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Sedição, heresia e rebelião nos trópicos: a biblioteca do naturalista José Vieira Couto*
Júnia Ferreira Furtado**
Resumo: Esta comunicação analisa a visão política que marcou o pensamento do naturalista José Vieira Couto, nascido em Minas Gerais/Brasil, na segunda metade do século XVIII. As idéias de rebeldia, sedição política e heresia religiosa que marcaram seu pensamento podem ser compreendidas a partir da análise da volumosa biblioteca que reuniu em vida e que inspirou em grande parte suas idéias. Seu acervo, formado entre fins do século XVIII e início do século XIX, abrangia diversas áreas do conhecimento como Física, Matemática, História Natural, Medicina, Artes, Direito, Política, Filosofia, História, Dicionários, Gramática e Literatura. Possuía perto de 238 volumes com cerca de 601 tomos, sendo que a maior parte abarcava áreas relativas às ciências da natureza. Eclética e variada, a biblioteca não apresentava, entretanto, nenhum livro de cunho religioso, sugerindo sugestivas e instigantes conexões entre inconformismo científico, político e religioso. Das estantes do naturalista ilustrado irradiavam idéias bem pouco ortodoxas.
1. A Inconfidência Mineira
Em 1789, nos confins do Brasil Colonial, foi descoberto um grande plano sedicioso
para tornar independente a região das Minas Gerais, área produtora de ouro e diamantes,
então centro financeiro arterial da América Portuguesa. Enquanto a França se tornava palco
do movimento revolucionário mais significativo da época moderna, nos sertões auríferos
das Minas, outros inconfidentes se reuniam e traçavam seus planos sediciosos, tendo como
palco irradiador Vila Rica, sede da Capitania. Buscavam como exemplo a experiência dos
Estados Unidos da América e inspiravam-se nos escritos iluministas, especialmente nas
idéias do Abade Raynal.
Suas idéias eram tão ameaçadoras aos laços de dependência que ligavam a colônia à
metrópole portuguesa, que as autoridades procuraram devassar o movimento em segredo.
Mas ao fim do processo, procurou o castigo exemplar para esse crime de lesa majestade.
Um dos inconfidentes foi enforcado, a maioria desterrada para a África e os eclesiásticos
confinados em monastérios portugueses. Em meados do século XIX, redescoberto pelos
historiadores, a Inconfidência Mineira se tornou o marco referencial da constituição da * Este artigo é fruto da pesquisa “Espelho do mundo: libertinos, hereges e rebeldes nas Minas Barrocas”, desenvolvida inicialmente como pós-doutoramento realizado na Universidade de Princeton (2000), com financiamento da CAPES. Posteriormente o projeto recebeu apoio do CNPq, por meio de concessão de bolsa de pesquisa nos anos 2002-2003. ** Professora Adjunta e Coordenadora do Programa em de História da UFMG. Mestre e Doutora em História Social pela USP.
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nacionalidade brasileira, que teria sido forjada na resistência contra a opressão colonial.1
Seu principal réu, Joaquim José da Silva Xavier – apelidado o Tiradentes - foi elevado à
categoria de mártir nacional.
A primeira denúncia escrita sobre a sedição ocorreu em abril de 1789, sendo seu
autor um dos próprios envolvidos no levante. Tiradentes se encontrava de licença no Rio de
Janeiro, onde procurava apoio para o movimento, marcado para o momento em que se
começasse a cobrar nas Minas Gerais a derrama. Foi preso um mês depois, período no qual
ficou sob severa vigilância do vice-rei do Rio de Janeiro, Luís de Vasconcelos. Advertido
por amigos e pelo próprio denunciante encarregado de vigiá-lo que as autoridades já sabiam
de tudo, Tiradentes tentou escapar. Os rumores da repressão iminente se espalhavam pela
cidade e pelas Minas Gerais e apavoravam os envolvidos.
Ao longo do tempo, muitos autores mergulharam na história desse movimento,2
sufocado antes mesmo de nascer,3 para tentar compreender as motivações, idéias, projetos,
inspirações e alcances de seus planos de revolta.4 Suas principais fontes foram os Autos da
Devassa realizada pelas autoridades portuguesas. Discurso construído pelo poder e para o
poder, os Autos apresentam uma série de limites para reconstituição do movimento. Mas
nas entrelinhas, no murmurinho, no cuidado das autoridades, enfim, tudo indicava que as
raízes do movimento eram mais longas e difusas que os documentos insinuavam. Foram
réus não só o ouvidor-geral da Capitania, Tomás Antônio Gonzaga, principal cargo
judiciário da região, como quase todos os contratadores de impostos.5 Vários outros
suspeitos foram arrolados, mas suas culpas não chegaram a ser confirmadas e por isso não
1 Para análise da construção da Inconfidência Mineira como fato histórico e sua apropriação como mito e como fato ao longo do tempo ver: FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira: 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 2 Para historiografia da Inconfidência ver também: FIGUEIREDO, L. R. Painel Histórico. In: PROENÇA FILHO, Domício. (org). A poesia dos Inconfidentes: poesia completa de Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1996. (Especialmente a parte I: A sede e a saga: um percurso historiográfico da Inconfidência.) 3 As denúncias apresentadas ao então governador da Capitania, o Visconde de Barbacena, por dois participantes do movimento fizeram com que a Coroa ordenasse a prisão imediata dos suspeitos, antes que o movimento pudesse ter sido deflagrado. Como a Derrama seria utilizada como estopim do levante, o governador mandou que a cobrança fosse imediatamente suspensa. 4 Cabe destacar: MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 2a. ed. 5 No império português era constante a prática de entregar a particulares a cobrança dos tributos que eram arrendados por contratos temporários acertados ao fim do período. A participação dos contratadores de impostos da Capitania no levante era explicada pelo grau de endividamento que eles se encontravam na época. Esperavam que com a independência da região não tivessem suas dívidas executadas. Pela mesma razão – a busca do perdão das dívidas - o principal denunciante do movimento era contratador de impostos.
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foram processados. Entre eles, o próprio governador,6 o intendente dos diamantes e vários
outros elementos no Rio de Janeiro. A expansão do movimento para o Rio de Janeiro era
estratégia vital para o sucesso da nova nação a ser criada nas Minas, pois sendo a região
continental necessitava de um porto de ligação no litoral.
Entre vários outros indícios, os Autos da Devassa sugeriram a influência da
iluminação francesa, cujos escritos se encontravam em bibliotecas seqüestradas aos réus,7
como L’espirit des Lois de Montesquieu, a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, e
também obras do abade Mably, de Turgot e de Raynal, entre outros. Também a
independência das Treze Colônias norte-americanas exerceu forte impressão e foi exemplo
para os rebeldes. Várias testemunhas afirmaram nos autos que o livro, Recueil des Lois
Constitutives des Etats Unis de L’Amerique, estava sempre no bolso de Tiradentes que, não
sabendo uma língua estrangeira, insistia que o traduzissem para ele. A historiografia mais
recente tem apontado que, no ideário dos Inconfidentes, os valores da tradição, da
manutenção da ordem e do status quo, os quais vinham sendo ameaçados pelas novas
medidas administrativas da Coroa, ocupavam papel de destaque e seu estudo é fundamental
para o entendimento do ideário político da época.8 Esse ideário tem “suas possíveis raízes
[nas tradições] ibéricas, mais precisamente lusitanas”, existindo uma forte afinidade “entre
as idéias dos inconfidentes e aquelas defendidas pelos teólogos da Segunda Escolástica,
pelo padre Antônio Vieira e, ainda, pelo Conde da Ericeira”.9 Destacam-se nesse sentido
uma das falas de Tiradentes que perguntado sobre o levante respondeu indignado: “Não
diga levantar, é restaurar”, e a insistência do Cônego Vieira em legitimar o movimento na
participação dos naturais da terra na reconquista do Brasil das mãos dos franceses (Rio de
6 Os organizadores do levante se dividiram entre republicanos e monarquistas. Os primeiros inspiravam-se principalmente no exemplo norte-americano e os segundos nos ingleses. Os defensores da forma monárquica de governo a ser adotada pela nova república tentaram convencer o governador a aceitar a Coroa da jovem nação a ser criada nas Minas Gerais. Esta oferta, que transparece dos depoimentos de alguns réus nos Autos, foi mencionada como tendo sido apenas insinuada, isso de qualquer maneira transformava o governador num dos próprios suspeitos do levante e um provável réu. Pela legislação portuguesa, as Ordenações Philipinas, incorria no crime de inconfidência não apenas o participante ativo de uma sedição, mas também os que dela tomassem conhecimento e não a denunciassem. 7 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. São Paulo: Edusp, 1981.;VILLALTA, Luís Carlos. O diabo na livraria dos Inconfidentes. In: NOVAES, Adauto. (org). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.367-395.;VILLALTA, Luís Carlos. Os cléricos e os livros nas Minas Gerais da segunda metade do século XVIII. Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1-2, p.19-52, jan/dez 1995. 8 VILLALTA, Luís Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América portuguesa. Tese de doutorado em História Social. São Paulo: FFCH/USP, 1999. Capítulo 8: Leituras e Inconfidência Mineira (1789). p.457-516. 9 Idem. p.463.
