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VIOLÊNCIA E CRISE DA ESCOLA DOS POBRES
Jean-Yves Bourdin 1
Eis abaixo algumas reflexões elaboradas antes, durante e depois do estágio sindical do
SNES, de 20 a 21 de março de 1996, sobre o ensino em regiões difíceis e a ação do
sindicato dos professores secundários diante da violência na escola. São, portanto,
“minhas” idéias que eu exprimo aqui, no sentido de que elas a ninguém comprometem
além do autor destas linhas. Não têm elas nenhuma pretensão de originalidade: as que
eu não encontrei nos filósofos foram retomadas, sem pudor, – às vezes palavra por
palavra – da imprensa sindical (1) e dos meus colegas participantes deste estágio, e eu
devo agradecer-lhes. Temos também de acrescentar aos limites da posição de seu autor
(professor de filosofia no fim do liceu) os limites que são os do SNES (por “escola”, nas
linhas que seguem, é preciso entender essencialmente o ensino fundamental e médio).
Descartemos imediatamente a conversa fiada sobre o “santuário escolar”, a violência
“importada” ou não etc., que geraram a própria expressão de violência “na” escola.
Todos aqueles que se vêem frente a frente com ela bem sabem que o que é grave e
inquietante na violência na escola é aquilo que ela contém de violência contra a escola
(2). A violência, essa reveladora de crises, está presente na maior parte das escolas, mas
sempre existiu um muro de silêncio para abafá-la. Foi unicamente a ampliação das lutas
coletivas, em resposta à violência, que permitiu, recentemente, quebrar esse muro. E a
distribuição das áreas escolares onde se produz esta resposta pela luta coletiva mostra
que existe uma crise específica: uma crise da escola dos pobres.
Minha tese é que existe uma violência legítima, a violência da cultura, que deve se opor
à violência contra a escola, e que é o exercício determinado desta violência da cultura a
única resposta pedagógica possível à crise da escola dos pobres. Mas para que o
exercício desta violência escolar legítima seja possível, é necessário que a escola se
concentre em sua função, a de ensinar, e rejeite todas as tentativas de fazê-la participar,
1 - Professor de Filosofia - Lycée Delacroix - Drancy 93. Pré-publicação de um artigo de 10/05/96 paraser publicado na ADAPT, revista pedagógica do SNES (Sindicato Nacional de Ensino Secundário, FSU)
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como distribuidora de ilusões e como instrumento de controle social, do
empreendimento geral da violência social.
Falar a verdade
A violência é a irrupção do real. Diante da violência, a patrulha do pensamento imposta
pela linguagem oficial já não funciona. O eufemismo, que se tornou a forma comum da
mentira social, não funciona mais para tapar o sol com a peneira e minimizar o
problema: a linguagem oficial reduz o problema à insignificância, à pura impotência do
dizer.
A violência obriga a falar a verdade, mesmo que seja para escapar do ridículo. Se, nas
linhas que seguem, se dará nomes aos bois, é porque chegou a hora. Mas é também
porque falar a verdade é condição para se pensar com precisão. A verdade, como a
violência, é dura.
Eu não ignoro que existe gente a que a violência ainda não levou a acabar com alguns
dos efeitos de censura e de anestesia propostos pela língua de pau do Estado, e essaspessoas correm o risco de se escandalizar com o uso de uma linguagem muito direta.
Propomos a essas pessoas, então, um pequeno exercício escolar: traduzir por si mesmos
este vocabulário nos anfiguris tranqüilizantes do discurso oficial. O pequeno glossário
abaixo os ajudará nessa tarefa (3) 2.
2 - Vocabulário usual Vocabulário oficial
o mercado a vidaos pobres as periferias, as áreas difíceisa desigualdade a diversidade, a diferençaa pobreza os entraves socioculturaisos trabalhadores as comunidades(os mais) explorados (os mais) desfavorecidosa miséria a exclusãoo tráfico a economia paralelaos pais as famíliasos alunos o público escolaro ensino o capital culturalos conhecimentos as referências culturais
o ensino, os professores a formação, os formadoresas regras, as exigências o contratoas notas a avaliação
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A violência da ilusão
Na violência que a escola sofre, existe uma parte que ela bem que merece. Não existe
falta mais grave para a escola do que mentir aos alunos, do que funcionar como uma das
peças da máquina da mentira social. Mas é nisso que, sob a pressão do Estado, ela se
torna um pouco mais a cada dia. Ora, que os políticos, que a televisão, mintam,
produzam o espetáculo e a propaganda, nossos alunos sabem disso e já esperam isso.
Mas eles acreditam que o mesmo não acontece com a escola, que a escola é uma coisa
séria, que se trata de conhecimentos. Eles depositam sua confiança em nós.
Algumas dessas mentiras e das nossas imposturas tornam-se então ilusões de nossos
alunos, e essas ilusões os fazem agir: são elas que os fazem trabalhar, procurar ser bons
alunos. E o dia – porque necessariamente isso acontece – em que eles perceberem que
nós os enganamos, é normal, é saudável que se tornem violentos. E eu prefiro que eles
dirijam esta violência contra a escola: porque, se não, eles a dirigem contra si mesmos.
A violência da desilusão é uma violência salutar, libertadora. Pode-se compreender que
os adultos mantenham, a respeito de suas ilusões perdidas, uma certa ternura: em se
tratando de histórias que nós nos contamos a nós mesmos, somos nós mesmos que
devemos delas cuidar. Mas um jovem colegial deve mesmo se voltar contra aqueles que
abusaram de sua ignorância e da confiança de sua juventude. A mentira mediático-
política pode não ser levada a sério por adultos instruídos, que têm defendido contra ela:
a seleção a orientaçãoa disciplina a cidadaniao jardim da infância o acolhimentoo trabalho a atividadeos resultados os desempenhosos preguiçosos a grande dificuldade escolara coragem a motivaçãoa preguiça a falta de motivaçãoa desesperança a falta de perspectivasde esquerda conservador
de direita modernodefender-se resistir à mudançaa propaganda a comunicação
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mas quando é a escola que a exerce, sobre seus alunos, é um abuso contra um menor de
quinze anos.
