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ENSAIO DO TEXTO: UMA CONCEPÇÃO DE LEITURA DA DRAMATURGIA
por Elizabete Araújo da Silva
Possui graduação em Letras - Português e Inglês (2010) e Pós Graduação (lato sensu) em Literatura pelo Centro Universitário Padre Anchieta – Jundiaí / SP (2013). Atriz amadora desde 2002 participou de montagens teatrais, como, Romeu e Julieta, O Pagador de Promessas, Romance do Pavão Misterioso, O Abajur Lilás e A Vida é Sonho. O processo de montagem dessa última peça resultou no texto da sua Iniciação Científica: O profissional de Letras no teatro e a interpretação de texto: uma experiência com A Vida é Sonho de Calderón de la Barca (2010) e foi publicado nos Cadernos Letra e Ato v. 3, Junho de 2013, vinculado ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Foi idealizadora e organizadora do Concurso Literário de Cajamar edições 2011, 2012 e 2013, da Biblioteca Pref. Juvenal Ferreira dos Santos, vinculada à Diretoria de Cultura de Cajamar (SP), onde trabalhou como Agente Cultural de 2007 a 2008. Ministrou em 2013 a Oficina de Leitura Dramática aos alunos do Curso de Letras do Centro Universitário Padre Anchieta, onde atualmente leciona, no curso de Pedagogia, a disciplina Práticas de Leitura e Escrita.
ENSAIO DO TEXTO: UMA CONCEPÇÃO DE LEITURA DA DRAMATURGIA
Elizabete Araujo da Silva1
Introdução
No ano de 2010, foi entregue ao Centro Universitário Padre Anchieta de
Jundiaí, como Iniciação Científica, sob orientação do Professor Dr. Jaqueson Luiz da
Silva, O Profissional de Letras no Teatro e a interpretação de texto. Todo o processo
desta Iniciação teve como objetivo a busca por uma interpretação verossímil da peça
teatral A Vida é Sonho de Pedro Calderón de La Barca, pensada a partir da perspectiva
literária, mas que lhe conciliasse todo o sentido anterior que é o do próprio teatro e da
própria poesia pensada por Aristóteles em sua Poética. A montagem da peça, realizada
pelo Grupo Teatral Água Fria e apresentada em novembro de 2010, teve como
objetivo possibilitar ao ator, a partir da leitura intelectual, interpretativa detalhada e
fundamentada no texto, uma compreensão da obra, para que ele mesmo se tornasse
autônomo em suas composições cênicas no palco.
Durante os dois anos seguintes, a questão da pesquisa sobre o estudo e a
interpretação do texto repercutiu não só nas novas montagens do grupo de teatro, por
exemplo, O Abajur Lilás do dramaturgo brasileiro Plínio Marcos apresentada nos anos
de 2011, 2012 e 2013, como também em todos os trabalhos desenvolvidos por mim
para os módulos do curso de pós-graduação em Literatura, trazendo
consequentemente maturidade e outros questionamentos às hipóteses da pesquisa
iniciada em 2010, cuja continuidade pretendeu-se dar no trabalho monográfico e que
ora se apresenta neste ensaio.
Com o objetivo de tecer um percurso de ensaio de leitura para atores, foram
selecionadas as peças de um ato, comumente chamadas de esquetes, O Próximo de
1 Este ensaio é uma adaptação do trabalho monográfico, que foi apresentado ao Curso de Pós
Graduação Latu Senso em Literatura no Centro Universitário Padre Anchieta, sob a orientação do
professor Dr. Jaqueson Luis da Silva, a quem agradeço pela revisão do texto após as apresentações dos
esquetes.
Terrence McNally, O Túnel de Päer Lagerkvist e O da Mala de Sebastian Salazar
Bondy2. A primeira etapa do trabalho teve início com a leitura e estudo desses textos,
desejando-se nesse instante apurar as ações surgidas da própria tessitura criada pelos
dramaturgos e dirimir algumas questões quanto aos possíveis sentidos de cada obra.
Na sequência, para embasamento, fundamentação e aprimoramento da interpretação
foi mobilizada uma bibliografia de obras literárias, passíveis de comparação com os
esquetes; textos cuja teorização voltava-se para o estudo do texto literário, sua
interpretação, leituras e ações que surgem a partir deles e obras com abordagens
históricas acerca da leitura e do teatro.
Ansiando desenvolver questionamentos, como o da compreensão de uma peça
depender do espectador, por exemplo, apresenta-se neste trabalho a contra-questão
de que, quando o ator leva uma obra ao palco é ele de certa forma um leitor
apresentando à plateia a sua interpretação da obra, sendo assim, deve-se também a
ele que a interpretou a interpretação da assistência. A orientação, portanto, será uma
concepção de ator-leitor que perceba por meio da análise do texto que a ação a ser
construída cenicamente tem seu alicerce no próprio texto, cabendo ao ator observar
esse alicerce já construído, para assim elaborar dentro dos intervalos do texto a sua
interpretação e ação. A leitura e a palavra se efetuariam, então, práticas intrínsecas ao
proponente que se coloca na ribalta diante dos holofotes e dos ouvidos de uma
assistência, que ali se encontra para apreciar a mais bela, expressiva e difícil de todas
as artes, a arte da palavra.
O percurso de todo o processo teve como hipótese que a interpretação
efetuada pelo estudioso do texto poético e a que corporalmente aciona o ator seria a
mesma, ou seja, o texto não como mero apoio para as improvisações dos atores, mas a
fonte de propulsão de onde surgem as ações. A leitura de fruição apontada por Roland
Barthes em O Prazer do Texto, a leitura das fendas do texto, em que o ator adentraria
com a sua interpretação e com outras leituras.
2 Com exceção de O próximo, não encontramos os textos em traduções editadas. Os textos foram
gentilmente cedidos em mimeo por colaboradores a quem agradeço: o diretor de teatro Sergio Carvalho da Fonseca para O da Mala e o ator Hebert Guilherme para O Túnel.
Essa possibilidade de não encerrar as obras de arte com uma única
interpretação faz com que elas sejam sempre revisitadas e nesse caminho o ator tem
um papel fundamental, pois, além dos de personagens, ele é o cidadão que leva a
prática milenar da atuação. Por essência, o texto teatral é criado para ser encenado, e
frente a isso poderíamos dizer que temos conhecimento de muitas obras
dramatúrgicas mais por suas apresentações do que por suas leituras. Quantos atores já
devem ter pronunciado ao longo dos séculos “ser ou não ser, eis a questão” de
Hamlet, ou “meu reino por um cavalo” de Ricardo III, ou o elementar gemido de dor e
descoberta “ai mísero de mim”, de Édipo ou do rei Basílio em A Vida é Sonho. Quando
Aristóteles disse que a tragédia se manifestaria por si só e que o espetáculo mais
depende do cenógrafo do que do poeta (1991, VI-39), estava talvez nos apontando
que o nosso olhar e despendimento de tempo deveria se voltar para a força da palavra
e para a urdidura da trama, mais do que para os efeitos cênicos, afinal o que
permaneceu incólume ao tempo, como apontado acima, não foram as palavras?
Este ensaio, além de trazer o filósofo, por meio de sua Poética, para
desenvolver com suas proposições a interpretação do ator, também se pautou em
outros pensadores, que propõem a leitura como espaço de ficção, trabalho, similitude
e fruição como, Roland Barthes, Foucault, Ricardo Piglia, Leila Perrone Moisés e nos
que discorreram sobre a história da leitura, como Marisa Lajolo e Alberto Manguel e
sobre a história do teatro, como Margot Berthold e Sábato Magaldi.