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Janeiro) e dos holandeses (Pernambuco).10 Esse ideário já estava presente nos levantes
sediciosos ocorridos no Brasil desde o século XVII e, mais particularmente, nas Minas
Gerais na primeira metade do século XVIII, os quais remontavam ao imaginário político da
Restauração portuguesa,11 que se baseara no axioma de que o poder político pertence ao
povo, que o concede ao rei na forma de um contrato o qual, apesar de perpétuo, pode ser
retomado em situações de tirania.12
Foi decisiva a participação no movimento de jovens, filhos da elite mineradora, que
tinham ido estudar em universidades européias, especialmente Salamanca, Coimbra e
Montpellier. A influência dos estudos universitários realizados, especialmente na
Universidade de Coimbra, foi marcante na vida desses estudantes que retornavam às Minas
Gerais no último quartel do século XVIII, cheios de idéias e aspirações. Essas idéias, que
conjugam um racionalismo triunfante, introduzidas principalmente após as reformas
pombalinas, e o pensamento político português fortemente marcado pelo repúdio à tirania
proliferam em particular no ambiente extra-muros da Universidade. Se por um lado, após a
queda de Pombal, o ensino formal em Coimbra se limitava e se conformava, por outro, a
vida não-acadêmica dos matriculados se radicalizava. Os estudantes se reuniam em grupos
secretos onde discutiam com liberdade sobre tudo. Em Coimbra, vários elementos se
convergiam: a libertinagem, a maçonaria, a Segunda Escolástica portuguesa, o Iluminismo,
fornecendo o substrato para as críticas religiosas, morais e políticas.
Era grande o intercâmbio entre os estudantes brasileiros, particularmente mineiros,
matriculados nas diferentes universidades européias, especialmente Coimbra e Montpellier,
pois era comum fazer-se o curso em uma delas e os exames em outra.13 Destes centros,
algumas idéias inconformistas se espalhavam, amalgamando-se às tradições lentamente
enraizadas no ideário político ibérico que, adaptando-se às diversas situações das regiões do
Império português, inspiravam ideais nem um pouco ortodoxos. Os próprios inquisidores
10 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1976. v.1. p.104 11 MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América. São Paulo: Hucitec, 2002. 12 XAVIER, Ângela Barreto. El Rei aonde póde, e não aonde quer: razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. 13 Ver: FURTADO, Júnia F. Estudantes Mineiros em Montpellier. In: O Mundo Francês em Minas. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2000. p.6-10.
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reconheciam que “uns tantos bacharéis que bebendo em Coimbra a peçonha da
libertinagem vêm vomitar em os lugares da sua naturalidade”.14
É evidente nos Autos da Devassa a influência dos estudantes brasileiros recém-
retornados de universidades européias na gestação do levante, trazendo idéias novas e
audaciosas, que se mesclavam a outras, essas assentadas numa trilha de rebeliões que
lentamente se constituíam como tradição15 no espaço americano.16 A Inconfidência Mineira
começara a ser planejada alguns anos antes, em Coimbra, onde doze destes estudantes,
inspirados nos ideais da independência americana, juraram fazer o mesmo no Brasil.17
Deste grupo faziam parte o advogado José Pereira Ribeiro, seu sobrinho Diogo de
Vasconcelos, José Joaquim da Maia e Barbalho, José Álvares Maciel e José Mariano Leal
da Câmara.
Vários outros recém-formados aderiram entusiasticamente ao movimento. Já como
advogado, José Pereira Ribeiro voltara no ano de 1788 e trouxera o livro do abade Raynal,
Historie Philosophique et politique des establissiments et du commerce des Européens dans
les Deux Indes, que circulou amplamente entre os inconfidentes. José Alvares Maciel
chegara em 1785, com inovadoras idéias de industrialização do Brasil, tendo sido em
Portugal correspondente da Academia Real de Ciências. Lucas Antonio Monteiro de Barros
graduou-se em Leis em 1785 e era amigo íntimo de Alvarenga Peixoto. José de Sá
Bittencourt e Accioli estudou Filosofia e História Natural, e foi colega de José Álvares
Maciel. Diogo Pereira Ribeiro formou-se em Direito em 1782, e era sobrinho de José
Pereira Ribeiro. José Joaquim da Maia e Barbalho começou seus estudos em Coimbra e
14 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Processo 16.616. 15 Todos os processos de rebeldia e/ou revoluções mesclam idéias novas e tradições herdadas ou inventadas de processos que lhe são precedentes. “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.9. Em notável estudo, Hannah Arendt demonstra como a Revolução Francesa se tornou um repositório de tradições para os movimentos revolucionários que lhe foram posteriores, o mesmo não acontecendo com a Revolução Americana. ARENDT, Hannah. A tradição revolucionária e seu tesouro perdido. In: Da revolução. São Paulo: Ática, 1988. p.172-224. 16 FIGUEIREDO, Luciano R. de A. O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia F. (org). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p.197-254. 17 VARNHAGEN, Francisco A. Idéias e conflitos a favor da independência em Minas. In: História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos, 1948. V.4. p.311.
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depois em Montpellier, onde foi encarregado de fazer os contatos com a nova república
norte-americana, tendo se encontrado com Thomas Jefferson na França, sob o pseudônimo
de Vendeck.18
No círculo de brasileiros em Montpellier faziam parte ainda Domingos Vidal de
Barbosa Lage e José Mariano Leal da Câmara. O primeiro foi companheiro de José Pereira
Ribeiro na viagem de volta para o Brasil, durante a qual leram e conversaram sobre o livro
de Raynal e as Recueil des Lois Constitutives des Etats Unis de L’Amerique. Já Tomás
Antonio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Cláudio Manoel da Costa estudaram
em Coimbra, os dois primeiros na década de 1760, durante a vigência das reformas
pombalinas, tendo sido fortemente influenciados pelo Iluminismo e pelo mestre Domingos
Vandelli.19
José Álvares Maciel foi o primeiro a chegar às Minas com as notícias do encontro
com Thomas Jefferson e do possível apoio dos EUA à nação independente, segundo os
depoimentos nos Autos, ele “foi o primeiro que suscitou esta espécie [de motim], com a
lembrança da Inglaterra”.20 A confluência da tradição de repúdio ao despotismo assentada
no ideário político da Segunda Escolástica, reatualizada com os escritos iluministas, como
os do Abade Raynal, à luz do exemplo americano foram os germes sobre o qual a
Inconfidência Mineira começou a se articular, assim que estes idealistas pisaram de volta
no Brasil.
Cabe salientar ainda que, a difusão do Iluminismo na Capitania ocorreu sob e
paralela a um substrato irreligioso e libertino, a exemplo de outros locais, tais quais a
França,21Portugal, especialmente Coimbra.22 Como na Europa, nas Minas Gerais, a
18 José Joaquim da Maia Barbalho, enquanto era estudante de Medicina em Montpellier, com o pseudônimo de Vendek, escreveu cartas ao embaixador dos EUA na França, Thomas Jefferson. Pedia apoio e recursos financeiros para o plano da Inconfidência Mineira e o reconhecimento precoce da futura nação. Conclamava o apoio dos EUA pela identidade americana entre as duas regiões. Eles efetivamente realizaram dois encontros em Nimes, no sul da França em março e maio de 1787. Jefferson foi evasivo nas duas ocasiões e afirmou que não tinha autoridade para negociar tal apoio devido a compromissos comerciais entre os EUA e Portugal. 19 JARDIM, Márcio. Os inconfidentes. In: A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblex,1989. p.46-309. 20 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.130. 21 DARNTON, Robert. Edition et Sedition. L’Univers de la literature clandestine au XVIIIe siècle. Paris: 1981. DARNTON, Robert. The Forbidden Best-sellers of pre-revolutionary France. London: Fontana Press, 1997. 22 Para conhecer a conexão entre libertinagem, religião e sedição entre os estudantes coimbrãos, ver: HIGGS, David. A Viradeira, Coimbra e a Inquisição. In: Universidade(s): História, Memória Perspectivas. Coimbra, v. IV, p. 295-324, 1991.
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filosofia iluminista se amalgamava dessa forma a um extrato precedente de ideais e práticas
licenciosas.23 Denúncias contra mineiros na Inquisição revelaram a íntima associação entre
irreligiosidade e sedição,24 entre libertinagem e Iluminismo os Autos acentuam as
continuidades com a Segunda Escolástica portuguesa.
Também foram freqüentes as insinuações das ligações dos rebeldes com a
Maçonaria portuguesa e francesa, que nenhum estudo até agora conseguiu efetivamente
comprovar.25 José Álvares Maciel, o jovem naturalista recém-chegado, confessou
posteriormente no cárcere a Frei Raimundo Penaforte sua filiação às idéias maçônicas.
Este, depois da morte do primeiro, revelou indiscretamente que Maciel se tornara na prisão
um verdadeiro cristão, deixando a “fornalha da franco-maçonaria”26. Já o Cônego Luís
Vieira, um dos inconfidentes mais cultos, haja visto a enorme biblioteca que possuía,
parece ter sido o grão-mestre da loja maçônica à época existente em Vila Rica que, tudo
indica, congregou vários inconfidentes.
Toda a geração da qual os rebeldes mineiros faziam parte foi aluna, na Universidade
de Coimbra reformada, do famoso Professor Domingos Vandelli, iluminista,
responsabilizado por ter sido o introdutor da Maçonaria em Coimbra e entre seus
estudantes. A interpenetração da libertinagem, maçonaria e sedição que, de Coimbra, se
espalhava para o além mar pode ser ilustrada pelo poema:
O Burro (...) Pôs no Mondego27 o centro da Trolhice.