O nome da rosa
Eu sei que os professores fazem o que podem contra a mentira – não por virtude, mas
por ofício. Não é por causa dos professores que os alunos são promovidos
automaticamente para uma série superior, qualquer que seja seu nível real. Ao contrário,
para isso foi necessário surrupiar-lhes o pouco poder que ainda detinham. Mas nada
impede: quando um aluno é aprovado no “bacharelado profissional”, como queremvocês que ele perceba que se lhe foi dada a palavra “bacharelado” e não outra coisa?
Quanto mais a realidade se torna negra, mais as palavras se tornam cor-de-rosa. Nós
estamos mergulhados num nominalismo generalizado: renunciando a mudar as coisas,
mudam-se as palavras. Em lugar da rosa, nós temos o nome da rosa. Não admira que
eles levantem a mão contra nós.
De bom ou mau grado, a escola é intimada a participar nesse empreendimento damentira social. E efetivamente nós também, os professores, mentimos aos pobres e a
seus filhos. Mentimos aos nossos alunos quando os avaliamos, quando colocamos um
sete num trabalho que vale dois ou três. Mas como fazer de outro jeito? É preciso
utilizar toda a escala de notas, é preciso mostrar a um aluno que ele progrediu: e depois,
mesmo no horror, há gradações, há cópias mais inúteis do que outras. Só que o nível de
ambição das crianças pobres é mínimo, a média em cima, com uma recuperação, se for
necessário. Ao aluno que tem três nós dizemos que ele está, de fato, com um ou doispontos a menos que o limite (com quatro, você vai para recuperação, com cinco ou
quatro e meio, você passa). Seguramente, isso o encoraja a trabalhar. Mas o mantém na
ilusão. E no dia que ele é realmente colocado à prova, ele cai das alturas.
Não mentimos sempre: para o BEPC, para o bac, nos conselhos de classe, tentamos
dizer a verdade, fazer nosso trabalho. E nos esforçamos, durante o ano, para fazer os
vestibulares simulados, os BEPC brancos, para testar os alunos. Mas é esseverdadeiramente o bac, o nível do bac que devemos procurar fornecer a nossos alunos,
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com o risco de reconhecer, pelos desdobramentos e pelas taxas de fracassos nos exames,
que nós não atingimos isso, ou antes, que é apenas um nome esse o título, o nome de
bac? Sabe-se bem como toda sociedade, dos pais dos alunos até os ministros sucessivos,
responde a esta questão; sabe-se bem em que sentido, sempre o mesmo, vão as colossaispressões que sofremos.
Com certeza, resistimos o quanto podemos – e é um mérito considerável das lutas dos
professores e de suas organizações sindicais ter mantido a consciência de que existe
sempre um problema chamado fracasso escolar. É necessário continuar com ânimo e
coragem essa resistência, pois este é nosso ofício. Mas saibamos bem que não somos
nós os mais fortes; se mentimos a nossos alunos, é porque toda a sociedade quer que nósos enganemos.
Enquanto a escola estiver associada ao conjunto de instituições encarregadas de infligir
à juventude a violência da mentira social, ela deverá também sofrer a violência em
retorno das ilusões perdidas – e aquelas que enviam alunos e professores à morte no
campo de batalha continuarão, num primeiro tempo, a fazer tudo para banalizar o
inaceitável, e impor o silêncio e a culpabilização às vítimas; e, num segundo tempo, atentar submergir a intensificação da violência sob o fluxo dos bons sentimentos e da
indignação segura.
O mito da igualdade de oportunidades
A mentira sobre as notas é recuperável, não é o mais grave. A mentira mais perversa que
a escola conta aos alunos há decênios é o mito da igualdade de oportunidades. Pois éuma pura e simples mentira isso de fazer crer que a escola pode anular as desigualdades
sociais, simplesmente fazendo de conta que elas não existem. No fundo, todos o
sabemos: entre esses dois jovens de subúrbio, o filho do grande burguês de Neuilly e o
outro, o filho do ferroviário de Drancy, não haverá jamais igualdade de oportunidades,
mesmo que eles freqüentem a mesma escola – e, de qualquer maneira, eles não estão na
mesma escola (ainda que os dois estejam na escola pública, basta que essas escolas não
estejam no mesmo distrito para que não sejam as mesmas). A igualdade deoportunidades, numa sociedade dividida em classes, é uma piada, nossos alunos sabem
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disso e o dizem, e com razão. Se eles não são tão violentos com a escola quanto
poderiam ser, é, sem dúvida, porque essa mentira, eles a reconhecem: é a mentira social
comum, aquela da televisão, de todos os políticos, de direita como de esquerda.
Felizmente, para nós, nossos alunos já são velhos: já estão desiludidos em relação a isso, já estão em outra...
O espantoso é que sociólogos tenham tido êxito, há mais de vinte anos, ao apresentar
como uma descoberta teórica, vertiginosamente crítica e culpabilizante, aquilo que não
é, no fundo, mais que uma obviedade: a escola trabalhando para reproduzir a sociedade.
Se existem desigualdades nessa sociedade, a escola reproduz evidentemente essas
desigualdades. A sociedade é dividida em classes: é um fato. Para diminuir asdesigualdades, para que tudo isso mude, são necessários movimentos sociais, greves,
manifestações, revoluções etc., não aulas. A sociedade muda pelos movimentos sociais,
pelas lutas sociais e políticas: se a escola pode se inscrever num movimento social de
conjunto, a educação não pode se substituir às lutas sociais. Mais exatamente: o que a
educação pode fazer é fabricar jovens instruídos, capazes de iniciativa e de reflexão
crítica. E esses jovens poderão fazer movimentar a sociedade, se eles participarem nas
lutas sociais e políticas – sob a condição de eles participarem delas – e não há nissonenhum milagre.
