Post on 25-Jun-2015
DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
22
DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
33
©2009 Ijuí – RS – Brasil Capa: Carga de cavalaria, de Litran (Museu Júlio de Castilhos, Porto Alegre, RS)
Catalogação na Publicação
FIORIN, José Augusto. Do gaúcho ao tradicionalista: imagem, identidade e representação. Ijuí: Sapiens Virtual, 2009.
1. História Cultural 2. Tradicionalismo 3. Gaúcho
José Augusto Fiorin, é professor e pesquisador. Trabalha
na área das Ciências Humanas e Sociais. Graduado em
História, Pós-graduado em Ciências Sociais: especialista em
Sociologia, dedica-se a pesquisa no campo das identidades
culturais e das representações.
Contatos: www.professorfiorin.rg3.net
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
APRESENTAÇÃO
O tema central dessa pesquisa é a construção da identidade do tradicionalista rio-grandense do século XX. Para isso verifica-se como ele apropria-se da identidade do gaúcho do século XIX, através de representações de um passado, exaltando, heroicizando e ressignifcando seu caráter histórico.
A investigação ocorre tendo por base a história cultural, onde as noções de identidade, representação, imagem e apropriação propiciam a fundamentação teórica da pesquisa. Nesse contexto, é desenvolvida uma abordagem referente a imagem criada pelos cronistas que visitam e descrevem a Província do Rio Grande de São Pedro durante o século XIX e a imagem criada pelo pintor Jean Baptiste Debret.
Trata-se dos elementos que conduzem a apropriação dessa identidade. Com isso, destaca-se a literatura platina, o romantismo brasileiro de José de Alencar e a expressão dos rio-grandenses Apolinário Porto Alegre e Simões Lopes Neto.
Outro aspecto está na visão da historiografia rio-grandense, na polêmica discussão em torno da matriz do gaúcho rio-grandense x gaucho platino. Nesse contexto o discurso de Moysés Vellinho, o maior defensor de um gaúcho lusitano, sobressai. Verificamos como ocorre a representação do gaúcho idealizado que, posteriormente será exaltado constituindo o modelo do tradicionalista.
No entanto, o caráter saudosista na tentativa de reviver o passado nos parece ser a premissa inicial na constituição desse movimento. Ocorrendo assim, um processo de apropriação de uma identidade cultural. O tradicionalista do século XX tenta reviver o gaúcho do século XIX em sua totalidade de manifestações através de um movimento saudosista, doutrinário e conservador.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
44
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
SUMÁRIO Introdução..........................................................08
Capítulo I
Noções de cultura na história cultural.................13 As Representações e a Apropriação......................14 A Identidade e a Tradição.....................................26
Capítulo II
Narrativas: escritos e imagéticas ..........................33 Escritos: Arsène, Dreys e Hilaire..........................36 Imagética do Gaúcho: Debret e Molina.................45
Capítulo III
O processo de construção de uma identidade.......67 A Influência Literária: Platina e Brasileira...........71 Primeiras entidades nativistas e o Positivismo.....79 Visão dos historiadores.......................................83
Capítulo IV
A construção da identidade do tradicionalista.......95 Processo histórico na formação............................99 O sentido e o valor do Tradicionalismo................107 A Carta de Princípios..........................................114
Conclusão...........................................................121 Referências.........................................................124 Anexos ...............................................................130
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
55
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
INTRODUÇÃO
Na construção de um projeto de modernidade
muitas sociedades visam espelhar-se em um passado
representado como tradicional, cujo espelhamento possa lhe
condicionar os parâmetros necessários a atuação no
cotidiano. Embora hoje, alguns teóricos apontam um
processo de desconstrução dessas identidades, por conta de
uma instância maior, instituída por uma “mundialização da
cultura”, há o antagônico papel desempenhado por aqueles
que visam rememorar o passado, enaltecendo-o, cujo culto
remete a um fator importante de análise.
Com isso, podemos destacar que o Rio Grande do
Sul, por se constituir historicamente em um estado de
fronteira, aponta peculiaridades em suas manifestações
culturais. A cultura possui um significado expressivo nas
manifestações da sociedade rio-grandense. Alguns
habitantes do estado visam identificar-se como
tradicionalistas e buscam no passado elementos que
venham consolidar e justificar essa manifestação.
Hoje, verificamos que houve uma construção
daquilo que tornou-se um dos referenciais da identidade rio-
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
66
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
grandense, com a simbologia do gaúcho: seja na sua
imagem ou na expressão gentílica. Esse trabalho visa
analisar se houve a apropriação da identidade do gaúcho
histórico do século XIX pelo tradicionalista do século XX. A
reflexão sobre esse assunto surge na tentativa de
caracterizar e demonstrar a que contexto histórico e modelo
de sociedade gaúcho e tradicionalista pertencem.
Para enfatizar o pressuposto levantado, a
abordagem será constituída pela via da cultura, onde a
ênfase e a discussão serão construídas com base na história
cultural e nos estudos culturais. No entanto, analisar a
construção do gaúcho histórico defrontando-o com o
tradicionalista atual torna possível verificar pontos distintos
entre ambos.
E esse caráter de diferenciação é que nos faz
compreender como o gaúcho é (re)inventado e (re)significado
no transcorrer na história. Seja pelos discursos, seja pela
prática política ou pela literatura.
Ao desenvolver esse trabalho, tomou-se como
preocupação inicial em não desenvolver uma crítica
contundente aos ditames e aos propósitos do movimento
tradicionalista. Isso porque, entendemos que esse possui
uma importante função social e por ser uma manifestação
cultural merece ser respeitado e analisado.
Porém, é justamente nesse contexto de análise
que verificamos como ele se apropria de um passado
inexistente condicionando uma representação da imagem
passada, cujo significado será alterado na sociedade atual. A
criação de uma nova imagem a esse tipo social está
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
77
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
correlacionada a necessidade da criação de um elemento
mítico, que venha possuir um papel de significância.
No primeiro capítulo são tratadas questões teóricas
que remete a compreensão de que conceitos serão
abordados na pesquisa. As noções expressas estão
direcionadas a perspectiva geral do trabalho. Com isso,
tentou-se estabelecer determinadas noções de identidade,
cultura, representação e apropriação. Essa conceituação
possui um caráter significado.
É a partir desses pressupostos teóricos, que a
reflexão acerca da identidade, da imagem e da representação
do gaúcho do século XIX se desenvolvem. Assim, dentro da
perspectiva da história cultural buscou-se construir
elementos enfocando o discursos tantos verbais ou
imagéticos que visam representar o tipo social em questão.
Para caracterizar a imagem e a conseqüente
identidade do gaúcho do século XIX, no segundo capítulo
optou-se por realizar uma análise dos escritos que os
viajantes europeus do século XIX desenvolveram sobre o
tipo social do gaúcho, bem como a imagética representada
por Jean Baptiste Debret.
A discussão sobre os discursos de europeus que
visitaram a Província do Rio Grande de São Pedro durante o
século XIX, somado a visão que a pintura de Debret e
Molina expressaram sobre o gaúcho rio-grandense e platino
demonstram e caracterizam um tipo social com atribuições
distintas daquilo que o movimento cultural da segunda
metade do século XX tenta evocar. Assim, nesse capítulo
temos uma dimensão sob a perspectiva dos europeus, sobre
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
88
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
o habitante deste território no período delimitado pela
pesquisa.
Para compreender o tipo de identidade criada pelo
tradicionalista do século XX, e, por conseguinte, o próprio
movimento que este irá idolatrar, fez-se necessário enfocar
no capítulo terceiro alguns aspectos que conduzem a
construção dessa identidade tradicional.
Nesse contexto encontramos vários elementos e
manifestações que dão indício e talvez, nos conduzam a
uma compreensão dos condicionantes ao surgimento de um
movimento que visa “preservar a cultura”. Assim tentou-se
compreender aspectos de um processo de transformação do
gaúcho na formulação de um mito romantizado pela
literatura.
A influência literária pode ser considerada um dos
fatores que levam a construção de um outro significado ao
gaúcho. Além disso, o positivismo tão presente na sociedade
rio-grandense durante a República Velha também torna-se
um dos fatores caracterizantes ao culto de uma tradição do
passado.
Além disso, há uma outra equivalência. Trata-se da
construção da identidade regional. Partindo das condições
geradas pela Revolução de 1930 onde sobressai a identidade
do gaúcho, somada a visão que os intelectuais da Revista
Província de São Pedro, principalmente na perspectiva de
Moysés Vellinho, vamos compreender como foi se
construindo outra imagem, aos poucos edificando o sentido
gentílico a expressão: gaúcho rio-grandense.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
99
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
E por fim, buscou-se a constituição de uma
identidade do tradicionalista. No capitulo quarto, há a
tentativa da reconstrução de aspectos importantes da
história do tradicionalismo no Rio Grande do Sul, dando
ênfase às principais linhas de ações, teses e princípios que
norteiam o movimento tradicionalista.
Nesse contexto, optou-se por discutir aspectos
ligados a problemática em questão que se diz respeito a
apropriação ou não da identidade do gaúcho pelo
tradicionalista. Assim, o enfoque veio ao encontro à
identidade do gaúcho histórico do século XIX, pontuando a
representação e a apropriação de uma cultura do passado,
bem como o saudosismo expresso nela.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1100
DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
11
NOÇÕES DE CULTURA
NA HISTÓRIA
CULTURAL
11
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
AS REPRESENTAÇÕES E A APROPRIAÇÃO
A cultura pode ser entendida como uma mediação
para o mundo. Ela representa as maneiras de sentir e
pensar dos grupos presentes na sociedade. A noção de
cultura é um tema interessante que merece discussão
acentuada. Partindo de seus postulados percebemos a
grande representação que ela possui perpassando pelos
conceitos de unidade e diversidade. A noção de cultura é
construída a partir de nossa diversidade e com isso, constrói
a noção de identidade. A sociedade é então a base para a
existência da cultura, e a cultura só se desenvolve pela
interação social.
A aquisição e a perpetuação da cultura, é uma
processo social, resultante da aprendizagem. Cada
sociedade transmite às novas gerações o patrimônio cultural
que recebeu de seus antepassados. Cada sociedade, elabora
a sua própria cultura ao longo da história e recebe
influências de outras culturas.
Ela pode também ser entendida como um estilo de
vida particular que as sociedades desenvovlvem e que
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1122
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
caracterizam cada uma delas. Assim os individuos que
compartilham da mesma cultura apresentam o que se
chamamos de identidade cultural. É essa identidade que faz
com que a pessoa se sinta pertencente ao grupo, é por meio
dela que se desenvolve o sentimento de pertencimento.
A antropologia no Brasil tem dificuldade em definir
o que é cultura brasileira. Pensamos a cultura brasileira
fragmentada, em uma unidade ou em várias culturas? Para
entender como ocorre parte desse processo de constituição
cultural, examinaremos a contrução de uma cultura
apresentada como gaúcha, predominante no estado do Rio
Grande do Sul, cujas origens remetem à identidade platina.
Para isso, fazer-se-á necessário destacar dois
distintos momentos de manifestação cultural. O gaúcho –
que configura na campanha do Rio Grande do Sul nos
séculos XVII e XVIII, e o tradicionalista, criado pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho no transcorrer do século
XX. Assim, é pertinente enfocar como o tradicionalista tenta
apropriar-se da identidade do gaúcho e por conseguinte
construir um movimento de preservação da cultura
passada.
Para preservar a identidade de uma cultura frente
à possível difusão de preceitos de outras culturas surge o
etnocentrismo. E é com esse intuíto que o tradicionalista
visa manter o entendimento e relação com outras culturas,
servindo justamente no sentido de manutenção de sua
identidade cultural. Então, a etnologia, por sua vez, vai
tentar dar uma resposta objetiva à velha questão da
diversidade humana.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1133
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
O etnocentrismo é o termo técnico para esta visão de coisas onde segundo a qual o nosso próprio grupo é centro de todas as coisas e todos os grupos são medidos e avaliados em relação à ele. Cada grupo apresenta seu próprio orgulho e vaidade, considera-se superior, exalta suas próprias divindades e olha com desprezo às estrangeiras. Cada grupo pensa que seus próprios costumes (folkways) são os únicos válidos e ele observa que os outros grupos têm outros costumes, encara-os com desdém1. (SIMON apud CUCHE, 2002, p.46)
Considerando que a cultura nas ciências sociais
apresenta-se de uma forma bastante complexa, devemos
nos remeter a noção de cultura no que refere-se à produção
histórica. Para Balandier (1955) se a cultura não é um dado,
uma herança que se transmite imutável de geração em
geração, é porque ela é uma produção histórica, isto é, uma
construção que se inscreve na história, e mais precisamente
na história das relações dos grupos sociais entre si.2
É importante perceber que o homem em relação ao
social vai construindo essa perspectiva de cultura. O
cultural não pode ser estudado separado do social, pois
ambos possuem caráter de historicidade. Em relação ao
gaúcho e ao tradicionalista, considerando os distintos
momentos históricos que ambos situam-se, devemos partir
da premissa de que nos apropriamos do que é pronto, ou
1 SIMON, Pierre-Jean. Ethnocentrisme. Pluriel-recherces, cachier n.1,p.57-63. apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC, 2002. 2 BALANDIER, Georges. La nocion de “situation” cloniale. In: Sociologie actuelle de l’Afrique noire. Paris: PUF, 1955.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1144
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
construímos o que é nos dado? Será que absorvemos a
cultura de geração em geração? Ou ela é imposta pelo grupo
de convívio?
Burke (2000) deixa evidente que a história cultural
ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo
menos no sentido institucional. Segundo ele não é fácil
responder à pergunta: o que é cultura? Tudo isso porque a
concepção de cultura para historiadores de meados do
século XIX é de que ela era algo que as sociedades tinham
(ou, mais exatamente, que alguns grupos em algumas
sociedades tinham), embora faltasse a outros3.
A concepção universalista de cultura nos remete ao
pensamento de Tylor. Ele enfatiza que a cultura é a
expressão da totalidade da vida social do homem. Ela se
caracteriza por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é
adquirida e não depende da hereditariedade biológica4. Já
Boas vai defender uma concepção particularista da cultura
destacando que ela é uma tentativa de pensar a diferença.
Para ele o fundamental entre os grupos humanos é de
ordem cultural e não racial5.
Segundo a afirmação de Peter Burke, de que há
dificuldade ao definir o que é cultura, tentamos trazer aqui a
análise funcionalista da cultura, desenvolvida por
Malinovski. Segundo Cuche (2000), Malinovski se opôs a
qualquer tentativa de escrever a história das culturas de
3 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 4 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed.Bauru:EDUSC,2002. p.36 5 Idem. p.41.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1155
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
tradição oral. Para ele, é preciso se ater à observação direta
das culturas em seu estado presente, sem buscar a volta de
suas origens, o que representaria um ilusório, pois não
suscetível de prova científica. Com isso, nos remetemos à
funcionalidade do movimento tradicionalista que visa
retornar ao passado para dar sustentabilidade à sua forma
de manifestação cultural no presente.
Para entender como ocorre esta tentativa de
apropriação da identidade do gaúcho pelo tradicionalista,
neste contexto, é fundamental destacar os elementos que os
aproximam. Para isso, partimos do postulado da Nova
História Cultural. Peter Burke6 (2005) explica a emergência,
a partir da década de 1970, de um modo peculiar de
compreender a história, tomando os aspectos culturais do
comportamento humano como centro privilegiado do
conhecimento histórico. Esta emergência vincula, segundo
ele, ao que chama de “virada cultural”: uma guinada sofrida
pelos estudos históricos, abandonando um esquema teórico
generalizante e movendo-se em direção aos valores de
grupos particulares, em locais e períodos específicos.
A história cultural surge com uma proposta de
pensar novos objetos e paradigmas. Romper com
determinadas postulações também faz parte de suas
proposições, pois Chartier (1990) nos diz que durante esse
período demasiado longo, a história da história foi habitada
por “essas seqüências de conceitos saídos de inteligências
desencarnadas”, denunciadas por Lucien Febvre como o
pior defeito da antiga história das idéias. Não obstante, a
6 BURKE,Peter. O que é História Cultural?Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 2005, 192p.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1166
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
história cultural surge como “uma outra maneira de pensar
as evoluções e oposições intelectuais”. 7
Então, a possibilidade de se opor ao pensamento
estabelecido pelo Movimento Tradicionalista, principalmente
no que concerne ao que é histórico e o que é tradicional,
torna-se um objeto interessante de estudo. A história
cultural tal como entendemos, tem como principal objeto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos
uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler8.
É importante destacar o que Burke enfatiza. Segundo
ele, as linhas teóricas defendidas pela Nova História
Cultural não são apenas uma nova moda, mas respostas a
fraquezas palpáveis de paradigmas anteriores9. Sobre essa
mesma idéia, Chartier defende que:
O que toda história cultural deve pensar é portanto, indissociavelmente, a diferença pela qual todas as sociedades, por meio de figuras variáveis, separaram. Do quotidiano um domínio particular da atividade humana, e as dependências que inscrevem de múltiplas maneiras a invenção estética e intelectual em suas condições de possibilidade10. (CHARTIER, 1994, p.8)
7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.16. 8 Idem. p.17. 9 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.251. 10 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1177
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Outro aspecto importante na Nova História
Cultural, que merece ser mencionado é reservado para o
estudo das representações. Este por sua vez, torna-se um
conceito central. Chartier desenvolve a idéia sobre o
deslocamento da história social da cultura para a história
cultural da sociedade, especialmente a partir da década de
1980.
Assim, a idéia da Nova História Cultural, nos
indica algumas indagações. Como são construídas as
representações do gaúcho? Como a tradição é construída
através das idéias e imagens? Certamente essas premissas
nos condicionam a pensar a sociedade rio-grandense no
momento da conquista/disputa do território pelos reinos
Ibéricos. Momento esse em que consolida-se enquanto
individuo social a imagem do gaúcho. No entanto, em
meados do século XX, o movimento tradicionalista, busca a
idéia de (re)construção, com base em um passado,
construindo assim a representação desse gaúcho através do
tradicionalista.
Chartier (1990) deixa explicito que o objeto de uma
história cultural levada a repensar completamente a relação
tradicionalmente postulada entre o social, identificado com
um real bem real, existindo por si próprio, e as
representações supostas como refletido-o ou dele se
desviando.11
Pensar qual seria a ideologia do grupo de jovens
criadores do Movimento Tradicionalista na década de 1940 é 11 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.27.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1188
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
refletir como se dá a representação do mundo social, pois
Roger Chartier nos diz que essas representações são sempre
determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Neste
caso a representação do tradicionalismo atinge o interesse
de criação e invenção de um grupo de jovens oriundos do
meio rural que buscam na capital do estado, por puro
saudosismo, reviver um passado que não existiu em sua
totalidade.
No Rio Grande do Sul do século XX ocorre o
surgimento um movimento cuja tentativa é a reprodução de
valores forjados pelos antepassados. Devido a isso, a
identidade gaúcha apresenta-se de forma fragmentada, pois
nunca se expressou como uma totalidade. Essa ocorrência é
devido à forma de resgate cultural de um passado presente
no imaginário, porque há a procura da formação de uma
identidade no espaço urbano, cuja construção e
ideologização será de um movimento tradicionalista.
Com isso, ocorrem alguns equívocos na construção
desse paradigma de preservação do passado. A
característica dominante de uma identidade “tradicional” -
em uma sociedade moderna é a diluição da noção de tempo
histórico e do espaço. Onde há a tentativa de viver no núcleo
urbano, a vida ocorrida no campo em um momento onde há
uma reelaboração do passado como o lugar de uma
sociedade tradicional. Entretanto, historicamente, a
sociedade de tipo tradicional nunca existiu no Rio Grande
do Sul.
Na tentativa de construir um modelo tradicional de
preservação dos valores passados, os ideólogos do
movimento buscam a invenção de um lugar - o pago. Isto
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
1199
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ocorre, porque visam formar um padrão cultural onde as
bases do passado possam construir uma identidade no
presente. Um paradigma criado pelo Movimento
Tradicionalista. Assim, o tradicionalismo é a expressão de
um dos segmentos da modernidade.
A funcionalidade deste movimento tradicionalista
está enquadrada em determinações que vêm exercer
dominação aos tradicionalistas filiados, onde a adequação
do tradicionalista à um código de ética e princípios
estabelecidos estão inteiramente ligados a uma tradição oral
de respeitabilidade. Isso se dá devido ao discurso proferido e
enaltecido dentro das entidades tradicionalistas, onde o
gaúcho do passado – visto agora como herói – sempre
representou estar dentro dos padrões de conduta da
sociedade. Sobre isso, Chartier (1990) ressalta que esta
investigação sobre as representações supõe como estando
sempre colocadas num campo de concorrências e de
competições cujos desafios se enunciam em termos de poder
e dominação.12 Segundo ele, para compreender os
mecanismos pelo qual um grupo impõe, ou tenta impor, a
sua concepção de um mundo social, os valores que são seus
e o seu domínio13.
Outro aspecto essencial, para compreender como
ocorre essa forma de dominação do movimento
tradicionalista aos seus simpatizantes, está ligado à
simbologia. Vários são os ícones representativos dessa
forma visionária de resgate do passado. Cassier define esta a
função simbólica como: 12 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. 13 Idem. p. 17.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2200
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
...uma função mediadora que informa as diferentes modalidades de apreensão do real, quer opere por meio dos signos lingüísticos, das figuras mitológicas e da religião, ou dos conceitos do conhecimento cientifico.(...) forma simbólica todas as categorias e todos os processo que constroem o mundo como representação. (CASSIRER, apud CHARTIER p.19)14
A idéia de representar um passado que nunca existiu
– funcionalidade do movimento tradicionalista – é
justamente tentar fazer com que o tradicionalista tenha a
imagem de um gaúcho. Mesmo equivocando-se com o tempo
histórico e com o espaço pelo qual a tradição está sendo
cultuada tal movimento expressa-se em uma ideologização
cujo aparato é evocar a representação como algo ausente.
Assim a idéia de representação fica evidente pois
... a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro lado, a representação como exibição de uma presença, como apresentação publica de algo ou de alguém. A representação é um instrumento de um conhecimento mediato que faz por um objeto ausente através de sua substituição por uma imagem, capaz de reconstruir em memória e de o figurar tal como ele é.15 (CHARTIER, 1990, p. 22)
14 CASSIRER, Ernst. La filosophie desenvolvimento formes symboliques. Paris: Minuit, 1972. apud. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p. 19. 15 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.22.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2211
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Assim, a representação é relacionamento de uma
imagem presente e de um objeto ausente. Fato esse que
pode se estender a representação dada ao Movimento
Tradicionalista Gaúcho e ao gaúcho histórico, pois há uma
grande distinção entre representação e representado,
identificado por Chartier como sendo esta distinção algo
fundamental, pois entre signo e significado é pervertida
pelas formas de teatralização da vida social. (...) Todas elas
têm em vista fazer com que a identidade do ser não seja
outra coisa senão a aparência da representação.16
O Movimento Tradicionalista seria um
condicionante às manifestações de representações coletivas?
