberi iucundoque suco potest;
(...) plerasque eius uirtutes oratori esse uitandas47. Por isso, desaconselha-se a
brevidade de Salstio e, apoiado em Ccero, o uso de Tucdides e de Xenofonte48.
Noutro passo, Quintiliano afirma que licet tamen nobis in digressionibus uti uel
41 Rhet. Her. 1.6.10. 42 Inst. 10.1.31. 43 Ccero (Leg. 1.2.5) mostra que so diferentes: enquanto a Histria mostra a ueritas, a poesia tem como finalidade a delectatio. 44 Potica, 1451b: O historiador e o poeta no diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro em verso (...). Diferem pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia mais filosfica e tem um carcter mais elevado do que a Histria. que a poesia expressa o universal, a Histria o particular; v. S. Halliwell, Aristotles poetics, in G. A. Kennedy (ed.), The Cambridge History of Literary Criticism, i: Classical Criticism, 153154. 45 Ep. 5.8.4. Em 5.8.5, testemunha o trabalho de historiador feito pelo tio: historias et quidem religiosissime scripsit; v. E. Fantham, Latin criticism of the Early Empire, in G. A. Kennedy (ed.), The Cambridge History of Literary Criticism, i: Classical Criticism, 292. 46 Vitr. 5.1. 47 Inst. 10.1.31. 48 Inst. 10.1.32: refere-se que Salstio no um autor adequado para servir de fonte para um discurso porque um orador tem de se dirigir a um juiz que no est preparado (ineruditus) para a beleza do discurso. Em alternativa a Salstio, o estilo de Lvio (lactea ubertas) mais prprio para o uso da oratria porque o ouvinte non speciem expositionis, sed fidem quaerit.
17
historico nonnunquam nitore49. Outra vantagem de saber Histria o conhecimento de
factos e precedentes dos casos em litgio (ex cognitione rerum exemplorumque50).
No entanto, o testemunho mais significativo acerca da ideia de Histria na
Antiguidade romana de Ccero51. No De Oratore, defende-se que o atributo essencial
do historiador non esse mendacem52. Esta caracterstica tambm mencionada na
Rhetorica ad Herennium, que considera a historia uma das trs partes da exposio dos
factos (in negotiorum expositione), ao lado da fabula e do argumentum (em grego,
, e ): desta oposio, ressalta a qualidade da exposio do real,
promovida pela Histria (gesta res) e a ficcionalidade (ficta res) do argumentum53.
O mesmo De Oratore fornece, pela fala de Antnio, uma perspectiva diacrnica
da Histria Romana:
Erat enim historia nihil aliud nisi annalium confectio, cuius rei, memoriaeque publicae retinendae causa, ab initio rerum Romanarum usque ad P. Mucium pontificem maximum, res omnes singulorum annorum mandabat litteris pontifex maximus, referebatque in album, et proponebat tabulam domi, potestas ut esset populo cognoscendi, hique etiam nunc Annales Maximi nominantur. Hanc similitidinem scribendi multi secuti sunt, qui sine ullis ornamentis monumenta solum temporum, hominum, locorum gestarumque rerum reliquerunt (2.12.5253).
O orador ilustra o que diz, nomeando autores gregos que exemplificam essa
tendncia (Ferecides, Helnico, Acusilau), tal como Cato, Pictor e Piso, autores
romanos qui neque tenent, quibus rebus ornetur oratio (...) et, dum intellegetur, quid
dicant, unam dicendi laudem putant esse breuitatem. O exemplo de Antpatro tambm
significativo: historiae maiorem sonum uocis uir optimus (): ceteri non exornatores
rerum, sed tantummodo narratores fuerunt54. evidente a preocupao demonstrada
pela personagem de Ccero com o embelezamento do discurso historiogrfico:
ornamentis, ornetur, exornatores. Ctulo, o interlocutor de Antnio, concorda e
49 Inst. 10.1.33. 50 Inst. 10.1.34; v. E. Fantham, Latin criticism, 288289. 51 V. M. Rambaud, Cicern et lhistoire romaine (Paris: Les Belles Lettres, 1953) e E. Fantham, The Growth of Literature and Criticism at Rome, in G. A. Kennedy (ed.), The Cambridge History of Literary Criticism, i: Classical Criticism, 234235 e 238. 52 de Orat. 2.12.51. 53 Definido assim: argumentum est ficta res quae tamen fierit potuit, uelut argumenta comoediarum (Rhet. Her. 1.8.13); v. E. Fantham, The Growth of Literature and Criticism at Rome, 228229. A aproximao dos factos histricos fabula feita por Ccero nestes termos: rerum gestarum historiam () quasi fabulam rerum euentorumque (Fam. 5.12.6). Cf. Leg. 1.2.5, onde o mesmo autor diz que at em historiadores como Herdoto e Teopompo h muitas fabulae. 54 2.12.53 e 54; cf. Leg. 1.2.67, onde so referidos os mesmos autores, e outros: Fbio, Cato, Piso, Fnio, Vernio, Antpatro, Cldio, Aselio, Clio, Macro, Sisena. Em carta a Luceio, Ccero expressa os mesmos sentimentos de desinteresse pela fixao de simples eventos: etenim ordo ipse annalium mediocriter nos retinet, quasi enumeratione fastorum (Fam. 5.12.5).