A pesquisa sobre a importância da palavra no teatro, iniciada em 2010 com a
Iniciação Científica O profissional de Letras no teatro e a interpretação do texto A Vida
é Sonho de Pedro Canderon de La Barca, continuou com o desafio de experimentar a
força da palavra por meio da interpretação de três dramaturgias breves, sendo uma
delas retirada de uma coletânea de teatro contemporâneo e sendo todas elas do
século XX, época em que se praticava “a arte da redução”, como aponta Margot
Berthold (2010, p.01). De certa forma, muitos grupos de teatro da atualidade se
inserem nesse axioma apontado pela autora alemã, e com isso às vezes deixam de fora
o elemento fundamental para o seu trabalho, a palavra.
O ensaio de leitura aqui proposto é de dar a palavra aos textos O Próximo de
Terrence McNally, O Túnel de Pär Lagerkvist e O da Mala de Sebastian Salazar Bondy,
para construirmos uma interpretação acerca da tessitura criada pelos dramaturgos
para as ações concentradas num consultório médico, num túnel e numa estação
ferroviária, respectivamente. O que acabou se constituindo enquanto o processo de
leitura foi denominado Três instantes: o primeiro de dar a palavra - momento da
leitura; o segundo tomar a palavra – momento da apropriação do texto, da
interpretação e da escrita; e o terceiro ter a palavra – momento da ação.
1. Dar a palavra - uma leitura da leitura
A palavra há muito tempo ocupa um lugar de importância entre nós.
O seu mérito já foi pronunciado num antigo livro da cultura ocidental, em que o
protagonista para dar origem ao universo tornou as coisas visíveis somente após dizê-
las, “Disse Deus haja luz, E houve luz” (GÊNESIS – 1,3). Fomos criados, portanto, em
meio às palavras:
O que Deus depositou no mundo são palavras escritas; quando Adão impôs os primeiros nomes aos animais, não fez mais que ler essas marcas visíveis e silenciosas; a Lei foi confinada a Tábuas, não à memória dos homens; e a verdadeira Palavra, é num livro que a devemos encontrar. (FOUCAULT: 2000, p.53).
Será “num livro”, conforme escreve o filósofo, que devemos buscar a
verdadeira palavra, formando com essa ação um mundo a ser percorrido, que é na
verdade um mundo de diversas leituras, no qual o papel de criador, ou seja, de leitor
de marcas visíveis e silenciosas nos caberá, pois “Deus fez o homem à sua imagem”
(GÊNESIS – 9,6), o que justifica de certa forma o fato do homem ter desejado e
possuído o fruto da “árvore do entendimento” (GÊNESIS – 3,6). Ele necessitava de
conhecimento e ao comer o fruto se assemelhava nesse instante ao criador, abrindo os
olhos para o bem e o mal e adquirindo a partir daí mais de uma leitura possível para o
mundo onde vivia, ele se tornou capaz de dizer as coisas; e se o criador criou as coisas
por meio das palavras, agora o homem também a tinha.
Podemos notar que a palavra foi e é importante para o ato da criação, por meio
dela designamos as coisas do mundo físico ou psíquico, tornando-os visíveis. Contudo
a leitura das coisas não se fez com frescor e limpidez, mas com desvio e sendo assim, é
compreensível o medo que impede o leitor de enfrentar textos que o farão fruir, pois
foi fruição para Adão ter estabelecido contato com a árvore do conhecimento, do
contrário ele não teria temido e se escondido quando o criador o chamou (GÊNESIS –
3,6). Talvez ele soubesse qual seria a partir daquele momento o caminho de quem
passa a vida lendo. Lembremo-nos do maior exemplo, Dom Quixote, com as suas
cicatrizes adquiridas ao final de cada empreitada cavaleirística e emergidas na
verdade, dos livros que havia lido. Essa criação de outro universo de “escrever uma
leitura e tornar visível o que se leu” (PIGLIA: 2006, p. 24) lançada por Dom Quixote, já
nos dizia como seria o corpo daqueles que se predispusessem à leitura. Ou ainda,
quando Ricardo Piglia, numa referência a Borges (Idem, p.19), apresentando-nos o
último leitor como aquele que queimou os olhos na luz da lâmpada, talvez possa nos
ajudar a entender o medo desse primeiro leitor, Adão, por ter ingressado no mundo da
palavra. Édipo também ficou cego no instante que enxergou e leu o mundo ao seu
redor.
Perante isso, a pergunta se faz inevitável: por que, então, esses personagens
leem? Foi com uma indagação semelhante a essa que o jornalista Daniel Pizza
disponibilizou recentemente à massa uma das possíveis respostas, “é por meio da
leitura que eles percebem tanto a prisão onde vivem como as possibilidades de
libertação”.3 Considerando, portanto, as leituras que, por exemplo, Hamlet, Bovary,
Robson Crusoé e Dom Quixote faziam para construir os seus universos perceberemos
que ler também é “fazer trabalhar o nosso corpo” (BARTHES: 1984, p. 28), ou, para
amenizar a situação e ir ao encontro da nossa atual sociedade, ler é musculação, em
que o corpo se desenvolve em busca da perfeição grega desejada. Todavia, a
musculação aqui abordada se distancia mais do atleta Milo de Crotona do que do
pensador Aristóteles. Sendo a perfeição uma das buscas dos intérpretes, seria possível
então uma leitura perfeita?
3 http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/por-que-leem-os-grandes-personagens/ 28 de maio de 2013.
Enquanto aquele que age com o que leu, como os personagens citados acima, o
ator seria de fato o não resistir à leitura, não resistir à interpretação com o próprio
corpo. Nesta pesquisa quando falamos de leitura, falamos o que vamos aqui designar
leituras-livres, não nos referimos prioritariamente às leituras instrumentais, que como
explica Roland Barthes em O Rumor da Língua (1984, p.33) “são necessárias à
aquisição de um saber, de uma técnica, e segundo os quais o acto de ler desaparece
sob o acto de apreender”. Sobre estas leituras instrumentais, Michael Chekhov (que foi
membro do Teatro de Arte de Moscou fundado por Satanislavski) com o seu livro Para
o Ator (1996) faz reflexões sobre exercícios cênicos e com o capítulo Composição do
desempenho (p. 119), no qual o texto parte da análise de Rei Lear, de William
Shakespeare, demonstra como a inevitável experiência da leitura e da interpretação
contribuiria numa composição de personagem. As sugestões técnicas tecidas surgem
do destrinchar que o autor faz da peça de Shakespeare. Quando lemos no capítulo
Como abordar o papel “Assim, logo que você receba seu papel, comece lendo a peça
várias vezes...” (p.163) percebemos que mesmo nos manuais, de qualquer modo,
somos orientados a uma necessidade de leitura.
Embora “em suas formas mais modernas a propagação da leitura depende
ainda de uma valorização positiva de lazer” (LAJOLO: 2003, p. 16), no que se refere às
leituras-livres seria bom frisar que esse livre é o que engloba leituras que, por meio do
rigor de sua efetivação, liberte-nos para criar e não um livre “vale tudo”. Se
pensarmos que no palco também somos criadores, veremos a necessidade dessas
leituras-livres, pelas quais tornaremo-nos uma espécie de leitor “capaz de produzir o
texto, jogá-lo, desfazê-lo, fazê-lo partir” (BARTHES: 1984, 60), ou seja, interpretá-lo.
Enquanto atores, geralmente, partimos de uma análise acerca do texto que
iremos interpretar no palco, afinal “antes de agir, é preciso ler” (PIGLIA: 2006, p. 148).