As colónias dali se derramaram Que as grandes lojas de Lisboa encheram, E o grande golpe à lusa monarquia Dali se preparou, mediu-se e deu-se. 28 Também em Montpellier, Iluminismo e Maçonaria se intercruzavam. A
correspondência entre José Joaquim da Maia e Thomas Jefferson, trocada entre 02/10/1786
23 DARNTON, Robert. Sexo dá o que pensar. In: NOVAIS, Adaulto. (org). Libertinos e Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 24 HIGGS, David.Linguagem perigosa e a defesa da religião no Brasil na segunda metade do século XVIII. In: NIZZA DA SILVA, Beatriz. Cultura portuguesa nas terras de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. p.155-169. 25 ALBUQUERQUE, A. T. C. A Maçonaria e a Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Editora Espiritualista, sd. ,GONÇALVES, Adelto. Gonzaga o poeta do Iluminismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. 26 JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Biblex, 1989. p.338. 27 Mondego: rio que corta a cidade de Coimbra. 28 MACEDO, José de Agostinho. Os Burros. Apud: OLIVEIRA MARQUES, A. H. História da Maçonaria em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1989. Vol. I – Das origens ao Triunfo. p.58.
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e 21/03/1787, foi intermediada pelo professor da Universidade, José Joaquim Maria
Vigarous, que era maçom, como era também ao que tudo indica o próprio Maia.
2- José Vieira Couto e as teias da sedição na Demarcação Diamantina
Um dos rebeldes envolvidos no movimento foi José Vieira Couto, que veio a ser
figura importante na Capitania de Minas Gerais, destacando-se no Brasil como médico e
naturalista. Nasceu no arraial do Tejuco, na porção nordeste da Capitania, região produtora
de diamantes.29 Formou-se em Filosofia na Universidade de Coimbra no ano de 177730 e,
antes de retornar, fez uma viagem às minas da Alemanha e à Holanda, onde esteve no ano
de 1780. De lá retornou ao Brasil trazendo em sua bagagem vários livros europeus repletos
de idéias sediciosas. Sua participação no movimento jamais foi de todo esclarecida, pois,
como veremos a seguir, as denúncias sobre ele não foram averiguadas.
Após concluir seu périplo europeu,31 ele se reestabeleceu no arraial do Tejuco onde
nascera. Em sua casa na rua do Bonfim, possuía uma significativa biblioteca, composta de
livros variados e ecléticos. De tamanho significativo para a época, a biblioteca era
composta de cerca de 238 títulos dispostos em 601 volumes. Muitos destes livros
demonstram sua familiaridade com as idéias iluministas, mas não só.32 De suas estantes é
possível acompanhar a formação de um naturalista e de um médico no limiar no século
XIX, cujas leituras remontavam à Antiguidade, passavam pelos compêndios redigidos
29 Para uma pequena biografia de Vieira Couto, ver: FURTADO, Júnia F. Estudo crítico. In: COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais, seu território, clima e produções metálicas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. p.13-47. 30 Coimbra. Arquivo da Universidade de Coimbra. Livros de Exames, Actos e Graus da Faculdade de Filosofia de 1773 a 1783. Depósito IV, Seção 1ª D, estante 3, tabela 3, no. 48. 31 Desde o início do século XVIII, em Portugal, era forte a idéia de que a renovação do conhecimento seria efeito e resultado do intercâmbio intelectual com o restante da Europa, num movimento de viagens que deveria também contemplar o Novo Mundo. Esses intelectuais, conhecidos como estrangeirados, se reuniam em torno do monarca, o aconselhavam e por meio das viagens buscavam o conhecimento para contribuir para o desenvolvimento político, econômico e intelectual do Reino. Com a criação da Real Academia de Ciências, em 1779, essa tendência de reforço das viagens como importante aspecto para formulação de um política interna consoante com o que se fazia no exterior. CARDOZO, Manoel. “The Internationalism of the portuguese Enlightenment: the role of the Estrangeirado”, en ALDRIDGE, A. O. (comp.) The Ibero-American Enlightment. Urbana: University of Illinois Press, 1971, pp.153-167.; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996, pp.14-19. 32 Para a análise de obras significativas do Iluminismo em sua biblioteca, ver entre outors artigos do autor: LEITE, Paulo Gomes. Contestação e Revolução na Biblioteca de Vieira Couto. Revista Minas Gerais, Belo Horizonte, v.27, p.23, jul.1990., LEITE, P. G. A cultura do Tejuco no resgate do Iluminismo em Minas Gerais. Revista Minas Gerais, Belo Horizonte, v.14, p.22-26, março 1989., LEITE, P. G. Um iluminista holandês na biblioteca de Vieira Couto. Revista Minas Gerais, Belo Horizonte, v.32, p.24-29, dez.1990.
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durante a Idade Média, pelas renovações no pensamento inauguradas pelo Renascimento e
que se desdobravam no Iluminismo, e atingiam os livros que inauguravam o nascimento de
uma ciência moderna baseada numa nova racionalidade. Nessa perspectiva, a biblioteca
adquiria uma dimensão temporal, sem a qual não é possível compreendê-la em sua
plenitude.
Depois de seu retorno ao Brasil, José Vieira Couto foi designado pela Coroa
portuguesa para estudar as potencialidades mineralógicas da Capitania de Minas Gerais,
sobre a qual ele escreveu alguns relatórios (Memórias Econômicas), que foram redigidas
entre 1789 e 1802.33 Ele foi acusado perante a Inquisição Portuguesa de ser um herético, de
possuir livros de conteúdos pouco ortodoxos, que proclamavam blasfêmias contra a religião
e de viver com uma mulher casada.34 O estudo dos livros de sua biblioteca e das Memórias
Econômicas podem servir para a análise entre a elite mineira, especialmente entre os jovens
universitários que retornavam da Europa, da influência do Iluminismo conjuntamente com
os novos métodos científicos, as idéias filosóficas, sediciosas e heréticas. Também é
possível comparar o caráter inconfirmista de sua biblioteca com os crimes levantados
contra ele pela Inquisição e a linguagem reformista que utilizou para escrever à rainha dona
Maria I em suas Memórias
Depoimentos esparsos nos Autos da Devassa revelaram que José Vieira Couto
esteve presente em vários encontros onde os planos foram discutidos. Hospedava-se
freqüentemente na casa do contratador dos dízimos da Capitania em Vila Rica, João
Rodrigues de Macedo, também chamada Casa do Contrato, um dos grandes implicados na
trama, em cuja residência aconteceram várias reuniões, muitas delas presenciadas por
Vieira Couto.35 Ali se reuniam diversos moradores do Tejuco quando viajavam a Vila Rica,
como o intendente dos diamantes, Luís Beltrão de Gouveia e o padre José da Silva de
33 As duas mais importantes foram: COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais, seu território, clima e produções metálicas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. (Estudo crítico de Júnia Ferreira Furtado).; COUTO, José Vieira. Memória sobre as minas da Capitania de Minas Gerais, suas descrições, ensaios e domicílio próprio à maneira de itinerário; com um appendice sobre a nova Lorena Diamantina, sua descripção, suas produçções mineralogicas e utilidades que deste paiz podem resultar. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, 1905, ano 10, p.55-166. 34 Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Maço 1076, processo 12.957. (MF2561) 35 O Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, um dos implicados no levante, contou que vários inconfidentes ouviram falar do levante primeiramente na casa de João Rodrigues de Macedo, que no entanto conseguiu sair incólume da devassa. AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol.2. p.52.
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Oliveira Rolim, este último um dos importantes articuladores do levante, que foi preso e
processado por crime de inconfidência.36
A participação dos rebeldes da região dos diamantes era vital para o sucesso da
trama. O Distrito ou Demarcação Diamantina, que fora demarcado em 1734, estava
localizado na Comarca do Serro do Frio, na região nordeste da Capitania. Desde 1771,
quando a Coroa assumira a extração e comercialização das pedras, o diamante foi declarado
monopólio régio e, para explorá-lo, havia sido criada a Real Extração dos Diamantes. Pelo
Regimento Diamantino, editado em agosto de 1771 e que ficou conhecido como O Livro da
Capa Verde, a Coroa criou uma administração própria - a Junta Diamantina - composta por
um intendente, um fiscal e três caixas, subordinada a uma Administração Diamantina criada
na cidade de Lisboa.37 Os rebeldes esperavam que a nova nação tivesse o controle das ricas
lavras diamantinas e contavam que o monopólio régio despertasse a indignação e o
conseqüente apoio da população local à causa. A liderança do padre Rolim sobre o
movimento na região aparecem nos Autos por meio do testemunho de um morador que ele
esperava que com o levante se tornasse “dono de todo o Serro”.
Apesar dos esforços da Coroa Portuguesa em manter o distrito isolado do restante
da Capitania, isto quase nunca ocorria. A correspondência entre os governadores e as
autoridades diamantinas, além de outros documentos oficiais, revelaram as estreitas
relações entre a região e o restante das Minas Gerais.38
O poder e o dinheiro do contratador João Rodrigues de Macedo, além da proteção
do amigo José Caetano César Manitti, funcionário encarregado da devassa, permitiram que
as denúncias que o envolviam e as que versavam sobre os encontros realizados em sua casa
não fossem averiguados com exatidão, parecendo tratarem-se de encontros de amigos
saudosos de sua terra. Também as acusações contra o intendente dos diamantes, Luís
Beltrão, não foram devassadas, apesar do pardo Vitoriano Gonçalves Veloso ter
testemunhado que assim que começaram as prisões em Vila Rica, o tenente-coronel
Antônio de Oliveira Lopes, um dos grandes implicados no levante, lhe entregara um bilhete
para ser levado com urgência ao Tejuco. O bilhete, endereçado ao intendente Beltrão e ao
36 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.373. 37 FURTADO, Júnia F. O Livro da Capa Verde: o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Annablume, 1996. p.25-27. 38 Idem. Ibdem.