18
exemplifica o seu ponto de vista com Clio, um homem que neque distinxit historiam
uarietate locorum, neque uerborum collocatione et tractu orationis leni et aequabili
perpoliuit illud opus55.
Antnio no se admira porque ista res adhuc nostra lingua illustrata non est56.
Segue-se uma discusso sobre autores gregos, em que Tucdides o mais elogiado.
Antnio confessa que nos tempos livres costuma ler (legere soleo), no com o objectivo
de se preparar para discursos, mas por simples deleite (sed delectationis causa, 2.13.59),
o que revela com bastante clareza que a finalidade social e cultural da Histria, em
Roma, era a evaso e o deleite esttico.
As propriedades retricas da Histria so exploradas ao pormenor pelo mesmo
Antnio, ao referir-se importncia (munus) que este gnero57 tem para a Retrica:
uidetisne, quantum munus sit oratoris historia? Haud scio, an flumine orationis et
uarietate maximum. Neque tamen eam reperio usquam separatim instructam rhetorum
praeceptis: sita sunt enim ante oculos. Nam quis nescit, primam esse historiae legem,
ne quid falsi dicere audeat? Deinde ne quid ueri non audeat? Ne qua suspicio gratiae
sit in scribendo? Ne qua simultatis?58
importante, neste aspecto, recordar o pedido que Ccero sem melindre faz a
Lcio Luceio59. Ao pedir uma histria dos seus feitos no consulado, sugere que o amigo
no ponha limites no favorecimento (a mesma gratia que acaba de censurar): Haec
scilicet fundamenta nota sunt omnibus; ipsa autem exaedificatio posita est in rebus et
uerbis. Rerum ratio ordinem temporum desiderat, regionum descriptionem; (...) et cum
de euentu dicatur, ut causae explicentur omnes, uel casus, uel sapientiae, uel
temeritatis, hominumque ipsorum non solum res gestae, sed etiam, qui fama ac nomine
excellant, de cuiusque uita atque natura.60
Na carta a Luceio, Ccero no se inibe de dar alguns conselhos sobre o modo
como o amigo poderia escrever a histria do seu consulado, onde poder encontrar
grande variedade de motivos, como perfdias, intrigas, traies de muitos a que Ccero
esteve sujeito (multorum in nos perfidiam, insidias, proditionem notabis). So estes os
temas que despertam o interesse do leitor: nihil est enim aptius ad delectationem
lectoris, quam temporum uarietates fortunaeque uicissitudines; quae (...) in legendo
55 de Orat. 2.13.54. O aludido Antpatro tambm tem uma obra sine nitore (Leg. 1.2.6). 56 de Orat. 2.13.55. Esta ideia tambm surge em Leg. 1.2.5: dest enim historia litteris nostris. 57 De facto, em Ccero, a historia um genus: de Orat. 2.13.55 e Leg. 1.2.5. 58 de Orat. 2.15.62. Cf. Leg. 1.2.5 e recorde-se de Orat. 2.12.51. 59 Fam. 5.12.6. 60 de Orat. 2.15.63.
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tamen erunt iucundae61. Insiste na mesma ideia em 5.12.5: at uiri saepe excellentis
ancipites uariique casus habent admirationem, exspectationem, laetitiam, molestiam,
spem, timorem; si uero exitu notabili concluduntur, expletur animus iucundissima
lectoris uoluptate62.