Sobre essa perspectiva, em importante artigo intitulado “A
história hoje: dúvidas, desafios, propostas”17 Chartier
ressaltará que as representações coletivas que incorporam
nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os
esquemas de percepção e de apreciação a partir dos quais
estes classificam, julgam e agem.
Se por um lado há a evidência do tradicionalista
representar o que o gaúcho constitui, por outro, há a
tentativa de um processo que visa a apropriação da
identidade desse gaúcho. É importante destacar como o
tradicionalista e o próprio Movimento Tradicionalista
orientam suas práticas sociais. Tudo isso porque a
apropriação define o consumo cultural como uma operação
de produção que embora não fabrique nenhum objeto,
16 Idem. p.21. 17 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2222
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
assinala a sua presença a partir de maneiras de utilizar os
produtos que lhe são impostos.
Como um segmento urbano, constituído pelos
tradicionalistas, se apropria da idéia e da imagem do gaúcho
habitante da região da campanha, e cria outro significado?
Conforme Chartier em “O mundo como
representação” 18, o sentido que Michel Foucault dá ao
conceito, ao tomar "a apropriação social dos discursos"
como um dos procedimentos maiores através dos quais os
discursos são dominados e confiscados pelos indivíduos ou
instituições. Com isso, há uma facilidade maior de um
determinado controle. E o Movimento Tradicionalista, por
suas vez, adotará essas formas de controle de maneira
especifica aos seus filiados e simpatizantes.
De acordo com essa idéia, podemos destacar a
afirmação de Chartier19 que a apropriação, a nosso ver, visa
uma história social dos usos e das interpretações, referidas
a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas
específicas que as produzem.
Assim, a história que o Movimento Tradicionalista
constrói é uma história voltada às interpretações dos
ideólogos do movimento, que buscam representar, e,
consequentemente apropriar-se somente daquilo que julgam
como válido e significativo no resgate e preservação de uma
identidade. Certamente, não concebem a história como uma
construção coletiva e uma manifestação cultural muito mais 18 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.11, n.5,p.173-191,1991. 19 Idem. p. 6.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2233
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ampla do que seus paradigmas de enaltecimentos heróicos e
desvinculações temporais.
A IDENTIDADE E A TRADIÇÃO
A construção do movimento tradicionalista somente
será possível no momento em que possibilita-se as bases
para essa construção. Para isso, um conceito inicial é o de
que o tradicionalista tem uma idéia centrada, com
elementos cartesianos e modelos pré-estabelecidos. O
tradicionalismo tenta criar uma idéia de unidade para assim
desenvolver um processo que visa construir uma identidade.
Para desenvolvermos tais idéias referentes à
identidade, buscamos em Stuart Hall alguns indicativos,
pois em sua obra “Identidades Culturais na pós-
modernidade”20, ele discute a questão da identidade cultural
na chamada modernidade tardia, buscando responder
algumas perguntas como: se há ou não há uma “crise” de
identidade, em que ela consiste e quais suas conseqüências.
Para isso, o autor traz a mudança do conceito de sujeito e
identidade no século XX.
Qual seria a identidade do gaúcho? Os elementos
que constituem a identidade desse habitante histórico do
Rio Grande do Sul seriam os mesmos apresentados pelos
tradicionalistas do século XX? E perante o contexto dessa
modernidade tardia, ou pós-modernidade, qual o lugar da
identidade do tradicionalista no século XXI? Conseguirá
manter pura e genuinamente um conceito de tradição, 20 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.Tradução:Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 4. ed. Rio de Janeiro:DP&A. 2000.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2244
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
apoiando-se no passado, sem absorver as manifestações
culturais produzidas pela sociedade do presente? Tais
indagações nos remetem a várias reflexões no que diz
respeito às funções históricas e sociológicas desenvolvida
pelo Movimento Tradicionalista no Rio Grande do Sul.
Na tentativa de compreender esse processo,
percebemos a complexidade que é tentar definir identidade.
Para Hall (2001), o conceito de identidade é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e
muito pouco compreendido na ciência social contemporânea
para ser definitivamente posto à prova21.
Outro importante aspecto que merece destaque é o
fato que
... a identidade é formada, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência do momento do nascimento. Existe sempre algo tão “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, esta sempre “em processo”, sempre “sendo formada”22. (HALL, 2001,p.38)
Apesar disso, deve-se destacar o alerta que Cuche
faz. Segundo ele, não se pode, pura e simplesmente
confundir as noções de cultura e de identidade cultural
ainda que as duas tenham uma grande ligação23. O que
21HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000. p.8. 22 Idem p.38. 23 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.176.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2255
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ocorre no Rio Grande do Sul, na constituição e consolidação
do Movimento Tradicionalista, é justamente essa confusão.
Confundem cultura com identidade. É imposto, pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho, a construção de uma
identidade, com base na cultura gaúcha, tomando como
referência o passado, enaltecendo-o como heróico.
A postura que o movimento tradicionalista adotará
será um postura de dominação. Esse domínio será
estabelecido por conta de seus manuais, teses, leis e códigos
estabelecidos aos tradicionalistas. Ou seja, ao querer
identificar-se como tradicionalista o individuo deverá aceitar
as normas impostas pelo movimento. Para dessa forma,
manter a identidade cultural do gaúcho. Sobre isso é
importante destacar que há uma história das relações de
força simbólicas, uma história da aceitação ou da rejeição
pelos dominados dos princípios inculcados, das identidades
impostas que visam a assegurar e perpetuar sua
dominação24.
A identidade permite que o indivíduo se localize
dentro da sociedade. Parece que, para o movimento
tradicionalista a identidade, apresenta-se de uma forma
permanente. Assim, de acordo Cuche, esses tradicionalistas
concebem a identidade como um dado que definiria de uma
vez por todas o individuo e que o marcaria de maneira quase
indelével25.
24CHARTIER, Roger. A história hoje, dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 9. 25 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.178.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2266
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Se a identidade define o individuo, como o
tradicionalista visa identificar-se como gaúcho?
A identidade é vista como uma condição imanente do indivíduo, definindo-o de maneira estável e definitiva.(...) O individuo é levado a interiorizar os modelos culturais que lhe são impostos, até o ponto de se identificar com seu grupo de origem. (CUCHE, 2002, p.179)
Talvez, seja importante enfatizar a representação do
mito gaúcho, já que não se pode reivindicar uma identidade
cultural autêntica. Para Stuart Hall, o mito fundacional tem
funcionalidade em uma história que localiza a origem da
nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão
distante que eles perdem nas brumas do tempo, não do
tempo “real”, mas do tempo “mítico”26. Além disso, expõe
com muita clareza e propriedade de que não tem qualquer
nação que seja composta de apenas um único povo, uma
única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas,
híbridas culturais.
Com isso, percebemos como ocorre a diluição do
tempo histórico. Os tradicionalistas tentam reviver um
passado que não nunca existiu na forma como interpretam.
Assim, ocorre uma série de equívocos na constituição da
identidade do tradicionalista rio-grandense.
Anthony Giddens27 descreve que há uma expressiva
a distinção entre sociedades tradicionais e modernas. Ou 26 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000. p.55. 27 GIDDENS, Anthony apud HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2277
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
seja, o gaúcho pertence a uma sociedade tradicional,
enquanto que o tradicionalista pertence a uma sociedade
moderna. Assim, nas sociedades tradicionais, o passado é
venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e
perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio
de lidar com o tempo e com o espaço, inserindo qualquer
atividade ou experiência particular na continuidade do
passado, presente e futuro, os quais por sua vez, são
estruturados por práticas sociais recorrentes.
No Rio Grande do Sul, com o surgimento do
movimento tradicionalista, ocorre o processo de construção
da tradição gaúcha. Essa tradição será exaltada no sentido
de reviver o que já fora vivido. A transmissão de geração à
geração é fator indispensável na construção da tradição.
Burke em “Variedade de História Cultural” nos diz
que a fachada da tradição talvez massacre a inovação e que
é praticamente impossível escrever a história cultural sem
tradição. Contudo está mais do que na hora de se
abandonar o que se pode chamar de noção tradicional de
tradição, modificando-a para levar em consideração à
adaptação assim como o reconhecimento, e recorrendo às
idéias de teoria da recepção28.
A idéia de construção da tradição é central para
Hobsbawn e Ranger no livro “A Invenção das Tradições29”.
Livro que ajudou a renovar uma das mais tradicionais
28 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.240-1 29 HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2288
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
formas de história cultural, a história da própria tradição.
Provocou grande impacto ao afirmar na introdução que as
tradições “ que parecem ou se apresentam como antigas são
muitas vezes bastante recentes em suas origens, e algumas
vezes são inventadas30.”
Seria a tradição gaúcha uma tradição inventada?
Sobre isso, Hobsbawn (1997) contextualiza que “por tradição
inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente
reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar
certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado”31.
30 HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.p. 8. 31 Ibidem. p.9.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
2299
DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
30
NARRATIVAS:
ESCRITOS E
IMAGÉTICAS SOBRE O
GAÚCHO
30
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
NARRATIVAS: ESCRITOS E IMAGÉTICAS SOBRE O
GAÚCHO
No transcurso do século XV, considerando uma crise
que afetava várias instâncias da sociedade européia, incide
a tentativa da superação desta, com a aventura da
conquista de novos territórios. Nesse contexto ocorre a
chegada dos europeus na América. Evidentemente que o
choque cultural procede de uma forma expressiva,
considerando o antagonismo existente entre europeus e
americanos.
Os Reinos Ibéricos adotam, através de um processo
de exploração das novas colônias, um pacto entre as
colônias americanas e as metrópoles européias. A retirada
das riquezas aqui existentes era fator predominante para
dar sustentabilidade econômica a sociedade européia.
Contudo, os elementos e os padrões culturais europeus são
impostos aos colonizados, devido o fato dos europeus julgar-
se culturalmente superior.
Neste contexto, a chegada dos portugueses ao Brasil
e a conseqüente apropriação do território no início do século
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3311
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
XVI fez com que, uma nova dinâmica fosse impregnada. A
atuação dos europeus ocorria quase que exclusivamente em
regiões, que aos seus olhos, fossem atrativas
economicamente.
O Rio Grande do Sul, por sua vez, situado em uma
zona limítrofe, entre as colônias espanholas e a colônia
portuguesa, sofrerá um processo diferenciado na sua
constituição. O interesse pelas terras onde situa-se, decorre
mais que um século após a chegada dos primeiros europeus
no continente. As razões que levam a tal justificativa, está
no fator de não existir madeira ou minérios de fácil extração,
como em outras regiões da América ocorria.
Após um longo período de desinteresse por não
possuir atrativos aos colonizadores, viviam os povos
indígenas organizados em torno de seus elementos culturais
e rituais. Com isso, o interesse pela ocupação do território
onde hoje situa-se o Rio Grande do Sul, procede a partir da
importância que a pecuária representará, junto ao processo
de catequese desenvolvido pelos padres da Companhia de
Jesus nas terras onde hoje é a Região das Missões. É a
partir desse contexto e, considerando a importância que o
rio da Prata possuía como escoadouro dos minérios
retirados na região de Potosí, é que Portugal e Espanha
passam a olhar com outros olhos o território do Rio Grande
do Sul.
O fato de localizar-se em uma região de constante
disputa entre os reinos que ambicionavam seu território faz
com que insurja um tipo social, produto dessa região de
convergência. Esse tipo social por sua vez adotará uma
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3322
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
postura significativa na construção de uma identidade
cultural.
Para entendermos como ocorre a constituição do tipo
social do gaúcho predominante no século XIX,
examinaremos que tipo de relato os viajantes, provenientes
da Europa, desenvolvem acerca de sua imagem. Com isso,
há a pertinência de se destacar aqui os depoimentos
contidos nas viagens realizadas ao Rio Grande do Sul do
século XIX, do naturalista Auguste de Saint Hilaire, de
Arsène Isabelle e Nicolau Dreys. Além disso, uma
abordagem da imagética sobre o gaúcho, representada na
obra de Jean Baptiste Debret.
É importante destacar que a leitura que esses
viajantes fizeram, em relação ao que viam no Rio Grande do
Sul, representa a construção de uma visão própria daquela
realidade, resultado de um contexto histórico o qual viveram
e viviam naquele momento. Trata-se, dessa forma, de um
discurso não oficial, mas ainda é um discurso, portanto
deve ser analisado pela historiografia como um depoimento
legítimo de uma visão de mundo. Nesse sentido, entendemos
os depoimentos dos viajantes como efeito de um contexto
histórico e, sob esta ótica, se constituindo em fonte para a
compreensão da sociedade de certo período histórico.
Que visões esses viajantes terão do Rio Grande do
Sul? E sobre o tipo social do gaúcho? Certamente o que é
relatado possui dimensões opostas aquilo, que por meio da
representação, tenta-se viver em meados no século XX no
Rio Grande do Sul, que é um movimento tradicionalista e a
expressão gentílica de gaúcho, ao habitante do estado.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3333
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ESCRITOS: ARSÈNE, DREYS E HILAIRE
Durante o século XIX alguns viajantes provindos da
Europa irão visitar as terras onde hoje situa-se o Rio Grande
do Sul. Seus testemunhos tornam-se importantes na
reconstrução do cenário rio-grandense durante este período.
O olhar desses viajantes sob a perspectiva do homem que
habitava essa região é marcado por uma descrição analítica
sobre o tipo social e cultural que predominava na Província.
Ao fazer a abordagem do tipo social do gaúcho sob o
olhar dos viajantes, é importante destacar que tanto Hilaire,
Isabelle e Dreys são apenas “homens de seu tempo”, cujas
abstrações mentais e representações que fazem do mundo
que os cerca estão relacionadas com o seu contexto
histórico-social.
Arsène de Isabelle era um viajante francês.
Naturalista, muito interessado ao estudo da fauna e da
flora, veio para a América às suas próprias custas. Em
1830, viajou para a região do Prata com o desejo de
descrever os aspectos geográficos, geológicos, zoológicos e
botânicos desta região. Viagem essa, que possibilitou os
primeiros escritos sobre o elemento social do gaúcho.
Esteve primeiro no Uruguai e depois dirigiu-se para
Buenos Aires. Nesta cidade, perdeu todo seu capital em
maus negócios financeiros, sendo obrigado a abrir uma
pequena indústria têxtil para depois seguir com sua
expedição pelo interior. Sem alcançar a prosperidade
almejada, deslocou-se para o Uruguai, cruzando pelas terras
rio-grandenses em 1833 e 1834. Retornou à França em
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3344
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
1835, ocasião em que publicou seus relatos de viagem na
obra Voyage à Buenos Ayres et à Porto Alegre.
Em seu livro Voyage a Buenos-Ayres et a Porto-Alegre
Arsène32 relata a excursão que fez ao Rio Grande entre 1830
e 1834. Ali estão contidas suas impressões sobre a província
do sul, retratando os costumes e as características do povo
da época, inclusive numa rápida passagem sobre a
Revolução Farroupilha no Estado.
Segundo seu relato, a visão que possui do gaúcho é
algo peculiar. Para ele:
... os gaúchos ou habitantes do campo são, em relação a Buenos Aires, o que são os tártaros em relação à China ou os beduínos em relação a Argel. Foi um chefe gaúcho que triunfou do partido de Lavalle e serão os gaúchos que dominarão sempre a cidade, opondo-se a toda inovação útil ao país, até que se ponha em prática o plano de Rivadávia, que consistia em favorecer aos estrangeiros e induzí-los a formar colônias no interior (...) agora, percebo que estou mais próximo dos ´pampas` que da praça da Vitória33. (ARSÈNE, p. 94)
Nicolau Dreys, também era francês, depois de
prestar serviço militar deixa seu país e em 1817 aporta no
Brasil. Percorreu várias Províncias do Império. Antes de
falecer em 1843, nos deixou vários depoimentos sobre sua
visão das províncias brasileiras. Destacamos aqui a Notícia
32 ISABELLE, A. A Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A, 1979. 33 ISABELLE, A. A Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A, 1979, p. 94.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3355
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul,
quando faz, sob seu olhar, uma exposição escrita daquilo
que lhe chama atenção no Rio Grande do Sul, considerando
aspectos geográficos, humanos e sociais.
O que é pertinente ressaltar, tomando como
referência os viajantes já citados é que Dreys desenvolverá
uma crítica a obra, e consequentemente à visão que Arsène
terá da província. Segundo Dreys34 não é assim que uma
imaginação judiciosa recebe e transmite as impressões;
infeliz do viajante que, depois de alguns anos de observação,
não lacerou suas primeiras notas; arrisca-se a enganar-se a
si mesmo e enganar os outros.
No entanto, sobre o habitante da Província e mais
especificadamente sobre o tipo social do gaúcho é no
capitulo terceiro, onde discorre sobre a população, que
Nicolau Dreys (1961) nos dá o melhor fruto das suas
observações. Depois de descrever, aquilo nomeado por ele
como população regular, seja o rio-grandense do meio rural
ou das cidades, já nas últimas páginas da Notícia Descritiva,
traça um retrato compreensivo dos famosos “gaúchos de
vida sôlta, ainda não assimilados e em pleno viço de sua
aventura histórica”.
Segundo Augusto Meyer, na nota introdutória da
edição da Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de
São Pedro do Sul, de 1961, editado pelo Instituto Estadual
do Livro, não escapou a Dreys o “traço aculturativo dessa
aventura, e neste passo leva sem dúvida grande vantagem
34 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3366
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
sôbre a intransigência preconceitual que podemos notar em
tantos autores inclusive Saint Hilaire”35.
Ao descrever sua visão sobre a província, Dreys36
terá impressões não somente do território como também do
elemento social que predomina no Rio Grande do Sul, nesse
contexto. Para ele
...o homem do Rio Grande é geralmente alto, robusto, bem apessoado, e suas feições viris nada perdem por serem quase sempre acompanhadas de uma cor alva, que faz sobressair a preta capilária e o avermelhado das faces, assemelhando-se a primeira vista aos habitantes das regiões montuosas do centro da França. (DREYS, 1961, p.11)
Com isso, Saint Hilaire confirmando as primeiras
impressões, irá concordar plenamente com Dreys. Para
Hilaire37 les hommes étaient généralement très blancs et
avaient des cheveuxet des yeux de la même couleur que les
femmes ; ils étaient grands, bien faits ; ils avaient de
l’aisance, et rien de cette molesse qui caractérise les
Mineurs.
Já Arséne, irá destacar em seu relato que os homens
habitantes dessa região tinham uma característica
significativa de ser apreciada. Na composição desse tipo
social, segundo seu relato, a vestimenta dos homens da
35 MEYER, Augusto. In: Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.Nota introdutória. 36 DREYS, Nicolau. Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.11. 37 SAINT HILAIRE. Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1936.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3377
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
campanha é mais rica que a dos gaúchos argentinos e
orientais. Consiste de sólidas botas, largas bombachas de
veludo azul-celeste, uma jaqueta de pano azul, um amplo
manto de pano e um chapéu de abas muito largas
levantadas dos lados, preso sob o queixo por um barbicacho
que termina em duas borlas.38
Em importante obra sobre a construção social do
gaúcho, intitulada História de uma Palavra, Augusto Meyer
irá dizer que:
Sintomática, por exemplo, é sua reação diante dos gaúchos de vida livre que vagueavam pelos campos da fronteira. Eram na maioria índios ou mestiços e viviam à margem da sociedade organizada, sem moral e sem religião. Muitos brancos haviam adotado os seus costumes, e na Capela de Alegrete, o modo de vida dos proprietários pouco diferia da vida sôlta desses mesmos Garruchos, ou Garuchos, ou Gahuchos, conforme a sua grafia. Mas o seu testemunho parece muito vago, as observações são imprecisas, refletindo certa incompreensão preconceitual do homem histórico e do meio39. (MEYER, 1957, p. 55-57)
O que levanta-se é que o surgimento do tipo social do
gaúcho somente será possível, dentro de um processo de
colonização americana. Os traços culturais predominantes
nos nativos, reais habitantes do território, somando aos
elementos culturais trazidos, principalmente pelos
38 ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Tradução de Teodomiro Tostes. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde,1949. p. 279. 39 MEYER, Augusto. História de uma palavra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1957. p. 55.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3388
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
espanhóis, é que constitui os traços culturais
predominantes no gaúcho.
Nesse contexto, considerando o livre trânsito na
fronteira, é que surge uma identidade cultural desse tipo
social. O fato de existir abundância em pastagens,
possibilitou que o gado, remanescente do período de
destruição das missões, fosse proliferando em abundância.
Na perspectiva de Nicolau Dreys, é importante
destacar o que, sob seu ponto de vista, chama sua atenção,
nesse caso na definição do habitante do território.
... os gaúchos aparecem geralmente sem mulheres e manifestam mesmo pouca atração para elas, felizmente para seus vizinhos, a quem sua multiplicação, acompanhada de desejos tumultuosos, poderia causar desassossêgo: formados origináriamente do contato com a raça branca com os indígenas, eles se recrutam incessantemente dos mesmos produtos, e ainda de todos os indivíduos que nessas imediações nascem, sem ordem e sem destino, com gôsto tão geral de uma fácil e de perfeita liberdade.40 (DREYS, 1961, p.160)
Com isso, Dreys trás presente o traço aculturativo na
formação do gaúcho, a pouca atração para as mulheres e,
principalmente, a idéia de liberdade. A imagem de gaúcho
aqui representada por Dreys torna-se interessante. A vida
desprendida e o pouco apego e interesse com as mulheres,
vem confrontar com a concepção criada em torno do mito 40 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.160.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
3399
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
gaúcho. A literatura regionalista, por exemplo, promove a
exaltação desse mito, colocando-se dentro da noção de uma
sociedade patriarcal, que fora desenvolvida no Rio Grande
do Sul, onde o gaúcho é apresentado como homem viril.
Assim percebe-se o conflito que há entre a descrição de
Dreys e aquilo com que o tradicionalista do século XX tenta
demonstrar como padrão de masculinidade.