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padre José da Silva Rolim, aconselhava que os dois dessem início de imediato à rebelião,
levantando as tropas locais antes que fosse tarde demais.39
Com exceção do padre José da Silva de Oliveira e de Vicente Vieira da Mota,
funcionário do poderoso contratador, os demais rebeldes do Serro do Frio não chegaram a
ser implicados como réus. Isto se deveu em grande parte ao silêncio que mantiveram e ao
desinteresse articulado das autoridades em não devassar as raízes do movimento na região,
apesar das evidências de que “a trempe é muito grande e não lhe hão de chegar ao fundo”.40
Outro implicado no levante foi o inglês Nicolau Jorge Gwerck, que viera para o
Distrito Diamantino com o intendente Beltrão, quando este último ainda era fiscal da Real
Extração dos Diamantes. Era seu amigo pessoal e ministrava-lhe aulas particulares de
inglês. Contrariando as severas ordens que proibiam não só a presença de estrangeiros na
área, como seu acesso aos cargos públicos, Beltrão conseguiu que o inglês fosse nomeado
escriturário da Contadoria da Junta Diamantina.41 Desde 1788, ainda no governo de Luís da
Cunha Meneses, havia ordens para retirá-lo do cargo e em seguida expulsá-lo do Distrito.
Desobedecidas durante algum tempo, as ordens foram finalmente cumpridas, mas Nicolau
Jorge acabou voltando para a Demarcação Diamantina quando Beltrão foi nomeado
intendente dos diamantes em 1789.42
Preso durante as denúncias da Inconfidência Mineira, Nicolau Jorge seguiu
fielmente os conselhos do amigo e protetor Beltrão para que se mantivesse calado até sua
partida do Brasil e que tomasse cuidado com as cartas que enviava, pois eram lidas pelas
autoridades.43 O silêncio dos réus e o desinteresse das autoridades encarregadas em
averiguar a fundo as denúncias que versavam sobre o envolvimento dos moradores da
Demarcação também dificultaram o entendimento da participação e das motivações dos
39 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.177-178. 40 Esta afirmação queria significar que os implicados eram muitos e poderosos e dificilmente as autoridades conseguiriam alcançá-los. Outra versão da mesma frase foi “O Alvarenga está preso e a trempe é de quarenta ou quarenta e tantos”. A frase foi atribuída ao Capitão João de Almeida e Souza, mas acabou sendo desconsiderada pelas autoridades como tendo sido inventado pelo principal denunciante. Ainda que não tenha sido proferida pelo suspeito demonstrou os rumores que circulavam no Serro. AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 3. p.224-253. 41 FURTADO, Júnia F. O Livro da Capa Verde. São Paulo: Annablume, 1996. p.209-210. 42 Belo Horizonte. Arquivo Público Mineiro. (APM). Seção Colonial. (SC) 240. f.94-96v.; Rio de Janeiro. Arquivo Nacional. Códice 97. f.30-30v. 43 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 3. p.336.
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rebeldes locais. Se o silêncio44 foi uma estratégia em parte bem sucedida, pois evitou que
vários outros fossem presos e considerados culpados, também não impediu que, juntamente
com outros documentos, entre uma afirmação e outra, várias informações possam ser
colhidas sugerindo o que se passava na mente dos implicados.
4- O diabo na livraria do naturalista
Vieira Couto seguiu o mesmo perfil dos outros estudantes mineiros recém-chegados
da Europa. Trouxera em sua bagagem livros e, com eles, idéias sediciosas. A exemplo da
França, apesar de serem “proibidos todos os livros que ferem a religião, o Estado e os
costumes”,45 esses estavam sempre presentes nas bibliotecas dos mineiros da época,
imbricando indissociavelmente a crítica religiosa à crítica dos costumes e da política.
Também nas Minas, por meio desses livros filosóficos, circulavam idéias contra a moral, a
religião, a Igreja e o Estado.
Não se pretende com esta afirmação defender que a simples posse de livros
proibidos fosse suficiente para provocar um levante ou revolução, mas certamente sua
leitura e difusão sistemáticas corroíam os pilares dos estados absolutistas – a lei, a fé e o
Rei.46 Porém, “by discovering what books reached readers throughout an entire society and
(at least to a certain extent) how readers made sense of them, one can study literature as
part of a general cultural system”.47
A biblioteca do naturalista Vieira Couto era eclética e variada, vários de seus livros
tinham um cunho nitidamente iluminista, mas não apenas, e, por entre suas estantes,
irradiavam idéias heréticas e irreligiosas.48 Ele lia um pouco de tudo, seus livros abrangiam
44 O silêncio e o segredo eram estratégias importantes do movimento maçônico. O silêncio foi estratégia amplamente utilizada pelos réus da Inconfidência. A influência da maçonaria no movimento se releva no que não se revela, no esforço dos réus em não falar o que sabiam, em fazer tudo parecer conversa casual. Como veremos a seguir, dez anos foi interceptada pelas autoridades do Rio de Janeiro uma carta que sugeria a filiação de Beltrão à maçonaria. Rio de Janeiro. Arquivo Nacional Negócios de Portugal. Fundo 59. Códice 68. Vol.15. f.184 -184v. Sobre o silêncio e a Maçonaria: KOSELLECK, Crítica e crise, uma contribuição á patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 1999. 45 DARNTON, Robert. Lúnivers de la littérature clandestine au XVIIIe siecle. Paris: Gallimard, 1991.p.14. 46 Idem. Ibdem. p.11. 47 DARNTON, Robert. The forbidden best-sellers. London: Fontana Press, 1976. p.XXI. 48 Lista dos livros anexa ao inventário de José Vieira Couto encontra-se em: Rio de Janeiro. Arquivo Nacional. Inventário n. 417. Caixa 1.409. Galeria A. A lista dos livros está transcrita em: LEITE, Paulo Gomes. Contestação e Revolução na Biblioteca de Vieira Couto. Revista Minas Gerais, Belo Horizonte, v.27, p.23, jul.1990. O professor Paulo Leite Gomes é um estudioso das obras iluministas existentes na biblioteca de José Vieira Couto e redigiu vários artigos sobre o tema. Ver também: FURTADO, Júnia F. Estudo crítico.
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vários campos do conhecimento, como Física, Matemática, História Natural, Medicina,
Artes, Direito, Política, Filosofia, História, Dicionários, Gramática e Literatura.49 Possuía
perto de 238 volumes com cerca de 601 tomos que permitem avaliar sua formação
humanista.
Um número significativo dos livros de Vieira Couto tinha ligação direta com o
exercício da medicina e com as áreas do conhecimento subjacentes ao estudo da natureza,
com ênfase na mineralogia e na química. As quatro categorias do conhecimento das oito
utilizadas para classificar seus livros, que compreendiam Física, Matemática, História
Natural e Medicina, fundamentais ao exercício destes ofícios, representavam 97 volumes
do conjunto da biblioteca, o que significava quase 50 % do total de 206 obras catalogadas e
classificadas.
O estudo da natureza para os iluministas tinha uma dimensão política.50 Para
Raynal, “a natureza na América é revolucionária”.51 A estreita ligação entre as duas
instâncias tinha uma conexão causa-efeito e era a única capaz de explicar a gênese da
revolução americana. O ofício de naturalista era, pois coerente com a visão de mundo que
os livros lhe forneciam, que enfatizavam um espírito aberto à observação, onde a dúvida
deveria preceder às conclusões. Em um deles, Jean de Senebier aconselhava os filósofos de
seu tempo que “o dogmatismo era o pior inimigo da observação”. No Ensaio sobre a arte
de observar e de fazer experiências afirmou que “a dúvida filosófica deve se estender a
tudo que existe sobre o objeto em estudo, desde às idéias dos outros, até a dos grandes
homens, cuja autoridade é geralmente irresistível”.52
Os estudos sobre bibliotecas se defrontam com as dificuldades de
classificação dos livros, ato indispensável para a análise de seu conteúdo. Os estudiosos se
vêem forçados a buscar critérios, geralmente exteriores ao ato de quem constituiu o acervo,
tomando o cuidado no entanto para que não sejam anacrônicos ou pelo menos revelem
parâmetros objetivos de classificação e comparação. Em geral, têm-se classificado esses
In: COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais, seu território, clima e produções metálicas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. 49 Esta classificação temática foi estabelecida a partir de: ROCHE, Daniel. Um savant et sa bibliotèque au XVIII e siècle. Dix-huitieme siecle, Paris, vol. I, p.47-88, 1969. 50 FIGUEIREDO, L. A. e MUNTEAL, O. Prefácio: a propósito do abade Raynal. In: RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. p.26. 51 Idem. Ibdem.p.27. 52 SENEBIER, Jean. Essai sur L’Art d’observer et de faire des experiences, 1802. p.97 e 101.
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acervos a partir dos assuntos abrangidos,53 mas quero destacar aqui que toda biblioteca se
forma ao longo de um tempo, e que esta também revela uma coleção que foi produzida ao
longo de um período de tempo. Nessa perspectiva, a análise de uma biblioteca não pode
prescindir de um estudo de sua dimensão temporal, seja o tempo da coleção, seja o tempo
da produção das próprias obras.