Eu devo sem dúvida enfatizar, em consideração às belas almas, que esta afirmação não
é, de forma alguma, fatalista. A desigualdade social não é uma fatalidade, é algo que
pode ser mudado, graças à ação dos homens: mas esta ação, que pode mudar as coisas,
não é a educação, é a ação social e política coletiva – não há outro recurso, não há outra
solução para a mudança.
A reprodução e a desigualdade social
Se foi possível escrever teses inteiras (4) para demonstrar cientificamente esse truísmo
que é a desigualdade de oportunidades numa sociedade dividida em classes, é porque se
tinha anteriormente tido sucesso ao esvaziar de seu sentido a própria palavra
reprodução. Todo educador – e mesmo toda mãe – sabe bem que a reprodução é difícil; jamais está garantida de antemão. A reprodução é um trabalho terrível, um trabalho que
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começa pela dor do parto. Dizer que a escola reproduz a sociedade (com suas
desigualdades), deve ser entendido como um elogio endereçado à escola: se a sociedade
consegue se reproduzir, graças à ação da escola, então: Viva a escola! Porque reproduzir
a sociedade é muitíssimo difícil! É aberrante esperar da escola possa fazer algo mais doque reproduzir a sociedade; esperar que aproveite, de passagem, para mudá-la, para
fazer uma revolução sem dor pela educação, é pura ilusão. A escola já tem muita
dificuldade em reproduzir a sociedade tal como ela é, em conseqüência do nível atingido
pela deterioração social; não é certo que ela consiga chegar lá. Agora, para milagres, o
pedido deve ser endereçado ao Espírito Santo...
É preciso tomar realmente a sério esta idéia de que a escola serve para reproduzir asociedade, isto é, as diferentes classes sociais que a compõem, portanto, as
desigualdades entre essas classes. Dizer isso é dizer que, sem a escola, as classes sociais
não chegariam a se reproduzir: ora, essa é a questão. Mesmo o filho de grande burguês
de Neuilly, para poder ser sucessor de seu pai, deve primeiramente estudar. Ele também
vai precisar trabalhar e se esforçar para adquirir a cultura necessária para ser o grande
burguês de nossa época. Para os herdeiros, isso também não funciona automaticamente,
pois não é suficiente herdar para reproduzir, não se transmite uma cultura portransferência bancária.
A reprodução, mesmo que seja evidentemente mais fácil para os ricos do que para os
pobres, não é hoje garantida para ninguém. O fracasso escolar é menos uma condenação
e é mais bem combatido entre os ricos; mas existe também entre eles, não é uma
prerrogativa dos pobres.
Nossos alunos não esperaram os sociólogos para saber e dizer muito bem o que o filho
de rico tem, e o que o filho de pobre não tem, para evitar o fracasso escolar: facilidades.
É por causa dessas facilidades que os ricos terão sempre, para se reproduzirem, uma
vantagem a mais sobre os pobres. É por causa delas que a igualdade de oportunidades é
um mito. Isso não impede, evidentemente, que o filho do ferroviário entre em uma
grande universidade ao lado de um filho de um burguês. Simplesmente, para o
primeiro, isso será mais difícil, exigirá dele mais trabalho e esforço, pois não possuíaessas facilidades.
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A desigualdade em relação ao sucesso escolar é antes (não exclusivamente, mas antes de
tudo) devida à desigualdade econômica bruta. Que se pense, por exemplo, no papel
decisivo dos “cursinhos”, dos cursos particulares de trezentos francos a hora (e mais, emcertas instituições especializadas), ensinamentos para-escolares nas matérias nas quais a
escola faz mal seu trabalho (esporte, música, artes), nas estadias e estágios no
estrangeiro, nos entretenimentos culturais caros etc. Que se pense também na
desigualdade de disponibilidade para o trabalho escolar para aquele que não tem
necessidade de ganhar dinheiro e para aquele que a tem, quer se trate de ajudar na renda
familiar, quer se trate de ganhar o trocado indispensável, numa sociedade que mede a
dignidade dos homens pelo seu poder de consumir. O investimento escolar, antes de seruma adesão moral aos valores da escola, é um investimento em dinheiro. Nunca haverá
redução da desigualdade de oportunidades sem redução direta da desigualdade
econômica. E se as desigualdades econômicas diminuíssem, na nossa sociedade, em vez
de aumentar, isso logo se saberia.
Certamente, a mobilidade social pode bem ser um fenômeno individual, e a escola pode
ajudar nisso, uma vez que a sociedade está dividida, desde a Revolução Francesa, emclasses e não em castas sociais. Não existem, de forma geral, privilégios que proíbam
aos indivíduos e a seus filhos mudarem de classe social. Mas este fenômeno individual
não pode, por definição, ser um objetivo coletivo. Se todos os filhos de operários se
tornassem burgueses, onde se buscariam operários? Que se encontrem majoritariamente
futuros operários entre os filhos de operários, e os futuros burgueses entre os filhos de
burgueses, esta é simplesmente a solução mais econômica. São, tanto uns como outros,
os que têm maiores facilidades para que isso aconteça.
E, afinal, seria tão vergonhoso ser operário? Mesmo a ambição da promoção social
individual é algo que deve ser questionado. A escola deve ajudar o aluno que tem essa
expectativa, mas deve também ajudá-lo a refletir sobre isso, a criticar isso. A ambição é
boa porque implica uma superação de si: mas o êxito social freqüentemente se paga com
o fracasso pessoal. Não é nada evidente que as classes dominantes sejam
necessariamente um modelo de humanidade, e pode-se ser ambicioso visando outrascoisas que não a riqueza. É realmente necessário convocar toda a corte de filósofos para
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mostrar que o supremo bem não se encontra necessariamente do lado da riqueza e do
poder? Algumas lembranças sobre os ricos e o camelo que passa pelo buraco de uma
agulha deveriam bastar.