O registo do passado e a celebrao da fama dos homens tambm , como
testemunhava Ccero63, um elemento caracterizador da Histria64. Por seu lado,
Quintiliano diz: ad memoriam posteritatis et ingenii famam componitur65; e de acordo
com a Rhetorica ad Herennium: historia est gesta res, sed ab aetatis nostrae memoria
remota66.
Aristteles defende que a imitao atravs da narrao e em verso tem uma
estrutura diferente da narrativa histrica:
, , , , , , , , , .67
Pelas ideias que ficam sublinhadas, penso que a busca de evaso a que a Histria
tinha de responder, levando o leitor para paisagens e pases distantes e para junto de
povos desconhecidos, corresponde, grosso modo, evaso que o romance propicia nos
nossos dias. Assim, precisamente a vontade de responder ao gosto do pblico
(delectatio) que traz um carcter de ficcionalidade historiografia antiga, mais
especificamente romana, pelo que [ancient historians] should be compared with Latin
poets68. Daqui resulta o esbatimento do nvel de diferenciao entre Histria e
literatura a ficcionalidade permitindo ainda a eliminao da fronteira de uma em
61 Fam. 5.12.4. 62 Polbio (12.25) tambm critica a dramatizao da Histria, no deixando, apesar disso, de ser um agente desse processo. 63 de Orat. 2.15.63 e Leg. 1.3.89; em Leg. 1.2.5, surge a ideia de escrever Histria para celebrar a ptria. 64 Cf., para a diferena entre Herdoto e Tucdides, G. Nagy, Early Greek views of poets and poetry, in G. A. Kennedy (ed.), The Cambridge History of Literary Criticism, i: Classical Criticism, 89. 65 Inst. 10.1.31. 66 Rhet. Her. 1.8.13. 67 Potica, 1459a: No que respeita imitao atravs da narrao e em verso, necessrio, como nas tragdias, construir enredos dramticos e em volta de uma aco nica e completa que tenha princpio, meio e fim, para que, tal como um ser vivo nico e inteiro, produza um prazer prprio, e, evidentemente, a sua estrutura no deve ser igual das narrativas histricas, nas quais foroso que se faa a exposio no de uma s aco mas de um s perodo de tempo, de tudo o que, nesse tempo, aconteceu a uma ou vrias pessoas, cada uma das quais se liga s outras como o acaso determinou. De notar a aco histrica definida pelo acaso (cf. o casus, as uarietates e as uicissitudines a que Ccero se referia). 68 A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 18.
20
face da outra; por outro lado, este facto no s justifica como legitima o testemunho de
alguns autores antigos acerca da Histria. Como demonstrei, autores de diferentes
pocas apresentam uma perspectiva uniforme de como se pensava a Histria na
Antiguidade.
3. O Plano do Historiador
Sintetizo nesta seco os momentos em que o narrador dos Annales assume uma
atitude doutrinria, ou seja, disserta sobre a qualidade e propriedades da Histria. A
esses momentos em que o narrador faz excursos na histria para se mostrar ao leitor, e
que configuram o seu protagonismo, designo plano do historiador69. Esses momentos
identificam-se por uma reflexo sobre o modo como apresenta a Histria, na sua
redaco e seleco, pela referncia a outros historiadores, de reconhecido valor70, a par
de consideraes acerca do lugar da sua obra na produo historiogrfica romana, pela
teorizao da Histria e da epistemologia, e pelo registo moralizante e at irnico que
imprime narrativa, utilizando a primeira pessoa do singular ou do plural.
Num passo do livro II, o narrador lamenta que Armnio no tenha sido referido
pela historiografia grega, e que mesmo a romana quase no lhe faa meno. Tal
considerao pretexto para uma breve caracterizao de duas formas de tratar do
registo do passado, a grega e a romana: Graecorum annalibus ignotus, qui sua tantum
mirantur, Romanis haud perinde celebris, dum uetera extollimus recentium incuriosi
(2.88.3). Esta viso de exaltao do passado em detrimento da Histria recente pode ser
entendida como um dos motivos por que o historiador resolveu redigir a Histria desde
a morte de Augusto, traando um percurso poltico de uma Roma em que o novo
regime, o principado, se institucionaliza e aceite por todos (1.3.7).