Sua biblioteca tinha assim uma abrangência cronológica bastante ampla, indo desde
obras da antiguidade clássica, passando pelos renascentistas, iluministas e os primeiros
cientistas do início do século XIX. Vieira Couto comprou livros durante toda sua vida e, às
vésperas de sua morte, continuava adquirindo os preciosos volumes. Como exemplo, em
Medicina lá estavam Hipócrates, o pai dessa ciência; o Traité de Médecine Pratique do
médico escocês Cullen, que introduzira uma nova classificação na Nosologia; o Da Vacina,
do brasileiro Francisco de Melo Franco, que propagava a vacinação contra a varíola, e as
Observações sur les causes et les accidents de plusieurs accouchements labouriex, que
introduzia o uso do fórceps para maior sucesso nos partos.
No campo da mineralogia, no qual se situam vários de seus estudos realizados por
encomenda da Real Academia de Ciências, possuía a Metallurgie ou Art de Tirer et
Purifier les Métaux, do espanhol Alvaro Afonso Barba, editada em 1669, obra
marcadamente influenciada pela alquimia; e o System of Mineralogy, de Robert Jameson,
editado em Edimburgo em 1808, que propunha uma nova classificação mais científica e
racional dos elementos minerais.
Lá estavam ainda o clássico Dom Quixote, na qual Cervantes satirizava os ideais de
honra preservados pela cavalaria; os dois volumes críticos de Antônio Verney, Verdadeiro
Método de Estudar para ser útil à República e à Igreja, que revolucionara os métodos de
ensino em Portugal e inspirara as reformas educacionais realizadas por Pombal; e a edição
inglesa da obra de Volney, The ruines, a survey of the revolutions empires, que criticava o
Iluminismo e a religião, especialmente a católica. Volney foi eleito para os Estados Gerais e
53 Sobre classificações temáticas ver: CERTEAU, M. et alli. Une politique de la langue. La Révolution francaise et les patois: l’enquête de Grégoire. Paris: Gallimard, 1975. p.175-178.; CHARTIER, Roger. A história cultural:entre práticas e representações. Lisboa: difel, 1990. Capítulo: Práticas e representações: leituras camponesas em França no século XVIII. P.142-163.; DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.155.
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depois para a Assembléia Constituinte, durante a Revolução Francesa, onde defendeu a
expropriação e venda dos bens da Igreja.54
Entre outros autores, encontrava-se Edward Gibbon, que desencadeou violentos
ataques à religião. Dos clássicos franceses lia Montesquieu e Fénelon. Possuía os
Colóquios Familiares de Erasmo de Roterdam, também severo crítico da Igreja Católica.
Entre outras, o autor denunciava “os monges como clientes constantes das prostitutas e
aconselha[va] uma moça que desejava se manter virgem a evitar ‘esses monges robustos e
barrigudos.[Pois] a castidade corre mais perigo no claustro que fora dele’”.55 É certo que
José Vieira Couto esteve na Holanda em 1780, quando regressava de seus estudos em
Coimbra, nação que respirava idéias muito mais liberais em termos de religião. Na
Biblioteca do Bispado de Diamantina há um livro seu, onde grafou de próprio punho:
Amsterdam, 8 de outubro de 1780. Tratava-se do Ars Critica, de Joannis Clerici.56 Este ou
o livro de Erasmo, também provavelmente adquirido na Holanda, era um dos que, segundo
testemunhas, estava sempre em suas mãos. Couto foi também leitor de Genovese, cujos
escritos foram condenados pelo Arcebispo de Nápoles, que o afastou da cátedra de
Teologia que ministrava naquela cidade.57
Na Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers,
organizada por Diderot e D’Alembert, obra síntese do iluminismo, encontrava os subsídios
para um estudo mais racional dos temas a que se dedicou, pois a coleção era considerada
um eficaz instrumento a serviço do espírito crítico e dos livres pensadores que criticavam
os fundamentos políticos e religiosos do Antigo Regime.
Vários volumes expressavam o gosto da época pela exploração e as viagens como
Travels into the interior parts of Africa e Voyages au Montamiata, e também serviam como
inspiração para a redação de suas Memórias, algumas delas escritas na forma de roteiros de
viagens. O interesse pela geografia se ligava ao estudo da história, pois uma confirmava a
outra e ambas faziam parte do campo da História Natural.58 Lá estavam as Recherches
54 Idem. Ibdem. 55 LEITE, Paulo Gomes. Contestação e Revolução na Biblioteca de Vieira Couto. Revista Minas Gerais, Belo Horizonte, v.27, p.23, jul.1990. p.28. 56 Idem. p.28. 57 Idem. Ibdem. 58 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. São Paulo: Edusp, 1981. p.36.
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Philosophiques sur les Américains, do holandês Corneille de Pauw. O autor, explorando o
massacre dos americanos pelos espanhóis, fazia a apologia fisiocrática da agricultura em
detrimento da mineração e defendia a independência das colônias.
Foi fato marcante a inexistência de obras religiosas em sua biblioteca, o que era
bastante incomum na época, não constando nenhuma edição da Bíblia. O único livro de
cunho religioso tinha na verdade um viés histórico. Tratava-se da História dos Judeus, em
cinco volumes, traduzido do grego por Flavius Josephus. O interesse pela história judaica
pode ter sido despertado pelo contato com os círculos de portugueses residentes na
Holanda, constituído principalmente por judeus.
A exemplo de outros inventários da época, a lista abarca os livros possuídos, mas o
que não significa que todos foram lidos. Da mesma forma que pode não ter lido todos os
livros de sua biblioteca, outros podem ter sido lidos sem que jamais os tenha possuído,
como veremos em seguida com o livro clássico do abade Raynal, pois o hábito de leitura
oral era disseminado e o empréstimo de livros entre uma elite de livres pensadores era
comum, constituindo uma Boemia Literária.59 Nos Autos da Devassa aparecem vários
indícios de leituras compartilhadas e empréstimos de livros. Como já foi dito, Domingos
Vidal de Barbosa Lage foi companheiro de José Pereira Ribeiro na viagem de volta para o
Brasil, durante a qual leram e conversaram sobre o livro de Raynal e a Recueil des Lois
Constitutives des Etats Unis de L’Amerique. Simão Pires Sardinha foi procurado em sua
casa no Rio de Janeiro por Tiradentes para traduzir este último livro, que trazia sempre
consigo. Foi ele que mandou avisar Tiradentes que este estava sendo vigiado e seria preso.
Também oriundo do arraial do Tejuco, Simão Pires Sardinha se envolveu na Inconfidência
Mineira e era amigo particular de Vieira Couto. Depois da repressão ao movimento,
refugiou-se no Reino, de onde comprava livros e enviava para José Vieira Couto, no Brasil.
Alguns dos livros enviados “intentavam fazer capacidade de que não havia inferno, porque
quando a criatura morre vai passear a alma nos campos lísios”.60 Depois do seqüestro dos
livros do cônego José Vieira, um de seus amigos fez uma petição pedindo que dois dos
livros lhe fossem entregues, pois, na verdade, lhe pertenciam e tinham sido emprestados ao
cônego.
59 DARNTON, R. Bohème littéraire et révolution: le monde des livres au XVIIIe siècle. Paris: Galimard, 1983. 60 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Maço 1076. Processo 12.957.
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O estudo da biblioteca de Vieira Couto, seus usos na redação das suas Memórias
Econômicas e a forma como alguns deles foram apropriados pelos inconfidentes permitem
iluminar o entendimento das diversas formas de apreensão dos livros nas Minas
setecentistas, o que constitui um dos grandes desafios para o estudiosos das práticas de
leitura. Para o escopo deste trabalho será analisado o Abade Raynal, Historie Philosophique
et politique des establissiments et du commerce des Européens dans les Deux Indes.
4- O perigoso abade
Entre outros tópicos inconformistas, a independência das treze colônias americanas
foi tema acaloradamente discutido nos encontros dos tejucanos hospedados na residência
do contratador Macedo. Em outubro de 1788, quando estava também presente o inglês
Nicolau Jorge Gwerck, o assunto foi amplamente debatido.61 A conversa foi presenciada
por Vicente Vieira da Mota, que era guarda-livros do contratador anfitrião, que mais tarde
testemunhou o diálogo às autoridades. Uma questão dividia os presentes: se o movimento
brasileiro deveria seguir o exemplo dos EUA e constituir uma república ou o da Inglaterra e
permanecer monárquico.62
Nicolau George acabou sendo preso, devido às confissões do guarda-livros Vicente
Vieira da Mota de que ele teria sido um dos principais interlocutores no debate sobre a
América Inglesa. Acabou inocentado, mas foi expulso do Brasil. Sua linha de defesa foi de
que se tratava de uma conversa casual e que sua posição tinha sido favorável à solução
monárquica, demonstrando sua fidelidade ao rei de Portugal, nação que adotara e da qual
almejava a nacionalidade.63
Apesar do inglês ter procurado ser evasivo em suas respostas para não implicar a si
mesmo, várias de suas afirmações demonstraram que as leituras que os rebeldes mineiros
faziam do movimento das colônias inglesas eram certamente inspiradas nos escritos do
abade revolucionário. Raynal acreditava que cabia aos filósofos a busca do conhecimento,
61 FURTADO, Júnia F. O Livro da Capa Verde: o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Annablume, 1996. 62 Como já foi dito, vários inconfidentes eram favoráveis à monarquia e chegaram a defender que o Governador da Capitania, o conde de Valadares, fosse convencido de participar do movimento e ser coroado rei. Outros defendiam a opção republicana e a imediata execução do governador, como maior representante da Coroa portuguesa. 63 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.247.