Debruçamos-nos sobre ele para compreender cada linha escrita pelo dramaturgo, ou
para compreendermos, grande parte das vezes, somente o nosso personagem. Pois
bem, sabemos que compreendemos o mundo conforme o nosso conhecimento, Adão
não tinha a leitura do bem e do mal até o momento de comer o fruto da árvore do
entendimento. As leituras-livres seriam, portanto, os frutos de uma árvore que nos
auxiliaria a ler o Éden. Podemos fazer a travessia literária dentro da literatura
dramática, mas podemos além disso mobilizar toda a literatura, abrangendo o que se
costuma chamar de outros gêneros literários. A tessitura de Homero, Victor Hugo,
Cervantes, Dante Alighieri, Dostoiévski, Alan Poe, Kafka, Borges, Clarice Lispector e
Carlos Drummond, por exemplo, diferem-se uma das outras, pois cada um ao seu
modo cria a sua literatura, sendo essa travessia, a tessitura da trama percorrida por
eles, que nos interessará enquanto atores criadores, para a corporificação do texto
dramático no palco. É um caminho que ultrapassa a leitura de decodificação,
[...] admite-se geralmente que ler é decodificar: letras, palavras, sentidos, estruturas, o que é incontestável; mas ao acumular as descodificações, visto que a leitura é por direito infinita, ao retirar o mecanismo de segurança do sentido, ao pôr a leitura em roda livre (o que é a sua vocação estrutural), o leitor é tomado numa inversão dialética: finalmente, não descodifica, super-codifica; não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: é essa travessia (BARTHES: 1984, p. 37).
Fechar-se ao texto teatral que se pretende montar sem perceber as infinitas
leituras que por hora ele possa apontar é obstruir as potencialidades desse texto.
Precisamos simpatizar, segundo o método de Foucault, essas leituras acumuladas ao
texto, o qual pretendemos interpretar, ou seja, aproximá-las:
[...] de sorte que cada semelhança só vale pela acumulação de todas as outras, e que o mundo inteiro deve ser percorrido para que a mais tênue das analogias seja justificada e apareça enfim como certa. É, pois, um saber que poderá, que deverá proceder por acúmulo infinito de confirmações requerendo-se uma às outras (FOUCAULT: 2000, 41-42).
Assim, quando fecharmo-nos ou sermos fechados novamente nesse texto,
perceberemos por meio da semelhança entre ele e os outros um grande texto único e
também plural (BARTHES: 1984, p.57); e essa percepção para o filósofo autor de A
prosa do mundo em As palavras e as coisas (2000, p. 47), só se dará com quem sabe
ler. Diante da simpatização dessas diversas leituras trabalhadas lado a lado, a Babel
feliz (BARTHES: 2006, p. 8), alcançaríamos o prazer do texto.
Para pensar a respeito dos esquetes, as leituras-livres de A Construção de
Kafka, O Poço e o Pêndulo de Alan Poe, Memórias do Subsolo de Dostoiévski, O
Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo, O Búfalo de Clarice Lispector, A casa de
Astérion de Borges, Dom Quixote de Cervantes, A Bolsa de Carlos Drummond, Ricardo
III de Shakespeare, o inferno tecido na Odisseia, na Divina Comédia e na Bíblia, são
percursos necessários, no sentido poético de necessidade, ou seja, inevitável, como
prescreve Aristóteles sobre o encadeamento das ações na mimesis (X - 59).
Nesta pesquisa, o foco foi a proposição de leitura no corpo do texto e nos seus
membros, ou seja, as outras leituras que o texto poético de teatro traz tramado em si.
Porém, se não há tempo, lamentavelmente por questões que extravasam a arte, para
o poema, o romance, o conto, a crônica, a ficção, a novela e o ensaio, pelo menos que
haja para a própria dramaturgia.
No tocante aos atores, não é espanto enquanto cidadãos na “função social” de
leitores (LAJOLO: 2003, p. 14), que apresentem um repertório singelo da literatura e
especificamente da dramática:
[...] a literatura dramática vem procurando impor-se, continuamente, entre nós. Na própria França, que passou a ser, a partir do Romantismo, a fonte quase única das nossas experiências cênicas, a dramaturgia se coloca, pelo menos desde o século XIX, em posição inferior à dos outros gêneros literários (MAGALDI: 2004, p. 10).
E no sistema educacional brasileiro, quando é abordada, não passa de Gil
Vicente ou muito de José de Alencar, como se nada além e desde ambos tivesse sido
escrito. Vale lembrar, entretanto, que tal abordagem é assegurada por um manual
autorizado que traz um “estudo estereotipado da literatura” (BARTHES: 2012, p. 46)
partindo da análise dos autores, os movimentos e as escolas literárias e não do mais
importante, o corpo do texto literário. A escola enquanto instituição de linguagem
torna-se, então, como aponta Barthes (2006, p. 50) uma “máquina repisadora que
rediz sempre a mesma estrutura”. Cabe-nos aqui, enquanto constantes professores
pesquisadores, ler essa estrutura proposta e analisar porque e como ela se formou,
sendo o caminho para isso, inevitavelmente, as leituras livres, nas quais o texto poderá
nos surpreender ao “destruir até o fim, até a contradição, sua própria categoria
discursiva, suas referências sociolinguísticas (seu ‘gênero’)” (BARTHES: 2006, p.39). A
abordagem se faria numa travessia inversa, como a proposição de leitura desta
pesquisa, ou seja, partir das leituras-livres, o texto literário antes das leituras
instrumentais, o manual. Partir do que liberta, para analisar o que aprisiona. Mas
prossigamos.
Para ampliarmos, pelo menos, a abordagem de dramaturgos brasileiros,
citamos aqui Sábato Magaldi, que mesmo com ressalvas quanto à eficiência de alguns
textos escritos para o teatro brasileiro, apresenta em seu Panorama do teatro
brasileiro (2004), uma relação considerável de dramaturgos que vai de Padre Anchieta
à “global” Maria Adelaide Amaral, passando por Manuel Botelho de Oliveira, Cláudio
Manoel da Costa, Alvarenga Peixoto; no século XIX pelas figuras “dominantes do nosso
teatro” (idem, p.115) Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, Joaquim Manoel de
Macedo, José de Alencar, França Junior, Arthur Azevedo e Gonçalves Dias; pelas
figuras secundárias Noberto e Silva, Teixeira e Souza, Araujo Porto Alegre, Paulo do
Vale, Agrário de Menezes, Bungain, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães e Castro
Lopes; por Álvaro de Azevedo, Castro Alves e Machado de Assis; no século XX, por João
do Rio, Roberto Gomes, Paulo Gonçalves; pelos que realizaram uma dramaturgia para
atores, Cláudio de Souza, Armando Gonzaga, Renato Viana, Álvaro Moreira, Joracy
Camargo, Oduvaldo Viana, Paulo de Magalhães, Oswald de Andrade; no panorama
contemporâneo, Abílio Pereira de Almeida, Gianfrascesco Guarniere e Nelson
Rodrigues; incorporando as fontes rurais, Jorge Andrade; em busca do popular
religioso, Ariano Suassuana; marcando o terreno da linguagem, Raquel de Queiroz;
ainda, Dias Gomes, Augusto Boal, Millôr Fernandes, Osman Lins, José Martinez Corrêa,
Benedito Ruy Barbosa, Maria Clara Machado, João Falcão, Plínio Marcos, Carlos
Alberto Soffredine, Luís Alberto de Abreu, Maria Adelaide Amaral etc.4 Há que se
destacar a relevante presença de escritores de outros gêneros literários nessa relação,
que, como aponta Magaldi (idem. p. 262), deve-se à falta de preparo de tantos
dramaturgos, uma vez que a nossa história não é dessa prática (idem. p.110). Mas
enfim, esse não é nem de longe o panorama de dramaturgos lidos e frente a isso o que
fica da literatura, especialmente da dramática, após os anos escolares?
4 A relação deve-se estender aos nossos contemporâneos e suas dramaturgias construídas ora
coletivamente, ora por um ator dramaturgo do próprio grupo, como o Teatro da Vertigem, Galpão, Parlapatões, Patifes & Paspalhões, A Cia dos Atores, Os fofos encenam, Club Noir e tantos outros grupos e dramaturgos, cujo periódico, a tese e o livro ainda não apontaram.
Se nos ativéssemos a um inventário objectivo, responderíamos que o que continua da literatura na vida adulta é: um pouco de palavras cruzadas, jogos televisivos, cartazes de centenários de nascimento ou de morte de escritores, alguns títulos de livros de bolso, algumas alusões críticas no jornal, que lemos por razões totalmente diferentes, para nele encontrarmos tudo menos essas alusões à literatura (BARTHES: 1984, p. 39).