Além disso, Dreys segue dizendo que sem chefes,
sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm da moral social,
senão idéias vulgares e, sobretudo uma sorte da probidade
condicional que os leva a respeitar a propriedade
condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem
os emprega, ou neles deposita confiança: entregues ao jogo
com furor, êsse vício, que parecem praticar como um meio
de encher o vácuo de seus dias, é a fonte dos roubos, e às
vezes das mortes que cometem. Joga o gaúcho tudo que
possui, dinheiro, cavalo, armas, vestidos, e sai do jogo
inteiramente ou quase nu41. Nesse parâmetro fica evidente o
arquétipo de liberdade vivido pelo gaúcho. A carência da
instituição de normatizações que regulamente a vida na
Província também deve ser enfatizada. Isso ocorre porque
sem lei a moral social do gaúcho é relacionada à
vulgarização de suas idéias bem como a atração por roubos
e constantes contrabandos na fronteira Brasil, Argentina e
Uruguai.
Auguste de Saint Hilaire, de 1816 a 1822, percorreu
o centro e o sul do Brasil, registrando em seus relatos de
viagens, publicados a partir de 1830, os costumes e as
41 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.160.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4400
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
condições de vida no Brasil. Chega ao Rio Grande do Sul em
meados de 1820 trazendo uma carta de apresentação da
corte, dirigida às autoridades locais, que lhe conferia o posto
de coronel, prerrogativa de que pouco se valeu, mas poderia,
dada as circunstâncias da época, ter sido de muita utilidade
ao longo roteiro que iria cumprir percorrendo 1.500
quilômetros, de carreta ou a cavalo durante nove meses.
Ao chegar ao Rio Grande do Sul, em sua viagem pela
Província, Hilaire irá dizer que “dada conhecida índole dos
gaúchos, é possível imaginar que, proclamada a
independência, aproveitaram-se os primeiros momentos de
desordem para a pilhagem do gado nas estâncias
portuguesas, e os portugueses a seu turno promoviam
arreadas nas estâncias espanholas”42.
Muitos estudos surgiram em torno da presença de
Saint Hilaire na Província. Sem dúvida, que seus relatos
foram imprescindíveis não só para conhecer aspectos da
flora rio-grandense, como para conhecer as configurações,
que sob seu olhar, esse território possuía. Sobre o tipo social
do gaúcho, ele desenvolverá um conceito interessante de ser
analisado. Ao relatar o contato que teve com um habitante
do território, e posteriormente sua impressão sobre o fato,
Hilaire43 descreveu:
Talvez tenha ele julgado que esse seria o melhor meio de se ver livre de mim; talvez tenha sido leviandade, falta de reflexão, negligência, e sou tentado a acreditar que
42 SAINT HILAIRE. Auguste Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1936, p.77. 43 Idem, p. 78.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4411
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
esse homem, apesar de ser branco, pertence aos habitantes dessa região que têm costumes semelhantes ao dos gaúchos. (HILAIRE, 1936, p. 78)
Outro depoimento, onde estão expressas as
primeiras impressões registradas sobre o tipo social do
gaúcho, é do viajante europeu, Felix de Azara, que por volta
de 1780 descreveu o tipo social platino. Madaline Nichols44,
que estudou a obra de Azara, dirá que:
Além do dito povo, há naquela região, e principalmente nas proximidades de Montevidéu e Maldonado, uma outra classe de gente, mui apropriadamente chamados gaúchos ou gaudérios. (...)Sua nudez, suas barbas crescidas, seu cabelo sempre despenteado, sua sujeira e brutalidade de sua aparência os tornam horríveis de ver. Por nenhum motivo ou interesse querem eles trabalhar para alguém, e além de serem ladrões, também raptam mulheres. E essas levam para os matos e vivem com elas em choças, abatendo gado bravio para seu sustento. (NICHOLS, 1953, p. 30).
Partindo da visão que Félix Azara desenvolverá sobre
o gaúcho, o que há de notoriedade é a representação de um
outro modelo de imagem, com alguns elementos que
aproximam o gaúcho platino do gaúcho rio-grandense. O
caráter depreciativo , em torno do tipo social do gaúcho
exposto por Nichols nos remonta a idéia de um elemento
social incivilizado, cujos traços característicos de barbárie
aparecem naturalmente. Porém, se considerarmos o relato
44 NICHOLS, Madaline Wallis. El Gaucho. Buenos Aires. Ediciones Peuser, 1953, p. 30.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4422
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
que os viajantes fizeram da Província, e mais
detalhadamente, a forma como caracterizaram a imagem do
tipo social do gaúcho, vamos perceber que o gaúcho aqui
apresentado como histórico é diferente do gaúcho
representado como tradicionalista.
IMAGÉTICA DO GAÚCHO: DEBRET E MOLINA
A representação do gaúcho do século XIX está
presente nos discursos escritos dos viajantes europeus, que
estando na Província, retrataram o modo de organização e
vida desse habitante. Além disso, um outro modelo
representativo, passando pela via da imagética, torna-se
imprescindível e deve ser analisado. A imagem construída
do gaúcho através da pintura nós dá outra dimensão
simbólica e cultural da representação desse tipo social.
Na perspectiva da História Cultural, Canabarro45
(2004) ressaltará que esta trabalha com as diferentes formas
de apropriação dos discursos de textos (verbais e não
verbais) e da produção do sentido, sendo diferenciado pelas
posições que os atores ocupam socialmente. Nesta
perspectiva, nos mostrando algumas dependências da vida
cultural, que aparecem nas diferentes formas de
apropriação, mediadas pela representação. Assim torna-se
claro o que os elementos descritos pelos viajantes do século
XIX queriam retratar e representar sobre o Rio Grande do
Sul.
45 CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura fotográfica no sul do Brasil: imagens de uma sociedade de imigração. 2004, 314 f. tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. p. 17.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4433
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Embora constituindo um texto não verbal, as
imagéticas sobre o gaúcho também são representadas nesse
contexto. Um elemento que merece destaque, considerando
essa noção, cujos escritos nos remetem a reconstruir a
identidade e a imagem do gaúcho sob a perspectiva dos
viajantes europeus, é justamente buscar qual a imagética
que o gaúcho representa. Para isso, buscamos na vasta obra
do pintor francês Jean Baptiste Debret, os pressupostos e
elementos que permitem-nos aproximar de uma forma mais
especifica e redirecionar o olhar sobre o gaúcho rio-
grandense, e na obra de Florêncio Molina Campos sobre o
gaucho platino. Porém, também se fará necessário investigar
como ocorre a evolução da indumentária rio-grandense. Isso
porque, a imagem e a conseqüente identidade do gaúcho,
estão ligadas a esta construção histórica e imagética.
A imagética que Debret nos dará sobre o gaúcho é
expressiva. Foi um pintor que esteve no Brasil com a Missão
Artística Francesa46. Chegou ao Rio de Janeiro em 1816,
dedicando-se ao ensino das artes e à organização da
Academia de Belas Artes, onde figura entre os alunos
fundadores da classe de pintura. Voltou à França em 1831,
onde pouco tempo depois publicou Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil. Contribuiu de modo decisivo para uma
história pictórica do Brasil urbano e escravocrata do início
do século XIX.
As fontes imagéticas permitem ir muito além das meras descrições, porque trazem
46 Missão Artística Francesa, grupo de pintores, escultores e arquitetos que dom João VI trouxe da França, em 1816, com a finalidade de desenvolver as atividades artísticas no Brasil e fundar uma escola de ciências, artes e ofícios.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4444
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
expressões de realidades vividas em outros tempos. Da mesma forma, devido a diversidade de informações que as fotografias apresentam, uma vez que estas registram distintas situações de vivências dos atores individuais e coletivos, possibilitam o entendimento das diferenças sociais dos grupos, revelando questões que dizem respeito à sua atuação em um determinado contexto histórico47. (CANABARRO, 2004, pg. 17).
Em suas telas, Debret retratou não apenas a
paisagem, mas sobretudo, a sociedade brasileira,
destacando a forte presença dos escravos. Ao regressar à
França em 1831, logo publicou o álbum Voyage pittoresque
et historique au Brésil, ou Séjour d’un artiste français au
Brásil depuis 1816 jusqu’en 1831 (1834-1839).
A seguir, algumas imagens coletadas da obra de
Debret, que visam representar imageticamente o tipo social
do gaúcho48.
ÍNDIO GUARANI CIVILIZADO
FIGURA 1
47 CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura fotográfica no sul do Brasil: imagens de uma sociedade de imigração. 2004, 314 f. tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. p. 17. 48 Obras disponíveis em DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, l989, v.2.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4455
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4466
CHARRUA CIVILIZADO
FIGURA 2
VIAJANTES DA PROVÍNCIA DO RIO
FIGURA 3
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ARMAZÉM DE CARNE SECA
FIGURA 4
As aquarelas de Debret, representadas aqui pela
imagética que o mesmo constrói sobre o gaúcho, vêm de
encontro com os depoimentos descritos pelos outros
viajantes europeus. Assim, a similaridade do gaucho platino
e do gaúcho lusitano é nítida em virtude da indefinição
fronteiriça e da semelhança do modelo econômico.
Na figura 1, percebemos que no centro da cena se
encontra um índio da tribo Guarani, que Debret, optou por
designar a imagem de “Índio Guarani Civilizado”. A idéia de
civilidade perpassa o fator aculturativo. Ou seja, o nativo
estar trajando vestes seguindo o padrão europeu e o modelo
imposto pelos colonizadores. Além disso, essa imagem
também representa, de como o cavalo torna-se
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4477
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
indispensável às atividades cotidianas. Algo curioso que está
nesta representação é o fato do índio estar com vestes de
estancieiro. Não era comum um nativo estar vestindo-se
dessa maneira durante o século XIX. O indicativo é que, o
Guarani representado, seja uma espécie de peão de
confiança de algum estancieiro, considerando suas
habilidades e destreza com a montaria.
O cavalo torna-se fundamental na constituição
econômica da Província. Ele que havia se proliferado em
abundância, fora trazido pelos espanhóis no processo de
colonização. Assim, também na figura 2 vamos perceber que
o cavalo se faz presente. Ainda é visível a quantidade de
adereços junto aos índios charruas. Boleadeiras, laços,
esporas, pala, etc. O detalhe está no chapéu de feltro que
até então era usado somente pelos estancieiros e
charqueadores. Percebe-se que em segundo plano, os aperos
de montaria estão ao chão e o cavalo está pastando
provavelmente cansado de mais um dia de serviço. Ao fundo
outros índios peões levando o gado a algum lugar.
Nessas imagens a percepção que temos sobre o tipo
social do gaúcho rio-grandense é que sob a visão de Debret,
esse elemento se constitui com base indígena. A imagem
representada é de um individuo trabalhador, interessado
com as atividades econômicas. De acordo Leenhardt49
(2006) enquanto documentarista Debret se revela ótimo,
mas como pintor ele não consegue captar e representar a
coerência do todo.
49 LEENHARDT, Jacques. Imagem e história em uma viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret: o enterro de um filho de um rei negro. In: LOPES, Antônio Herculano. História e linguagens: texto imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. p. 126.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4488
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
O que Debret vai enfocar na figura 3 é passagem de
alguns viajantes pela Província. Aqui fica evidente a
condição social como determinante. O tipo de chapéu usado
pelos indivíduos que estão acompanhando a senhora,
usando vestido longo à moda européia, é diferente dos
chapéus representados nas figuras 1 e 2. Outro fator é a
pessoa que vem logo atrás não estar montando um cavalo e
sim uma mula, diferente daquelas que aparecem em
primeiro plano.
A precisão das estruturas que organizam o ambiente
da figura 4 é interessante. À frente encontra-se um
indivíduo de origem indígena. Porém o que é representado
por Debret é uma espécie de venda. Pode-se perceber a
presença de inúmeros mantimentos necessários à
subsistência dos habitantes da Província, principalmente o
produto impulsionador da economia rio-grandense durante
o século XIX: o charque.
Outro fator que merece destaque, diz respeito à
indumentária do tipo social predominante no Rio Grande do
Sul. Tendo a idéia da representação imagética de Debret
sobre a Província, faz-se necessário destacar como o tipo
social do gaúcho veste-se.
Um dos elementos constituidores da imagem e
conseqüentemente da identidade do tipo social do gaúcho,
perpassa pelo seu modo de vestir. A história cultural por
sua vez busca representar esse padrão de vestimenta como
elemento importante de investigação e interpretação
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
4499
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
histórica. De acordo com Fagundes50 (1985) na “evolução da
Indumentária Gaúcha”, há trajes fundamentais que
constroem uma identificação ao gaúcho, e, a cada um deles
corresponde uma indumentária feminina.
Na figura 5, vamos perceber o tipo de vestimenta que
alguns índios após o primeiro contato com os europeus
passaram a utilizar. Há clareza nos traços aculturativos
dessa imagem. Ou seja, o índio já possui o laço e as
boleadeiras como instrumento de trabalho. Já a índia,
aparece nessa representação com roupas seguindo modelo
europeu. Isso demonstra a proximidade com a cultura
européia dominadora aos povos nativos na América. Outro
aspecto que merece destaque está no elemento do
cristianismo presente. A cruz ao peito representa a aceitação
de um deus com moldes cristão/catolicista. Ainda é
interessante verificar a utilização do chiripá pelo homem.
Era uma espécie de saia, constituída por um retângulo de
pano enrolado na cintura, até os joelhos. Isso ajudava na
montaria.
Assim, podemos ressaltar que de peças da
indumentária ibérica, de peças da indumentária indígena, o
gaúcho foi constituindo sua própria indumentária. E
inevitavelmente a construção de sua identidade cultural
está diretamente ligada a construção de sua imagem.
Segundo Fagundes (1985), os Missioneiros se
vestiam, conforme severa moral jesuítica. Passaram a usar
os calções europeus e em seguida a camisa, introduzida nas 50 FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1985.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5500
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
missões pelo Padre Antônio Sepp. Usavam, ainda, uma peça
de indumentária não européia, proximamente indígena - "el
poncho". Essa peça de indumentária não existia no Rio
Grande do Sul antes da chegada do branco, pois os nossos
índios pré-missioneiros não teciam e nem fiavam.
A seguir apresentam-se imagens coletadas, que
abordam a evolução das vestimentas no estado do Rio
Grande do Sul, onde as mesmas aparecem em seqüência51.
TRAJE INDÍGENA
FIGURA 5
51 Iconografia disponível em FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,1985.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5511
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5522
PEÃO DAS VACARIAS E CHINA DAS VACARIAS
(1750-1820)
GAÚCHO COM CHIRIPÁ FARROUPILHA E MULHER
GAÚCHA (1820-1865)
PATRÃO DAS VACARIAS E ESPOSA
CHARQUEADOR E ESTANCIEIRA GAÚCHA
(1750-1820) (1750-1820)
FIGURA 7FIGURA 6
FIGURA 8 FIGURA 9
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
A evolução da imagem do gaúcho varia de acordo
com a adaptação das vestes. Considerando a influência
européia e, posteriormente a condição econômica e social
predominante no Rio Grande do Sul da época, é que vamos
perceber algumas variáveis. A primeira variável está nas
figuras 6 e 7. Possuímos nessas imagens a representação da
elite estancieira do Rio Grande do Sul. Homens e mulheres
com modelos europeus, adaptados socialmente ao clima e ao
elemento econômico preponderante na Província.
Compreendemos que evidentemente, o fator
econômico do Charqueador e do denominado Patrão das
Vacarias sobressai no que concerne à imagética
representada. Trajava-se basicamente à européia, com a
braga e as ceroulas de crivo. Segundo Fagundes52 (1985),
passou a usar também a bota de garrão de potro53, invenção
gauchesca típica. Igualmente o cinturão-guaiaca, o lenço de
pescoço, o pala indígena, a tira de pano prendendo os
cabelos, o chapéu de pança de burro, etc. Em relação à
figura feminina, Fagundes segue dizendo que a mulher
desse rico estancieiro, usava botinhas fechadas, meias
brancas ou de cor, longos vestidos de seda ou veludo,
botinhas fechadas, mantilha, chale ou sobrepeliz, grande
52 FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,1985. 53 As botas mais comuns eram as de garrão-de-potro, que eram retiradas de vacas, burros e éguas (raramente era usado o couro de potro, que lhe deu o nome). Essas botas eram lonqueadas ou perdiam o pêlo com o uso. Em uso, as botas não duravam mais de 2 meses. Normalmente, eram feitas com o couro das pernas traseiras do animal que dão botas maiores. As que eram tiradas das patas dianteiras, muitas vezes eram cortadas na ponta e no calcanhar, ficando o usuário com os dedos do pé e o calcanhar de fora. Acima da barriga da perna, era ajustada por meio de tranças ou tentos.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5533
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
travessa prendendo os cabelos enrolados e o infaltável leque.
Ou seja, os padrões europeus preponderaram na construção
dessa imagem de gaúcho.
Porém ressalta-se que esse tipo de vestimenta e
conseqüente imagem criada, é restringida a um número
mínimo de rio-grandenses. Um elemento que vem em
contraposição a condição social já apresentada é a
representação do peão. O peão é o responsável pelo trabalho
diário com o gado, dando fundamentação econômica à
Província. Nesse contexto a figura 8 nos mostra que tipo de
imagem esse peão representa. Segundo Fagundes, o traje do
peão das vacarias destinava-se a proteger o usuário e a não
atrapalhar a sua atividade - caçar o gado e cavalgar.
Normalmente, este gaúcho só usava o chiripá primitivo54 e
um pala enfiado na cabeça.
E segue descrevendo que o chiripá, em pouco tempo,
assumiria uma cor indistinta de múgria - cor de esfregão. À
cintura, faixa larga, negra, ou cinturão de bolsas, tipo
guaiaca, adaptado para levar moedas, palhas e fumo e, mais
tarde, cédulas, relógio e até pistola. Ainda à cintura, as
infaltáveis armas desse homem: as boleadeiras, a faca
flamenga ou a adaga e, mais raramente, o facão. E sempre à
mão, a lança - de peleia ou de trabalho. Em relação à
camisa, quando contava com uma, era de algodão branco ou
riscado, sem botões, apenas com cadarços nos punhos, com
gola imensa e mangas largas. Pala55, não faltava,
54 Pano enrolado como saia, até os joelhos, meio aberto na frente, para facilitar a equitação e mesmo o caminhar do homem. 55 Tem origem indígena. Pode ser de lã ou algodão, quando proteje contra o frio, ou de seda, quando proteje contra o calor. É sempre retangular com franjas nos quatro lados. A gola do pala é um simples talho, por onde o homem enfia o pescoço.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5544
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
comumente, o de lã - chamado "bichará" - em cores
naturais, e mais raramente o de algodão e o de seda que aos
poucos vão aparecendo. Logo, também surge o poncho56
redondo, de cor azul e forrado de baeta vermelha.
O peão das vacarias, representado na figura 8, não
era de muito luxo. Só usava ceroulas de crivo nas
aglomerações urbanas. Ademais, andava de pernas nuas
como os índios. À cabeça, usava a fita dos índios, prendendo
os cabelos - que os platinos chamam "vincha" - e também o
lenço, como touca, atado à nuca.
Como podemos perceber nessa mesma imagem, a
mulher vestia-se pobremente: nada mais que uma saia
comprida, rodada, de cor escura e blusa clara ou desbotada
com o tempo. Pés e pernas descobertas, na maioria das
vezes. Por baixo, apenas usava bombachinhas, que eram as
calças femininas da época.
De acordo com Antônio Augusto Fagundes há uma
outra variante no século XIX, em relação à constituição da
indumentária rio-grandense. Segundo ele, será abdicado os
padrões de vestimentas já relatados e incorporado ao que ele
chamará de “Traje Gaúcho”. Isso ocorrerá no contexto da
Revolução Farroupilha. Ou seja, o homem utilizando Chiripá
Farroupilha57 e a mulher Saia e Casaquinho como
56 Tem origem inteiramente gauchesca. É feito, invariavelmente, de lã grossa. Quase sempre é azul escuro, forrado de baeta vermelha, mas também existem de outras combinações de cores. O poncho tem a forma circular ou ovalada. Só preteje contra o frio e a chuva. A gola é alta, abotoada e há um peitilho na frente do poncho. 57 Cabe ressaltar que as botas são, ainda, a bota forte, comum, a bota russilhona e a bota de garrão, inteira ou de meio pé. À cintura, faixa preta e guaiaca, de uma ou duas fivelas. Camisa sem botões, de gola, e mangas largas. Usavam jaleco, de lã ou mesmo veludo, e às vezes, a jaqueta, com
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5555
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
verificamos na figura 9. Este período é dominado por um
chiripá que substituiu o anterior, que não é adequado à
equitação, mas para o homem que anda a pé. O chiripá
dessa nova fase é em forma de grande fralda, passada por
entre as pernas. Este adapta-se bem ao ato de cavalgar e
essa é certamente a explicação para o seu aparecimento.
Com isso, fica claro que o Chiripá Primitivo era de origem
indígena.
A mulher, nesta época, usava saia e casaquinho com
discretas rendas e enfeites. Tinham as pernas cobertas com
meias. Usavam cabelo solto ou trançado, para as solteiras e
em coque para as senhoras. Os sapatos eram fechados e
discretos. Como jóias apenas um camafeu ou broche. Ao
pescoço vinha muitas vezes o fichú.
Assim, podemos perceber como ocorre a tentativa da
construção de uma imagem de gaúcho, seja pela visão que
Debret obtém do Rio Grande do Sul ou pela transformação
que a indumentária gaúcha obteve através do tempo. Fica
evidente que, os elementos que ajudarão na construção da
imagem de gaúcho rio-grandense, perpassam pelo fator
aculturativo de índios e europeus, ajudando a construir a
sua identidade.
Após analisado a visão que Debret possui da
Província e, como evolui a imagem do gaúcho rio-grandense
em relação a sua indumentária, dentro desse contexto
torna-se interessante verificar brevemente como se constitui
gola e manga de casaco, terminando na cintura, fechado à frente por grandes botões ou moedas.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5566
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
o tipo social do gaucho platino, considerando as
proximidades da fronteiras e a mesma matriz cultural.
GAUCHO EM FINAIS DO SÉCULO
FIGURA 10
O gaucho platino por sua vez apresentará
semelhanças culturais ao gaúcho rio-grandense conforme a
figura anterior58. Segundo Ibáñez,59 (1964), gaucho fruto de
la mezcla de sangres española e indígena, comenzó a forjar
su original personalidad en las primitivas vaquerías de la
colonia. Allí aprendió a desempeñar las tareas de ganadería
con singular destreza y fundió su cuerpo con el de su
inseparable compañero: el caballo. Pasaba la mayor parte de
su vida sobre el lomo de su pingo, por eso siempre detestó la
agricultura, que lo obligaba a estar de pie.