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através da especulação.64 Neste sentido compartilhava das idéias que os filósofos
iluministas faziam do seu papel na sociedade, caracterizado pelo livre pensar, pelo uso da
razão, sendo a ação sempre precedida pela reflexão.65 A sociedade das luzes era uma
sociedade de esclarecidos, de homens de letras, que compartilhavam os salões, as
academias, verdadeiras sociedades de pensamento.66 A exemplo da França, nas Minas,
unia-se boemia literária e revolução,67 e entre vários assuntos, como o inglês afirmou
perante a devassa, estes savants mineiros discutiam a independência americana, pois “que
naquela matéria, em toda a parte conversavam as pessoas instruídas”.68
Inquirido sobre o conteúdo da conversa que tivera com o guarda-livros, Nicolau
Jorge respondeu que discutiram as razões porque as colônias inglesas tinham se levantado,
ao que ele apontara “ter sido por causa dos maus governadores e dos tributos que lhes
foram impostos”.69 Inspira-se certamente na leitura do abade que em seu livro caracterizara
o novo mundo como oprimido e explorado e a independência como resultante desta
situação. Não podemos deixar de salientar aqui, a proximidade entre essa leitura da
legitimidade do poder contida na obra do abade e os conceitos que legitimavam o poder
régio em Portugal desde o período da Restauração portuguesa, consubstanciados nas obras
da Segunda Escolástica. O discurso jurídico formulado para justificar a Restauração,
garantindo a autonomia nacional e a coroa como pertencente de direito a Dom João IV, se
baseou no axioma de que o poder político pertence ao povo, que o concede ao rei na forma
de um contrato que, apesar de perpétuo, pode ser retomado em situações de tirania. Essa
concepção de que o poder real se legitimava por meio de um pacto, e não mais apenas pela
linhagem, constituiu-se no mecanismo central que garantia a fidelidade dos governados no
Império. Era o amor, e não o temor, o principal valor intercambiado entre o rei e seus
vassalos, não importando em que espaço geográfico do vasto império português se
64 RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. p.75. (Prefácio de Luciano R. de A, Figueiredo e Oswaldo Munteal). 65 VOLTAIRE, M. Sur la considération qu’on doit aux gens de lettres. Lettres Philosophiques. Oxford: Basil Blackwell, 1951. p.86-89. 66 COCHIN, Augustin. Les sociétes de pensée et la democratie. Paris: Librarie Plon, 1921. 67 DARNTON, R. . Bohème littéraire et révolution: le monde des livres au XVIIIe siècle. Paris: Galimard, 1983. 68 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.248. 69 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 3. p.331. No primeiro interrogatório ele fez afirmação muito semelhante: “Que os tributos e desordens dos generais foram a causa de se confederarem’. AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.247.
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encontrassem.70 Mas era esse mesmo poder que, emanando diretamente do povo para seu
soberano, impunha limites à atuação dos monarcas, que buscavam o constante beneplácito
dos governados ao se apresentar como reis magnânimos e misericordiosos, o que acabou
por conferir à coroa portuguesa a sensação de fragilidade.
A Histoire des Deux Indes, publicada pela primeira em 1772, antecipou os
acontecimentos sobre a independência americana, ao estabelecer a transitividade entre a
intolerabilidade dos impostos, entendida como opressão do monarca, e a disposição e o
direito dos súditos à revolução. O livro constituiu um sucesso editorial na época,
especialmente na América. Entre outras leituras, o livro foi compreendido como uma
fórmula para fazer revolução.71
Raynal defendia que cabia aos filosófos o conhecimento, mas tratavam-se de
homens de letras e não de homens de ação. Sabia que as especulações filosóficas não
traziam os distúrbios civis, pois “se os homens são felizes sob a forma de seu governo, eles
a conservarão. Se são infelizes, não serão as vossas opiniões, nem as minhas – será a
impossibilidade de sofrer mais e por mais tempo que irá determiná-los a mudá-las,
movimento salutar que o opressor chamará de revolta, ainda que não seja mais que o
exercício legítimo de um direito inalienável e natural do homem que se oprime”.72 Ou seja,
a opressão tinha que preceder à revolução. Era a primeira que gerava o descontentamento e
a disposição para a ação, tornando então o movimento legítimo.73 Somente compreendendo
esta premissa, que fazia parte da cartilha revolucionária dos mineiros em 1789, torna-se
possível compreender a insistência dos rebeldes de que era necessário aproveitar o clima de
insatisfação decorrente do lançamento da cobrança dos impostos atrasados (derrama) e a
participação da região diamantina, onde a opressão metropolitana se faria sentir mais
intensamente pelo monopólio régio da exploração dos diamantes.
Eis porque com a suspensão da derrama pelo novo governador da Capitania, o
conde de Valadares, logo após a denúncia do movimento de inconfidência, os rebeldes 70 HESPANHA, M. e XAVIER, Ângela. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4, p.381-93. e FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setencentistas. São Paulo: Hucitec, 1996. 71 VENTURA, Roberto. Leituras do Abade Raynal na América Latina. In: COGGIOLA, Oswaldo. (org.) A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990. p.165-179. 72 RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. p.75. (Prefácio de Luciano R. de A, Figueiredo e Oswaldo Munteal). 73 CAVALCANTI, Berenice. Dilemas e paradoxos de um filósofo iluminista. In: RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p.29.
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julgaram que o momento revolucionário havia se perdido. Ao ser inquirido novamente
alguns anos depois em 1791, Nicolau Jorge declarou “que semelhante levante era
impraticável poder efetuar-se, pela situação da terra”, referia-se certamente à suspensão da
derrama.74 Se a região central da Capitania havia perdido o principal mote para acender o
espírito inconformista, o mesmo não se podia dizer da demarcação diamantina, por isto a
preocupação do Tenente Coronel Antônio de Oliveira Lopes de escrever rapidamente ao
intendente Beltrão e ao padre José da Silva Rolim ordenando que os dois dessem início
imediato à rebelião, a ser começada então do Tejuco.75
A revolução, no livro do abade, se justificava por retornar um “direito inalienável e
natural do homem”, qual seja o direito à felicidade e o fim da infelicidade trazida pela
opressão.76 Não havia uma defesa aberta ao regime republicano e a questão entre
monarquia e república também dividia os inconfidentes. Durante o século XVIII, a maioria
dos filósofos franceses era a favor do estabelecimento de uma república de homens de
letras, mas aspirando uma igualdade com os grandes homens do reino, pois “os filósofos
estão próximos aos soberanos”.77 Nicolau Jorge contou que ele, o guarda-livros Vicente
Vieira da Mota e o contratador Macedo eram todos realistas.78 Nas conversas que teve com
outro importante rebelde e intelectual, o Cônego Luís Vieira da Silva, “muito instruído e
noticioso”, proprietário de uma das maiores bibliotecas encontradas nas Minas no período,
este “sempre se punha da parte dos franceses e ele, respondente, da parte dos ingleses”.79
O cônego Luís Vieira da Silva foi um dos principais articuladores da Inconfidência,
encarregado de participar da confecção das novas leis do país independente e também do
plano militar do levante. Era professor de Filosofia do Seminário de Mariana e cônego da
Sé de Mariana. Homem de letras, possuía uma vasta biblioteca, uma das maiores da
Capitania na época.80 O estudo da América inglesa era sua paixão dominante e para alguns
contemporâneos aos acontecimentos sua prisão esteve ligada à posse de um livro francês
74 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 3. p.335. 75 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.177-178. 76 CAVALCANTI, Berenice. Dilemas e paradoxos de um filósofo iluminista. In: RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p.29. 77 D’ALEMBERT, J. Essai sur la societé de gens de lettres et des grands sur la réputation, sur les mécenes, et sur les recompenses littéraires. Amsterdan, 1773. p.323-412. 78 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 3. p.332. 79 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.246. 80 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. São Paulo: Edusp, 1981.
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que falava sobre o levante, tratando-se provavelmente do livro de Raynal.81 Era clara a
influência deste autor nos debates dos inconfidentes, pois segundo o testemunho de Vicente
Vieira da Mota, “sempre via empregado aquele Cônego, dos sucessos da América Inglesa,
lendo a sua história; a uma natural complacência no êxito que os ditos rebeldes americanos
tiveram”.82
Para Raynal, o papel dos soberanos era garantir a felicidade dos súditos e estes não
deveriam fartar-se de elogiar o soberano que se ocupasse da sua felicidade. “Iluminai
vossas casas, saí em tumulto, lotai os templos e as ruas, acendei fogueiras, cantai e dancei
em volta, pronunciai com alegria, bendizei o nome do vosso benfeitor”.83 A mesma idéia
aparece no discurso de Nicolau Jorge, mas ele utilizou a retórica para parecer protestar uma
fidelidade à Coroa portuguesa, quando se referia genericamente a um príncipe benfeitor.
Lembrado de que tais conversas sobre as colônias inglesas poderiam derivar semelhantes e
funestas desordens na colônia portuguesa, ele se defendeu dizendo “que nunca o seu ânimo
fora excitar idéias algumas contra o sossego público, obediência e sujeição – que todos os
vassalos devem ter ao seu príncipe”.84
Tudo indica que a discussão sobre o movimento americano não era tão casual assim,
e era embasada nas leituras que os inconfidentes mais ilustrados faziam de alguns livros.