Ainda assim, a exaltao do passado e da historiografia que o registou tambm
feita pelo narrador dos Annales, uma entidade preocupada por no poder dar ao leitor
69 Distinto do plano da histria, aquele em que se narram os episdios de carcter histrico propriamente dito (caracterizados por um conjunto de isotopias que os une semanticamente, sendo a categoria personagem aquela que mais significativamente identifica esses episdios). A utilizao do termo episdio segue os preceitos da teoria semitica da narrativa, tal como recordados por C. Reis e A. C. M. Lopes, Dicionrio de Narratologia (7. ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2000), 127: unidade narrativa no necessariamente demarcada exteriormente (...) na qual se narra uma aco autnoma em relao totalidade da sintagmtica narrativa, aco essa que se conexiona com o todo em que se insere por meio de um qualquer factor de redundncia (a personagem que protagoniza os diferentes episdios de uma narrativa, o espao em que eles se desenrolam, as dominantes temticas que regem a narrativa, etc.). 70 Lembro apenas os historiadores do promio (clari scriptores; decora ingenia, 1.1.2) e a referncia a Lvio (eloquentiae ac fidei praeclarus in primis, na voz de Cremcio Cordo, em 4.34.3) e a Salstio (rerum Romanarum florentissimus auctor, 3.30.2).
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aquilo que sabe que ele gostaria de ler, nomeadamente em contraste com esses autores
que escreveram a Histria de Roma em perodos ricos em acontecimentos diversos e
interessantes. So clebres estas consideraes no livro IV:
Pleraque eorum quae rettuli quaeque referam parua forsitan et leuia memoratu uideri non nescius sum: sed nemo annalis nostros cum scriptura eorum contenderit qui ueteres populi Romani res composuere. ingentia illi bella, expugnationes urbium, fusos captosque reges, aut si quando ad interna praeuerterent, discordias consulum aduersum tribunos, agrarias frumentariasque leges, plebis et optimatium certamina libero egressu memorabant: nobis in arto et inglorius labor; immota quippe aut modice lacessita pax, maestae urbis res et princeps proferendi imperi incuriosus erat. (4.32.1)
A redaco desses acontecimentos, apesar de aborrecidos, necessria71. H
motivos que impulsionam essa necessidade, sendo a primeira a falta de imparcialidade
dos outros, notada no primeiro captulo dos Annales, estruturado em trs pargrafos,
correspondendo a cada um deles um motivo programtico: a Histria de Roma (1.1.1),
um parecer sobre a historiografia romana (1.1.2), e o ndice72 (1.1.3) desta obra:
Vrbem Romam a principio reges habuere; libertatem et consulatum L. Brutus instituit. dictaturae ad tempus sumebantur; neque decemuiralis potestas ultra biennium, neque tribunorum militum consulare ius diu ualuit. non Cinnae, non Sullae longa dominatio; et Pompei Crassique potentia cito in Caesarem, Lepidi atque Antonii arma in Augustum cessere, qui cuncta discordiis ciuilibus fessa nomine principis sub imperium accepit. sed ueteris populi Romani prospera uel aduersa claris scriptoribus memorata sunt; temporibusque Augusti dicendis non defuere decora ingenia, donec gliscente adulatione deterrerentur. Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae, postquam occiderant, recentibus odiis compositae sunt. inde consilium mihi pauca de Augusto et extrema tradere, mox Tiberii principatum et cetera, sine ira et studio, quorum causas procul habeo.
O primeiro sector resume a histria de Roma numa seriao cronolgica de
formas de governo, referidas em registo metonmico reges (metonmia por
Monarquia) e libertatem et consulatum (metonmias por Repblica) so regimes
polticos que deram lugar a outros73, mas de menor durao74 (e que vo alternar com a
Repblica: dictatura, potestas, ius, dominatio, potentia). Estes regimes polticos
71 Este segundo prefcio obra constitui, em Retrica, uma insinuatio. 72 Podem observar-se as linhas temticas que orientam a estrutura da obra: 1.2.14.1: pauca de Augusto; 1.4.25.4: extrema [de Augusto]; 1.6.1: mox Tiberii principatum; 7.1.1fim: et cetera. Cf. A. D. Leeman, Structure and Meaning in the Prologues of Tacitus, Yale Classical Studies, 23 (1973), 18889, e A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 2223, pace Miller, 105, Goodyear (1), 108 e 125, e R. Syme, Tacitus (Oxford: Oxford University Press, 1958), 304. 73 A concatenao de sintagmas feita em seriao cronolgica, sem que se exprimam os motivos que levam queda de uns e adopo de outros regimes polticos, mas importa lembrar, como o narrador faz nos pargrafos seguintes, que no o seu objectivo explic-los. Noutra perspectiva, nota-se que os regimes polticos despticos fizeram, desde sempre, parte da histria de Roma. 74 A pouca durao de cada um destes regimes expressa pelas expresses sumebantur, neque... neque diu ualuit, non... non longa.