Embora seja aos franceses a que o autor se refira, o nosso inventário não sairia
muito diferente. Inevitavelmente tínhamos de iniciar o trabalho com a pergunta “o
que é leitura e o que é um leitor?” para nos situarmos dentro dessa cultura de leitura
advinda da escola pública, mas também problemática no que se denomina ensino
particular, não em muito melhor situação, talvez até saturada de manuais, e presente
em cada ator, para somente aí apresentarmos outras possibilidades.
A pergunta ‘o que é um leitor’ é sem sombra de dúvida, a pergunta da literatura. Essa pergunta a constitui, não é externa a si mesma, é sua condição de existência. E a reposta a essa pergunta – para beneficio de todos nós, leitores imperfeitos porém reais – é um texto: inquietante, singular e sempre diverso. (PIGLIA: 2006, p. 25)
Em relação ao que seria a leitura, o mesmo autor citado acima aponta-nos um
caminho, quando, a respeito de Finnegans Wake de James Joyce e Dom Quixote de
Cervantes, diz que a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida; da qual
infelizmente ainda estamos um tanto distantes.
Em As revoluções da leitura do ocidente5, Roger Chatier escreve que no século
XIX as disciplinas educacionais que eram impostas tinham como tendência definir uma
norma única, controlada e codificada de leitura. Essa tendência talvez permaneça
entre nós, principalmente no quesito controle, quando em pleno século XXI temos em
pauta discussões acaloradas a respeito de um autor ter sido racista, nazista,
contrabandista e outros “istas”, por sua obra de ficção apresentar algum personagem
com essas características. Chatier mais adiante) escreve que “aparentemente passiva e
submissa, a leitura é, em si, inventiva e criativa” (idem, p.31). Considerando isso, as
tendências educacionais citadas acima deveriam ser repensadas. Mas, enquanto não
são ainda, é pertinente e atual questionarmos, o que é leitura?
5 In: ABREU: 1999.
Recorrendo ao dicionário Houaiss (2009, p. 457), considerando-o também um
texto imbuído de ideologia, leremos, entre os significados apontados, que leitura é “o
ato ou hábito de ler; maneira de compreender um texto, uma mensagem, um fato.”
Como escrevemos sobre o teatro, é necessário recorrer também à ação, ao verbo; para
tanto, o mesmo dicionário apresenta os seguintes significados para a palavra “ler”,
Percorrer com a vista (texto, palavra, sintagma), interpretando-o, decifrando-o, falando em voz alta ou não; examinar, estudar (conteúdo de texto, obra etc.); interpretar, compreender (ideia, conceito, etc.); atribuir significado, sentido ou forma a; interpretar; perceber a partir de indícios, deduzir; predizer por meio de presságios; adivinhar; decifrar, reconhecer (informação) por mecanismo de leitura própria (p.459).
Diante dessa transcrição, é perceptível a relevante demanda de ações para a
concretização da leitura e, uma vez que “o que é próprio do saber não é nem ver nem
demonstrar, mas interpretar” (FOUCAULT: 2000, p.55), é natural que a ação a
sobressair no ato de ler seja a interpretação. Ler para saber viver. Nas artes cênicas, há
quem prefira ser chamado inclusive de intérprete em vez de ator, contudo poderíamos
pensar que ser intérprete seria uma das competências primordiais ao ator, seria o seu
predicado, assim como a palavra leitor, pois a interpretação é intrínseca à leitura, que
é uma ação, e vale ressaltar diante disso que cabe ao ator agir. Se ler é hábito, ato, e
ação, logo, não deveria haver um “vale” entre essa prática e o ator. É neste sentido
que agir no teatro seria a maior evidência do que diz Barthes sobre ler ser o trabalhar
com o corpo, ou seja, a presença.
Já dizia Aristóteles na Poética (1991, VI - 39) que a tragédia se manifestaria
mesmo sem representação e sem atores e que o espetáculo por sua vez, era outra
etapa que mais dependia do cenógrafo do que do poeta. O filósofo não estava
desmerecendo com isso o espetáculo, mas simplesmente nos apresentando o poder e
a força da palavra e como falamos aqui do corpo do texto, inferimos que teríamos a
“inspiração” para a encenação de uma peça nela mesma. Em relação aos atores, a
leitura se apresentaria como exercício intelectual tão fundamental como os exercícios
físicos para o corpo e a voz, preparados geralmente para dar vida a uma dramaturgia,
que sendo excelente se manifestariam por si só, o que nos restaria seria por meio da
leitura e interpretação fazer essa excelência emergir, para com isso as habilidades
físicas e vocais não ficarem apenas na esfera dos efeitos.
Vale ressaltar que não apresentamos aqui a leitura somente de
esquematização, por exemplo, de lado bom ou ruim dos personagens, ou os climas,
ritmos acelerados ou lentos das falas e uma série de outros tópicos a serem
preenchidos. Esse fichar proporcionaria mais preenchimentos de lacunas do que
escrita e criação. A busca é por uma leitura em todas as fendas do texto, para
compreender não o que o personagem é, mas o que é esse todo, o texto, no qual ele
age. Em vez de buscar as metodologias no manual, o ator pode decompor o texto para
criar a sua própria metodologia de trabalho, foi ao encontro disso que surgiu a
proposta de ensaio de leitura nomeado de Três instantes, dar a palavra - momento da
leitura; tomar a palavra – momento da apropriação do texto, da interpretação e da
escrita; ter a palavra – momento da ação. Pois ainda que o texto frequentemente
“grite” nos nossos ouvidos e sinalize aos nossos olhos para ser “ouvido” e lido, além de
nos oferecer outras leituras necessárias a sua compreensão, optamos na maioria das
vezes em preencher tópicos, mas por quê?
Dar a palavra ao texto é dar a ele as rédeas para guiar a carroça, que poderá
nos levar por um caminho de pedregulhos e de perda aonde a princípio não
desejávamos ir, um caminho que desconforta e faz vacilar as nossas bases históricas,
culturais e psicológicas, na verdade um caminho de fruição (BARTHES: 2006, p. 20-21).
Por outro lado, encaixar tudo o que já se escreveu ou foi dito desse texto pode ser
mais cômodo, ingenuamente acreditamos que alguém já fez o trabalho e fruiu por nós.
Mas falamos aqui do corpo do texto, ou seja, como escreveu Brás Cubas em seu
prefácio ao leitor, “a obra em si mesma é tudo” (ASSIS: 1969, s/ p.), ou pelo menos é
essa a sentença na qual deveríamos pensar no momento de analisar um texto, até
porque aquilo que já existe sobre ele poderá vir, ao encontro, ou de encontro, ao que
esse texto disse para nós enquanto seus leitores.
A experiência de o lermos pela primeira vez sem intermediários é necessária e
válida, tal qual o momento que nos colocamos à frente, por exemplo, de Campo de
Trigo com Corvos de Van Gogh, e sentimos, ainda que muito se tenha falado sobre essa
obra, um maior ou menor êxtase, espanto, estranhamento ou decepção, sendo a
interpretação de nada naquela tela se encontrar em estado de tranquilidade o mais
verossímil à obra. Na leitura de um texto, geralmente, partimos do que já se conhece
dele, mas se avançarmos e lermos além das palavras, lermos também as fendas entre
elas, daremos nova vida para esse texto e desde que ela seja verossímil o porá em
movimento. Não vale o desgaste, portanto, de tirar as suas rédeas, pois o prazer e a
leitura estão como disse Barthes “onde a estrutura perde o Norte” (1984, p. 38), nos
desviaremos é verdade, mas “o estremo desse desvio se chama poesia” (PERRONE-
MOISÉS: 1990, p.14). Ao nos disponibilizarmos para uma leitura de enfrentamento,
daremos a palavra ao texto e estaremos abertos para melhor compreendê-lo, pois
rompendo a sua estrutura e adentrando em suas fendas a palavra e o leme poderão
ser tomados para criarmos a interpretação e escrita e será nesse instante de leitura-
livre que, paradoxalmente, perderemos-nos para nos encontrar.