José Vieira Couto foi um dos que também leu o livro de Raynal, pois o utilizou nas duas
Memórias sobre a Capitania de Minas Gerais redigidas em 1799 e 1801, respectivamente.
Em alguns momentos citou-o textualmente, o que só poderia fazer de posse do livro, sendo
quase certo que possuiu também um exemplar apesar de não ter constado do inventário de
seus livros.85
Raynal foi por ele chamado de político, distinguido-o de outros naturalistas citados.
Mas apesar da classificação, a apropriação do texto teve como objetivo explícito embasar
afirmações feitas notadamente no campo das ciências naturais. O texto de Raynal foi citado
81 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol.5. p.124. (Depoimento de Alvarenga Peixoto). 82 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol.5.p.102. 83 RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p.98. 84 AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Nacional, 1978. Vol 2. p.248. 85 Também o livro de Raynal não constava do inventário de José Pereira Ribeiro, apesar dele o ter possuído. Foi escondido ou destruído pois era obra censurada pelo estado português. ANTUNES, Álvaro de Araújo Espelho de cem faces: o universo relacional do advogado setecentista José Pereira Ribeiro. Belo Horizonte: UFMG, 1999. (Dissertação, Mestrado em História).
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várias vezes nas duas Memórias. Em 1799, ele foi utilizado na parte em que Vieira Couto
defendeu a utilização da anta e do búfalo como animais domésticos, pois “conheço que dois
grandes filósofos, um naturalista [Buffon] e outro político [Raynal], atestam que, por várias
vezes, se tem tentado naturalizar estes animais na América, porém, inutilmente e quem sabe
com que negligências seriam feitas essas experiências?”86 Na de 1801, ele foi citado
primeiro para enfatizar sua afirmativa sobre a variedade das riquezas minerais da capitania,
que possuía todos os tipos de metais com exceção do cobre. Uma parte do livro de Raynal
foi transcrita e utilizada como epígrafe da Memória, fechando o texto com a frase: “de
todas as matérias que representam o brilho e a opulência, o diamante é o mais precioso.
Raynal T. 5o. p. 97.”87
No entanto, outras apropriações não tão explícitas da obra de Raynal foram feitas ao
longo do livro, principalmente na Memória Econômica, de 1799. As idéias do perigoso
abade impregnavam o texto e lhe davam um conteúdo revolucionário, apesar da retórica
reformista com a qual se justificava o naturalista. O relatório foi escrito a pedido da rainha
Maria I e sob os auspícios da Real Academia de Ciências de Lisboa. Deveria ser
basicamente um texto de cunho mineralógico e geológico, que analisasse basicamente a
produção de ouro e de diamante na região da Demarcação Diamantina. Mas, apesar de
impertinente e perigoso, o naturalista arrolou várias propostas, muitas de cunho político,
visando segundo ele, o progresso e o desenvolvimento da região. Vários dos argumentos
que alinhavara eram contestadores da ordem, mas ele se desculpava dizendo que era uma
questão de ótica, pois tudo se reverteria em favor dos régios interesses, os quais considerou
inseparáveis “dos do povo; [pois] como se poderá jamais separar os interesses entre uma
família ? Entre o pai e o filho?”.88
Conclamava para o mesmo déspota esclarecido a que se referira Raynal. Aquele que
buscando a felicidade dos súditos criava um ambiente de liberdade favorável ao progresso.
Era este mesmo clamor que Vieira fazia à soberana. Em vários trechos de seu texto,
procurou entrelaçar argumentos que demonstrassem essa transitividade entre os interesses
86 COUTO, José Vieira. Memórias sobre a capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, dez.1994. (Introdução e Estudo Crítico Junia Ferreira Furtado). 87 COUTO, José Vieira. Memórias sobre a capitania das Minas Gerais. Sobre as Minas da Capitania de Minas Gerais, suas descrições, ensaios e domicílio próprio, à maneira de itinerário com um apêndice sobre a Nossa Lorena Diamantina. 1801. 88 COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. p.52.
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(a felicidade) da Coroa e os dos habitantes da longínqua América portuguesa. Defendeu a
necessidade de desenvolver as atividades manufatureiras na região, de estimular a
agricultura e o comércio, de criar uma fundição de metais e animar a mineração. A política
de desenvolvimento interno, diretamente oposta ao Alvará Régio editado pela mesma Maria
I e que proibira a instalação de manufaturas no Brasil, segundo o autor, daria à Capitania
“uma nova alma” e a transformaria em “um novo ser”.89 Longe porém de querer subverter a
ordem e o desejo real, argumentava que: “o povo é a fonte e o princípio das riquezas do
Estado: um povo bem dirigido, um povo laborioso, comerciante e inteligente, é rico. O
erário da nação será rico e, ao contrário, é um ente que não existe na natureza: um erário
rico e uma nação pobre”.90
Entre suas sugestões mais audaciosas constava o fim do pacto colonial e a
suspensão do principal tributo colonial, o quinto, que constituíra, ao longo do século XVIII,
o cerne da política metalífera portuguesa. Estava claramente inspirado em Raynal, que na
Historie Philosophique et politique des establissiments et du commerce des Européens dans
les Deux Indes, no livro nono, sobre o estabelecimento dos portugueses no Brasil, defendia
o fim do pacto colonial e a abertura dos portos brasileiros ao comércio com outras nações.91
Raynal chamou o fisco português de insaciável e o monopólio dos diamantes intolerável.92
O livro do perigoso abade se tornava, assim como outros de sua biblioteca, o receptáculo de
suas idéias.
5- Heresia e Libertinagem
A transitividade entre a leitura dos livros e o contato com as idéias heréticas e
sediciosas era também aventada pela Igreja Católica e o estado português que, vigilantes,
procuravam exercer um controle sobre as práticas de leitura em todo o Reino. A partir do
terceiro quartel do século XVIII, a Inquisição se tornou um grande instrumento para a
perseguição às idéias jacobinas, sediciosas e heréticas, adjetivos que sempre caminhavam
juntos para qualificar os inconformistas e livre-pensadores. Para o homem da época, as
89 Idem. Ibdem. p. 82. 90 Idem. Ibdem. p.82. 91 RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. 92 RAYNAL, Guilhaume-Thomas F. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p.135.
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instituições religiosas, morais e políticas eram unas, encontravam suas justificativas e se
sustentavam sobre os mesmos pilares, por isto a crítica era sempre feita em conjunto.
Enquanto Tiradentes se refugiava no Rio de Janeiro, também se encontrava na
cidade, o médico Luís José de Figueiredo que, como José Vieira Couto, exercia a
profissão no arraial do Tejuco. A 13 de maio, certamente advertido pelos boatos de
que as prisões dos participantes do levante em Minas eram iminentes, procurou o
Comissário do Santo Ofício da Inquisição na cidade, Bartholomeu da Silva Borges,
para denunciar como herético seu colega de profissão no Tejuco, José Vieira Couto.
Afirmou que na viagem para o Rio de janeiro, “vindo do Serro do Frio para Vila Rica
e sucedendo ter conversa com o Reverendo vigário de Raposos, o Reverendo Dr.
Nicolao sobre casos de heresia ... logo que cheguei a Vila Rica denunciei ao Reverendo
Cônego Magistral da Sé de Mariana”.
A denúncia do Rio de Janeiro seria, pois, de acordo com suas palavras, sua segunda
denúncia escrita contra Vieira Couto. Será mesmo, ou ele apenas procurou não evidenciar
que correra a denunciar o colega para não parecer omisso frente à repressão que começava?
Afirmou que Vieira Couto além de possuir livros heréticos, proferia blasfêmias contra a
religião e vivia maritalmente com uma mulher casada. Relatou que o médico “era herege, e
tão libertino, que não ouvia missa nem se confessava; e dizia que não havia inferno e que
tudo era patranha portuguesa... que quando estivera em Holanda se confessara à parede”.93
Afirmação semelhante sobre o além fez o médico baiano Joaquim José de Souza,
em 1793, quando afirmou “ser o Purgatório invenção dos homens, para por este meio
perceberem emolumentos eclesiásticos”.94 O autor da denúncia, um padre local, também
considerou que o receptáculo de suas idéias eram os livors, especialmente um “em idioma
francês, cujo título supõe o denunciante ser Instituições Políticas”. “O saber médico
aparece freqüentemente associado, em finais do século XVIII, à irreligiosidade”.95
No processo inquisitorial que se seguiu à denúncia foram colhidos vários
depoimentos de pessoas que conheciam José Vieira Couto. Um seu acompanhante na
93 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Maço 1076. Processo 12.957. 94 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Livros do Promotor. N.320. Apud: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura letrada e cultura da oralidade no Brasil. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v.XXXIII, p.568, 1999. 95 SILVA, Maria Beatriz N. Cultura letrada e cultura da oralidade no Brasil. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v.XXXIII, p.568, 1999.