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confluem para uma nova forma poltica, o principado75, e tal confluncia surge no
mbito da representao retrica com uma expresso fsica de movimento, vincada pela
construo de in com acusativo: in Augustum cessere76.
O segundo pargrafo a explicao dos motivos por que o narrador no precisa
de se referir a assuntos to antigos: foram j tratados por autores ilustres. Acontece,
porm, que na poca de Augusto esses escritores foram sendo desvirtuados pela
adulao crescente, tendo-se por isso chegado ao ponto em que no s os
acontecimentos dos principados de Tibrio, Gaio, Cludio e Nero foram redigidos em
termos ficcionais por causa do medo, como tambm, depois que eles morreram, a
Histria sofreu a influncia de animosidades recentes.
O terceiro pargrafo deste captulo a assuno, por parte de uma primeira
pessoa (mihi, habeo), do papel de historiador, a que se tinha tido acesso, at agora, pelo
juzo de valor das suas consideraes sobre a historiografia antecedente ressalta
desse parecer um conhecimento de outros escritos histricos este , pois, um escritor
informado, conhecedor de vrias fontes, como se ver a seguir.
Tambm no promio das Historiae se mostra a necessidade de redigir uma
Histria que se inicia em 69 d.C., mas no de pocas anteriores, porque at batalha de
ccio houve muitos historiadores que o fizeram com eloquncia e liberdade:
nam post conditam urbem octingentos et uiginti prioris aeui annos multi auctores rettulerunt77, dum res populi Romani memorabantur pari eloquentia ac libertate: postquam bellatum apud Actium atque omnem potentiam ad unum conferri pacis interfuit, magna illa ingenia cessere; simul ueritas pluribus modis infracta, primum inscitia rei publicae ut alienae, mox libidine adsentandi aut rursus odio aduersus dominantis: ita neutris cura posteritatis inter infensos uel obnoxios. sed ambitionem scriptoris facile auerseris, obtrectatio et liuor pronis auribus accipiuntur; quippe adulationi foedum crimen seruitutis, malignitati falsa species libertatis inest (Hist. 1.1.12).
Porm, estas decises de suprir o que falta dizer com imparcialidade trazem a
questo da falta de originalidade dos feitos narrados. Nos Annales, o autor textual, a
propsito do tipo de aces que descreve, diz sobre elas: ceterum ut profutura, ita
minimum oblectationis adferunt. nam situs gentium, uarietates proeliorum, clari ducum
exitus retinent ac redintegrant legentium animum: nos saeua iussa, continuas
75 A ideia em nomine principis sub imperium accepit repetida em 1.9.5: non regno tamen neque dictatura, sed principis nomine constitutam rem publicam (cf. 3.56.2). 76 O movimento de recepo do poder acabar por revelar-se uma isotopia (da primeira parte) dos Annales, como se estuda no Cap. 2, sec. 1. 77 Tcito fala a partir do ano 69.
23
accusationes, fallaces amicitias, perniciem innocentium et easdem exitii causas
coniungimus, obuia rerum similitudine et satietate (4.33.3).