O emprego é um mercado
Seja como for, a mobilidade social permanecerá um fenômeno individual. Se ela se
tornasse um fenômeno coletivo, é porque se teria produzido na sociedade um
movimento social global, do qual certamente a escola participaria, mas que éfundamentalmente independente da escola. Pois esse movimento social é principalmente
o efeito de ações conduzidas por essas classes e grupos sociais: se houve uma certa
mobilidade social para a elevação dos filhos dos trabalhadores durante os trinta anos de
pós-guerra, isso foi efeito de grandes lutas de trabalhadores da frente popular e de maio
de 1968, que permitiram uma promoção coletiva das classes populares. E se esta
mobilidade em elevação terminou em nossos dias, é que existe uma regressão coletiva
considerável para as classes populares, efeito também de lutas, lutas conduzidas pelasclasses dominantes com o sucesso conhecido nestes últimos quinze anos.
O melhor serviço que os trabalhadores podem prestar a seus filhos, para ajudá-los a ter
êxito nos seus estudos e em sua vida, é encetar lutas sociais e políticas que defendam
seus interesses de trabalhadores, a começar pelos interesses econômicos. E a melhor
maneira que eles têm de trabalhar para o fracasso de seus filhos é não participar dessas
ações.
Não é apenas uma fraude política, mas, sobretudo, um erro lógico fazer crer que a
mobilidade social individual pode ser um recurso, um substituto da promoção coletiva
dos pobres. A luta pela mobilidade social é uma conta cujo resultado é zero: quando um
sobe o outro desce. De qualquer maneira, como a sociedade é, grosso modo, uma
pirâmide (e na pirâmide quanto mais se sobe, menos gente se encontra), se existe
mobilidade social individual, ela tem todas as chances de ser feita no sentidodescendente. Hoje todos vêem isso, e em primeiro lugar nossos alunos.
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Conseqüentemente, é uma mentira dizer a um filho de trabalhador desempregado que, se
ele estudar bastante na escola, escapará do desemprego. Nos colégios de bairros onde se
concentra a miséria, os alunos mais conscientes dessa hipocrisia – aqueles que estãomais comprometidos no tráfico – não se privam de nos fazer pagar a fatura dessas
promessas de bêbado. A escola não pode dar senão instrução e diplomas: ela não
contrata, ela não tem empregos para dar a seus bons alunos. O emprego é um mercado, e
são as leis do mercado que reinam aí, como em outros lugares. Dadas as tendências
atuais desse mercado, mesmo com um diploma, o filho do trabalhador desempregado
tem grandes chances de se tornar também um desempregado. E se isso mudar, será por
conta de ações sociais e políticas coletivas, conduzidas por aqueles que estãodesempregados e por aqueles que ainda não estão, ao movimentar a seu favor as
relações de forças na sociedade – não porque os filhos de desempregados tenham
estudado muito na escola. Filho de desempregado você é, desempregado você será: é
bom que a escola aceite dizer isso, pois é verdade, e que não depende dela que isso seja
diferente.
Os desempregados instruídos
Já ouço as belas almas me recriminarem por eu manter conversas “desesperadoras”. E
daí? Sou professor. Sou pago para dizer a verdade, seja ela agradável ou não. Cada um
com sua profissão: para vender ilusão, a televisão e os políticos já são suficientes. Mas a
escola, se não pode lhes dar emprego, pode fazer algo pelos filhos de desempregados
que estudam. Ela fará desempregados, certamente, mas desempregados instruídos. E
esta diferença é decisiva. Por duas razões: a primeira, o filho do desempregado está, emrelação à necessidade de aprender, na mesma situação que o filho do patrão que tem seu
pai licenciado. Ambos devem estudar, para poder simplesmente viver na sociedade.
“Hoje em dia, para ser varredor de rua, é necessário ter diploma”, dizem meus alunos,
repetindo uma expressão de seus pais. E eu lhes respondo: “Está certo; então, futuros
varredores de rua, ao trabalho!”. A escola e o estudo são necessários para reproduzir
todas as classes sociais: se o filho de um viticultor de Borgonha quer ser viticultor e
retomar a produção de seu pai, ele necessitará de um BTS para poder fazê-lo. É assim, eé verdade para todas as classes sociais. É por isso que a escola e o estudo são
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necessários: para reproduzir a sociedade. Porque a sociedade não se reproduz sozinha. E
do jeito que as coisas vão, ela corre o mesmo risco de não se reproduzir absolutamente.
A outra razão é que um desempregado instruído é muito menos pobre que umdesempregado ignorante. Ele tem muito mais chances de poder enfrentar seu
desemprego e de conviver com ele – e talvez mesmo, se o nível de emprego aumentar
um dia, é possível que ele encontre um emprego antes dos outros. A escola não pode
fazer os filhos dos pobres viverem melhor que seus pais: eles viverão pior, e eles sabem
disso – a não ser que as lutas coletivas mudem as relações de forças na sociedade. Mas
ela pode fazer que eles sejam mais instruídos que seus pais.
Os pobres se empobrecem e as desigualdades sociais aumentam: tal é a realidade de
nossa época. A escola e os professores nada podem fazer. Os assistentes sociais, os
educadores, os enfermeiros, os médicos, os policiais, os juízes, também não. Apenas as
lutas sociais, as ações dos próprios pobres podem fazer alguma coisa. Mas existe um
lado da pobreza contra a qual a escola pode fazer algo: a pobreza cultural. É possível –
não certo, não automático, mas possível – que a escola chegue a formar jovens mais
instruídos que seus pais, vivendo pior que seus pais. Se ela conseguir isso, será umimenso sucesso.
É possível, pois nesta tarefa a escola é ajudada, verdadeiramente ajudada pelos próprios
pobres, que não lhe pedem a lua, não esperam a igualdade de oportunidades, mas lhe
pedem que contribua para fazer de seus filhos pobres mais instruídos (então menos
pobres). Junto a seus filhos, eles exercem uma influência colossal para que avancem o
mais possível nos estudos. O espantoso é que não tendo nada a lhes prometer em troca,eles consigam ainda assim exercer essa influência, cumprindo efetivamente sua função
de pais.