58 Iconografia disponível em IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel, 1964 p. 59. 59IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel, 1964. pg.48.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5577
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
A impressão desenvolvida em relação a sua conduta
social complementa os depoimentos dos viajantes europeus
no Rio Grande do Sul.
La extensión de la llanura pampeana fue la que terminó de moldear su conducta. Es independiente, de vida errante y costumbres sencillas. Esa libertad con que enfrenta la vida le traería aparejados muchos disgustos. Por mucho tiempo se lo marginó, llegándole su reivindicación con el paso del tiempo, al punto de convertirse la palabra gaucho en sinónimo de rectitud de carácter y nobleza de corazón60. (IBANEZ, 1964,p.56)
A representação imagética sobre o gaúcho platino
está presente na obra de Florencio Molina Campos61. Fue
un dibujante y pintor conocido por sus típicos dibujos
costumbristas de la pampa argentina. Sus dibujos y
pinturas rememoran con un toque humorístico típicas
viñetas gauchescas. De aire caricaturesco y, a menudo,
"naif", su dibujo, inspirado principalmente en el mundo
gauchesco, refleja a un observador agudo de la realidad
nacional.
60 IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel, 1964. pg.56. 61 Disponível em http://www.molinacampos.org
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5588
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Na seqüência, algumas representações da obra de
Florencio Molina Campos, onde constrói uma imagem do
gaucho platino62.
JINETEANDO
FIGURA 11
P'AL POBLAO
FIGURA 12
62Iconografia disponível em http://www.me.gov.ar/efeme/tradicion/lamela.html http://www.molinacamposzg.com.ar/obrasdispo.htm
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
5599
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
YO TAMBIÉN FUÍ COMO ESE LOCO
FIGURA 13
HUAMPELEN
FIGURA 14
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6600
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
De acordo Vellinho63 (1970) pontos de parecença
entre tipos sociais do gaúcho rio-grandense e do gaúcho
platino existem, sem dúvida, mas se restringem às
peculiaridades decorrentes do mesmo sistema básico de
atividades – o pastoreio, desenvolvido em um cenário físico
semelhante e parcialmente fundado, em ambos os lados, na
experiência e nas práticas do campeador nativo.
Reverbel64, também destaca os elementos de
proximidade e disparidade entre o gaúcho rio-grandense e o
gaúcho platino. Para ele
Não há identidade entre o gaúcho rio-grandense e o gaúcho platino. Trata-se de tipos sociais diferenciados, histórica, sociológica e culturalmente. Mas há pontos de aproximação, aspectos semelhantes, contatos, interpenetrações. Afinal, a família é a mesma. Ambos se formaram e dependem da sociedade pastoris, geograficamente contíguas. (REVERBEL, 1996, p.103)
Os depoimentos dos viajantes, com explicações e
aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e
mais enriquecida compreensão do passado. A representação
imagética de Debret remete a forma, que ele, viu e
interpretou. A imagem que Molina Campos representa do
gaucho platino, nada mais é do que produto de sua
perspectiva artística. Temos que cuidar, porém, para não
63 VELLINHO, Moysés. Capitania d’el Rei. Porto Alegre: globo, 1970, p. 144. 2 ed. 64 REVERBEL, Carlos. O gaúcho: aspectos de sua formação no Rio Grande e no Rio da Prata. Porto Alegre: L&PM,1996, p. 103.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6611
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
cairmos na armadilha de aceitarmos as suas descrições e
informações como sendo a própria e única realidade.
Elas se constituem de representações, reinvenções de
realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. São
imagens que se constituem em representações do real,
elaboradas a partir de componentes ideológicos de pessoas
dotadas de equipamentos culturais próprios e que trazem
um patrimônio anterior que condiciona o modo de observar
e entender o empírico.
Na visão dos viajantes, no Rio Grande do Sul, como
um todo, era motivo de estranhamento. As diferentes regiões
eram vistas através do filtro de sua própria cultura, mas
eles escreveram crônicas sobre os aspectos vistos ou vividos
bastante significativos para pensar o contexto do período.
Esses relatos foram muitas vezes desprezados pelos
historiadores por não serem construídos cientificamente,
por não apresentarem provas documentais. Entretanto, nos
últimos anos, passou-se a valorizar estes depoimentos como
testemunhos de época. Assim, os relatos dos viajantes, base
desta discussão, foram escolhidos por apresentarem pontos
de vista semelhantes, porém com significados claros com
relação ao gaúcho.
A imagética que Debret e Molina Campos constroem
sobre o gaúcho e as crônicas escritas por Saint Hilaire,
Arsène Isabelle e Nicolau Dreys mostram a visão de homens
oriundos de uma outra realidade. Referendados por outros
parâmetros de historicidade, que mostram no exterior certa
imagem da região meridional da América do Sul e levam as
discussões e debates sobre as condições de trabalho, de
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6622
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
cultura e do desenvolvimento do Rio Grande do Sul . Dessa
forma o gaúcho constrói sua representação. Tal simbolismo
se fortalecerá tornando-se ainda mais significativo, a partir
da segunda metade do século XX, quando busca-se através
de uma tentativa saudosista reviver o passado através de
um movimento tradicionalista ocorrendo uma reinvenção do
gaúcho.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6633
DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
644
O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE GAÚCHA
6
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
GAÚCHA
Dentre as perspectivas da história cultural, a noção
de identidade possui um papel importante. A abrangência
de seu significado, entre tantos aspectos, demonstra como
ela define os indivíduos. A construção identitária de
determinado povo e, por conseguinte, determinada
sociedade, vem representar elementos característicos de
suas manifestações culturais. Então, cultura e identidade
possuem um vínculo específico no que se refere à
construção de um modelo social.
No caso do Rio Grande do Sul, ocorre de forma
emblemática a tentativa de (re) surgimento de uma
identificação com o passado. Essa edificação vem de
encontro com os postulados que nos levam a refletir sobre a
origem e essência do gaúcho histórico. Este, porém,
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6655
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
apresenta uma identidade que segundo Cuche65(2002),
permite que o indivíduo se localize em um sistema social e
seja localizado socialmente. Contudo, ocorrerá um processo
que tende a transformar a identidade do tipo social do
gaúcho já apresentado.
No âmbito da construção de uma identidade gaúcha
torna-se pertinente destacar a contribuição do estudo de
Stuart Hall sobre as identidades culturais na pós-
modernidade. Para ele a identidade é um conceito histórico e
móvel. Seu caráter de historicidade e de mobilidade está
presente na construção de uma importante configuração na
tentativa de entender o sujeito moderno. A identidade, no
entanto pode ser classificada como uma forma de
representação. Para isso ele destaca três noções de
identidade:
a – sujeito do Iluminismo; b – sujeito sociológico; c - sujeito pós-moderno. A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com as outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava... O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu-real”, mas este é formado e modificado num diálogo continuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa concepção sociológica,
65 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC,2002. p.177.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6666
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” entre o mundo pessoal e o mundo privado. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo, que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.66(HALL, 2001,p.10-12)
A partir da classificação que Hall estabelece à
identidade, é que podemos compreender como a identidade
do gaúcho processa sua construção. Esse valor do passado
representado de forma simbólica prepondera por meio de
um movimento saudosista a amplificação e a dimensão
social da representação da imagem do gaúcho. Isso ocorre
porque o sujeito se define por meio desta identidade e,
através dela inicia um processo de criação desenvolvendo
modelos de comportamentos. Tudo isso decorre na
constituição de um sujeito que cria a identidade em si e a
identidade para si.
Considerando os escritos e as imagéticas já
descritas, que criam uma imagem de gaúcho, torna-se útil
verificar como ocorre a tentativa de consolidar
definitivamente uma identidade ao habitante do Rio Grande
do Sul. Para efetuar a consolidação da identidade rio-
grandense, far-se-á necessário compreender o processo que
levará a essa construção.
66 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.10-12.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6677
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Podemos caracterizar vários momentos e movimentos
que levam a edificação da identidade gaúcha, para
finalmente se constituir a identidade tradicionalista. A
construção de uma identidade dentro desse contexto visa
representar um modelo de sujeito e de vivência estabelecida
em um contexto histórico, defendido como tradicional.
Ao refletir sobre a condição do Rio Grande do Sul no
final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX,
verificamos a influência da literatura, tanto platina quanto a
brasileira, que conduzem à construção romantizada do mito
gaúcho. Essa concepção fornecerá moldes à constituição do
movimento tradicionalista, e conseqüentemente, a exaltação
de um passado que não existiu da forma como os
tradicionalistas identificam.
Aliado à influência da literatura, verificaremos o
surgimento das primeiras entidades nativistas, que visavam
à preservação e a conservação dos valores passados. A
imagem de gaúcho reconstruída nesse contexto como
veremos adiante, está intimamente ligada à construção do
mito: o herói defensor das fronteiras, o homem de honra.
Parecendo-nos que haverá uma ressignificação de sua
identidade.
Além disso, a organização política desenvolvida pelo
estado do Rio Grande do Sul, é importante na construção de
uma nova identidade regional. Pois alicerçado com ideais do
positivismo comtiano e a política castilhista/borgista, nos
dão a dimensão dos elementos de conservação cultural
presentes na sociedade rio-grandense. Isso tudo
impulsionará criando algumas condições para a eclosão do
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6688
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
movimento tradicionalista organizado que terá seu ponto
inicial no pós Segunda Guerra Mundial.
No entanto, considerando a imagem de gaúcho,
também será pertinente desenvolver uma análise da
historiografia rio-grandense, onde Moysés Vellinho, ao
dirigir a Revista Província de São Pedro, torna-se o
intelectual mais influente na defesa de um gaúcho rio-
grandense em contraposição do gaucho platino.
A INFLUÊNCIA LITERÁRIA: PLATINA E BRASILEIRA
Em relação ao tipo social do gaúcho já caracterizado,
podemos partir da premissa básica de que o mesmo sofrerá
alterações quanto à concepção de sua identidade. Entre
tantos fatores que condicionam que o gaúcho histórico, já
apresentado, seja gradualmente “substituído” ou,
reconstruído o seu sentido, está a literatura. No âmbito
literário, enfoca-se tanto a influência que a literatura
platina, principalmente com a obra de José Hernandez,
intitulado “El Gaúcho”, quanto à literatura brasileira. Esta,
através de um processo interessante de ser analisado, irá
proporcionar as reais dimensões imaginárias, na construção
mitológica de bravura e honradez ao gaúcho.
A construção da imagem do gaúcho perpassa
indiscutivelmente pela literatura. A romantização do gaúcho
é um elemento fundamental, para compreender como essa
imagem é reconstruída e refigurada. Sendo que, a partir
dessas pressuposições é que o tradicionalista do século XX
constituirá sua identidade. Construindo assim uma
representação do gaúcho.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
6699
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Dentro da fase romântica da literatura brasileira,
vamos encontrar o escritor José de Alencar. Ele através de
seus escritos, vai desenvolver uma visão do regionalismo
brasileiro. Com isso, escreverá uma obra intitulada “O
Gaúcho”67, tratando evidentemente, sobre o habitante da
então Província do Rio Grande do Sul.
Sua obra no final do século XIX, sofrerá críticas
severas, principalmente ao fato de desenvolver uma
narrativa, sem ao menos conhecer o Rio Grande do Sul e
fundamentalmente a figura do gaúcho. Tanto que, quando
foi publicado, em 1870, o romance “regionalista” do autor
cearense provocou indignação aos escritores nativistas
gaúchos.
Em contraposição a esta tentativa de caracterização
do habitante do estado pelo escritor cearense, no Rio
Grande do Sul, ocorrerá a indignação de alguns escritores e
intelectuais. Dentre eles destaca-se a figura de Apolinário
Porto-Alegre e Simões Lopes Neto, que também na
literatura, elevarão a imagem de um gaúcho semelhante ao
de José de Alencar, porém, a notória diferença será a
exaltação dada.
Esses elementos são importantes de destacar, pois a
obra de Apolinário Porto-Alegre foi influenciada por José de
Alencar. Apolinário, no entanto segue as mesmas linhas
literárias de Alencar. Já em “O Vaqueano”68, ele pretende
analisar o temperamento do gaúcho tradicional, cujos
indícios identitários verificamos no capitulo anterior. Assim, 67 ALENCAR, José de. O gaúcho. São Paulo : Ática, 1998. 68 PORTO-ALEGRE, Apolinário. O vaqueano. Editora Três. Rio de Janeiro, 1973.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7700
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ele coloca em cena uma nova imagem com uma
representação ressignificada do vaqueano rio-grandense.
Esse romance de Apolinário Porto-Alegre constitui-se
com grande importância histórica, pois é considerado o
marco inicial da literatura sul-rio-grandense. Devido a isso,
surgiriam outros escritores seguindo a mesma linhagem,
estilo e linguagem. Entre os quais destaca-se Simões Lopes
Neto.
Guilhermino César69, na sua História da Literatura
do Rio Grande do Sul, conclui da seguinte maneira o
capítulo dedicado a Apolinário Porto-Alegre:
É de extraordinária simpatia esse professor e jornalista provinciano, empenhado em realizar algo de substancialmente nativo, aprofundando as ligações da arte com o meio e a experiência de vida do seu torrão. Raras vezes, na história do pensamento brasileiro, ter-se-á visto um homem tão bem dotado para tarefas tão diversas. Interessado por todos os aspectos da cultura, não chegou, é certo, a produzir obra harmoniosa. Nele, o que impressiona e domina é o conjunto. E pelo conjunto de seus trabalhos - que apontaram rumos à literatura regional talvez mais orgânica do Brasil - Apolinário Porto-Alegre há de ser lembrado como um dos grandes vultos nacionais.70 (CÉSAR, 1956, p 56)
A obra de José de Alencar sobre o gaúcho rio-
grandense repercute e denota ampla repercussão nacional.
69 CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul. 1737-1902. Porto Alegre: Globo, 1956. 70 Idem, p. 56.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7711
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Logo após Apolinário Porto-Alegre, inspirado no modelo e no
estilo literário, publicou O Vaqueano, mas acrescentou-lhe a
observação direta do meio. Ou seja, o cotidiano da vida do
gaúcho rio-grandense. Ele é, portanto, o legítimo fundador
do regionalismo literário rio-grandense, que nesse momento
deixa de ser mero sentimento coletivo e se expressa como
simbologia expressiva na ressignificação do gaúcho.
Com base em “O vaqueano”, chegamos a observação
de que sua figura, descrita por Apolinário, se “fizera
indispensável ao contexto social do pampa: funcionava como
guia de viajantes e forasteiros por conhecer os caminhos e
atalhos, possuidor de habilidade e destreza, ignorante do
perigo” 71.
Assim, o regionalismo gaúcho muito deve a
Apolinário Porto Alegre. A construção de seu romance legou
um tema e inaugurou uma tradição. Tradição essa que será
enfatizada de forma significativa pelo Movimento
Tradicionalista no transcurso da segunda metade do século
XX. Porém as bases começam a se constituírem. Isso ocorre,
porque o personagem do vaqueano sintetiza todos os
atributos do “guasca”. Isso também, será enfatizado de
forma interessante pelo sucessor dessa linhagem literária:
Simões Lopes Neto.
Se Apolinário lança as bases do regionalismo rio-
grandense, é Simões Lopes Neto quem amplifica esse estado:
71 PORTO-ALEGRE, Apolinário. O vaqueano. Editora Três. Rio de Janeiro, 1973.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7722
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
É necessário reconhecer nos Contos gauchescos e nas Lendas do Sul uma característica documentária que vai da linguagem dialetal aí incorporada até a fixação de um código ético específico, passando pelo registro histórico e a fotografia duma tipologia social. Tudo isto concorre para a definição do texto dentro do regionalismo. Tal era a tendência predominante não só no Rio Grande do Sul, mas em grande parte da literatura brasileira neste período. O naturalismo de Euclides da Cunha, após a publicação de Os sertões, em 1902, abrira uma vertente (...) a literatura assumira programaticamente a documentação e a interpretação da realidade circundante. No caso de Simões Lopes Neto acrescentou-lhe ainda a ideologia que, desde o romantismo, propiciara ao gaúcho uma aura heróica. Na convergência desses elementos culturais surgiu Blau Nunes, o vaqueano, no pórtico dos Contos gauchescos.72 (HEIDRICH, 2005, p. 215).
Visto hoje, como um dos expoentes do Movimento
Tradicionalista no Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto
manteve no universo imaginário de sua ficção, o modelo
deste gaúcho tradicional, idealizado no imaginário popular e
por todos os escritores regionalistas que o precederam. Em
sua obra faz uma minuciosa descrição de usos, costumes e
hábitos que identificam uma região culturalmente
demarcada, a campanha.
72 HEIDRICH, Álvaro Luiz. Aspectos culturais da construção da regionalidade gaúcha. In: Rio Grande do Sul – Paisagens e Territórios em Transformação. p. 215 – 232. Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2005.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7733
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Não é lícito, portanto, sonegar a literatura de Simões Lopes Neto à tradição do regionalismo. Essa tradição afirmou-se na própria formação de uma província insulada por muito tempo das grandes transformações ocorridas no centro do país durante o século XIX e envolvida quase sempre nas guerras em defesa da fronteira ou em revoluções internas que alcançaram o nosso século. Confirmou-se na produção literária, precedente à ficção simoniana, onde é possível localizar a herança de José de Alencar transmitida nas páginas d'O gaúcho para a geração romântica do Partenon Literário e mantida desde O vaqueano de Apolinário Porto Alegre até Ruínas vivas de Alcides Maya. Homem da cidade, portador de refinada cultura, o escritor pelotense conhecia muito bem estes antecedentes. A compilação do cancioneiro, em 1910, mergulhou-o, por outro lado, no folclore e na raiz popular. Vamos encontrá-lo agora na confluência destes fatores: ele é um caudatário do sentimento e da tradição instaurados pelo regionalismo.73 ( CHAVES, 1982, p.12).
Quanto à contribuição da literatura platina na
construção do gaúcho, podemos considerar que a obra de
José Hernandez, representa as bases da formação do tipo
social do gaucho. No século XIX, escreve Martín Fierro, um
poema narrativo da vida de um gaúcho. Foi publicado com o
título “El gaucho Martín Fierro”, e continuação, “La Vuelta
de Martín Fierro”. Constitui-se como uma importante obra
literária de grande popularidade na Argentina, dando as
bases para a construção da identidade do gaucho platino,
onde muitos desses aspectos são apropriados pelos
73 CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo & literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 12
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7744
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
regionalistas rio-grandenses na construção de sua
literatura.
Ao longo de toda a obra “Martín Fierro”74 de
Hernándes, o que vemos acontecer é a apresentação em
forma de testemunho por “el gaucho” que vive e revive a
história real da Argentina. Colocando como evidência a
memória nacional e a formação deste como conseqüência de
um processo histórico, verificamos também a busca da
construção da identidade nacional Argentina.
Alguns trechos desse poema nos dão à dimensão
caracterizante do gaucho platino.
(Trecho do Poema)
No me hago al lao de la güeya
aunque vengan degollando;
con los blandos yo soy blando
y soy duro con los duros,
y ninguno en un apuro
me ha visto andar tutubiando.
(Tradução)
Não saio fora dos trilhos
nem que venham degolando;
c'os brandos sou sempre brando,
e sou duro com os duros,
e ninguém, noutros apuros,
me viu andar titubeando.
En el peligro qué Cristo!
El corazón se me enancha.
pues toda la tierra es cancha,
y de esto naides se asombre:
el que si tiene por hombre
donde quiera hace pata hancha
Ante o perigo — por Cristo! —,
meu coração não remancha:
qualquer chão p 'ra mim é cancha;
e nisso senztido tomem:
quem se tenha por bem homem
faz pé firme e não se plancha.
74 Hernández, José. Martín Fierro. Tradução de J. O. Nogueira Leiria, Porto Alegre:Martíns Livreiro, 1991.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7755
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Soe gaucho, y entiéndanló
Como mi lengua lo esplica:
para mi la tierra es chica
y pudiera ser mayor;
ni la víbora me pica
ni quema mi frente el sol.
Sou gaúcho! — Entendam bem
como meu canto o explica:
a terra ante mim se achica
e pudera ser maior;
nem a víbora me pica,
nem me queima a fronte o sol.
Nací como nace el peje
en el fundo de la mar:
naides puede quitar aquello que
Dios me dió:
lo que al mundo truje yo
del mundo lo he de llevar.75
Nasci como nasce o peixe
nas profundezas do mar;
ninguém me pode tirar
aquilo que Deus me deu:
o que aqui tenho de meu,
do mundo o hei de levar.
Nesse contexto ele é representado por Martín Fierro
como um gaucho sofredor que vive entre a violência e a
crueldade, onde possui autoridade própria sobre sua vida e
seus interesses.
Certamente o século XIX, que transformou o “el
gaucho” em figura mítica do personagem não ocorreu por
acaso. A inclusão de Martín Fierro no universo mítico da
identidade Argentina, surge mais do que uma figura, como
um símbolo épico, que retrata os sentimentos do herói
gaúcho, a revolta contra a civilização dominante e a
nostalgia do herói diante da Planície dos Pampas.
É possível compreender esse fenômeno, justamente
através do valioso instrumento cultural, representado pela
75 Hernández, José. Martín Fierro. Tradução de J. O. Nogueira Leiria, Porto Alegre: Martíns Livreiro, 1991.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7766
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
literatura. As obras narram o caráter independente, heróico
e sacrificado dos habitantes dos pampas, e os situam como
os verdadeiros representantes do caráter argentino. Para os
escritores da época, o gaúcho deixava de ser um homem
“fora da lei” para converter-se em herói nacional, buscando
uma interpretação da história Argentina. E no Rio Grande
do Sul, não tentarão fazer o mesmo com o gaúcho rio-
grandense?
PRIMEIRAS ENTIDADES NATIVISTAS E O POSITIVISMO
Antes de examinarmos a constituição do Movimento
Tradicionalista organizado, faz-se necessário investigar
como ocorrem as primeiras manifestações da exaltação da
cultura rio-grandense, como o passado é tentado a ser
reconstituído no âmbito presente.
No final do século XIX e na primeira metade do
século XX é que essas entidades surgirão com um propósito
único: exaltar a imagem do gaúcho histórico ressignificando
sua identidade. Isso tudo será possível, compreendendo a
dimensão da política positivista impregnada pelos
governantes do Rio Grande do Sul no princípio da
República.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7777
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Esse ciclo de entidades, 76 segundo Ruben Oliven77,
tanto o Partenon Literário como o Grêmio Gaúcho, tinham a
preocupação com a questão da tradição e da modernidade.