A falta de verdade das histrias que circulavam e a necessidade de celebrar as
virtudes, e os seus exemplos, so a explicao para que Tcito encontre espao entre os
historiadores romanos para a sua obra. No livro III l-se o seguinte propsito moral:
Exequi sententias haud institui nisi insignis per honestum aut notabili dedecore, quod praecipuum munus annalium reor ne uirtutes sileantur utque prauis dictis factisque ex posteritate et infamia metus sit. ceterum tempora illa adeo infecta et adulatione sordida fuere ut non modo primores ciuitatis, quibus claritudo sua obsequiis protegenda erat, sed omnes consulares, magna pars eorum qui praetura functi multique etiam pedarii senatores certatim exsurgerent foedaque et nimia censerent.78
A matria histrica dos annales tem de ser ilustre e no se confinar a repetir os
diurna acta (13.31.1); alis, em 4.4.3 e 4.6.1, por exemplo, o narrador reflecte acerca de
assuntos que merecem ser recordados para a posteridade. Essa mesma preocupao com
a memria das geraes futuras surge com grande vigor em 4.35.4, depois de narrado o
caso de Cremcio Cordo: quo magis socordiam eorum inridere libet qui praesenti
potentia credunt extingui posse etiam sequentis aeui memoriam. nam contra punitis
ingeniis gliscit auctoritas, neque aliud externi reges aut qui eadem saeuitia usi sunt nisi
dedecus sibi atque illis gloriam peperere.
Noutro passo, e apesar do enfado que possa causar ao leitor, o narrador critica
quem no recorda nas suas obras a morte e o castigo de muitos homens: originem [de
Seio Quadrato] non repperi. neque sum ignarus a plerisque scriptoribus omissa
multorum pericula et poenas, dum copia fatiscunt aut quae ipsis nimia et maesta
fuerant ne pari taedio lecturos adficerent uerentur: nobis pleraque digna cognitu
obuenere, quamquam ab aliis incelebrata (6.7.5). Depois ilustra esta sua empresa com
um caso isolado, que surge como exemplo de virtude e rectido moral: Marco Terncio
assume a amizade com Sejano numa poca em que todos a desmentiam.
Destas observaes decorre tambm a manifestao da tendncia moralizadora
que caracteriza a obra, de uma forma geral, e que explica o estilo sentencioso de alguns
passos nomeadamente no fecho de alguns episdios, como que a explicar os motivos
78 Ann. 3.65.13. A propsito deste captulo, v. A. J. Woodman, Tacitus Reviewed, 86103. R. Syme, Tacitus, 520; T. J. Luce, Tacitus on Historys Highest Function: praecipuum munus annalium (Ann. 3.65), Aufstieg und Niedergang der Rmischen Welt 3. II, 33.4 (Berlim, Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1991), 29042927; H. Y. McCulloch Jr., The Historical Process and Theories of History in Annals and Histories of Tacitus, Aufstieg und Niedergang der Rmischen Welt, 29282948.
24
por que os acontecimentos ocorrem, ou a generalizar uma lio que deles resulte79.
Estes so momentos em que o narrador da histria se mostra algum preocupado com a
aco humana e que pretende mostrar o que se passou para servir de lio para o
presente e para o futuro80.
Ainda neste mbito, refiram-se alguns dos passos em que se mostra a ironia do
narrador81, usada talvez para reflectir a amargura da desistncia de algum que no pode
mudar o que acha mal. Os exemplos so inmeros: nisi forte clarissimo cuique pluris
curas, maiora pericula subeunda, delenimentis curarum et periculorum carendum esse
(2.33.3); uicta est sine dubio lex, sed neque statim et paucis suffragiis, quo modo etiam
cum ualerent leges uincebantur (2.51.2); quid enim aliud laeso patrono concessum
quam ut centesimum ultra lapidem in oram Campaniae libertum releget? (13.26.2).
3.1 As Fontes dos Annales82
Como referido, o plano doutrinrio do narrador manifesta-se ainda nos passos
em que Tcito refere de forma explcita as suas fontes, evidenciando indcios de que a
obra resulta de um srio trabalho de investigao histrica. Em termos retricos, h que
notar um padro discursivo que uniformiza, por assim dizer, a citao de fontes. Os
verbos que expressam o resultado da pesquisa do narrador so reperio e refero, quando
diz que refere o que os outros dizem; o que exprime o que os historiadores transmitem
trado (ou compostos deste verbo).