Claro que esta demanda, ela própria ignorante, pronta a se satisfazer com produtos
substitutivos, freqüentemente impregnados de uma concepção mágica ou puramente
institucional do saber, apaga a necessária atividade do aluno e busca o diploma mais que
o saber que ele legitima. Não importa. É à escola que esta demanda se endereça, e éfunção da escola responder a ela. Um professor, que se contentasse em fazer ouvidos
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moucos a essa demanda, negar-se-ia como professor. É necessária, certamente, a
transformação dessa demanda em algo mais consciente, mais lúcido, mais realmente
exigente, mas é preciso também que ela encontre professores que façam tudo o que
podem para satisfazê-la – inclusive através da luta para conseguir meios para isso.Mesmo que se trate abertamente de uma demanda de diplomas e não de instrução,
competiria ainda à escola dar resposta – a menos que se queira retirar dos professores o
último poder social que lhes resta, o de outorgar os diplomas.
Seria preciso então, para nossos alunos, aprender mais que seus pais para terem, em
seguida, menos que seus pais? Sim. Mas não é uma perfeita contradição? Sim. Mas
assim nós preparamos as explosões sociais? Esperemos. Trabalhemos para isso. Aescola não oferece igualdade de oportunidades aos filhos dos pobres, ela nunca teve e
jamais terá os meios – e os pobres sabem disso. Mas ela pode dar aos seus filhos uma
oportunidade, uma verdadeira chance: a oportunidade de se educar. É mesmo hoje quase
a única chance, a única esperança social legítima que a sociedade dá aos filhos dos
pobres. Cabe a eles se agarrarem a ela – se o quiserem.
Desesperança social e desesperança escolar
Mas eles o querem? Para isso é preciso que os pobres e seus filhos assumam o que eles
são – e que queiram se reproduzir. Enquanto os filhos dos pobres tiverem como modelo
de sucesso a riqueza, e não a promoção dos pobres, enquanto eles jogarem sobre seus
pais e sobre si mesmos o desprezo que os ricos têm em relação aos pobres, eles próprios
se menosprezarão, e não desejarão aprender: não tanto porque pensarão que isso não
serve para nada, mas porque não se acreditarão capazes de aprender.
A interiorização, pelos pobres, do desprezo de classe dos ricos é um dos principais
obstáculos para que nossos alunos aprendam. Se os pobres não se vêem mais como
trabalhadores explorados, mas como perdedores, então eles pensam a respeito de si
mesmos o que toda gente lhes repete: é por sua culpa que não foram capazes, que não
são capazes. Eles são, por isso, menosprezados por seus filhos que, menosprezando-os,
se menosprezam a si mesmos. De que adianta estudar, se não somos capazes deaprender?
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Diante da desesperança social dos filhos dos pobres, a escola se vê também intimada a
distribuir esperanças, promessas e “perspectivas”. Ao ópio que a religião já não fornece
ao povo, competiria agora à escola fornecer um substituto. É essencial para osprofessores se recusarem a participar desse trabalho. Já existe excesso de competidores
nesse mercado. A função da escola é tornar os jovens mais conscientes, não anestesiá-
los. Entretanto, ela pode mostrar-lhes, por sua prática, que ela acredita – ou melhor, que
ela sabe – que eles são todos tão capazes de aprender quanto os outros, e que ela espera
isso deles, como espera dos outros. Nós não temos nenhum euforizante, nenhuma droga
a propor para enfrentar a desesperança social de nossos alunos. Mas devemos e
podemos combater sua desesperança escolar.
Pois, se nossos alunos sentem que na escola, como em toda a sociedade, se partilha o
menosprezo dos pobres, que a escola não está lá senão como instância de controle social
de massa e, a rigor, com meios de permitir eventualmente a alguns jovens sobressaírem
individualmente, como eles não são loucos e sabem muito bem que a maior parte deles
não se destacará individualmente, então só lhes resta destruir e se destruir .
Nossos alunos sabem muito bem que a promessa da igualdade de oportunidades é uma
piada, e eles não têm necessidade deste gênero de quimeras, não é o que eles pedem.
Sabem muito bem que alguns jovens têm mais facilidades que outros para aprender, e
eles não esperam que a escola faça desaparecer magicamente as desigualdades sociais.
Mas encontrar pessoas, seus professores, realmente persuadidos de que eles são tão
capazes de aprender quanto os filhos dos ricos, pessoas que os tratam realmente como
iguais aos outros, eis o que realmente surte efeito. A igualdade de oportunidades eles jamais terão. Mas a igualdade de direitos, a possibilidade real de aprender, a recusa de
toda discriminação, a seleção fundada exclusivamente nos resultados escolares e não na
origem social, na nacionalidade ou no sexo, isso a escola sabe e pode fazer.
A desigualdade de exigências
Ela sabe e pode fazer: mas ela o faz efetivamente? O compromisso real da escola com aigualdade de direitos e com a igual dignidade dos pobres mede-se de uma forma
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simples: pela igualdade de exigências a respeito dos alunos. Basta que a escola seja boa
nas exigências de ensino, que ela mostre, pela prática, o que espera efetivamente de seus
alunos: o mesmo nível e os mesmos resultados que de todos os alunos da França, para
lhes provar que ela acredita serem eles igualmente capazes. Esta igualdade de exigênciassupõe, nós sabemos, uma desigualdade de meios: a exigência sem os meios é um
engodo, e ensinar os filhos de pobres custa mais caro que ensinar os filhos de ricos, pois
estes têm facilidades que os outros não têm. Mas de resto, no fundo, a realidade de
igualdade de direitos na escola baseia-se num único critério: a igualdade das exigências.