Ao mesmo tempo em que tinham como modelo o que se
considerava mais avançado na Europa culta (o positivismo
comtiano)78, o Partenon evocava a figura do tradicional
gaúcho e louvava seus abalados valores.
Mas o mesmo não se projetou como elemento de
composição do nacional. Além de, a história gaúcha
valorizar fatos não comuns às demais regiões brasileiras,
como por exemplo, o contato fronteiriço, além de o estado
sulino opor-se politicamente a duas importantes regiões, as
outras formulações eram de cunho mais apropriados ao
nacionalismo no âmbito da cultura. Apresentavam
elementos de tradição comuns, antepunham-se como elo de
preservação e entendimento, e projetavam a expansão do
moderno, da cidade e do industrialismo.
76 A primeira tentativa de organização do tradicionalismo surge em 1898 com a criação do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, por João Cezimbra Jacques. Alguns autores afirmam que Cezimbra Jacques agiu influenciado pelo Partenon Literário que reunia a elite cultural de sua época. Outros clubes gaúchos são fundados pelo interior do Estado. Segundo Hélio Mouro Mariante em História do Tradicionalismo Rio-grandense, foram a União Gaúcha de Pelotas, Centro Gaúcho de Bagé, Grêmio Gaúcho de Santa Maria, Sociedade Gaúcha de Lomba Grande de São Leopoldo (hoje pertencente ao município de Novo Hamburgo) e Clube Farroupilha de Ijuí. Segundo Moro Mariante este sentimento nativista impregnado na criação das entidades de preservação do regionalismo tem a influência do Uruguai que conta com sua entidade tradicionalista La Crioula, fundada por Elias Regules, em 1894. 77 OLIVEN, Ruben. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Vértice: ANPOCS, 3(9): 3-14. fev. 1989 78 A idéia de conservar melhorando, estava presente nos discursos oficiais dos políticos rio-grandenses. Tudo isso faz com surja esse movimento embrionário do Movimento Tradicionalista. Tanto que ocorre a defesa, no jornal “A Federação” por parte do presidente do estado o Sr. Julio Prates de Castilhos de que 20 de setembro seria o dia do gaúcho.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7788
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
O Rio Grande do Sul ofereceu a distinção cultural
para compor a coexistência e em termos de contribuição
para o futuro firmou-se nos princípios republicanos
positivistas. A construção das identidades próprias dos
estados coexistiu com a produção do ideário nacional.
No estado sulino ele é difuso num personagem que
muitos podem assumí-lo: o gaúcho. Tal figura, na origem
desprezada por seu caráter bandoleiro, após a sua
assimilação como peão de estância, ou guerreiro nos
enfrentamentos como as Revoluções Farroupilha,
Federalista, a Guerra do Paraguai, passou a ser cultuado
como o tipo representativo do Pampa79.
A implantação do mito completou sua vestimenta,
incluindo-lhe adereços enobrecedores, bem como passou à
descrição de seus hábitos e costumes, filtrando o estilo
bárbaro e enobrecendo o rústico. Compondo assim, outra
figura, diferente daquela inicial narrada pelos viajantes
europeus na Província do Rio Grande de São Pedro e
pintadas por Jean Baptiste Debret.
Os atributos e peculiaridades que fazem parte do
simbolismo ressaltam, por exemplo, a valentia, a bravura, a
qualidade de defensor, de fidelidade a uma causa ou paixão,
ser guerreiro e livre. Tal identidade cabe-lhe por sua
condição inicial de trabalhador na estância, que vagueia por
campos de horizonte aberto, pela necessidade da valentia
para a defesa do “seu” território e do gado que é sua razão 79 GONZAGA, Sergius. As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições da Literatura. In: ___; DACANAL, José Hildebrando (orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. p. 113-132.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
7799
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
de sustento, por ter paixão de sua condição e, por tudo isso,
ser fiel ao estancieiro que lhe aparece como igual, posto que
também é “gaúcho”. A personificação geográfica e histórica
enaltece a condição fronteiriça, vinculada à idéia de defesa e
do desejo de ser nacional.
No Rio Grande do Sul a ênfase das peculiaridades e a simultânea afirmação de pertencimento ao Brasil constitui um dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha que é constantemente evocada, atualizada e reposta.80 (OLIVEN,1989, p. 3).
Tal ênfase deve ser considerada por seu aspecto
contundente e pelo próprio regionalismo, na tentativa de
uma inserção nacional. Não há contradição, mas apenas
uma inerência capaz de distingui-lo do nacionalismo. A
afirmação de pertencimento, ao emanar orgulho da sua
condição coloca-se numa posição diversa da simples
subordinação. Constitui dessa forma, um tipo especial de
identidade territorial, inserido noutra mais abrangente. A
existência dessa identidade regional fundamenta-se quando
as vantagens de pertencimento à nação. Faz parte de uma
estratégia que visa, ao menos relativamente, a autonomia
interna e a força no conjunto nacional.
Mas nem por isso coloca-se a morte do regionalismo
como sistema amplo. Além da literatura, o regionalismo de
expressão popular e cancioneiro, bem como o culto de
80 OLIVEN, Ruben. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Vértice: ANPOCS, 3(9): 3-14. fev. 1989.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8800
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
tradições permaneciam fortes. A identidade cultural de
referência já há tempo ligara-se ao gauchismo. Apesar da
sua decadência na literatura, o gaúcho, de personagem
extraída do povo, retornava a ele com auxílio institucional.
Aquilo que Simões Lopes Neto e os demais escritores
regionalistas haviam registrado tornou-se o discurso e o
hábito dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs).
A partir de 1920 generalizou-se o “esforço para criar
uma imagem do Rio Grande do Sul que se assemelhe à do
Brasil”, juntamente com o de valorizar a sua originalidade.81
VISÃO DOS HISTORIADORES: UMA IDENTIDADE RIO-
GRANDENSE
As circunstâncias históricas levaram o Estado do Rio
Grande do Sul a inserir-se culturalmente ao conjunto
nacional? De um lado a existência do estigma da não
brasilidade e a necessidade de acessar ao poder central, e de
outro, o surgimento de novos segmentos sociais dominantes
e de diversa origem cultural, são as razões que
fundamentam a necessidade de uma atuação mais efetiva
no campo da afirmação da identidade regional?
São essas as indagações que nos fazem refletir de
forma análoga sobre a condição histórica do Rio Grande do
Sul. Nesse paradigma é fundamental a análise em torno da
historiografia rio-grandense, mais especificadamente sobre a
81 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS, 1992. p. 20.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8811
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
influência da Revista Província de São Pedro e da
representatividade que Moysés Vellinho possuiu nesse
contexto na tentativa de construir um gaúcho rio-grandense
diferenciado do gaucho platino.
Ao analisar aspectos da historiografia rio-grandense,
vamos perceber como os intelectuais do estado irão
posicionar-se quanto ao lugar do gaúcho no cenário rio-
grandense. Espaço esse que emerge uma discussão acirrada
acerca de sua origem. Afinal, o gaúcho seria rio-grandense
ou platino?
Partindo desses pressupostos Ieda Gutfreind, irá
desenvolver uma análise significativa sobre a designação do
que é o gaúcho para os mais influentes historiadores e
intelectuais do Rio Grande do Sul no contexto do conflito da
matriz lusitana com a matriz platina. Para um melhor
entendimento sobre sua análise, destacamos o seguinte
quadro:
De acordo Gutfreind82 (1992):
ALFREDO
VARELLA
Pampa uma unidade. Gaúcho
uruguaio, argentino e rio-grandense
com semelhanças.
JOÃO PINTO
DA SILVA
Gaúcho rio-grandense distinto do
gaúcho platino, embora exista identidade
do meio físico e moral. Diferenças
raciais. Gaúcho platino “gaucho malo”.
Não houve caudilhismo.
82 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992.p. 12-13.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8822
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
RUBENS DE
BARCELLOS
Os hábitos e os costumes dos campeiros
do Rio Grande do Sul em nada se
distinguem dos usos e práticas dos
gaúchos orientais.
AURÉLIO
PORTO
Filho sedentário do pampa
SOUZA DOCCA
Gaúcho brasileiro é diferente do gaucho
platino. Semelhanças existentes vieram
do indígena charrua e minuano. Gaúcho
rio-grandense – mestiçagem com
indígena foi pequena.
OTHELO ROSA
Gaúcho rio-grandense diferente do
gaucho platino, desde a tessitura étnica,
não era nômade, tinha senso de ordem,
disciplina, capacidade de sacrifício,
inexistia conflito campo e cidade.
MOYSÉS
VELLINHO
Gaúcho rio-grandense era diferente do
gaucho platino. Pouca mescla com o
indígena. Gaúcho rio-grandense era
descendente da massa dos pioneiros de
Laguna e dos bandeirantes.
MANOELITO
DE ORNELLAS
O autor parte do pampa que engloba o
Brasil, parte do Rio Grande do Sul,
Argentina e Uruguai. Não nega influência
árabe espanhola nos trabalhos e
costumes do gaúcho rio-grandense, mas
não aceita ser integrado entre os povos
castelhanos.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8833
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Com isso percebemos as diferentes imagens
defendidas pelos historiadores citados. Porém, iremos notar
que a maior influência será o discurso da matriz lusitana
defendido forma enfática e eficaz por Moysés Vellinho.
Segundo Gutfreind83 (1991) a atuação e a produção
historiográfica de Moysés Vellinho dirá que elas se
aprofundam na história sul rio-grandense a partir de 1920.
Essa conjuntura histórica é fundamental para o
entendimento do lançamento e êxito de uma historiografia
centrada na idéia de nacionalidade. A história está tão
próxima dos desígnos políticos que se torna seu apêndice. É
nessa época que se agrega aos vocábulos “gaúcho” e “Rio
Grande” o vocábulo “brasileiro”.
No entanto, decore dessas duas matrizes (platina e
lusa), uma série de divergências, totais ou parciais, em
torno da identidade cultural do gaúcho rio-grandense,
diferenciando-o do uruguaio e do argentino. Segundo Ieda
Gutfreind84 (1991) são essas tendências se constituem em
momentos importantes, pois criam e destroem
representações acerca da história do Rio Grande do Sul.
Um outro fator que já fora mencionado, que merece
ser retomado é sobre a influência positivista. Isso recai
sobre a atuação do IHGRS (Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul) na década de 1920. Ieda Gutfreind85,
por sua vez, insiste em afirmar que a influência do
83 GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História.1991.p. 04. 84 Idem. p. 01. 85 Idem p. 06.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8844
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
positivismo comtiano foi flagrante entre os membros do
IHGRS, porém, a caracterização mais correta que se pode
dar à produção historiográfica de seus membros é a do
ecletismo teórico, sem significativa discriminação filosófica.
Assim, muitos historiadores tentaram um modelo de prática
histórica inspirada na doutrina comtiana. Onde o modelo de
preservar e conservar manifestava-se com clareza. E é sob
este signo que irá emergir o movimento tradicionalista.
Com isso, podemos constatar que as matrizes
referidas anteriormente apresentaram polêmicas entre si,
extrapolando o ambiente do Instituto e chegando ao grande
público. No entanto, apesar dessas diferenças, ambas
defenderam, no pós 1920, uma história político-ideológica
de alto teor nacionalista.
Nesse contexto, Ieda Gutfreind nos dirá que:
Moysés Vellinho foi um representante à altura desta ideologia (liberal e nacionalista) e o extremado nacionalismo que defendia lhe permitiu rechaçar as idéias de opção histórica do Rio Grande do Sul em tornar-se brasileiro, defendia por alguns intelectuais sulinos como, por exemplo, Manoelito de Ornellas e Othelo Rosa. Para Vellinho, eram as condições histórico-políticas que faziam o Rio Grande do Sul brasileiro, daí não ser uma opção, mas uma vocação histórica86. (GUTFREIND, 1991, p.11)
86 GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991. p. 11.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8855
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Várias discussões emergiam dentro desse cenário. A
tese da lusitanidade parecia ganhar força expressiva no
discurso de Moysés Vellinho. Não seria, pois, o caso de
submeter a uma cuidadosa revisão o conceito de gaúcho
como expressão do tipo social rio-grandense, posto que o
‘gaúcho’ e o ‘rio-grandense’, são hoje designações
equivalentes.
Moysés Vellinho por sua vez genereralizava o termo gaúcho em seu sentido gentílico, considerando todo sul rio-grandense um gaúcho. Para ele, existia um gaúcho que, se necessário fosse, trocaria “o colarinho pelo lenço”, passando a empunhar a lança de combate em prol da luta que lhe desse justiça. Assim, diametralmente oposto a Barcellos, Vellinho não diferenciava o tipo social rio-grandense na zona da campanha.87 (GUTFREIND, 1992, p. 32-33)
Ao desenvolver uma análise da obra do influente
escritor Alcides Maya, Moysés Vellinho88 deixa claro que
gaúcho denominava, agora, o “homem representativo do
brasileiro que vivia na extremadura meridional do país” e
não o habitante da campanha, área extensa de produção
pecuária. Vellinho via o gaúcho da obra literária de Maya
como o tradicional, de capa e espada, daí o pessimismo do
autor, que se contradizia com a evolução rio-grandense,
vista em franco desenvolvimento.
87 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992.p. 12-13. 88 VELLINHO, Moysés. Alcides Maya: a expressão literária e o sentido sociológico de sua obra. In: Letras da Província. Apud. GUTFREUD, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8866
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Assim, segundo Gutfreind, para Vellinho:
O gaúcho tinha que ser brasileiro, daí porque, na sua evolução histórica, ele se transfigurara, desaparecendo o que possuía de ‘dispersivo’, de ‘circunstancial’, de ‘desintegrante’, vocábulos utilizados pelo autor para destacar a emergência de um novo, um outro gaúcho, resultante do ‘espírito de aventura dos pioneiros e do animo sereno e ordeiro do ilhéu açoriano’. (GUTFREIND, 1991, p.13)
A percepção que temos é que Vellinho insiste na
utilização do vocábulo gaúcho no sentido gentílico. No
entanto, deixou claro, no editorial da Revista Província de
São Pedro89 que reconhecia como gaúcho a figura da região
da campanha, o ‘nosso tipo tradicional’. Segundo ele
“dessangra em largas porções sua geografia humana à vista
do imemorial abandono em que viveu suas populações,
particularmente os que porvêm do ciclo heróico da ocupação
e das velhas pugnas da fronteira...”.90E ainda, desenvolve
uma crítica, nesse mesmo texto, à literatura ufanista que
mitologizava o gaúcho. Tudo isso por querer, segundo
89 Através dessa revista, de 1945 à 1957, Moysés Vellinho veiculou seu discurso ideológico. Cada editorial era uma tomada de posição e uma afirmação de luta. Vellinho colocou sua concepção de nacionalidade através do desenvolvimento regional e reafirmava a necessidade de guardar ‘do perigo de um tradicionalismo estreito e das pieguices do saudosismo’. In: GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 82-83. 90 VELLINHO, Moysés. Revista Província de São Pedro. Editorial nº 5. Porto Alegre: 1945.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8877
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Gutfreind91 sobrepor o vocábulo gentílico ao tipo
representativo da zona da pecuária...
Já no editorial número XX da mesma Revista ele
destaca que “o famigerado caudilhismo rio-grandense não
passa de um fantasma” e longamente discorreu, refutando
as “alusões ora frontais ou capciosas do uso do termo
gaúcho sulino”92.
Para Vellinho, como para os outros historiadores, as
relações entre o Rio Grande do Sul e a área platina teriam
sido sempre relações de antagonismo e de oposição,
resultantes das lutas de dois Impérios, o espanhol e o
português, que disputavam áreas afins. 93
Outro aspecto que merece ser enfatizado na
construção da identidade rio-grandense, está ligado às
condições do momento em que passa o Brasil e o próprio Rio
Grande do Sul. Constituindo uma imagem de gaúcho,
tornando o gaúcho universal e unificando-o em uma só
identidade. Ieda Gutfreind94 irá dizer que isso reflete tanto
o interesse como as necessidades da classe dominante, onde
os demais membros do corpo social sul-rio-grandense
passaram a considerar também como seus tais interesses e
necessidades e o Rio Grande do Sul iniciava sua marcha em
91GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991.p. 20. 92 VELLINHO, Moysés. Revista Província de São Pedro. Editorial nº 20. Porto Alegre: s.d. 93GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991.p. 32. 94GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 36.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8888
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
direção à liderança nacional. Caracterizado pela revolução
de 193095.
Se há elementos similiares do tipo social do gaúcho
do Rio Grande do Sul com o gaucho platino e, considerando
todo o processo de rejeição por parte de alguns intelectuais,
cabe agora verificarmos como ocorrerá a construção do
discurso historiográfico lusitano.
Ieda Gutfreind nos diz que:
Aurélio Porto é posto como o lançador desta tendência historiográfica que se intensifica a partir dos anos 20. Souza Docca dá continuidade e desloca o discurso, tornando-o mais convincente. Othelo Rosa expande e aprofunda a matriz lusitana, cabendo a Moysés Vellinho seu aprimoramento lingüístico e literário.96 (GUTFREIND, 1992 p.37)
Desenvolvendo uma leitura da obra de Moysés
Vellinho, iremos perceber que o mesmo permanece centrado
no conceito de gaúcho e, sugere seu uso no sentido
gentílico: “não seria, pois, o caso de submeter a uma
cuidadosa revisão o conceito de gaúcho como expressão do
tipo social rio-grandense, posto que o ‘gaúcho’ e ‘rio-
grandense do sul’ são hoje distinções equivalentes”. Para
Moysés Vellinho o tipo tradicional, inerte dentro de seus
95 Destaca-se que Moysés Vellinho participou dos preparativos da revolução de 1930, estando muito próximo de seu grande articulador, Oswaldo Aranha. Após a vitória da revolução, seguiu para o rio de janeiro, porém retornou ao sul um ano depois. In: GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 80. 96 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 37.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
8899
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
hábitos em desuso e de seu esplendor de lenda, esse, pouco
interessa à sociologia. Assim a impressão que ele nos dá é
que a imagem de gaúcho é reconstruída nesse contexto, sem
considerar o gaúcho histórico, primitivo habitante do
território. Ou seja, tais afirmações nos levam à hipótese de
que o gaúcho fora reinventado.
Ieda Gutfreind97 segue referendando essa idéia
apresentada, dizendo que para Vellinho o gaúcho tinha que
ser brasileiro, daí porque, na sua evolução histórica, ele se
transfigurara, desaparecendo o que possuía de ‘dispersivo’,
de ‘circunstancial’, de ‘desintegrante’, vocábulos utilizados
pelo autor para destacar a emergência de um novo, um
outro gaúcho.
Podemos considerar que ele fora, o critico literário, o
político e o historiador que funde-se numa só pessoa,
apregoou abertamente uma nova maneira de pensar e de
agir no Rio Grande do Sul, alardeando otimismo e a crença
nas capacidades e potencialidades do estado.
A principal argumentação em torno da idéia de
lusitanidade do gaúcho, afastando-se de vez com a matriz
platina está no fato de que:
Moysés Vellinho, seguindo a vertente historiográfica já percorrida por Souza Docca e Othelo Rosa e pela grande parcela de historiadores sulinos, identificava gaúchos distintos, peculiarizando o sul-riograndense. No entanto, nesse mesmo texto, demonstrou, em seu final, que o gaúcho do Rio Grande do
97 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 79.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9900
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Sul e a área da campanha teriam passado por uma evolução. (...) Via esse gaúcho libertando-se de seus ‘caracteres primitivos’ acabando por absorver todos os rio-grandenses, quer aqueles que se identificassem com a terra por ‘filiação histórica’, quer por ‘aculturação’, ou ‘adesão afetiva’.98 (GUTFREIND, 1992, p.98).
Com isso, uma das afirmações segundo a leitura de
Ieda Gutfreind na obra de Moysés Vellinho, consiste em
destacar que do Rio Grande do Sul sempre foi um pedaço,
desde o berço, um pedaço do Brasil, o Brasil que cresceu de
si mesmo. Para ela, em relação à produção historiográfica,
Vellinho fora um ideólogo eficiente na construção da
identidade lusitana para o Rio Grande do Sul.
Assim, temos clareza de alguns aspectos que se
tornaram evidentes. O primeiro deles é que noção de
identidade configura-se a partir da noção de representação.
Contudo, verificamos como ocorre a representação do
gaúcho idealizado que, posteriormente verificaremos como
será exaltado constituindo o modelo do tradicionalista. Além
disso, é evidente a representação a partir da literatura como
elemento de romantização do gaúcho na consolidação de um
caráter de heroicidade. O positivismo também pode ser
agrupado a esses fatores que dão uma dimensão da
conservação de um valor passado. E por fim, a
representação a partir dos historiadores. Esse elemento nos
deixou claro a opção da criação de um modelo rio-grandense
do gaúcho em contraposição do modelo platino.
98 Idem p. 98.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9911
DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
92
A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE DO
TRADICIONALISTA
92
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO TRADICIONALISTA
Se no século XIX houve o surgimento do tipo social
do gaúcho, já caracterizado através da imagem representada
por Jean Baptiste Debret e reconstruído através dos
discursos e narrativas dos viajantes europeus do período,
agora cabe-nos verificar como ocorre a construção da
identidade do tradicionalista. Porém, entendemos que esta
identidade somente emergirá devido a fatores apresentados
no capitulo anterior. São esses fatores que nos dão a
dimensão de como ocorre o deslocamento da identidade do
gaúcho histórico, para ocorrer a consolidação da identidade
do tradicionalista.
A identidade do tradicionalista está atrelada ao
surgimento de um movimento tradicionalista. É necessário
partir da idéia de que esse movimento será constituído no
meio urbano, justamente no transcurso de um processo de
urbanização, provocado pelo êxodo rural. No entanto o
caráter saudosista na tentativa de reviver o passado nos
parece ser a premissa inicial na constituição desse
movimento cultural.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9933
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Porém, se analisarmos como ocorrerá a evolução
histórica do Movimento Tradicionalista no Rio Grande do
Sul, iremos perceber distintos momentos. A verificação
desses vários momentos nos possibilita entender
fundamentos de sua história e conseqüentemente o
transcurso de sua consolidação.
O marco de construção do movimento será o pós
Segunda Guerra Mundial. Segundo alguns ideólogos do
movimento tradicionalista, é a preocupação com agentes
externos, no sentido da imposição de elementos culturais e
padrões norte-americanos, é que, emerge esse movimento
no Rio Grande do Sul. Com vistas em valorizar e propor um
resgate das manifestações culturais produzidas no Rio
Grande do Sul, segundo a perspectiva dos tradicionalistas.