De uma maneira simplificadora, as fontes de Tcito podem distinguir-se como
oficiais, bibliogrficas e directas83. So fontes oficiais as que so identificadas como
diurna scriptura actorum (3.3.2) ou diurna acta (13.31.1), possivelmente os jornais da
79 A sententia uma uox uniuersalis que aplicada e tem interesse alm de um contexto ou discurso particular, como diz Quintiliano (Inst. 8.5.3). A propsito do pendor sentencioso dos livros de Tibrio, v. P. Sinclair, Tacitus the Sententious Historian: A Sociology of Rhetoric in Annales 16 (Pensilvnia: Pennsylvania State University Press, 1995). 80 Exemplos dessas sententiae so frases como: dum ueritati consulitur, libertas corrumpebatur (1.75.1) e fato potentiae raro sempiternae, an satias capit aut illos cum omnia tribuerunt aut hos cum iam nihil reliquum est quod cupiant (3.30.4). 81 Sobre a ironia nos Annales, existe o estudo de E. OGorman, Irony and Misreading in the Annals of Tacitus (Cambridge: Cambridge University Press, 2000). 82 A discusso acerca das fontes dos Annales antiga e tem produzido trabalhos bastante teis: R. Syme, Tacitus, 271303; R. Syme, Tacitus: some sources of his information in Roman Papers, iv, ed. A. R. Birley (Oxford: Oxford University Press, 1988), 199222; H. W. Benario, An Introduction to Tacitus (Athens: University of Georgia Press, 1975), 8087; O. Devillers, Tacite et les sources des Annales: enqutes sur la mthode historique (Lovaina: ditions Peeters, 2003); Ph. Fabia, Les sources de Tacite dans les Histoires et les Annales, etc. (Roma: Lerma di Bretschneider, 1967). 83 A identificao das fontes tem em conta unicamente as que so expressas ao longo da obra, excluindo hipteses, algumas perfeitamente aceitveis, como o uso dos discursos de outros imperadores alm de Tibrio.
25
poca84, os publica acta (12.24.2) ou acta senatus (15.74.3), considerados uma espcie
de Dirio da Repblica, e os discursos e cartas de Tibrio, que parece terem sido
publicados e disponveis ao pblico (em 1.81.1, o historiador queixa-se da falta de
informao destes discursos; em 2.63.3, d conta da existncia de um discurso em que
Tibrio testemunha a grandiosidade de Marobduo, a violncia dos povos a ele
subjugados, como esteve prximo de Itlia, e os planos para a sua destruio; em 6.6.1,
cita em oratio recta uma carta de Tibrio).
As fontes bibliogrficas so as que, de longe, levantam mais problemas, mas so
as mais interessantes de analisar. preciso distinguir entre os historiadores citados e a
frmula de referncia annima. Dos primeiros, destaca-se Plnio-o-Velho, referido trs
vezes. A primeira, no livro I, testemunha que escreveu uma histria dos povos
Germanos: tradit C. Plinius, Germanicorum bellorum scriptor, stetisse apud principium
ponti laudes et grates reuersis legionibus habentem (1.69.2).
No livro XIII, Plnio referido juntamente com Clvio Rufo, sendo ainda citado
Fbio Rstico: Fabius Rusticus auctor est scriptos esse ad Caecinam Tuscum codicillos,
mandata ei praetoriarum cohortium cura, sed ope Senecae dignationem Burro
retendam: Plinius et Cluuius nihil dubitatum de fide praefecti referunt; sane Fabius
inclinat ad laudes Senecae, cuius amicitia floruit (13.20.2)85. O passo termina de modo
conciliatrio e considerado inovador para a historiografia da poca: nos consensum
auctorum secuturi, quae diuersa prodiderint sub nominibus ipsorum trademus. Clvio
Rufo e Fbio Rstico so referidos novamente em 14.2.12. Fbio Rstico de novo
citado em 15.61.3.
No livro XV, Plnio citado a propsito da narrao do plano de conjura de Piso
durante os jogos de Ceres do ano 65: o autor textual conta a verso quod C. Plinius
memorat (15.53.4). No entanto, o historiador mostra a estranheza dessa verso, mas
(talvez por uma questo de transparncia) no a oculta, apesar de ela parecer absurda
(est em causa o facto de Antnia ter emprestado o seu nome e arriscado a reputao
por um projecto de Piso, conhecido pelo amor esposa a menos que o desejo pelo
poder brilhe mais forte do que qualquer desejo86).
84 Tambm referidos em 16.22.3, mas no com a ideia de terem servido de fonte matria histrica. 85 Fbio Rstico louvado pela sua eloquncia no Ag. 10.3. 86 nobis quoquo modo traditum non occultare in animo fuit, quamuis absurdum uideretur aut inanem ad spem Antoniam nomen et periculum commodauisse, aut Pisonem notum amore uxoris alii matrimonio se obstrinxisse, nisi si cupido dominandi cunctis adfectibus flagrantior est (15.53.4).