As leituras-livres não são momentâneas, não a encontraremos em obras
encerradas com o virar da última página, ou cuja trama e tessitura corriqueiras
confortam e tudo explica. Estas leituras são as que desconfortam e nada explicam; são
passíveis de interpretações, instigam o nascer de mais literaturas; paradoxalmente são
as que prendem o leitor por ser intrínseca a elas uma tessitura, na qual precisaremos
sempre retornar.
2. Tomar a palavra – uma escrita da leitura
Enquanto lemos também escrevemos (BARTHES: 1984, p. 28), a nossa escrita
acerca de um texto se faz no mesmo instante em que o lemos, sendo assim, a primeira
escrita surgida nesta pesquisa foi realizada pelo letrado, o qual represento, no
momento da seleção dos esquetes. Essa primeira leitura, que inevitavelmente não
escaparia à análise literária comum a quem pertence a essa área, culminou no texto de
base que propõe as possíveis linhas interpretativas para a corporificação do texto no
palco, assim como as outras leituras-livres, já citadas no capítulo anterior, presentes
em cada esquete, surgiram igualmente nesse instante.
A segunda escrita, dentro da proposta aqui apresentada, ainda se permeia do
método do leitor literário que me formei em direção e compreensão com o que
supostamente será a dos atores, que discorreriam num primeiro momento a respeito
do texto que iriam interpretar, baseando suas análises na leitura do corpo desse
próprio texto e menos na leitura fragmentada somente da sua fala ou das rubricas, o
que de início poderia parecer muito viável. Nesse instante, a presença do letrado e do
seu texto sobre os textos, fez-se importante para ampliar a leitura e trazer à luz
algumas questões que provavelmente contribuíram para a palavra se corporificar no
palco. O foco voltou-se para o texto fundamental ao teatro, Poética (1991, VI – 37), no
qual a elocução é denominada como o enunciado dos pensamentos por meio da
palavra.
Entre as definições para palavra no dicionário Houaiss (2009, p. 551) temos
“unidade da língua, constituída de um ou mais fonemas, que se transcreve
graficamente entre dois espaços em branco.” Além de nos voltarmos para as palavras
que “se propõem aos homens como coisa a decifrar” (FOUCAULT: 2000, p. 47) também
precisamos voltar nossos olhos para esses espaços em branco e assim, na tentativa de
preenchê-lo construirmos a nossa interpretação e a nossa escrita, travessia essa
proposta pelo letrado, que juntamente com suas referências apresentadas para
nortear e respaldar as peças, pôde motivar a escrita de um texto que alicerçou a ação
dos atores no palco.
Essa direção literária, cujo profissional de Letras pode realizar, é apenas
relembrada aqui como fator importante ao teatro, pois em meados de 1897, quando
Stanislavski, uma das maiores referências para o teatro brasileiro, fundou o Teatro de
Arte de Moscou, tinha ao seu lado o escritor Vladímir Ivanovitch Nemirovitch-
Dantchenko ocupando a função de diretor literário (BERTHOLD: 2010, p. 462).
Pensamos no ocupante dessa função, entretanto, mais do que um profissional que
dirigirá uma leitura. Seria ele um sujeito que proporcionaria escrita e criação, como
podemos ler na interpretação dos esquetes O Próximo, O Túnel e O da Mala, instante
no qual o profissional de Letras tomou a palavra para escrever a leitura dele e dos
atores.
2.1 O Próximo
Há os que amam por vontade de amar e os que amam por obrigação
Há os que servem para amar e os que têm obsessão em amar
Há os que têm obsessão em servir e os que servem altruisticamente
(e há os que servem para serem servidos)
Há os que não querem amar nem servir e há os que não querem ficar de fora
do amor,
Ainda que seja mascarado e doentio.
Marion Cheever é um operário da arte – trabalha num teatro – e tem em média
quarenta anos. Sargento Thech é um operário do governo responsável em avaliar os
cidadãos convocados para servir o exército americano.
Uma das questões que se estabelece em O Próximo, peça de 1969 escrita por
Terrence McNally é o patriotismo imposto aos cidadãos americanos, Sargento Thech
representa o governo categórico que não “comete erros” e que define o melhor
caminho para seus cidadãos, Marion Cheever representa uma parcela desses cidadãos
que ironiza, a princípio, e questiona esse governo. Por meio de uma consulta médica
singular, esse personagem tenta demonstrar como o sistema do governo para
selecionar soldados para o exército não passa de um ato de catar feijão, em que se
separam os grãos bons, aptos a servir, dos velhos e podres, McNally traz assim o que
seria ser patriota numa pátria que trata seus cidadãos como simples armamento de
guerra, fazendo-nos pensar em como deveríamos proceder quando a nossa vida é
posta nas mãos de um governo ou instituição, cujos olhos nos veem como ferramentas
para o seu interesse, muitas vezes camuflado de patriotismo.
Marion é a figura de um cidadão insatisfeito com a pátria e consigo mesmo, ele
vê o consultório, local onde poderiam ouvi-lo, ser exatamente o oposto; a sala de
consulta não passa apenas da minimização do país, que deseja ouvir o cidadão
respondendo objetivamente e somente às suas perguntas. Entretanto, Marion não
pode ser excluído dessa engrenagem, cuja peça chave é Thech, ainda que esse
represente um cumpridor da ordem e aquele um descumpridor, ambos são os
diferentes personagens da mesma tragicomédia chamada sociedade. Há nesse jogo
“acordo estrutural entre a forma contestante e a forma contestada” (BARTHES: 2006,
p. 65). Marion seria muito comum se simplesmente agisse contra a ordem, mas ele
traz à ribalta àquela consciência pouco exteriorizada por esses tipos de
questionadores, a frustração e decepção por ouvir que não é útil, visível nem apto para
servir a sua pátria, chegando num ponto crucial de nos fazer pensar até que momento
aguentaríamos não ser aceitos pelo que está instituído, até que ponto nós
sustentaríamos a nossa indiferença sem ceder aos testes realizados pelos sargentos
Thech’s com ou sem farda. Marion Cheever ao aceitar entrar na sala no início da
dramaturgia dizendo “se todo mundo faz assim, por que não eu?” aceita se enquadrar,
mas, quando ouve que não presta, tudo muda, revelando um dos tantos medos de
todo cidadão, não fazer parte e nem ser reconhecido pela massa de seus semelhantes.
Sendo os testes realizados passíveis de gozação por parte de Marion,
compreende-se que eles eram simplistas e equivocados, logo, fáceis. Porém ele é
reprovado por não ter respondido o que a ordem do discurso, pensamos com
Foucault, esperava e pior, porque as suas respostas a essa ordem eram outras
perguntas: ele é incoerente coerentemente.
A sátira impiedosa de Marion bate na rocha impermeável chamada sargento
Thech e não faz efeito, não o desestabiliza para fazê-lo perder-se e a partir daí pensar
na imbecilidade que praticava repetitivamente ao esperar apenas sim ou não como
respostas aos testes aplicados nos cidadãos convocados para uma guerra, “Mas dizei-
me, meus senhores, se bem o tendes considerado, não são os premiados e
gananciosos na guerra muito menos que os que morreram nela?” (D. Quixote, Parte I,
cap. XXXVIII, p. 229). Marion sabia a resposta dessa pergunta, mas talvez desejasse que
quem a tivesse feito fosse o sargento americano e não Dom Quixote, no sensato
discursou que teceu sobre as armas e as letras. Quando revive todo o exame no final
do esquete se passando por um sargento Thech compreensível, prestativo e de
ouvidos presentes, Marion demonstra que também obteríamos o mesmo resultado,
não prestaríamos para recrutas. Na verdade aos que fazem perguntas ao invés de
somente responder objetivamente as questões impostas, sempre será dado como
rótulo da quarta categoria, afinal o que se faria com as letras em meio às armas?