Entre o meio tradicionalista há alguns conceitos, que
merecem ser ressaltados por sua magnitude e por seu
universo ideológico tentativa de reviver o passado e
implantar uma cultura denominada gaúcha e tradicional.
Assim o conjunto de idéias, usos, memórias, recordações e
símbolos conservados pelos tempos e pelas gerações.
Se a tradição representa a memória cultural de um
povo, e sua funcionalidade é transmitir os valores passados,
cabe-nos questionar que valores essa tradição denominada
gaúcha visa reviver. Até que ponto reviver um passado
impondo caráter de heroicidade, moldando uma nova
identidade ao habitante do território e recriando seu
significado é válido?
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9944
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Antes mesmo do processo de constituição do
Movimento Tradicionalista, Augusto Meyer, em artigo no
Correio do Povo de 2 de junho de 1927 assim manifestou-
se:
Tradição é desejo de claridade. Chega um momento na vida em que o homem, ante as flutuações do seu espírito, quer chegar a uma "estrada real" no meio dos mil "sendeiros" que abrem aos seus olhos cobiçosos o fascínio da aventura. A Tradição é justamente essa força que nunca admite as imposições individuais. Ela obriga à humildade, como tudo o que está acima e além do homem. Quando muito, a Tradição quer ser adivinhada em suas formas e penetrada com a inteligência. E a inteligência, nesse caso, é o amor pela terra. O qual, nem procura justificar-se. Mas procura ser, afirmando.99 (MEYER, 1927).
Barbosa Lessa100 (1983), em seu trabalho Caráter
Cíclico do Tradicionalismo, referindo-se a tradição exalta-a
dizendo ser ela um culto que se renova. Assim, podemos
afirmar ser a linguagem o veículo de transmissão da
tradição, sendo ela o elemento fundamental de qualquer
sociedade, de qualquer povo.
Entre os ideólogos que ressignificam a identidade do
gaúcho, agora com molde tradicionalista, temos a figura de
Glaucus Saraiva como um dos expoentes. Este, junto com
Paixão Cortes e Barbosa Lessa, irá constituir o fundamento
99 MEYER, Augusto. O que é tradição. Jornal Correio do Povo. 1927. 100 LESSA, Barbosa. Caráter Cíclico do Tradicionalismo. Porto Alegre: Cadernos do IGTF, 1983.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9955
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
geral e a linha de constituição do movimento. Sobre o
conceito de tradição, Saraiva101, em uma obra intitulada
Manual do Tradicionalista, no dirá que tradição é o todo que
reúne em seu bojo a história política, cultural, social e
demais ciências e artes nativas, que nos caracterizam e
definem como região e povo. Não é o passado, fixação e
psicose dos saudosistas. É o presente como fruto sazonado
de sementes escolhidas. É o futuro, como árvore frondosa
que seguirá dando frutos e sombra amiga às gerações do
porvir.
Afora a designação “Manual”102, visando nos moldes
positivistas exercem influências sobre o que é certo e o que é
errado, condicionando os tradicionalista a exercerem a
aceitação, o equívoco está justamente em elencar como
aspectos tradicionais apenas determinadas estruturas da
sociedade rio-grandense e rejeitando a totalidade das
relações provindas da história do Rio Grande do Sul.
Que elemento cultural o tradicionalista visa
construir? Como iniciará e se consolidará esse processo?
Qual o valor e o sentido desse movimento? Com que
princípio emergirá essa manifestação cultural? Afinal,
haverá a representação e a conseqüente apropriação da
identidade do gaúcho pelo tradicionalista? Certamente,
essas questões nos levam a refletir a funcionalidade e a
estrutura desse movimento tanto no seu aspecto histórico
101 SARAIVA, Glaucus. Manual do tradicionalista. Porto Alegre: Martins Livreiro, s.d. 102 Em relação a esse aspecto, Paixão Cortes e Barbosa Lessa lançaram o Manual das danças gaúchas, estabelecendo quais eram as danças rio-grandenses, suas coreografias, partituras, etc. Condicionando todas as entidades filiadas ao Movimento Tradicionalista Gaúcho, seguirem esse padrão como sendo o histórico, tradicional e correto.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9966
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
quanto no seu modelo de ressignificação de uma identidade
cultural.
PROCESSO HISTÓRICO NA FORMAÇÃO DO MOVIMENTO
TRADICIONALISTA GAÚCHO
Os primeiros momentos, na tentativa de construção
de um movimento tradicionalista iniciam no final do século
XIX e na primeira metade do século XX. Essa fase
embrionária que vai da fundação do Grêmio Gaúcho de
Porto Alegre (1898) ao Clube Farroupilha de Ijuí (1943), já
destacada anteriormente, possui conotações um pouco
diferente daquelas levantadas pelos tradicionalistas após a
Segunda Guerra Mundial.
Com isso no ano de 1947 ocorre o início desse
movimento através de jovens oriundos do interior do estado
do Rio Grande do Sul, agora radicados em Porto Alegre,
representantes do Grêmio Estudantil do Colégio Júlio de
Castilhos:
A partir de 1947, com a criação do Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos de Porto Alegre, o tradicionalismo passou a organizar-se. O galpão chegou a cidade, com a fundação em 1948, do primeiro Centro de Tradições Gaúchas – o 35 CTG. Apesar da resistência urbana, os usos e costumes campeiros autênticos, alicerçados em suas pilchas e cantigas sem requintes e corporificados na habilidade de seus peões, foram chegando. Era o inicio de uma jornada espontânea (...) o tradicionalismo nasceu com a criação de uma consciência regional e sacramentou-se no surgimento dos Centro de Tradições Gaúchas
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9977
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
(...) Era a busca para uma cultura própria.103 (LAMBERTY, 1996, p. 9)
A idéia expressa na obra de Lamberty nos deixa claro
as razões que levaram o surgimento do movimento
tradicionalista. A ambivalência entre campo e cidade estaria
suprida revivendo na cidade, por meio dos Centros de
Tradições Gaúchas, a vida do campo. Porém, ao identificar
que o tradicionalismo nasce de uma consciência regional, há
indícios da ocorrência de um grande equivoco: a instituição
dos moldes da região da campanha como sendo os únicos
aceitáveis por esse movimento. Ou seja, outras regiões do
estado, outras manifestações culturais e outros tipos
constituintes de identidades, ao menos a priori, nos indicam
que são esquecidas ou não cultuadas dentro do propósito
tradicionalista. Sendo assim, somente o gaúcho da região da
campanha o elemento predominante desse movimento.
A constituição do movimento tradicionalista no Rio
Grande do Sul, até se constituir em movimento organizado
perpassa por distintos momentos. Em 24 de abril de 1948,
marca o início da trajetória histórica do tradicionalismo
organizado, ocasião em que um grupo de jovens, com
espírito cívico aguçado, fundou o “35 Centro de Tradições
Gaúchas”, em Porto Alegre, motivando a proliferação de
inúmeros outros núcleos de preservação da tradição
gaúcha; 1º a 4 de julho de 1954, é arregimentado a partir do
1º Congresso Tradicionalista, em Santa Maria, onde
aconteceu a reflexão sobre a importância do tradicionalismo,
com a aprovação da tese “O Sentido e o Valor do
Tradicionalismo” de Luiz Carlos Barbosa Lessa; 17 a 20 de
103 LAMBERTY, Salvador F. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1996. 5ªed.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9988
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
dezembro de1959, é institucionalizado em Cachoeira do Sul
com a criação do Conselho Coordenador, durante o VI
Congresso Tradicionalista, bem como João Cezimbra
Jacques foi escolhido Patrono do Tradicionalismo; 28 de
outubro de 1966, em Tramandaí, por ocasião do XII
Congresso tradicionalista, foi oficialmente criado o
Movimento Tradicionalista Gaúcho como entidade federativa
e com personalidade jurídica. Nesta mesma data, foi
adotado o “Brasão de Armas do Tradicionalismo”, que
constitui-se atualmente na logomarca do Movimento
Tradicionalista Gaúcho104.
Cyro Dutra Ferreira em seu livro 35 CTG: o
pioneiro105 nos diz que no fim da Segunda Guerra Mundial,
o mundo ocidental, encontra-se com grande influência
exercida pela posição dos Estados Unidos. Tornou-se,
assim, o principal centro de irradiação da moda, da cultura
e as elites urbanas, principalmente os jovens, começaram a
imitar o americano "way of life". Com rapidez, a juventude
voltava as costas para as suas raízes culturais, e os
intelectuais rio-grandenses demonstravam sua insatisfação
com aquele estado de coisas, e tinham a consciência de que
as pressões do modismo americano sufocava a cultura local,
o Rio Grande, de resto, o mundo todo.
Nesse contexto, o Brasil que estava saindo da
ditadura de Getúlio Vargas, nos indica da necessidade da
afirmação de uma identidade regional. Segundo Ferreira,
104 Disponível em http://www.mtg.org.br/historia.html. 105 FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: o pioneiro. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1992, 111 p.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
9999
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
perdia-se o sentimento de culto às tradições; nossas raízes
estavam ao esquecimento, adormecidas, reflexo da proibição
de demonstrações de amor ao regional. Bandeiras e Hinos
dos estados foram, simbolicamente, queimados em
cerimônia no Rio de Janeiro e, diante de tudo isso, os
gaúchos estavam acomodados àquela situação, apáticos,
sem iniciativa.
Outro aspecto muito exaltado por meio dos
tradicionalistas é justamente em relação a aqueles que
constituíram os primeiros passos do movimento. Ferreira106
nos deixa exposto que em agosto de 1947, em Porto Alegre,
eclodiu forte uma proposta de esperança, onde a liberdade e
o amor à terra tinha vez e lugar. Jovens estudantes,
oriundos no meio rural, de todas as classes sociais,
liderados por Paixão Cortes, criam um Departamento de
Tradições Gaúchas no Colégio Júlio de Castilhos, com a
finalidade de preservar as tradições gaúchas, mas também
desenvolver e proporcionar uma revitalização da cultura rio-
grandense, interligando-se e valorizando-a no contexto da
cultura brasileira. Dentro deste espírito é que surge a Ronda
Crioula107, estendendo-se do dia 7 ao dia 20 de setembro, as
106 FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: o pioneiro. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1992, p. 58.
107 Como haviam decidido, no dia 7 de setembro, à meia noite, antes de extinto o "Fogo Simbólico da Pátria", Paixão Cortes, na companhia de Fernando Machado Vieira e Cyro Dutra Ferreira, retirou a hoje cinqüentenária "Chama Crioula", que ardeu em um candeeiro crioulo até a meia noite do dia 20 de setembro, quando foi extinta no Teresópolis Tênis Clube, onde se realizava o primeiro Baile Gaúcho, por eles organizado. Durante a Ronda Crioula, os jovens pioneiros realizaram intervenções em programas da Rádio Farroupilha, entraram em contato com o escritor Manoelito de Ornelas, o qual noticiou os acontecimentos da Ronda pelo Jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Com a Ronda, outros jovens companheiros foram se agregando às comemorações: Barbosa Lessa,
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110000
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
datas mais significativas para os gaúchos. Coroando assim
os propósitos do positivismo quanto a exaltação cívica de
datas.
Entusiasmados com a idéia procuraram a Liga de
Defesa Nacional, e contataram o então Major Darcy Vignolli,
responsável pela organização das festividades da "Semana
da Pátria". Assim, lhe expressaram o desejo do grupo de se
associarem aos festejos, propondo a possibilidade de ser
retirada uma centelha do "Fogo Simbólico da Pátria" para
transformá-la em "Chama Crioula", como símbolo da união
indissolúvel entre Rio Grande do Sul e Brasil e simbolizar o
20 de setembro na mesma magnitude de 7 de setembro.
Nessa oportunidade, Paixão Cortes recebeu o convite
para montar uma guarda de gaúchos pilchados em honra ao
“herói” farrapo. David Canabarro, que seria transladado de
Santana do Livramento para Porto Alegre. Paixão Cortes,
para atender o honroso convite, reuniu um piquete de oito
gaúchos bem pilchados e, no dia 5 de setembro de 1947,
prestaram a homenagem a Canabarro. Esse piquete é hoje
conhecido como o Grupo dos Oito, ou Piquete da Tradição.
Primeira semente que seria semeada no ano seguinte, na
criação do "35" CTG.
Antonio João de Sá Siqueira, Fernando Machado
Vieira, João Machado Vieira, Cilso Araújo Campos, Ciro
Dias da Costa, Orlando Jorge Degrazzia, Cyro Dutra Ferreira
Wilmar Santana, Glaucus Saraiva, Flávio Krebs, Ivo Sanguinetti e outros tantos. Após o sucesso da Ronda, mas principalmente pela decisão tomada em manterem-se unidos para matear e prosear, o que se realizava na casa de Paixão Cortes.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110011
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
e João Carlos Paixão Cortes, seu líder. Durante o cortejo, o
"Grupo dos Oito", os jovens estudantes, conduziam as
bandeiras do Brasil, do Rio Grande e do Colégio Júlio de
Castilhos.
Figura 15 – Fotografia do Grupo dos oito cavalarianos
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110022
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110033
Figuras 16 e 17 – Fotografia dos jovens integrantes da Ronda Crioula no culto ás tradições do Rio Grande do Sul
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Partindo do relato apresentado e das imagens
expostas percebemos a forma que o movimento
tradicionalista inicia sua organização. As figura 15, 16 e
17108 fazem referência a este importante momento histórico
na construção do tradicionalista. Observamos que estas
imagens, agora representadas pela fotografia, que visam
demonstrar o tradicionalista, diferem-se em muitos aspectos
da imagem pintada por Debret no século XIX, que visava
representar o gaúcho habitante da Província. Assim, essas
imagens nos dão a dimensão de como ocorre a construção
de uma identidade com moldes e características um tanto
diferenciadas do gaúcho histórico.
Talvez isso ocorra porque a noção de tradição é
semelhante, mas não exatamente idêntica à idéia de
continuidade. Demonstrando assim que a análise da
tradição possibilita que se entenda melhor a inovação
cultural. Ou seja, o tradicionalista reinventa o gaúcho.
Segundo Olivem109, os fundadores desse movimento
eram jovens vindos do interior, descendentes de pequenos
proprietários rurais, ou de estancieiros em processo de
descenso social. E torna-se categórico ao afirmar que seu
objetivo é preservar a identidade cultural do estado
ameaçada pela introdução de novos valores, usos e
costumes da modernização.110
108 Fotografias disponíveis em folder comemorativo aos 50 Anos da ronda Crioula – Movimento Tradicionalista Gaúcho/RS. 109 OLIVEN, Rubens George . A criação do Gaúcho. In: Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Cortez,1984, p.57. 110 Idem. p.59.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110044
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Em outro artigo “Em busca do tempo perdido”,111
Olivem reafirma a idéia já exposta destacando que em 1948
surgiu em Porto Alegre o 35 CTG, primeiro centro de
tradições gaúchas, cujo nome evocava a Revolução
Farroupilha deflagrada em 1835. Fundado principalmente
por estudantes secundários oriundos das áreas pastoris,
onde se praticava a pecuária em grandes latifúndios, ele
serviu de modelo a centenas de centros semelhantes, que se
espalharam pelo Rio Grande do Sul e por outros estados.
Assim, edificação desse movimento construtor de
uma identidade cultural ao gaúcho está consolidado. Porém,
as linhas que visam afirmar essa identidade serão
verificadas ao destacar quais as razões que o mesmo se
fundamenta e, por conseguinte, qual a sua valoração como
expoente de uma cultura e criador de uma nova identidade
tradicional.
O SENTIDO E O VALOR DO TRADICIONALISMO
Constituída a idéia de um determinado culto a
tradição, vamos verificar se de fato corre a apropriação da
identidade do gaúcho histórico pelo tradicionalista. Para
isso, é interessante verificarmos o que é este movimento
tradicionalista no que se refere a sua constituição cultural.
111OLIVEN. Rubens George. Em busca do tempo perdido. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_15/rbcs15_03.html
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110055
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
De acordo os pressupostos do Movimento
Tradicionalista Gaúcho, podemos definir o tradicionalismo
como um estado de consciência, que busca preservar as
boas coisas do passado, sem conflitar com o progresso,
através do cultuar, vivenciar e preservar o patrimônio sócio-
cultural do povo gaúcho. É a sociedade que defende,
preserva, cultua e divulga a tradição gaúcha, que congrega
defensores dos costumes, dos hábitos, da cultura, dos
valores do gaúcho. O tradicionalismo tem uma filosofia de
atuação, tem objetivos expressos nas teses “O sentido e o
valor do tradicionalismo” de Luiz Carlos Barbosa Lessa e na
“Carta de Princípios” de Glaucus Saraiva. Além disso, o
tradicionalismo é um movimento planificado e
regulamentado, com uma administração decentralizada,
através das Regiões Tradicionalistas, que coordenam os
pólos sociais e culturais, que são as entidades
tradicionalistas, conhecidas como Centro de Tradições
Gaúchas e entidades a fins filiadas ao MTG. Toda esta
estrutura organizacional é administrativa, é orientada e
coordenada pelo MTG, através do Conselho Diretor e
Coordenadorias Regionais.
Por ser uma sociedade, depende da atuação de cada
tradicionalista., que é o grande soldado, o maior e
imprescindível responsável pelo cultuar e divulgar a
tradição, ou seja, a gama patrimonial gaúcha. O
tradicionalista é um “homo sapiens”, ou seja, é o ser que
sabe que sabe, é o ser que está no mundo com ciência, com
sabedoria, dotado de inteligência, é um ser pensante e
eminentemente social.112
112 Disponível em: http:// www.mtg.org.br.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110066
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Com o movimento da Ronda Crioula e com a
fundação do 35 Centro de Tradições Gaúchas, o
tradicionalismo ganha suas primeiras formas. A defesa de
um gaúcho lusitano contrapondo a matriz platina é um dos
principais discursos da historiografia rio-grandense, como já
verificamos. Então se há a aceitação de um gaúcho rio-
grandense até tornar-se expressão gentílica e se há a
construção de um movimento cultural que visa construir
uma identidade regional, o que nos resta é examinarmos
qual linha filosófica e sociológica que esse movimento irá
trilhar.
Ao reunirem-se anualmente em congressos, os
tradicionalistas irão criar as principais diretrizes do
movimento. Porém, é no primeiro Congresso realizado em
1954 na cidade de Santa Maria, que um dos mais
respeitados ideólogos do movimento irá defender de forma
inusitada qual o sentido e qual o valor do Tradicionalismo.
Essa importante tese defendida por Barbosa Lessa,
vem representar o ideal tradicionalista na construção de
uma cultura gaúcha de valorização do passado. Logo nas
primeiras linhas desse texto ele fará uma defesa excepcional
do por que um movimento.
Na vida humana, a sociedade - mais que o indivíduo - constitui a principal força na luta pela existência. Mas, para que o grupo social funcione como unidade, é necessário que os indivíduos que o compõem possuam modos de agir e de pensar coletivamente. Isto é conseguido através da "herança social" ou da "cultura". Graças à cultura comum, os membros de uma sociedade possuem a
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110077
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
unidade psicológica que lhes permite viverem em conjunto, com um mínimo de confusão. A cultura, assim, tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade. Toda a cultura inclui uma série de técnicas que ensinam ao indivíduo, desde a infância, a maneira como comportar-se na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se transmite de uma geração a outra, capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração na vida em sociedade113. (LESSA, 1954)
A idéia de Barbosa Lessa, na perpetuação da cultura é
um marco interessante na concepção do movimento
tradicionalista. Com isso, nos parece que os indivíduos
somente adeptos a esse movimento, que nesse contexto
surge, são dotados de cultura. O fica evidente que, segundo
seu discurso, a integração da vida em sociedade perpassa
pela cultura. Mas nesse caso, uma cultura denominada
gaúcha, tradição referendada por um culto saudosista de
exaltação do passado.
Além disso, ele justificará que analisando tais
circunstâncias, mestres da moderna Sociologia chegaram à
conclusão de que problemas sociais cruciantes da
atualidade são causados, ou incentivados, pelo relaxamento
do controle dos costumes e noções tradicionais de cada
cultura114. Ou seja, para Barbosa Lessa, a solução para os
problemas da sociedade na década de 1950, perpassava
diretamente a necessidade da retomada dos valores
113 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível em http://www.mtg.org.br. 114 Idem.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110088
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
tradicionais. Certamente a influência de uma formação e de
uma sociedade positivista que o Rio Grande do Sul vivera
por décadas estava presente no seu discurso.
Quais seriam os elementos atrativos do
tradicionalismo? Porque a esse movimento ocorre adesão de
milhões de pessoas procurando identificar-se com uma
matriz de em passado tradicional em pleno transcurso da
sociedade moderna? Barbosa Lessa, ainda em 1954 irá dizer
que através da atividade artística, literária, recreativa ou
esportiva, que o caracteriza - sempre realçando os motivos
tradicionais do Rio Grande do Sul - o Tradicionalismo
procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-
grandense, tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo
e sem apoio dentro do caos de nossa época115.
Além disso, ele segue comentando a importância da
constituição dos Centros de Tradições Gaúchas por
representarem o núcleo dessa apropriação. Para Lessa116,
através dos Centros de Tradições, o Tradicionalismo procura
entregar ao indivíduo uma agremiação com as mesmas
características do "grupo local" que ele perdeu ou teme
perder: o " pago". Mais que o seu "pago", o pago das
gerações que o precederam.
O que seria um Centro de Tradições Gaúchas? Que
tipo de função e responsabilidade social e cultural que uma
entidade como essa possui? Cada Centro de Tradições
Gaúchas, em si, é um novo "Grupo Local". E à medida que
surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio
115 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível em http://www.mtg.org.br. 116 Idem.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
110099
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Grande do Sul, vai o Tradicionalismo confundindo-se com o
Regionalismo, pois opera para que todos os indivíduos que
compõem a Região sintam os mesmos interesses, os
mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade
psicológica da sociedade regional. E com isso o
Tradicionalismo pode se transformar na maior força política
do Rio Grande do Sul. Para evitar confusão de "política" com
"política partidária", expressemo-nos assim: O
Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a auxiliar
o Estado na resolução dos problemas cruciais da
coletividade117.
Outro aspecto que torna-se importante verificar,
refere-se a identidade criada a partir desse movimento. No
entanto, a identidade originada é uma identidade regional,
cujos indicativos de tradicionalidade estão presentes de
maneira simbólica e rituais. Assim, para justificar o sentido
do tradicionalismo, Barbosa Lessa define que.