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viagem de volta do Reino para o Brasil contou que “em lugar de ler algum livro devoto, se
punha a ler livro de história, ou de medicina” e, que todo o navio o tinha por herege e
libertino. Segundo os depoimentos diretos e indiretos, os receptáculos de suas idéias eram
os livros, especialmente um holandês que andava na algibeira.96
Várias denúncias dirigidas à Inquisição revelaram a íntima associação entre
irreligiosidade e sedição, entre libertinagem e Iluminismo. Nas sua Memórias Econômicas,
o próprio Vieira Couto percebeu esta associação quando chamou de herético o crime de
lesa majestade e buscou no Régio Mandamento o zelo para porventura criticar as leis
régias.97
As Memórias, enquanto documentos escritos a pedido e para o poder, tinham que
utilizar uma retórica aceitável aos olhos de Suas Majestades. No texto, Vieira Couto não se
descuidou em reafirmar insistentemente sua fidelidade e zelo ao poder real, mas não
passava de um artifício de retórica, por trás do qual se escondia o inconformista. Se
esforçou para que suas idéias heterodoxas não o identificasse com os inconfidentes, que
tinham incorrido no terrível crime de lesa-majestade e negaram a obediência devida ao
Trono que lhes abrigara e lhes tratara paternalmente. Como Couto não tinha sido arrolado
como réu, ele esperava que a suspeita de participação que recaíra sobre sua pessoa já
estivesse e deveria continuar esquecida.
Ao pedir a revogação de inúmeras leis editadas por Dom José I e Dona Maria I,
salientou que não queria dizer que tais leis fossem despóticas, ao contrário pediu que
“longe de mim tal blasfêmia”.98 Questionar a infalibilidade do poder real era incorrer em
crime grave, que nem Dona Maria I teve coragem de cometer, ao se recusar a
responsabilizar seu pai pela política pombalina. Para que não lhe recaíssem fortes suspeitas,
Vieira Couto lançou mão de um antigo argumento, imortalizado na metáfora do sol e da
sombra cunhada pelo Padre Vieira, qual seja, a de que eram os funcionários, uma vez
distantes do centro do poder, faziam suas a voz do rei e cometiam inúmeras iniqüidades,
preservando desta forma a fonte de onde se originara tal poder. Buscando minimizar o tom
de suas idéias, opostas à legislação então em vigor, ressentia-se pelo pobre Dom José, que
96 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Maço 1076. Processo 12.957. 97 “O Régio mandamento me determina agora a falar também acerca destas mesmas leis”. COUTO, José Vieira. Op.cit, 1994. p.87. 98 COUTO, José Vieira. Op.cit, 1994. p.89.
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com “sua alma pura (...), seu coração tão grande e generoso, como o de um Rei, pensava
que assim seriam puros e incapazes os seus Ministros e nisto só se enganou”.99
6- Maçonaria
As evidências da penetração da Maçonaria na Capitania das Minas Gerais são
inicialmente esparsas e provindas de informações indiretas e sua época de difusão é incerta.
Os primeiros sinais da ação da Maçonaria dataram da Inconfidência Mineira, cuja presença
foi suspirada nas entrelinhas dos Autos da Devassa. Vários indícios apontavam sua
presença por trás dos conspiradores, iniciados quando estudantes em Coimbra,
epecialmente entre José Álvares Maciel e o Cônego Luís Vieira, um dos inconfidentes mais
cultos, haja visto sua biblioteca, parece ter sido o Grão-mestre da loja de Vila Rica.
No Tejuco, a Maçonaria também se espalhara entre os jovens de duas famílias
importantes, que estiveram envolvidos na Inconfidência Mineira: os Vieira Couto e
Oliveira Rolim. Apesar das provas do envolvimento com os pedreiros livres serem
posteriores à sedição, tudo leva crer que já existia a essa época. Joaquim Felício dos Santos
contou em suas Memórias do Distrito Diamantino, publicado na forma de folhetim nas
páginas do jornal O Jequitinhonha, entre 1862 e 1864, que ainda viviam testemunhas do
enterro de Joaquim José Vieira Couto, irmão de José Vieira Couto, que que ia no caixão
paramentado como maçom.100 Um outro seu irmão, José Joaquim foi efetivamente pedreiro
livre em Portugal um pouco mais tarde, como veremos adiante.
Já o Padre José da Silva de Oliveira Rolim, filho do Caixa da Real Extração, foi
também enterrado no Tejuco com trajes maçons na segunda década do século XIX.101 Um
dos réus da Inconfidência Mineira, foi importante elo de ligação entre os inconfidentes de
Vila Rica, sede da Capitania, e os do Tejuco. Participou de importantes reuniões da elite do
movimento na casa de João Rodrigues de Macedo em companhia do Cônego Luís Vieira,
José Vieira Couto, o Intendente dos Diamantes Luis Beltrão de Gouvea de Almeida e seu
amigo Nicolau George Gwerck, todos suspeitos de serem maçons. Quando foi preso, Rolim
se encontrava na casa do Intendente Beltrão, que depois de muitas manobras conseguiu não
ser indiciado como réu na Devassa da Inconfidência Mineira.
99 COUTO, José Vieira. Op.cit, 1994. p.89. 100 SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. p.188. 101 Idem. Ibdem.
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Em 1799, dez anos após o fracasso do movimento, se encontrava preso na Ilha das
Cobras, no Rio de Janeiro, um indivíduo chamado Francisco Álvaro da Silva Freire, que
aguardava para seguir expatriado para Goa. Nessa época, escreveu ao ex-Intendente dos
Diamantes e então Chanceler da Relação, Luís Beltrão de Gouvea de Almeida, uma carta.
Dentro dela havia outras que ele pedia que fossem entregues a Modesto Antonio Mayer,
Ouvidor em Vila Rica à época da Inconfidência. Parece que Beltrão de Gouvea não tomou
as providências judiciais cabíveis, que constava a conferência do conteúdo das cartas.
Passou a ser acusado pelo Vice-Rei Visconde de Resende de envolvimento com o preso,
pois as tais cartas revelavam seu envolvimento com a Maçonaria. Francisco Álvaro da Silva
Freire tinha planos de fugir para a Holanda ou França tão logo chegasse à Goa e suas cartas
escritas no Brasil demonstravam que ele sabia do envolvimento de autoridades com a
Maçonaria, a quem pediu auxílio para minimizar as agruras da prisão e viagem.102 Mais
tarde, em Goa, estabeleceu contato com os inconfidentes ali exilados, especialmente o
Ouvidor Geral Tomás Antônio Gonzaga, identidade estabelecida por serem todos franco-
maçons.103
Não deixa de ser interessante salientar que em uma das primeiras lojas maçônicas
conhecidas em Portugal e fundada pelo francês Jean Coustos “pontificavam os ourives e os
lapidários e os contratadores de diamantes”,104 envolvidos com o comércio brasileiro de
gemas e ouro. Efetivamente, do total de 25 membros da loja com ocupação conhecida, seis
eram lapidários de diamantes (24%) e três eram ourives (12%).105
Cabe destacar o envolvimento de José Joaquim Vieira Couto, irmão de José Vieira
Couto, com a Maçonaria. Em 1795, foi indicado um novo Intendente dos Diamantes, João
Inácio do Amaral Silveira, que removeu pessoas e famílias que haviam se encastelado na
administração local, usufruindo de privilégios. Logicamente, encontrou fortes opositores.
Entre 1799 e 1803, a elite dos moradores do Tejuco pediu em petição à Coroa a destituição
102 Rio de Janeiro. Arquivo Nacional. Negócios de Portugal. Fundo 59. Códice 68. Vol.15. fs.184 -184v. LEITE, Paulo G. A Maçonaria o Iluminismo e a Inconfidência Mineira, Revista Minas Gerais, v.33, Belo Horizonte, 1991, p.18-23 103 GONÇALVES, Adelto. Gonzaga o poeta do Iluminismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000 104 OLIVEIRA MARQUES AH. História da Maçonaria em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1989. Vol. I – Das origens ao Triunfo. p.34. 105 Idem. Ibdem. p.125-6.
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do Intendente e reformas do sistema. Em 1801, como a decisão demorava, enviaram José
Joaquim Vieira Couto como seu representante junto ao Conselho Ultramarino.106
Uma vez na Corte, José Joaquim acabou preso e processado pela Inquisição. No
primeiro interrogatório confirmou que “que se lhe tinha em sua casa uma mulher casada e,
a secundária e conseqüente, foi o encontrarem-se na mesma casa vários papéis e aventais e
outras coisa que melhor constaram do auto da sua achada e presume que por se atribuírem
também aqueles à Maçonaria seria por este motivo [chamado] para a Inquisição”.107 Pela
segunda vez, estabelecia-se uma ligação concreta entre a elite esclarecida do Tejuco
participante da Inconfidência Mineira e a Maçonaria.
Como na Europa, a divulgação do Iluminismo em Minas Gerais ocorreu sobre um
substrato irreligioso e libertino, precedente e paralelo à difusão das idéias de revolução.
José Vieira Couto, na sua Memória Econômica de 1799, passados dez anos da
Inconfidência Mineira, ao falar dos mineiros e de si mesmo referiu-se a “nós portugueses,
[que possuímos] riquíssimas Minas”.108 A fala de Vieira Couto era puro jogo de retórica.
Em fins do século XVIII, a identidade comum entre portugueses de um lado e outro do
Atlântico, que até então unira os distantes pontos do império, fracionava-se. Se em seus
escritos o naturalista procurava estrategicamente aliar-se ao poder em busca de reformas do
sistema, por trás de suas palavras cifradas escondia-se o ardente revolucionário. Suas
posições se revelavam nos livros que leu, na participação na Inconfidência Mineira, nas
suas idéias indiscretamente reveladas à Inquisição. Em José Vieira Couto, como em muitos
ilustrados nas Minas Setecentistas, profundas imbricações relacionavam heresia,
libertinagem, Iluminismo, Maçonaria e sedição.
106 Administração Diamantina Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.2,1897,p.141-85. 107 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Processo 16.809. f.98v. 108 Idem. Ibdem. p. 67.