Deste ponto de vista, é preciso dizer, estamos muito longe desse cômputo. Se a escola é
a vanguarda da sociedade no que concerne à igualdade de direitos entre meninos emeninas, este não é o caso em se tratando de ricos e pobres. É verdade que, no essencial,
os colégios e liceus de pobres permitem a seus alunos faltar às aulas, não fazer seus
deveres, chegar atrasados, deteriorar os locais, e mesmo, em muitos estabelecimentos,
molestar seus colegas e insultar seus professores.
Não, eu não exagero dizendo que isso é permitido. É preciso apenas explicar o que é
permitir. De um lado, muitos de nossos alunos não conhecem outra lei, além daquelaque a vida social lhes ensina: a lei do mercado, a lei do mais forte. Por outro lado, eles
são submetidos, também eles, ao fluxo dos discursos feitos de autojustificativas e das
pressões subjugantes de pseudo-adultos impotentes para assumir suas exigências; e são
mergulhados, também eles, na proliferação delirante de textos e de
regulamentações/desregulamentações burocráticas e contraditórias que ninguém aplica.
Além disso, pertencem a uma instituição bizarra que lhes pede não para respeitar
praticamente suas regras, mas fingir interiorizá-las como crenças, que as reconheceteoricamente, que as subscreve verbalmente ou por escrito, subscrevendo com isso
pseudocontratos que ela bem sabe que são totalmente destituídos de qualquer valor
jurídico ou contratual (felizmente: se fossem verdadeiros contratos, seriam
monstruosidades jurídicas). Os alunos os assinam, e sabem muito bem que, de fato, isso
não os compromete em nada, os menores de idade não têm a capacidade legal de
estabelecer contrato. Mas, no limite, eles têm mesmo assim a necessidade de saber
aquilo que, na prática, com toda essa confusão de textos bombásticos e opressivos depseudo-regras, de pseudo-contratos, de pseudo-demandas, é efetivamente permitido e
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proibido na escola onde eles vivem. E não têm senão um meio de o saber: pelo castigo.
O que é proibido é o que é punido, e o que é permitido é todo o resto (5).
Demissão escolar e desvio securitário
Então é preciso dizer, porque é verdade, e porque essa verdade é perfeitamente
conhecida pelos pais e pelos próprios alunos (isso se chama a “reputação dos
estabelecimentos”): entre ricos e pobres existe uma desigualdade escolar fundamental, e
esta desigualdade consiste em, na escola dos pobres, ser permitido não estudar . Euinsisto: é permitido pela escola. A escola dos pobres – e apenas ela – vê, de fato,
explicitamente, imposta pelo Estado, uma missão de segurança, de ser lugar de guarda
de alguns jovens, para quem o Estado não pede instrução (seria possível, mas seria
necessário cobrar), mas apenas acolhimento e controle (“não obstante, eles ficam melhor
lá na escola do que vagando pelas ruas”). Melhor, chegamos hoje a ponto de ver, em
nossos estabelecimentos, alunos fictícios: eles estão e permanecem administrativamente
matriculados, mas ninguém nunca os vê. A escola se limita ao certificado deescolaridade, passou da função de lugar de guarda à função de controle social mínimo, à
função de cobertura.
Imagina-se facilmente a conseqüência inelutável desta permissão para não estudar: o
momento em que não é mais autorizado estudar . Como não é possível exercer
efetivamente o direito de não aprender sem impedir que os outros aprendam, o direito de
não estudar desemboca logicamente sobre o direito de impedir que outros estudem, odireito de impedir que a escola desempenhe seu trabalho. Em quantas de nossas classes
a relação de forças já é tal que, de fato, não é mais permitido a um aluno fazer uma
pergunta, intervir na aula, em suma, tentar aprender? Essas relações de força e de poder
entre os alunos no interior da classe, nossos alunos sabem muito bem – falando do
ambiente da classe e da influência, boa ou má, que exercem sobre eles seus colegas – o
papel decisivo que elas desempenham sobre a possibilidade ou a impossibilidade de
aprender. Ninguém ignora que as principais e mais graves formas da violência na escolaconsistem nas violências entre alunos, e que são muitas as relações de poder e de
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dominação nas classes que aí se representam. Mas, claro, é uma coisa da qual ninguém
fala...
Esta forma especificamente escolar de menosprezo pelos pobres, que consiste em lhesdar – apenas a eles – esse privilégio exorbitante de ter o direito de estar na escola e não
estudar, se acoberta com diferentes álibis. O mais manifesto dentre eles é a indulgência:
em lugar de exigir e ajudar a fazer, renuncia-se a exigir – porque ajudar a fazer custa, a
exigência é exigente primeiro para aquele que exige, tanto quanto a indulgência permite
ser indulgente com sua própria demissão (não é culpa deles ser pobres, assim como não
é minha culpa). O inconveniente é que, como toda indulgência é menosprezo (6), a
indulgência consigo mesmo comporta o menosprezo de si. Daí os diferentes discursosautojustificativos do menosprezo de classe a respeito de nossos alunos: versão elitista-
reacionária de falar contra as pérolas atiradas aos porcos, versão libertário-esquerdista
contra a violência simbólica do arbitrário cultural burguês, versão rosa-liberal sobre a
modernização e adaptação da escola – tantos tapa-miséria da demissão escolar.
Nossos alunos têm direito, como os outros alunos, de ter professores exigentes. Mas
quando se mantém a exigência, ao contrário de toda a sociedade, é evidente que essaexigência ficará insatisfeita. Manter a exigência é manter a falta, manter o
descontentamento, manter o sofrimento. Porém, o que pode empurrar um professor a
cruzar os braços, baixando a guarda, não é um credo ideológico: é o cansaço, o
enfraquecimento, o fracasso. A fadiga e o fracasso tornam os professores vulneráveis às
sereias liberais das ideologias da facilidade e da demissão escolar: sejamos vigilantes. A
profissão é dura, certamente. Mas toda concessão à indulgência e à mentira social a
torna ainda mais dura; mascarar o fracasso pode apenas amplificá-lo.