O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA do povo rio-grandense, no sentido de auxiliar as forças que pugnam pelo melhor funcionamento da engrenagem da sociedade. Como toda experiência social, não proporciona efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é que virá dizer do acerto ou não desta campanha cultural. De qualquer forma, as gerações do futuro é que poderão indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos acentuando o erro daqueles que acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril de "retorno ao passado". A
117 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível em http://www.mtg.org.br.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111100
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
realidade é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro.(LESSA, 1954)
Outro ponto que Barbosa Lessa ressalta está exposto
no fato de que o tradicionalismo é um movimento, cuja ação
ocorre dentro da psicologia coletiva e seu elemento
dinamizador realiza-se por intermédio dos Centros de
Tradições Gaúchas, agremiações de cunho popular que têm
por fim estudar, divulgar e fazer com que o povo “viva” as
tradições rio-grandenses. Perceberemos então, que segundo
sua idéia, o tradicionalismo deve ser um movimento
nitidamente popular, não simplesmente intelectual.
Além desses importantes fundamentos, que nos
oportunizam uma dimensão desse tradicionalista, está no
fato de pensarmos a simbologia desse movimento. Depois de
explicitado que tipo de reviver os tradicionalistas impõe à
sociedade, há outro aspecto que merece ser destacado. Esse
aspecto está ligado à construção da simbologia e
conseqüentemente a ligação da simbologia do gaúcho com o
estado do Rio Grande do Sul. É justamente nesse período
que será planejada e edificada a estátua do laçador.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111111
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Essa estátua118, além de
ser um dos símbolos de Porto
Alegre, representa um rio-
grandense vestindo roupas
tradicionais. Essa indumentária
retrata as vestes do gaúcho
histórico, habitante do Rio
Grande do Sul, em outro período
histórico. Medindo 4,45m de
altura, todo em bronze, o Laçador
foi inaugurado no dia 20 de
setembro de 1958. O responsável
pelo seu projeto e execução foi o
escultor Antonio Caringi.
No entanto, é pertinente
refletir sobre essa obra e sobre seu
momento de inauguração. Caringi
adota Paixão Cortês como o
modelo da obra. Este, que por sua vez, é um dos ideólogos
do Movimento Tradicionalista, precursor do movimento de
1947. Inaugurada em 1958, a Estátua dá uma dimensão
maior a representação da identidade do rio-grandense. Em
um primeiro instante, localizada próxima ao Aeroporto
Salgado Filho, ela representa de forma clara, que o
habitante do Rio Grande do Sul é o gaúcho. Sobreposta a
idéia do rio-grandense, com esse elemento simbólico,
Figura 18 Laç
legre-Estatura do ador
RS Porto A
118 Fotografia disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Est%C3%A1tua_do_La%C3%A7ador.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111122
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
percebemos então, como ocorre a afirmação da identidade
de um gaúcho vestindo botas e bombachas como o
habitante característico do estado. Porém, o que se fortalece
é a construção da identidade do tradicionalista, que através
dessa simbologia, recria sua imagem e adere simpatizantes.
A CARTA DE PRINCÍPIOS: MATRIZ DO MOVIMENTO
TRADICIONALISTA
No transcurso da história do tradicionalismo no Rio
Grande do Sul, percebemos a influência de vários momento
específicos. Até então, verificamos como ele se constitui
historicamente, que tipo de influência ele exerce e quais os
fundamentos que o norteiam. A tese do sentido e da
expressão do valor desse segmento tradicional, é retomada
em muitos pontos, quando que, por meio da tentativa de
desenvolver um movimento organizado, desenvolve-se
princípios que devam nortear as ações de todos os
tradicionalistas.
Essa carta, que como o próprio nome ressalta, está
expresso o sentido desse movimento de caráter tradicional, é
a representação dos ideais dos tradicionalistas. Escrita por
Glaucus Saraiva, considerado pelos tradicionalistas,
extremamente inteligente e com a mente de certa forma
avançada para a época, se sensibilizou e, por ser muito
reservado, fez de forma solitária um documento que, depois
de concluído, foi apresentado como sugestão a ser seguido
pelos tradicionalistas. Ela fora aprovada em 1961, e a partir
deste momento ela se institucionaliza como sendo uma lei a
ser cumprida pelas entidades e pelos tradicionalistas.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111133
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
As razões para seu surgimento, com forma de regular
as ações dos tradicionalistas, está expresso dentro da
perspectiva de que seus efeitos foram para nortear um rumo
a ser seguido, pois na época o que prevalecia eram as
contradições, onde cada CTG procurava inclinar-se para seu
lado, fazendo com que não existisse unanimidade.
Uma entidade tradicionalista pode ser descrita como
uma formação social na qual são definidas de maneira
específica as relações existentes entre os sujeitos sociais e
em que as dependências recíprocas que ligam os indivíduos
uns aos outros engendram códigos e comportamentos
originais119.
É importante ressaltar que entre seus aspectos
filosóficos, a Carta de Princípios do Movimento
Tradicionalista Gaúcho busca fundamentar as razões da
ação do movimento tradicionalista. Entre vários artigos
ressaltamos os seguintes, para uma noção clara do que os
tradicionalistas pretendem exaltar enquanto movimento
cultural.
Art. 5º- Criar barreiras aos fatores e idéias, que nos vêm pelos veículos normais de propaganda e que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e pendores naturais do nosso povo.(...) Art. 7º- Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e através de reações emocionais etc.; criar, em nossos grupos sociais uma unidade psicológica, com modos
119 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. por Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p 8.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111144
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio, para a reação em conjunto frente aos problemas comuns. (...) Art. 9º - Lutar pelos direitos humanos de liberdade, igualdade e humanidade. (...) Art. 10- Respeitar e fazer respeitar seus postulados iniciais, que têm como característica essencial absoluta independência de sectarismo político, religioso e racial. (...)Art. 18- Incentivar, todas formas de divulgação e propaganda, o uso sadio dos autênticos motivos regionais. (...)Art. 25- Pugnar pela independência psicológica e ideológica do nosso povo. 120(SARAIVA, 2007)
Com isso, aos poucos os tradicionalistas foram
aceitando-a e começaram a perceber que ela só ajudaria o
movimento a crescer e que seu objetivo não era obrigar e
sim orientar dentro de seu caráter doutrinador. Ou seja,
estabelecer quais são os vínculos e as verdades que o
movimento deveria seguir.
Hoje, essa carta integra o Regulamento do Estatuto
do MTG e é a primeira diretriz aprovada no tradicionalismo.
Porém, continua sendo de conhecimento restrito dentro do
movimento, tendo este prospecto sofrido sensíveis alterações
nos últimos anos, devido a importância dada pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho.
Segundo Paixão Cortes, a Carta de Princípios do
Tradicionalismo é resultado de um momento de inspiração e
120 SARAIVA, Galucus. Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Disponível em http://www.mtg.org.br.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111155
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
qualquer modificação no seu conteúdo, seria destruir seu
valor, como símbolo já aceitos a longos anos. É válida ainda
hoje, a preocupação é viável a sua implantação no seio
Tradicionalista.121
Além da função doutrinadora expressa na carta de
princípios, o Movimento Tradicionalista Gaúcho se regula
através de um código de ética. Averiguar a importância e o
significado desse instrumento também é importante, na
tentativa de definir uma identidade ao tradicionalista.
Porém o que percebemos é que há a tentativa de
constituir uma identidade ao tradicionalista. No entanto, os
métodos para que esse padrão identitário seja constituído
perpassa pelo viés da doutrinação da Carta de Princípios.
Segundo Cuche, a identidade cultural aparece como uma
modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada
na diferença cultural... Não há uma identidade em si, nem
mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em
relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteridade são
ligadas e estão em relação dialética. A identificação
acompanha a diferenciação. Ainda afirma, que são os
próprios membros de um grupo que atribuem uma
significação a sua vinculação, em função da situação
relacional em que se encontram.122 Dessa forma,
percebemos como se constitui, ao menos em parte, a
identidade do tradicionalista.
121 CORTES, Paixão, Tradicionalismo gauchesco: nascer, causas & momentos. Caxias do Sul: Lorigraf 1995, p. 110 122 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru:EDUSC, 1999, p. 183.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111166
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Em seu artigo terceiro, o Código de Ética
Tradicionalista, que se constitui-se num regramento
orientador da conduta social dos tradicionalistas, deixa
claro a idéia de que o tradicionalista prima pela observância
de postura compatível com os princípios da dignidade,
urbanidade, sociabilidade e moralidade, aplicando-se para
sua observância, subsidiariamente, as diretrizes esculpidas
no Estatuto e Regulamentos do Movimento Tradicionalista
Gaúcho.123
Além disso, expressa-se em relação aos deveres dos
tradicionalista. No capitulo III, artigo quarto, ele ressalta:
Art. 4º. - São deveres dos Tradicionalistas: I - observar e fazer observar a Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho; II - cumprir e fazer cumprir o Estatuto, o Regulamento e demais regramentos existentes ou que venham a ser instituído; III - preservar, em sua conduta social, a honra, a nobreza, a dignidade, a retidão de caráter, próprias aos cidadãos conscientes das suas obrigações; IV - zelar e velar pela reputação pessoal e da sua condição de tradicionalista; V - primar pelo decoro, lealdade e boa-fé, quer no meio tradicionalista, quer no âmbito da sociedade; VI - zelar pelo bom nome do Movimento Tradicionalista Gaúcho; VII - desempenhar com honestidade, dedicação e isenção os cargos a que for guindado nas entidades filiadas, em comissões temporárias e/ou órgãos do Movimento Tradicionalista Gaúcho; VIII - não se valer da causa tradicionalista para promoção pessoal, em detrimento dos
123 Código de Ética Tradicionalista: disponível em http://www.mtg.org.br/etica.doc.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111177
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
princípios orientadores do tradicionalismo; IX - defender, valorizar e promover a tradição gaúcha.124
Assim, há a notoridade do Movimento Tradicionalista
no Rio Grande do Sul. Através de um rígido controle na
manifestação cultural, o que pareceu claro é uma
determinada imposição daquilo que é certo e errado. Ou
seja, através de elementos de seleção cultural, os
tradicionalistas, são obrigados a seguir determinadas
regras. Esse elemento de normatização da cultura,
expressa-se devido ao alto teor saudosista que o movimento
se constitui.
Um aspecto, que deve-se deixar explicito, diz respeito
a importante função social que o Movimento Tradicionalista
possui na atual conjuntura social. Porém, a problemática
maior está inserida dentro de um contexto histórico alterado
pelos ideais tradicionalista. A ressignificação de um passado
histórico, dando caráter de heroicidade aos habitantes do
território, enaltecer somente os elementos culturais da
região da campanha do Rio Grande do Sul, são alguns
aspectos que merecem uma reflexão amplificada em relação
a esse movimento cultural.
124 Idem.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111188
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
CONCLUSÃO
Nessa pesquisa partimos da premissa em investigar
se ocorre na prática, através de um movimento, a
apropriação de identidade do gaúcho do século XIX pelo
tradicionalista do século XX. Com isso, verificamos vários
pontos específicos de caráter histórico, sociológico e
antropológico quanto a constituição ou não dessa
identidade. Vários pressupostos foram ressaltados e vários
paradigmas trazidos com a finalidade de compreensão da
magnitude e do significado cultural que o movimento
tradicionalista possui na sociedade atual. No entanto,
pensar os elementos culturais revividos pelos
tradicionalistas, com base nas condições históricas dos
habitantes do Rio Grande do Sul tornou-se algo instigador e
desafiador.
A importância da cultura no conjunto das relações
sociais entre os sujeitos constituintes dessa sociedade
apresenta-se de forma amplificada. Tal aspecto vem ao
encontro de um fenômeno mais amplo, caracterizado por
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
111199
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
uma ordem global através dos ditames impostos pela
globalização. No entanto, quando as fronteiras são rompidas
culturalmente, quando há a ineficácia e a conseqüente
desconstrução da concepção estado-nação, o conceito de
nacionalismo entra em crise e na mesma proporcionalidade
o conceito de tradição. Assim, buscar construir uma
identidade tradicional em pleno contexto de uma
modernidade tardia ou pós-modernidade, como alguns se
arriscam a teorizar, é algo que vem à contramão da lógica
impregnada pela “mundialização da cultura”.
Se o caráter histórico do gaúcho é reconstituído em
outra sociedade, em outra época e em outro contexto, é
porque percebemos que houve em um determinado
momento histórico, a necessidade da criação de uma
identidade regional. O mito desse gaúcho histórico,
caudilho, aguerrido, defensor do território, dotado de
honrarias, perpetua no imaginário rio-grandense. No
entanto, o tradicionalista busca espelhar-se nos conflitos
travados no território para constituir um dos pressupostos
justificativos da sua cultura. Com isso, há a presença
notória do sentido heróico com uma determinada projeção
às gerações mais jovens de tradicionalistas. Para assim, o
movimento aderir cada vez mais sujeitos e garantir sua
vitalidade.
Porém, no Rio Grande do Sul, percebemos que há
uma forte influência daqueles que buscam exaltar o
passado. Dentro de uma esfera global, o sentido tradicional
entra em decadência. Esse conflito gera um determinado
mal-estar até mesmo aos grupos tradicionais. Isso ocorre
porque o Movimento Tradicionalista Gaúcho, através de sua
doutrina impõe um controle rigoroso determinando que
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112200
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
elementos culturais do passado o tradicionalista deve aderir.
Porém, nesse contexto de globalização, onde a influência de
outras culturas são percebidas, sentidas e vivenciadas de
forma expressiva, nos parece que o tradicionalismo cada vez
mais renova seus mecanismos de controle, para impor e
determinar o que deve ser cultuado, impossibilitando novas
manifestações culturais que não vêm seguir os seus
pressupostos ideológicos.
Refletir acerca da história cultural e dos estudos
culturais sobre a cultura e a identidade gaúcha, consolidou-
se como uma via interessante. Com base nos relatos e
imagens de quem passou pelo Rio Grande do Sul durante o
século XIX, podemos perceber e notar como caracterizava-se
o tipo social do gaúcho. É nítida sua influência com o tipo
social platino, porém o interessante é perceber como no
século XX, o tradicionalista se apropria da identidade de um
século anterior dando um caráter e uma significação
diferente da histórica.
Contudo, através dessa pesquisa, conseguiu-se
responder a hipótese levantada. De fato, há a apropriação
da identidade do gaúcho pelo tradicionalista. Apropriação
essa, que constitui um novo modelo de homem, totalmente
diferenciado daquele histórico. Essa imagem é construída
com significados distintos do significado histórico do
gaúcho. Isso ocorre porque o Movimento Tradicionalista
Gaúcho se edifica como um dos maiores segmentos
culturais e tradicionais do planeta. Porém com um caráter
saudosista, doutrinário e conservador.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112211
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. O gaúcho. São Paulo : Ática, 1998.
BALANDIER, Georges. La nocion de “situation” cloniale. In:
Sociologie actuelle de l’Afrique noire. Paris: PUF, 1955.
BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In.
Variedades de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
______. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor 2005.
CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura
fotográfica no sul do Brasil: imagens de uma sociedade de
imigração. 2004, 314 f. tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
CASSIRER, Ernst. La filosophie desenvolvimento formes
symboliques. Paris: Minuit, 1972. apud. CHARTIER, Roger.
A história cultural: entre práticas e representações.
Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112222
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio
Grande do Sul. 1737-1902. Porto Alegre: Globo, 1956.
Código de Ética Tradicionalista: disponível em
http://www.mtg.org.br/etica.doc. Acesso em 08/08/2007.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do
Brasil, 1990.
______. A história hoje, dúvidas, desafios, propostas. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13,
1994.
______. O mundo como representação. Estudos Avançados,
v.11, n.5,p.173-191,1991.
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:
regionalismo & literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982.
CORTES, Paixão, Tradicionalismo gauchesco: nascer,
causas & momentos. Caxias do Sul: Lorigraf 1995.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências
sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.176.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, l989, v.2.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112233
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio
Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto
Estadual do Livro, 1961.p.160.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. por Pedro
Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p 8.
FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto
Alegre: Martins Livreiro Editor. 2ª Edição, 1985.
FERREIRA, Ciro Dutra. 35 CTG: o pioneiro. Porto Alegre:
Martins Livreiro, 1992.
GIDDENS, Anthony apud HALL, Stuart. A identidade
cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
2000.
GONZAGA, Sergius. As mentiras sobre o gaúcho: primeiras
contribuições da Literatura. In: ___; DACANAL, José
Hildebrando (orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1996.
GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto
Alegre: Editora da Universidade UFRGS, 1992. p. 20.
______. A historiografia sul-rio-grandense e o mito do
gaúcho brasileiro. In: FISCHER, Luís Augusto; GONZAGA,
Sergius (orgs.). Nós, os gaúchos. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1998.
______. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e
a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre:
Caderno do Curso em Pós-Graduação em História.1991
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112244
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-
modernidade.Tradução:Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira
Lopes Louro. 4. ed. Rio de Janeiro:DP&A. 2000.
HEIDRICH, Álvaro Luiz. Aspectos culturais da construção
da regionalidade gaúcha. In: Rio Grande do Sul –
Paisagens e Territórios em Transformação. p. 215 – 232.
Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2005.
HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. Tradução de J. O.
Nogueira Leiria, Martíns Livreiro, 1991.
HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São
Paulo: Paz e Terra, 1997.
IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires:
Editorial Troquel, 1964.
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio
Grande do Sul. Tradução de Teodomiro Tostes. Rio de
Janeiro: Editora Zélio Valverde,1949. p. 279.
LAMBERTY, Salvador Ferrando. ABC do tradicionalismo
gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000.
LEENHARDT, Jacques. Imagem e história em uma viagem
pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret: o
enterro de um filho de um rei negro. In: LOPES, Antônio
Herculano. História e linguagens: texto imagem, oralidade
e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. p. 126.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112255
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
LESSA, Barbosa. Caráter Cíclico do Tradicionalismo.
Porto Alegre: Cadernos do IGTF, 1983.
______. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível
em: <http://www.mtg.org.br>. Acesso em 03 de dezembro
de 2000.
MEYER, Augusto. História de uma palavra. Porto Alegre:
Instituto Estadual do Livro, 1957.
______. In: Notícia Descritiva da Província do Rio Grande
de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do
Livro, 1961.Nota introdutória.
NICHOLS, Madaline Wallis. El Gaucho. Buenos Aires.
Ediciones Peuser, 1953.
OLIVEN, Ruben George. O maior movimento de cultura
popular do mundo ocidental: o tradicionalismo gaúcho.
Cadernos de Antropologia, n. 1. Porto Alegre: UFRGS/IFCH,
1990.
______. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação
controvertida. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais.
São Paulo: Vértice: ANPOCS, 3(9): 3-14. fev. 1989.
______. A criação do Gaúcho. In: Ciências Sociais Hoje. São
Paulo: Cortez,1984, p.57.
______. Em busca do tempo perdido. Disponível em
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_15/
rbcs15_03.htm acesso em 05 ago 2007.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112266
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
PORTO-ALEGRE, Apolinário. O vaqueano. Editora Três. Rio
de Janeiro, 1973.
REVERBEL, Carlos. O gaúcho: aspectos de sua formação no
Rio Grande e no Rio da Prata. Porto Alegre: L&PM,1996, p.
103.
SAINT HILAIRE. Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de
Janeiro: Ariel Editora, 1936.
SARAIVA, Galucus. Carta de Princípios do Movimento
Tradicionalista Gaúcho. Disponível em
http://www.mtg.org.br, acesso em 20 ago de 2007.
______. Manual do tradicionalista. Porto Alegre: Martins
Livreiro, s.d.
SIMON, Pierre-Jean. Ethnocentrisme. Pluriel-recherces,
cachier n.1,p.57-63. apud CUCHE, Denys. A noção de
cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro.
2 ed. Bauru: EDUSC, 2002.
VELLINHO, Moysés. Alcides Maya: a expressão literária e
o sentido sociológico de sua obra. In: Letras da Província.
Apud. GUTFREUD, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense
contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho.
Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em
História. 1991.
______. Capitania d’el Rei. Porto Alegre: globo, 1970, p.
144.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112277
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
______. Revista Província de São Pedro. Editorial nº 20.
Porto Alegre: s.d.
______. Revista Província de São Pedro. Editorial nº 5.
Porto Alegre: 1945.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112288
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ANEXO I
CARTA DE PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO
TRADICIONALISTA GAÚCHO
A "Carta de Princípios" atualmente em vigor foi
aprovada no VIII Congresso Tradicionalista, levado a efeito
no período de 20 a 23 de julho de 1961, no CTG "O Fogão
Gaúcho" em Taquara, e fixa os seguintes objetivos do
Movimento Tradicionalista Gaúcho:
I - Auxiliar o Estado na solução dos seus problemas
fundamentais e na conquista do bem coletivo.
II - Cultuar e difundir nossa História, nossa
formação social, nosso folclore, enfim, nossa Tradição, como
substância basilar da nacionalidade.
III - Promover, no meio do nosso povo, uma retomada
de consciência dos valores morais do gaúcho.
IV - Facilitar e cooperar com a evolução e o
progresso, buscando a harmonia social, criando a
consciência do valor coletivo, combatendo o
enfraquecimento da cultura comum e a desagregação que
daí resulta.
V - Criar barreiras aos fatores e idéias que nos vem
pelos veículos normais de propaganda e que sejam
diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e
pendores naturais do nosso povo.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
112299
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
VI - Preservar o nosso patrimônio sociológico
representado, principalmente, pelo linguajar, vestimenta,
arte culinária, forma de lides e artes populares.
VII - Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da
herança social e através da prática e divulgação dos hábitos
locais, noção de valores, príncipios morais, reações
emocionais, etc.; criar em nossos grupos sociais uma
unidade psicológica, com modos de agir e pensar
coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio,
para a reação em conjunto frente aos problemas comuns.
VIII - Estimular e incentivar o processo aculturativo
do elemento imigrante e seus descendentes.
IX - Lutar pelos direitos humanos de Liberdade,
Igualdade e Humanidade.
X - Respeitar e fazer respeitar seus postulados
iniciais, que têm como característica essencial a absoluta
independência de sectarismos político, religioso e racial.
XI - Acatar e respeitar as leis e poderes públicos
legalmente constituídos, enquanto se mantiverem dentro
dos princípios do regime democrático vigente.
XII - Evitar todas as formas de vaidade e
personalismo que buscam no Movimento Tradicionalista
veículo para projeção em proveito próprio.
XIII - Evitar toda e qualquer manifestação em
proveito próprio.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113300
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
XIV - Evitar atitudes pessoais ou coletivas que
deslustrem e venham em detrimento dos princípios da
formação moral do gaúcho.
XV - Evitar que núcleos tradicionalistas adotem
nomes de pessoas vivas.