O mais paradoxal é que Marion tenta do início ao fim do teste estabelecer uma
guerra, ou melhor, um conflito com Thech, que age, por sua vez, numa espécie de
reflexo do governo de seu país, com hostilidade. Nesse instante o “trágico acontece de
acordo com uma fórmula sucinta mas inteiramente correta, quando o que deve ser
não pode ser ou quando o que não pode ser deve ser” (JOLLES: 1976, p. 200). A guerra
é trágica nesse sentido, pois ela não é caminho mais adequado, mas deve existir, e a
paz que deveria existir não se pode impor.
Ao terminar a peça como ela começou, chamando o próximo, Marion nos
demonstra que esse círculo não se modificaria, continuaríamos sem poder questionar
instituições, que na figura de Thech nos mostra saber o melhor para todos, sem
nenhum momento parar e ouvir quem faz parte desse todo. Todavia, considerando o
mercado capitalista e consumista americano, faz sentido Marion ser tratado como
produto e mostrar a rotatividade de pessoas naquela sala ao chamar o próximo, o que
deveríamos pensar é, será que esse tratamento se deu somente num cenário de
recrutamento de soldados para a guerra no Vietnã? Atualmente somos ouvidos ou
ainda somos separados em primeira, segunda, terceira e quarta categoria, essa última
a que Marion ocupava. Refletir sobre a categoria na qual dizem a que pertencemos é o
que se mostra atemporal. Participamos cotidianamente daquela dança da cadeira, em
que não há cadeira para todos e quando a música pausa uns tentam sentar
rapidamente, outros empurram para derrubar alguém e garantir o seu acento e outros
fingem que não conseguiram sentar, Marion tenta se passar por esse último em
grande parte da dramaturgia, mas quando percebe que na verdade ele é quem não
cabia nas cadeiras, sente-se fora da brincadeira, e não por vontade própria, mas por
desproporção e desenquadramento, e disso ele não gosta.
2.2 O Túnel
O mundo é múltiplo e nunca faltam as surpresas desagradáveis. (FRANZ KAFKA)
Viver é errar, perder-se, peregrinar como numa novela de cavalaria, o Quixote,
por exemplo, para tentar encontrar-se. É traçar um percurso labiríntico, cuja saída dar-
se-á por meio da narração e interpretação do que vivemos, como procedera a mulher
no zoológico do conto de Clarice, o Astérion de Borges, o personagem do poço de Poe
e o mestre das escavações da Construção de Kafka. É materializar a memória nas
palavras narradas para reconstruir o caminho.
Em O Túnel de 1918 escrito por Pär Lagerkvist é isso que acontece com o
personagem Um Homem, que após um acidente de metrô narra a sua história na
busca de compreender o que lhe aconteceu. No túnel onde se encontra tem à sua
sombra o seu amigo Jorge, O Corcunda, que o ouve pacientemente. O diálogo entre
ambos tem início somente quando se estabelece o conflito, a lembrança de O Homem
ter almejado a mulher que Jorge amava.
Um Homem é um personagem extremamente elegante e seguro, que atribui
naturalidade a sua traição ao fato de seu amigo ser deficiente. É um personagem que
narra sem pudor os valores que ele atribuiu aos outros sujeitos. Define, por exemplo,
como “mesquinha criatura” O Corcunda, como “gorducho ridículo, tipo confiante em si
próprio” um homem que ocupava o mesmo vagão que ele no trem e como sendo
“todas a mesma coisa”, a mulher que Jorge amava, a qual ele acredita ter conquistado.
Seguindo esse mesmo percurso de rotulação, Um Homem demonstra na verdade a sua
própria mesquinhez, quando diz que “não havia motivo especial para tomar o
metropolitano, pois ia de taxi, todavia, o metropolitano era mais barato”, ou seja,
pagou mais barato para morrer; demonstra o seu ar de sujeito confiante em si próprio,
ao descrever que com desdenho e sobranceria fez a mulher se apaixonar por ele; e por
fim, a própria indefinição do que é, Um Homem, demonstra o paradoxo ao comentário
que teceu sobre a mulher, pois ele é também “a mesma coisa”, não há menção nem
sequer do seu nome, ele não é singularizado, é simplesmente um homem num espaço
metafísico narrando seu passado e ignorante do seu presente. Porém, esse desdém
com a mulher só vem demonstrar na verdade que para ele o que estava em jogo acima
de tudo era conquistá-la mais para o enriquecimento de sua virilidade do que por
amor. Percorrendo toda a trama seguro, prepotente e orgulhoso por acreditar ser uma
espécie de “galã”, ao lembrar-se dos fatos não narra em nenhum instante que
titubeou no momento de olhar a mulher que seu amigo amava. Nessa caça não havia
espaço para a sua consciência. Ele se afastou dela tal qual certo personagem criado
por Shakespeare em Ricardo III:
2º Assassino: Não me meterei com ela: é coisa muito perigosa;
faz o homem covarde; não se pode roubar, que ela
o acusa; nem praguejar, que ela reclama; nem dormir
com a mulher do vizinho, que ela descobre; é
um espírito pudico e encabulado que cria tumultos
no peito do homem, enche a gente de obstáculos;
[...]
é expulsa de vilas e cidades
como perigosa; e todo homem que deseja viver
bem aprende a confiar em si mesmo e a viver sem ela.
(SHAKESPEARE: 1993, p. 50)
Contudo, se o nosso Homem conseguiu viver sem a sua consciência, agora no
túnel não era mais possível, pois ela se mostrava talvez sem ele perceber, por meio de
suas justificativas a respeito da traição que cometeu. Categoricamente ele tem a
necessidade de afirmar que não teve culpa nenhuma, “ela é que se apaixonou sem que
eu tivesse feito nada para isso” e ao tentar se isentar de alguma culpa está
consequentemente afirmando a existência de uma, o que para Jorge é um prato cheio.
Jorge ouve ironicamente e joga com os titubeios de memória do Homem que
acredita ser conhecedor da situação planejando o seu futuro sem saber que está
morto. Jorge aqui é o personagem que detém o poder por ser o leitor que conhece a
história, ele passa a ser no decorrer da trama a melodia que perturba a cabeça do
Homem, que se encontra numa condição de ignorante perante os fatos até o instante
que começa a perturbar-se e a rememorar toda a história do triângulo amoroso
chegando a narrar a morte do amigo e tornar-se ele também conhecedor do tempo e
espaço narrativo e consequentemente de sua morte. Há o reconhecimento, que
“como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer,
que se faz para a amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a
dita ou para a desdita” (ARISTÓTELES: 1991, XI – 61). Após enxergar essa claridade não
resta mais nada a narrar e sendo assim Um Homem parte. No final “o universo não foi
mais do que noite, silêncio e imobilidade” (POE: 2005, p. 16), o Corcunda some
lentamente no final da trama, como uma lembrança da memória do Homem.
O local subterrâneo e labiríntico remetido em algumas obras literárias como em
A Construção de Kafka ou O Poço e o Pêndulo de Allan Poe, ou ainda no Minotauro
grego e o de Borges, no próprio inferno da Odisseia, no de Cristo, da Divina Comédia
ou no Búfalo de Clarice Lispector é um local onde antes de tudo serviu para
personagens conversarem consigo e refletirem. Esse local poderia também ser
remetido como um túnel, onde Um Homem se encontra com O Corcunda para uma
conversa em que seu remorso, ou seja, a sua consciência se mostra, deixando-o na
loucura de uma memória que se agita entre coisas repelentes. A conversa narrada no
presente é sobre uma ação realizada no passado e repelida pelo Homem, a traição.