Se jamais foi verdade que a escola destina a todos os alunos a mesma exigência escolar,
e se a inferioridade dos resultados escolares dos filhos de pobres foi mais dissimulada,
torna-se evidente que a falta pertence, nesse caso, ao fato mesmo da pobreza, às
desigualdades sociais – e, em primeiro lugar, às desigualdades econômicas.
Compreende-se então por que a escola dos pobres sofre essa extraordinária pressão,
visando à dissimulação de seu próprio fracasso, pressão que vai, cúmulo dedescaramento, até o apelo à consciência profissional dos professores.
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Mas o que pede verdadeiramente aos professores sua consciência profissional é não
dissimular: junto com as lutas coletivas pelos recursos para ensinar, o pedido de licença
saúde é a única manifestação individual verdadeira dos limites de nossas forças. É umador de alma para um professor confessar seu fracasso e baixar os braços; porém, uma
vez feito tudo em termos de lutas e de educação para o sucesso escolar de nossos alunos,
não há outra escolha senão confessar o fracasso por um franco “non possumus” ou
participar da empresa de mentira social e da violência que ela implica.
Caso contrário, a deriva securitária para a qual o Estado se esforça para puxar a escola
dos pobres, tem sua própria lógica: o reconhecimento do direito de não aprender serátrocado por adequação de comportamentos desconectados de funções específicas da
escola; a instrução será substituída pelo adestramento social e pela aprendizagem da
submissão prática à desordem vigente. Como diz Kant: “Adestram-se cavalos,
cachorros, pode-se também adestrar homens”. Não será então apenas a violência da
mentira social que a escola se encarregará de infligir aos alunos, mas a violência social
simplesmente. Porém, a escola não tem e nunca terá meios – meios que mesmo a
polícia, nos nossos quartéis, já não têm – de enfrentar o retorno da violência, que é ocorolário inevitável disso.
Queimar a escola?
Inútil escondê-lo: as tentativas e os começos de incêndio são moeda corrente em
numerosos estabelecimentos, e já existem escolas que foram queimadas porque eram
escolas. Existe, na violência que a escola sofre, uma parte de violência explícita contra aescola, de recusa escolar. Ensinar já não é apenas um trabalho, é uma luta.
É hora de se recordar que a obrigação escolar jamais teve, inclusive sob a Terceira
República, uma evidência natural, mas sempre o caráter de uma luta. As formas
violentas de recusa da obrigação escolar não são mais que o revelador de uma
resistência quotidiana muito mais ampla. Pelos menos 80% das palavras de justificações
de ausência assinadas pelos pais dos colegiais ausentes explicam, com toda candura, queos pais dispensaram seus filhos da obrigação escolar nesse dia. E isso não é prerrogativa
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dos filhos dos pobres. Os pais menos pobres fazem a mesma coisa de maneira mais
destrutiva, mais reivindicativa, mais individualista e liberal, mas o fundo é o mesmo: a
recusa da obrigação e da coerção escolares – o aumento da demanda escolar convivendo
perfeitamente, em boa lógica liberal, com a recusa da obrigação. Esta parte da populaçãoque passou ou está em vias de passar da pobreza à miséria, e que sente cada vez mais (e
cada vez mais com justa razão) a escola como uma das múltiplas instituições que o
Estado cria para manter opressão e controle sobre as classes perigosas, não é, na sua
resistência à obrigação escolar, senão a ponta do iceberg de um fenômeno social global.
É da escola obrigatória, como do conjunto dos progressos sociais, que se resgataram as
gerações passadas: os tempos mudaram, e é pela sua renúncia, pela sua liquidação quetrabalham hoje com uma notável eficácia as forças do mercado. A escola obrigatória e
gratuita, a escola pública, só existe para o Estado. Ela é perfeitamente antinômica com
as leis do livre-mercado da oferta e procura. E hoje são os mercados que mandam.
A coerção escolar não vai apenas no sentido contrário à prática do liberalismo no plano
econômico; ela é, em si mesma, o contrário do próprio princípio da ideologia liberal: o
laissez-faire. O liberalismo pedagógico, inclusive em suas versões libertárias, não é (enunca foi) outra coisa senão o cavalo de Tróia do liberalismo econômico e político no
interior da escola. A diferença entre a situação dos professores da Terceira República e a
nossa não está somente na relação entre a escola e um Estado que, desvencilhando-se do
próprio serviço militar, quer fazer desaparecer a única coerção que restava – a obrigação
escolar – e assim se desvencilhar de um só golpe da escola, único lugar de obrigação,
através de toda uma confusão de exigências de segurança e de exigências não-escolares.
Esta diferença está plantada também no interior da própria escola, na penetração doliberalismo escolar, avatar desse liberalismo rosa para o qual, é bem necessário
reconhecer, os próprios professores deram fortemente a mão.
A diferença está igualmente no peso das forças sociais, políticas e econômicas hostis à
escola leiga e perfeitamente consciente do jogo que ela representa: o fascismo em
primeiro lugar, em sua variante xenófoba hostil aos “professores de esquerda” e à
“escola dos árabes”, como na sua variante islâmica hostil ao secularismo francês; mastambém as forças organizadas do tráfico, as forças mafiosas que querem transformar a
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escola em mercado, aliciando os alunos para esta forma particular, sempre rentável, de
trabalho de crianças, utilizando a proteção judicial específica dos menores. A
experiência histórica dos anos 30 nos ensina que estas duas forças, o fascismo e o
tráfico, que têm em comum a exploração do desespero e o uso da violência, operam juntas em alguns momentos, diante dos seus adversários comuns. Se acreditar em meus
colegas presentes no estágio do SNES, parece que, em alguns lugares onde se concentra
o desespero social, esta conjunção está desde agora em ação, produzindo formas
coletivas, organizadas, de violência contra a escola e de recusa à obrigatoriedade
escolar.