XVI - Repudiar todas as manifestações e formas
negativas de exploração direta ou indireta do Movimento
Tradicionalista.
XVII - Prestigiar e estimular quaisquer iniciativas
que, sincera e honestamente, queiram perseguir objetivos
correlatos com os do tradicionalismo.
XVIII - Incentivar, em todas as formas de divulgação
e propaganda, o uso sadio dos autênticos motivos regionais.
XIX - Influir na literatura, artes clássicas e populares
e outras formas de expressão espiritual de nossa gente, no
sentido de que se voltem para os temas nativistas.
XX - Zelar pela pureza e fidelidade dos nossos
costumes autênticos, combatendo todas as manifestações
individuais ou coletivas, que artificializem ou
descaracterizem as nossas coisas tradicionais.
XXI - Estimular e amparar as células que fazem
parte de seu organismo social.
XXII - Procurar penetrar a atuar nas instituições
públicas e privadas, principalmente nos colégios e no seio
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113311
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
do povo, buscando conquistar para o Movimento
Tradicionalista Gaúcho a boa vontade e a participação dos
representantes de todas as classes e profissões dignas.
XXIII - Comemorar e respeitar as datas, efemérides e
vultos nacionais e, particularmente o dia 20 de setembro,
como data máxima do Rio Grande do Sul.
XXIV - Lutar para que seja instituído, oficialmente, o
Dia do Gaúcho, em paridade de condições com o Dia do
Colono e outros "Dias" respeitados publicamente.
XXV - Pugnar pela independência psicológica e
ideológica do nosso povo.
XXVI - Revalidar e reafirmar os valores fundamentais
da nossa formação, apontando às novas gerações rumos
definidos de cultura, civismo e nacionalidade.
XXVII - Procurar o despertamento da consciência
para o espírito cívico de unidade e amor à Pátria.
XXVIII - Pugnar pela fraternidade e maior
aproximação dos povos americanos.
XXIX - Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de
força social que lhe dê ressonância nos Poderes Públicos e
nas Classes Rio-Grandenses para atuar real, poderosa e
eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de
vida do nosso Estado, rumando, fortalecido, para o campo e
homem rural, suas raízes primordiais, cumprindo, assim,
sua alta distinação histórica em nossa Pátria.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113322
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
ANEXO II
TESE O SENTIDO E O VALOR DO TRADICIONALISMO
BARBOSA LESSA
Na vida humana, a sociedade - mais que o
indivíduo - constitui a principal força na luta pela
existência. Mas, para que o grupo social funcione como
unidade, é necessário que os indivíduos que o compõem
possuam modos de agir e de pensar coletivamente. Isto é
conseguido através da "herança social" ou da "cultura".
Graças à cultura comum, os membros de uma sociedade
possuem a unidade psicológica que lhes permite viverem em
conjunto, com um mínimo de confusão. A cultura, assim,
tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu
ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade.
Toda a cultura inclui uma série de técnicas que ensinam ao
indivíduo, desde a infância, a maneira como comportar-se
na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se
transmite de uma geração a outra, capacitando sempre os
novos indivíduos a uma pronta integração na vida em
sociedade.
I - A DESINTEGRAÇÃO DE NOSSA SOCIEDADE
A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo
um assustador processo de desintegração. Incluídas nesse
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113333
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
panorama geral, a cultura e a sociedade de quaisquer dos
povos ocidentais, necessariamente, apresentam, com maior
ou menor intensidade, idêntica dissolução. É nos grandes
centros urbanos que esse fenômeno se desenha mais nítido,
através das estatísticas sempre crescentes de crime,
divórcio, suicídio, adultério, delinqüência juvenil e outros
índices de desintegração social.
Analisando tais circunstâncias, mestres da
moderna Sociologia chegaram à conclusão de que problemas
sociais cruciantes da atualidade são causados, ou
incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e
noções tradicionais de cada cultura.
II - OS DOIS FATORES DE DESINTEGRAÇÃO
Sociólogos de renome afirmam que a desintegração
social, característica de nossa época, é devida a dois fatores:
Primeiro: o enfraquecimento das culturas locais.
Segundo: o desaparecimento gradativo dos "Grupos
Locais" comunidades transmissoras de cultura.
Analisemos, então, esses dois fatores.
a) O ENFRAQUECIMENTO DO NÚCLEO
CULTURAL
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113344
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
A cultura de qualquer sociedade se compõe de
duas partes. Há um núcleo sólido, de certa forma estável,
constituído pelo PATRIMÔNIO TRADICIONAL. Nesse núcleo
se concentram aqueles inúmeros hábitos, princípios morais,
valores, associações e reações emocionais partilhados por
TODOS os membros de determinada sociedade (como a
linguagem, a indumentária típica, os princípios
fundamentais de moral, etc. ou ainda, por TODOS os
membros de certas categorias de indivíduos, dentro da
sociedade (como as ocupações reservadas só às mulheres ou
só aos homens, as reações emocionais típicas de todos os
velhos ou de todas as crianças, bem como os conhecimentos
técnicos reservados aos ferreiros, aos médicos, aos
agricultores, etc.). Tais elementos culturais contribuem para
o bem-estar da coletividade, pois o indivíduo fica sabendo
como comportar-se em grupo, e qual o comportamento que
pode esperar dos outros("expectativas de comportamento").
Em suma: o cerne cultural dá, aos indivíduos, a unidade
psicológica essencial ao funcionamento da sociedade.
Mas, cercando o núcleo, existe uma zona fluída e
instável, constituída por elementos culturais chamados, em
sociologia, Alternativas, e que são traços partilhados apenas
por ALGUNS indivíduos, representando diferentes reações
às mesmas situações, ou diferentes técnicas para alcançar
os mesmos fins. (Certa pessoa viaja a cavalo, fazendo o
mesmo percurso que outra prefere realizar em carroça; certa
pessoa sente-se tremendamente ofendida se alguém faz
"crítica" a um defeito físico seu, enquanto outra se comporta
resignadamente face a tais críticas; etc.)
É esta zona de Alternativas que permite à cultura
crescer e acomodar-se aos avanços de uma civilização.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113355
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Evidentemente, quanto maior for o entrechoque com
culturas diversas, maior será a possibilidade de adoção de
novas Alternativas, por parte dos membros de uma
sociedade.
Quando a cultura de determinado povo é invadida
por novos hábitos e novas idéias, duas coisas podem
ocorrer: se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente
e forte, a sociedade só tem a lucrar com o referido contato,
pois sabe analisar, escolher e integrar em seio aqueles
traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam
benéficos à coletividade; se , porém, a cultura invadida não
é predominante e forte, a confusão social é inevitável: idéias
e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural,
desnorteando os indivíduos, e fazendo-os titubear entre as
crença e valores mais antagônicos. Quem mais sofre com
essa confusão social - acentua o sociólogo Donal Pierson -
são as crianças e os adolescentes, os responsáveis pela
sociedade do porvir.
Crescendo nessas circunstâncias, a criança não
sabe como agir, não é capaz de assumir, em seu espírito,
qualquer expectativa clara de comportamento. E assim se
originam, entre outros, os problemas da delinqüência
juvenil, resultados de uma desintegração social.
Pois bem. Devido ao surto surpreendente do
maquinismo em nossos dias, bem como da facilidade de
intercâmbio cultural entre os mais diversos povos, observa-
se que o núcleo das culturas locais ou regionais vai se
reduzindo gradativamente, a ponto de se ver sufocado pela
zona das Alternativas. E a fluidez naturalmente se acentua,
à medida que as sociedades mantêm novos contatos com
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113366
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por
viajantes ou imigrantes, ou difundidos por livros, imprensa,
cinema, etc. Nossa civilização, antes alicerçada num núcleo
sólido e coerente, transformou-se numa variedades de
Alternativas, entre as quais o indivíduo tem que escolher..
Sem ampla comunidade de hábitos e de idéias, porém, os
indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem
podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de ordem
moral que afligem o indivíduo, fazendo atarantar-se sem
saber quais as opiniões e os valores que merecem
acatamento.
Essa insegurança reflete-se imediatamente na
sociedade como um todo e, consequentemente no Estado,
pois, conforme ensina Ralph Linton "embora os problemas
de organizar e governar Estados nunca tenham sido
perfeitamente resolvidos, uma coisa parece certa: se os
cidadãos tiverem interesses e culturas comuns, com a
vontade unificada que daí advém, quase qualquer tipo de
organização formal de governo funcionará eficientemente;
mas se isso não se verificar, nenhuma elaboração e padrões
formais de governo, nenhuma multiplicação de lei, produzirá
um Estado eficiente ou cidadãos satisfeitos".
b) O DESAPARECIMENTO DOS "GRUPOS
LOCAIS"
As duas unidades mais sociais mais importantes,
como transmissoras de cultura, são a "família" e o "grupo
local". Através dessas duas unidades, o indivíduo recebe,
com maior intensidade, a sua "herança social".
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113377
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
São exemplos de "grupo local", em nossa
sociedade, o "vizindário" ou "pago" das populações rurais,
bem como as pequenas vilas do interior, ou ainda (um
exemplo do passado) os bairros com vida própria das
cidades de há alguns anos atrás.
Por "grupo local" entende-se o agregado de famílias
e de indivíduos avulsos que vivem juntos em certa área,
compartilhando hábitos e noções comuns.
Embora não tenha organização formal (como o
distrito ou o município), o "grupo local" é a unidade social
autêntica. O "pago", por exemplo, influencia a vida dos seus
membros, estabelece limites à vida social (quais as famílias
que podem ser convidadas para as festas) , mantém elevado
grau de cooperação entre os indivíduos, pois todos devem se
auxiliar (antigos trabalhos de puxirão) e cada qual tem
consciência desse dever de auxílio mútuo. O Indivíduo
conhece perfeitamente os costumes e os princípios morais
instituídos pelo seu "pago"; além disso, há um conhecimento
íntimo entre os membros de um mesmo "pago" (conhecem-
se até os animais objetos pertencentes aos vizinhos). Todas
essas circunstâncias influem para que o "grupo local" se
constitua numa potente barragem para as transgressões à
ordem pública ou à moral (furto, sedução, adultério, etc.).
Ademais, embora não tenha um meio de reação formal(como
a polícia), o "grupo local encerra grande força punitiva,
através de medidas como a perda de prestígio, o ridículo, o
ostracismo. Certamente já depreendemos, então, a grande
importância de que se reveste o "grupo local" para assegurar
a normalidade da vida comum, segundo os padrões
culturais instituídos pelo grupo.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113388
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Acresce notar o seguinte: o integrar-se a um "grupo
local" constitui verdadeira NECESSIDADE PSICOLÓGICA
para o indivíduo normal. Este precisa de uma unidade social
coesa, maior que a família, dentro da qual sinta que outros
indivíduos são seus amigos, que compartilham suas idéias e
hábitos. Tanto é verdade que o indivíduo se sente inseguro
quando se vê só entre estranhos.
Pois bem. O enfraquecimento da vida grupal -
conforme acentuou Ralph Linton - é outra característica de
nossa época. As unidades sociais pequenas estão
gradativamente desaparecendo, e cedendo lugar às massas
de indivíduos. Nas zonas rurais, os "grupos locais" ainda
conservam um pouco de sua função como portadores de
cultura; mas, em geral - devido ao afluxo de Alternativas -
os jovens discordam dos padrões culturais antigos;
acontece, porém, que a sociedade mais ampla - com a qual o
jovem entra em contato por meio da imprensa, do rádio e
cinema - ainda não têm padrões coerentes de vida para
oferecer-lhes. Daí a insegurança que começa a notar-se em
nossa sociedade rural.
Se nas zonas rurais se percebe apenas uma
insegurança incipiente, apenas o relaxamento das forças do
"grupo local" , o que se percebe nas cidades é a
desintegração total dessas forças. A mudança de padrões
culturais, em nossos dias, tem sido tão rápida que, em
geral, o adulto de hoje teve sua infância condicionada à vida
segundo as bases do "grupo local". Ensinaram-lhe a esperar
dos seus vizinhos encorajamento e apoio moral; e quando
esses vizinhos se afastam, o indivíduo se sente perdido. Ele
escolhe entre muitas Alternativas, mas não dispõe de meios
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
113399
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
para estabelecer contato com outros que tenham feito,
escolha semelhante.
Sem o apoio de um grupo que pense do mesmo
modo, é - lhe impossível sentir-se seguro a respeito de
qualquer assunto. E assim o indivíduo torna-se presa fácil
de qualquer propaganda insistente, (quer seja a má
propaganda, quer seja a boa propaganda).
Por isso, Ralph Linton escreveu "A cidade moderna,
com sua multiplicidade de organizações de toda a espécie,
dá a imagem de uma massa de indivíduos que perderam
seus "grupos locais" e estão tentando, de maneira tateante,
substituí-los por alguma outra coisa. De todos os lados
surgem novos tipos de agrupamentos, mas até agora nada
foi encontrado, que pareça capaz de assumir as principais
funções do "grupo local". Ser membro do Rotary Club, por
exemplo, não substitui adequadamente a posse de vizinhos
e amigos tal como se verifica nos grupos locais".
O MOVIMENTO TRADICIONALISTA RIO -
GRANDENSE
O movimento tradicionalista rio-grandense - que
vem se desenvolvendo desde 1947, com características
especialíssimas - visa precisamente combater os dois
reconhecidos fatores de desintegração social. O fundamento
científico deste movimento encontra-se na seguinte
afirmação sociológica: "Qualquer sociedade poderá evitar a
dissolução enquanto for capaz de manter a integridade de
seu núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo,
produzem conflitos entre indivíduos que compõem a
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114400
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
sociedade, pois esses vêm a preferir valores diferentes,
resultando, então, a perda da unidade psicológica essencial
ao funcionamento eficiente de qualquer sociedade".
Através da atividade artística, literária, recreativa
ou esportiva, que o caracteriza - sempre realçando os
motivos tradicionais do Rio Grande do Sul - o
Tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo
da cultura rio-grandense, tendo em vista o indivíduo que
tateia sem rumo e sem apoio dentro do caos de nossa época.
E, através dos Centros de Tradições, o
Tradicionalismo procura entregar ao indivíduo uma
agremiação com as mesmas características do "grupo local"
que ele perdeu ou teme perder: o " pago". Mais que o seu
"pago", o pago das gerações que o precederam.
Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um
novo "Grupo Local". E à medida que surgem novos Centros,
em todos os municípios do Rio Grande do Sul, vai o
Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois
opera para que todos os indivíduos que compõem a Região
sintam os mesmos interesses, os mesmos afetos, e desta
forma reintegrem a unidade psicológica da sociedade
regional. E com isso o Tradicionalismo pode se transformar
na maior força política do Rio Grande do Sul. Para evitar
confusão de "política" com "política partidária", expressemo-
nos assim: O Tradicionalismo pode constituir-se na maior
força a auxiliar o Estado na resolução dos problemas
cruciais da coletividade.
Para compreendermos tal afirmativa, basta repetir
a transcrição já feita: "Se os cidadãos tiverem interesses e
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114411
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
culturas comuns, com vontade unificada que daí advém,
quase qualquer tipo de organização formal de governo
funcionará eficientemente. Mas, se isso não se verificar,
nenhuma elaboração de padrões formais de governo,
nenhuma multiplicação de lei, produzirá um Estado
eficiente ou cidadãos satisfeitos.
O SENTIDO DO TRADICIONALISMO
O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA
do povo rio-grandense, no sentido de auxiliar as forças que
pugnam pelo melhor funcionamento da engrenagem da
sociedade. Como toda experiência social, não proporciona
efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é
que virá dizer do acerto ou não desta campanha cultural. De
qualquer forma, as gerações do futuro é que poderão
indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por
enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos
acentuando o erro daqueles que acreditam ser o
Tradicionalismo uma tentativa estéril de "retorno ao
passado". A realidade é justamente o oposto: o
Tradicionalismo constrói para o futuro.
Feitas estas considerações preliminares, podemos
tentar um conceito do movimento tradicionalista. E então
diremos:
"Tradicionalismo é o movimento popular que visa
auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de
ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal
finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura:
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114422
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
graças ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na
vida comum".
CARACTERÍSTICAS DO TRADICIONALISMO
Mais do que uma teoria, o Tradicionalismo é um
movimento. Age dentro da psicologia coletiva. Sua dinâmica
realiza-se por intermédio dos Centros de Tradições Gaúchas,
agremiações de cunho popular que têm por fim estudar,
divulgar e fazer com que o povo "viva" as tradições rio-
grandenses.
O Tradicionalismo deve ser um movimento
nitidamente POPULAR, não simplesmente intelectual. É
verdade que o tradicionalismo continuará sendo
compreendido, em sua finalidade última, apenas por uma
minoria intelectual. Mas, para vencer, é fundamental que
seja sentido e desenvolvido no seio das camadas populares,
isto é, nas canchas de carreiras, nos auditórios de
radioemissoras, nos festivais e bailes populares, na "Festas
do Divino" e de "Navegantes", etc.
Para alcançar seus fins, o Tradicionalismo serve-se
do Folclore, da Sociologia, da Arte, da Literatura, do
Esporte, da Recreação, etc. Tradicionalismo não se
confunde, pois, com Folclore, Literatura, Teatro, etc. Tudo
isso constitui MEIOS para que o Tradicionalismo alcance
seus fins. Não se deve confundir o Tradicionalismo, que é
um movimento,, com o Folclore, a História, a Sociologia,
etc., que são ciências. Não se deve confundir o folclorista,
por exemplo, com o tradicionalista: aquele é o estudioso de
uma ciência, este é o soldado de um movimento. Os
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114433
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Tradicionalistas não precisam tratar cientificamente o
folclore; estarão agindo eficientemente se servirem dos
estudos dos folcloristas, como base de ação, e assim
reafirmarem as vivências folclóricas no próprio seio do povo.
AS DUAS GRANDES QUESTÕES DO
TRADICIONALISMO
Existem duas questões importantíssimas, que de
maneira nenhuma podem ser descuidadas pelos
tradicionalistas, sob pena deste esforço cultural se
desenhar, de antemão, como uma experiência fracassada.
a) ATENÇÃO ESPECIAL ÀS NOVAS GERAÇÕES
Deve, o Tradicionalismo, operar com intensidade
no setor infantil ou educacional, para que o movimento
tradicionalista não desapareça com a nossa geração. Porque
nós - os tradicionalistas de primeira arrancada - entramos
para os Centros de Tradições Gaúchas movidos pela
necessidade psicológica de encontrar o "grupo local" que
havíamos perdido ou que temíamos perder. Mas as gerações
novas não chegaram a conhecer o grupo local como unidade
social autêntica, e somente seguirão nossos passos por força
de impulsos que a educação lhes ministrar.
Por isso não temo afirmar que o dia mais glorioso
para o movimento tradicionalista será aquele em que a
classe de Professores Primários do Rio Grande do Sul -
consciente do sentido profundo desse gesto, e não por
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114444
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
simples atitude de simpatia - oferecer seu decisivo apoio a
esta campanha cultural.
Aliás, não se concebe que as Escolas Primárias
continuem por mais tempo apartadas do movimento
tradicionalista. Pois a maneira mais segura de garantir à
criança o seu ajustamento à sociedade é precisamente fazer
com que ela receba, de modo intensivo, aquela massa de
hábitos, valores, associações e reações emocionais - o
patrimônio tradicional, em suma - imprescindíveis para que
o indivíduo se integre eficientemente na cultura comum.
b) ASSISTÊNCIA AO HOMEM DO CAMPO
A idéia nuclear das Tradições Gaúchas é a figura
do campeiro das nossas estâncias. Por isso, é sumamente
necessário que o Tradicionalismo ampare social e
moralmente o homem do campo, para que um dia não se
chegue à situação paradoxal de manter-se uma Tradição de
fantasia, em que se tecessem hinos de louvor ao "Monarca
das Coxilhas", ao "Centauro dos Pampas", e esse gaúcho
fosse um desajustado social, um pária lutando febrilmente
pela própria subsistência. A nossa cultura somente poderá
se impor sobre as outras culturas, no entrechoque
inevitável, se for suficientemente prestigiosa. Daí a razão por
que precisamos mostrar às novas gerações - bem como
àqueles que, vindos de terras distantes, acorrerem à nossa
querência - que as tradições gaúchas são REALMENTE
belas, e que o gaúcho merece realmente a nossa admiração.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114455
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
O TRADICIONALISMO COMO FORÇA
ECONÔMICA
Prestigiando as tradições gaúchas e prestando
assistência moral e social ao homem do campo, o
Tradicionalismo estará contribuindo de maneira inestimável
para a solução do problema que ora sufoca a nossa vida
econômica: o êxodo rural, a crise agrícola. É que, dentre as
principais causas do êxodo rural, encontramos uma que
foge ao âmbito dos fenômenos econômicos. Para proteger o
homem do campo, e fazer com que ele permaneça no meio
rural, não basta que o Estado lhe forneça meios econômicos
mais seguros. Se o campesino acaso julgar que o lugar que
lhe está reservado na sociedade encontra-se nas cidades, ele
será um desajustado enquanto não realizar seu sonho de
transferir-se para a cidade. Este fenômeno prende-se ao
conceito sociológico de "status", que é a posição social de
uma pessoa em relação a todas as outras com quem está em
contato. Se "os outros" demonstram que certo indivíduo
ocupa um "status" digno, ele fica satisfeito; mas se "os
outros" demonstram o contrário, ele é, inconscientemente,
levado a demonstrar habilidade, e, nesse afã, sempre deseja
competir com os indivíduos que considera superiores,
jamais com aqueles que considera inferiores. Assim sendo,
se o campesino se considera inferior ao citadino, mais cedo
ou mais tarde tentará procurar a cidade, para ali competir
com quem lhe rouba a posição social.
Prestigiando as tradições gaúchas, e prestando
assistência moral e social ao homem do campo, o
Tradicionalismo estará convencendo o campesino da
dignidade e importância do seu "status". Estará, em suma,
pondo em prática aquilo que o sanitarista Belizário Penna
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114466
DDOO GGAAÚÚCCHHOO AAOO TTRRAADDIICCIIOONNAALLIISSTTAA:: IIMMAAGGEEMM,, IIDDEENNTTIIDDAADDEE EE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN
114477
um dia salientou, mais ou menos nestes termos: "O Brasil é
o país onde mais se fala em valorização. Valorização do café
brasileiro, do dinheiro brasileiro, do algodão brasileiro, do
boi brasileiro. Somente não se pensa na mais urgente e
importante valorização: a do Homem brasileiro, a qual, por
si só, estaria conduzindo a todas as outras".