Dotado da seguinte significação, “Passagem subterrânea sob montanha, rio,
estrada, rua etc., destinada à comunicação” em sentido figurado “situação de opressão
e desespero que parece não ter fim <ver a luz no fim no túnel>”, o túnel não seria,
portanto, mero cenário, ele é o local por onde o personagem Um Homem após morrer
permanece para se comunicar com Jorge, sendo esse espaço subterrâneo, o labirinto,
o inferno, o local ocupado pela sua própria alma perdida. E embora no final da
dramaturgia quando ele relembra a doença e a condição, na qual se encontrava o seu
amigo, o terror que o toma também poderia ser mais de medo e espanto com a
descoberta de sua morte do que um verdadeiro arrependimento por sua falta de
lealdade.
2.3 O da Mala
“A curiosidade é o maior pecado dos poetas”, diz o personagem Vagabundo ao
Guarda em O da Mala, peça escrita por Sebastian Salazar Bondy, que traz à cena a
noite de dois personagens numa estação ferroviária.
O pequeno conflito instaurado logo no início do esquete, por conta do
Vagabundo querer dormir na estação e o Guarda não permitir, é deixado de lado
quando ambos percebem uma mala que alguém esqueceu. A partir de então o foco
vira-se para ela e instaura-se um segundo conflito, abri-la ou não. Ardilosamente o
Vagabundo aguça a curiosidade do Guarda e consegue convencê-lo, eles têm a
curiosidade de saber o que há na mala, e sendo a curiosidade o maior pecado dos
poetas, temos aqui dois aspirantes a esse ofício.
O Vagabundo, figura errante que vagueia ocioso é o personagem dotado da
escrita, ele é livre para poder criar, pois não se encontra vinculado com nenhum
discurso de ordem, o seu olhar é de soslaio. Enquanto o Guarda vê apenas objetos, ele
vê motes para serem desenvolvidos, parte de rumores a respeito dos esquartejados
colocados dentro de malas para instigar o Guarda, que acaba cedendo. Quando a ação
de abrir a mala é efetuada, se inicia a escrita baseada no contato com cada objeto
retirado de dentro dela, surgindo com isso a idealização de um herói, que por sua vez
ao final da dramaturgia não se apresentará tão grandioso assim.
Um dos nossos maiores poetas, Carlos Drummond de Andrade, em sua crônica
A Bolsa (de 1959) apresentou-nos percurso semelhante, construindo sua personagem
por meio do que encontrava dentro da bolsa que ela perdeu num coletivo. Dividiu o
percurso em quatro partes nomeadas como O achado, O conteúdo, A busca e O
encontro, sendo essa divisão quase semelhante ao texto de O da Mala. Quase porque
a busca pelo dono não é a prioridade do Vagabundo, mas sim a busca em escrever
quem poderia ser esse dono. Digamos que essa terceira parte, A busca, a qual Carlos
Drummond nomeou uma parte de sua crônica, seria o predominante em O da Mala,
sendo a maior similaridade entre a crônica e a dramaturgia o desconcertante final, nos
quais: Andreia de Poggia não passava da comerciária Rita Peixoto; e o professor doutor
idealizado pelo Vagabundo e o Guarda, de um velho caixeiro viajante.
Contudo, a decepção na descoberta do herói nessa altura do esquete não
importa, porque eles já terão passado pela experiência da leitura e da escrita. Não
importa o sujeito idealizado e sim o caminho percorrido para a criação desse sujeito, a
mala se apresenta tal como um livro, que ao lermos interpretamos conforme a nossa
experiência e conhecimento e é esse percurso, o qual o Guarda não pode resistir que
preencheu a sua noite solitária, como muitos livros que preenchem a noite de muitos
leitores. O pecado dos poetas foi-lhe despertado pelo Vagabundo, numa noite
empírica ele saiu de sua ordinariedade. O Vagabundo domina a observação tecida por
Aristóteles em sua Poética de que “o belo consiste na grandeza e na ordem” 6 ao
mesmo tempo que sofre a fruição (BARTHES, 2006) e assim organiza a sua narrativa,
ao dizer, quando encontra vários cadernos na mala, que o seu herói “deve estar
escrevendo uma obra de vários volumes” ele coloca o herói num local de importância
e destaque, o de autor e criador; e como ele também cria uma história para nos falar
do dono da mala, acaba por ocupar esse lugar. Lembremos-nos do mito do tecer o
corpo de alguém, como Penélope na Odisseia.
O Vagabundo tem o poder de tirar o Guarda daquela simples estação
ferroviária e levá-lo para outros ambientes apenas por meio da palavra e do seu
conhecimento, “O mundo deve-se tomá-lo como uma grande feira onde é preciso
perder algo para ganhar sabedoria, conhecimento, domínio!”, essa figura que anda
sem destino, que dorme em praças comendo quando possível, tem as falas mais
instigantes da dramaturgia.
2.4 Os Três Instantes
Pode haver um todo que não tenha grandeza. (ARISTÓTELES)
A soma de sessenta segundos gera um minuto, a de sessenta minutos uma hora
e a de vinte e quatro horas um dia. Como podemos perceber, a junção de pequenos
instantes gera uma unidade maior, sendo esses pontos determinados do tempo, os
instantes, também dotados de unidade. Essa unidade, o percurso do ensaio, propôs
pontos determinantes nomeados de três instantes de leitura, a do letrado, a constante
dos atores e de ambos. Através desse três momentos de estudo diante de cada texto,
em que a importância da palavra no teatro se constituiu enquanto corpus da pesquisa,
perceberemos que, embora distintos quanto enredo e autores, os três esquetes
constituem, já no âmbito da análise do leitor literário que se perfaz neste trabalho,
uma unidade e uma similitude que vão além do artigo definido presente em seus
títulos. Diante disso a divisão dos períodos do processo de estudo, nomeado de Três
6 (1991, VII-44)
Instantes, consequentemente nomeou a apresentação desses esquetes enquanto
espetáculo.
O Próximo, O Túnel e O da Mala são três instantes que juntos formam uma
unidade significante, mais que junção de três esquetes, a união desses textos é uma
reunião das conversas entre os personagens, entre quem fala e quem ouve, aquele
que conduz e o que é conduzido e de quem escreve com quem lê; acima de tudo é
uma reunião de três conflitos. E sabemos que o conflito dramático é a “raiz do teatro”
(BERTHOLD: 2010, p. 11). Os personagens Sargento Thech, Um Homem e O Guarda são
sujeitos que só reproduzem escritos ruins. Marion; Jorge, O Corcunda e o Vagabundo
diferenciam-se deles porque todos leem e se desviam do que aqueles ditam, todos
possuem a narrativa nas mãos e será pela boca de cada um que ouviremos as falas de
maior eloquência.
Enquanto Thech em O Próximo prega as regras segundo a cartilha do governo e
do exército, num objetivo de preencher planilhas e habilitar ou desabilitar cidadãos
americanos para a guerra contra o Vietnã, Marion prega o seu descaso para com essa
guerra “não iniciada por ele”, prega os seus anseios, vontades, preconceitos enquanto
cidadão americano e ironia quanto ao teste, ao qual foi submetido.
Se por um lado, o personagem Um Homem em O Túnel está inserido numa
roupagem de masculinidade superficial, machismo descabido, em suma, de aparente
virilidade, Jorge, O Corcunda, em um de seus raros momentos, numa aproximação
com a alma do Quasimodo de Victor Hugo, narra de maneira delicada e sensível toda a
beleza dos sorrisos, do olhar e do simples toque da mulher que ele amou, nos
passando a sua “maravilhosa sensação” por meio de sua memória.
E em O da Mala enquanto o Guarda preocupa-se em seguir os sérios e rígidos
regulamentos da empresa, o Vagabundo propõe um momento de criação dentro
daquele instante monótono e repetitivo de trabalho, trazendo em evidência o poder
de envolver alguém na criação de uma história, trazendo à reflexão do Guarda a
condição de ser um funcionário exemplar numa empresa que no momento de
reconhecimento o premiou com uma medalha.
Nessa perspectiva temos na figura de Marion, Jorge e o Vagabundo o
contraponto das dramaturgias, eles são singulares, os demais gerais, são um sargento,
um homem e um guarda, assim, inevitavelmente seus discursos também se mostrarão
gerais e ordenados, sem muito espaço para reflexões.