26
Outros dois autores merecem referncia do autor textual. Agripina Menor
escreveu uns commentarii de que o autor se serve para contar que Agripina Maior pediu
um marido a Tibrio: id ego, a scriptoribus annalium non traditum, repperi in
commentariis Agrippinae filiae quae Neronis principis mater uitam suam et casus
suorum posteris memorauit (4.53.2). O general Corbulo citado em 15.16.1, por ter
deixado uma histria da guerra dos Partos em que Tcito se baseia.
Nas fontes bibliogrficas h ainda a realar as aluses a autores no citados.
Referidos como auctores rerum, plerique... alii, quidam, ou scriptores, os passos mais
significativos onde aparecem so aqueles em que o narrador confessa no ter dados para
completar as suas informaes ou em que apresenta verses alternativas que escolhe
como principal. Os passos em que tal ocorre so principalmente: 1.29.4, 1.81.1, 2.40.2,
2.88.1, 4.10.1, 4.11.1, 4.53.2, 4.65.6, 5.9.2, 12.67.1, 13.17.2, 14.2.2, 15.38.1, 16.6.1.
Esse facto concorre para a caracterizao do narrador dos Annales como algum
informado, capaz de se lamentar das suas pesquisas quando no tm os resultados
pretendidos.
Finalmente, refiram-se as testemunhas directas, que presenciaram os
acontecimentos (11.27), e os rumores (3.16.1, 4.10.1, 4.11.1, 11.27, 15.41.1) ou relatos
(3.16.1, 11.34.1, 15.65) que tambm serviram de fontes aos Annales e neles so citados
com alguma regularidade.87 De uma maneira geral, o papel dos rumores na economia da
narrativa de extrema importncia, pois atravs deles o autor textual matiza o
pensamento da poca a que a sua histria se reporta, ao mesmo tempo que, numa
perspectiva literria, podem ser entendidos como uma espcie de coro grego, pois
cumprem a mesma funo que este exerce numa tragdia.
3.2 Fidelidade s fontes
Existem trs evidncias epigrficas que provam a relao de Tcito com as
fontes: a Tabula Siarensis (registo de honras decretadas ao falecido Germnico, em 19),
o Senatus Consultum de Cn. Pisone Patre (registo do julgamento do ano 20 que levanta
um problema de datao) e umas tbuas de bronze, descobertas no sculo XVI em Lio,
com o discurso de Cludio ao senado em 48, recordado em Ann. 11.24.
87 V. Miller, 8 10, e M. D. V. Snchez, Propaganda y Deformacin de la Historia en Roma. Tcito y la Utilizacin de Rumores in A. P. Jimnez e G. C. Andreotti, La Verdad Tamizada: Cronistas, Reporteros e Historiadores ante su Pblico (Madrid, Mlaga: Ediciones Clsicas, Charta Antiqua, 2001), 107138.
27
De uma perspectiva retrica, estas fontes tm confirmado a informao
fornecida pelo historiador. Daqui tem resultado a confiana no texto de Tcito. A
narrativa tacitiana trabalha estas fontes, alterando-as de modo a conferir-lhes um cunho
pessoal. Por exemplo, a comparao do texto de Tcito e o do senatus consultum de
Pisone Patre apresenta uma discrepncia na data do julgamento de Piso tal pode
dever-se, mais do que a um lapso, manipulao dos dados para a construo de um
efeito dramtico mais forte88.
O trabalho de interpretao de fontes tambm faz parte da tarefa do historiador,
como o prprio assume em 3.3.3, 4.10.1, 4.57.3, ou 16.6.1. Nestes passos, o autor d
verses alternativas dos acontecimentos, mas inclina-se para uma interpretao prpria
e credvel, usando o esprito crtico (crediderim). De facto, o cuidado no uso das fontes
demonstrado exemplarmente em 13.20.2, onde evidencia certa desconfiana em
relao ao louvor de Fbio Rstico a Sneca, por serem amigos.
Desta sntese decorre que a concepo que Tcito tem de Histria est de acordo
com o panorama conceptual descrito na seco anterior, fazendo uso dela no s para
entreter os leitores, mas tambm e principalmente para dar exemplos a seguir, e
denunciar comportamentos indignos e