Entretanto, mais do que pela questão do enredo, essa junção só culminou
numa unidade significante, porque cada um dos textos já se apresentou enquanto
mito, que é “a imitação das ações”, sendo “uno o mito” (ARISTÓTELES: VIII – 46-48)
entendemos, portanto, o porquê das ações serem tão pontuais em O Próximo, O Túnel
e O da Mala. Nesse sentido, essas peças de um ato, chamadas comumente de
esquetes comungam com o que André Jolles chamou de Formas Simples, aquelas “que
saltam de incidente em incidente para descrever todo o acontecimento que não se
encerra em si mesmo de maneira determinada, o que só ocorre no remate final ou
desfecho da narrativa”. Esses incidentes, transferidos para o texto dramático, pois
Jolles se referia ao conto, poderiam ser as ações e esse remate final ou desfecho, o
próprio reconhecimento, ou seja, “a passagem do ignorar ao conhecer”, como definiu
Aristóteles (1991, p. XI-61). Quando Jolles apresenta a Forma Simples (1976, p. 195)
enquanto “linguagem fluída, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de
renovação constante” a aproxima ainda mais com a forma dramática, basta para isso
relembrarmos uma das práticas intrínsecas ao teatro, as infinitas encenações de uma
mesma obra ou textos criados com base nela. Para breve exemplificação citamos “La
Odeseia” por Teatro de Los Andes; a Trilogia Bíblica Paraíso Perdido, O livro de Jó e
Apocalipse 1,11 criada pelo Grupo Vertigem; O Mahabharata por Peter Brook; A ópera
dos mendigos de John Gay por Bertolt Brecht como A ópera dos três vinténs e por
Chico Buarque de Holanda como A ópera do malando; Macunaíma por Antunes Filho;
Kafka e Ésquilo por Clube Noir e Romeu e Julieta pelo Grupo Galpão. Tomemos
cuidado, no entanto, que esse contar “com as próprias palavras” (p.195) como previne
Jolles, não se executa pelo gosto do indivíduo, e sim pela linguagem. As diferentes
encenações para Romeu e Julieta existem, mas as memoráveis leram Shakespeare,
assim como a base da trilogia do Grupo Vertigem foi a Bíblia e da “Odiseia” do Teatro
de Los Andes foi a Odisseia de Homero.
Falando de formas, contudo, o mais instigante para o teatro poderia ser o que
Ricardo Piglia em sua Formas Breves (2004, p. 101) escreveu a respeito do conto, cuja
forma sobreviveu porque em sua origem eram relatos breves contados de maneira
oral. Será por isso a insistente sobrevivência do teatro? O prazer de ouvirmos a
palavra?
3. Ter a palavra – momento da ação ou um devir
É chegado o momento de sair da coxia e levar à cena o ensaio da leitura, neste
instante é que o texto se corporifica no palco, após termos lhe dado à palavra na
primeira leitura e ter escrito sobre essa leitura num segundo instante, no qual a
palavra foi tomada, o ator agora a detém. Manguel (1997, p. 242) escreveu que a
posse de livros implica em riqueza intelectual, mas o ator não o teria apenas, seria ao
contrário uma espécie de homem livro de Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. O mundo
da fala se abre junto ao público para o ator buscar a desejada agudeza verbal, para que
nenhuma palavra se torne no palco maldita.
Pensamos para tanto numa proposição de montagem para os ouvidos e para a
mente e, uma vez que nem tudo que reluz é ouro, o cenário e figurinos ostensivos
foram colocados num local secundário, concepção de montagem essa intrínseca ao
Grupo Teatral Água Fria e tão antiga quanto o próprio teatro, como podemos certificar
no percurso traçado por Margot Berthold (2010):
O teatro, enquanto compensação para a rotina da vida, pode ser encontrado onde quer que as pessoas se reúnam na esperança da magia que as transportará para uma realidade mais elevada. Isso é verdade independente de a magia acontecer num pedaço de terra nua, numa cabana de bambu, numa plataforma ou num moderno palácio multimídia de concreto e vidro (Teatro Primitivo. p. 6).
Foi somente no início do século XX, graças a Rabindranath Tagore, que o drama indiano ganhou mais uma vez renome. [...] Suas peças, ele uma vez disse, podem ser compreendidas somente se as ouvirmos como se ouviria a música de uma flauta. Não necessitavam de nenhum aparato externo, raramente de um acessório, e de um cenário mínimo. [...] No início de sua peça O Ciclo da Primavera, Tagore diz, com poética auto suficiência: “Não necessitamos de cenário. O único pano de fundo do qual precisamos é o da imaginação, sobre o qual pintaremos um quadro com o pincel da música. ( As civilizações Indo-Pacíficas. p. 44).
O ator atua num palco vazio. Não conta com nenhum acessório externo para ajudá-lo. Tem de criar tudo unicamente por meio de seus movimentos – a ação simbólica como também a ilusão espacial. É ele quem sugere o cenário e torna visíveis os acessórios cênicos inexistentes. (China. p. 67).
A autora ainda passa pelo teatro romano “que cresceu sobre o tablado de
madeira dos atores ambulantes da farsa popular” (p.148) e pela chamada Idade Média,
em que na montagem dos autos religiosos “o único acessório cênico era um altar de
madeira com a cruz” (p.204) e nos autos de carnaval uma antiga pousada ou taberna
sem preparativos especiais, já servia como local de representação (p.250). E se
considerarmos o pátio do palácio parte da residência real, onde as trupes encenavam
na era elisabetana Shakespeare, não nos surpreenderemos com as apresentações nos
apartamentos em meados dos anos 50 do século XX, como as realizadas pelos
integrantes do grupo off-Broadway, Living Theater.
É chegado então o momento do ator corporificar nesse palco quase nu a sua
leitura a outros leitores, o público. Foi importante nesse instante de apresentação a
presença do profissional de Letras, principalmente para analisar se as proposições de
interpretação, por exemplo, de um corcunda menos caricato em O Túnel e esse túnel
como o possível Hades literário, da tessitura em cena de uma história em O da Mala e
de uma guerra de incoerências já travada no próprio consultório em O Próximo,
corporificaram-se efetivamente no palco. E se a tradição da representação superficial e
caricata inconsciente não se sobreporia à interpretação, o grito escandaloso ao
sussurro ou ao grito mudo de Helene Weigel em Mãe Coragem, a rubrica e resenhas
sobre o texto à leitura de sua poesia, as roupas, acessórios e sotaques do personagem
à apuração do texto da peça. Vale toda essa observação para lembrar que essa
pesquisa foi justamente inverter essa tradição contemporânea.
Outro ponto importante foram os ensaios pré-apresentação e a figura do
diretor conhecedor da arte dramática. Além de dirigir o texto no palco, trazendo
outras perspectivas para a elocução e consequentemente para a interpretação da
obra, ele instigava-nos, enquanto atores, a sempre buscar possibilidades e descobertas
para falas que às vezes por conta da leitura descuidada se desencontrava da ação.
Como a tese dessa pesquisa foi da leitura infinita que amontoa linguagens (BARTHES),
o processo de montagem de Três Instantes foi a simbiose da leitura orientada pelo
profissional de Letras com a encenação dirigida pelo diretor.
E ainda que a urdidura cênica nas montagens possam ficar aquém ou além das
qualidades literárias do texto, ela tem de ser verossímil a ele, como prenunciado por
Hamlet “que a ação responda à palavra e a palavra à ação”. Desde o primeiro instante
foi essa a busca na nossa travessia. O que se fez aqui, portanto, foi um ensaio para o
ensaio, quando posteriormente a leitura com e dos atores poderá experimentar a
liberdade que se propôs, e nesse sentido sempre será um devir, cada apresentação um
novo ensaio, uma nova leitura e pesquisa.
REFERÊNCIAS CITADAS:
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REFERÊNCIAS CONSULTADAS:
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