Quanto à vontade e à capacidade do Estado de defender sua escola, sabemos o que éisso: ver, por exemplo, o “relatório de etapa” da oficialíssima comissão Fauroux,
publicado no momento em que escrevo estas linhas. Na época em que se realizou uma
certa promoção coletiva das classes populares, era natural que a escola tivesse sua parte
nesse processo. Na época do poder absoluto das forças do mercado, é também
absolutamente normal que a escola fosse intimada a contribuir para a regressão coletiva
e para o empobrecimento do pobre na parte que lhe toca (o empobrecimento cultural). É
perfeitamente possível que a escola já não se torne, para os pobres, senão um jardim deinfância, uma creche para crianças e adolescentes, uma instituição de amparo investida
de uma missão de segurança, um lugar não de instrução, mas de vigilância das classes
perigosas, e de adequação dos comportamentos, breve, um instrumento de opressão. É
perfeitamente possível que, um dia, os partidários da escola não tenham mais nada a
defender nela (7).
Nessas condições, não é absolutamente certa que a violência contra aquilo que resta daescola pública não seja, num futuro próximo, a mais forte. É perfeitamente possível que
o fascismo e o tráfico prevaleçam. Nenhum direito é definitivamente adquirido, o direito
à educação não mais que os outros. Não está escrito lá no alto que a sociedade se
reproduzirá e que a cultura será transmitida. Do mesmo modo o saber.
Disciplina e cidadania
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O liberalismo vigente pode nos impedir de ver que a escola tem suas próprias armas:
existe uma violência legítima para enfrentar a violência contra a escola. Não a violência
da segurança, não a violência da ilusão, mas a violência da instrução, a violência da
cultura. Esta idéia, de que existe uma violência escolar legítima, parece-me essencialpara poder exercer aquilo que é hoje ao mesmo tempo uma profissão e uma luta: a
profissão de professor. Ela apenas permite ao professores se desmarcarem das formas
comuns da violência social, sem para tanto terem de denegar junto aos alunos o que
estes experimentam, com justa razão, como uma violência exercida sobre eles.
A escola, devendo lutar com suas próprias armas, não se espantará de ver evocar aqui
alguns autores (Platão, Spinoza, Rousseau, Kant, Freud) do programa de filosofia dosúltimos anos do colégio. O que define a violência é a idéia de destruição, de negação.
Ser violento é quebrar, é destruir. Ora, precisamente, existe em toda educação, lembra-
nos Kant (8), uma parte negativa. Essa parte negativa Kant chama não de “cidadania”,
mas de disciplina. A disciplina consiste em despojar os homens de sua selvageria
(definida como “a independência a respeito de todas as leis)”. Que selvageria? Sua
selvageria natural, ora! Educar é fazer desabrochar, desenvolver capacidades, mas este
desabrochar só é possível sobre a base de uma destruição, de uma perda – de uma perdade algo natural a todos os homens, que vai, portanto, contra a sua natureza.
Ao contrário das más interpretações usuais (inspiradas pelo naturalismo liberal) sobre
Rousseau, Kant está perfeitamente de acordo com Rousseau quando diz que a natureza,
no homem, não é em si mesma nem boa nem má: ela é contraditória. Sobre esta
contradição a educação trabalha, sendo os próprios educadores seres contraditórios. Isso
faz da humanidade não um fato biológico, mas uma idéia, um ideal moral e histórico. Sese quer saber realmente em que Rousseau e Kant divergem verdadeiramente, é sobre o
progressismo de Kant. O que Rousseau afirma não é que a natureza seja boa, é que é
perfeitamente possível que o curso da história não se contente em colocar a humanidade
em lugar da selvageria natural, mas que ela carregue igualmente uma selvageria
civilizada, uma barbárie social que poderia chegar a ponto de fazer regredir à selvageria
natural.
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Kant formula a realidade de seu debate com Rousseau nestes termos: “No estado atual
das coisas, pode-se dizer que a felicidade dos Estados cresce ao mesmo tempo em que a
infelicidade dos homens. E é ainda uma questão de saber se não seríamos mais felizes
num estado rude, onde toda a cultura que existe entre nós não existisse, que em nossoatual estado”. Concordar-se-á, diante dos avatares da barbárie moderna do século vinte,
que este debate é muito mais pertinente que as bobagens do laissez-faire do liberalismo
educativo.
Seja como for este debate, permanece esta verdade de experiência: aprender é
desaprender, é se fazer violência. O autor dessas linhas nunca ultrapassou as duas
primeiras lições de judô: primeira lição, chutes para frente; segunda lição: chutes paratrás – uma semana sem poder me sentar. Por que esse fracasso? Porque eu não consegui
desaprender a maneira natural de cair . O meu professor de judô sabia que isso não
aconteceria sem violência de sua parte e sem sofrimento de minha parte – e ele exercitou
toda a violência necessária. Mas aí está: eu já era muito velho, praticamente, era já
muito tarde para desaprender. A disciplina, sabe-se pelo menos desde os Gregos, deve
ser aprendida quando jovem (“isso deve ter lugar cedo”, diz Kant), isso se aprende pela
experiência e através do corpo, não através de discursos teóricos, ao mesmo tempoprematuros e muito tardios, sobre a cidadania e o contrato, que nada podem contra os
maus hábitos já inveterados. Kant: “O que não foi cultivado é bruto; o que não foi
disciplinado, é selvagem. A falta de disciplina é um mal pior que a deficiência cultural,
pois esta pode ainda ser reparada mais tarde, ao passo que não se pode arrancar a
selvageria e corrigir um defeito de disciplina”.
É preciso ser ignorante como um tecnocrata ministerial para não ver que bombaeducativa se introduz nas escolas quando se quer fundamentar a disciplina elementar
sobre a idéia de cidadania. Rousseau, no Contrato Social (Livro I, capítulo VIII), explica
perfeitamente que a decisão de assinar ou não o contrato social implica um cálculo em
termos de ganho e de perda. Pois existe um mundo a perder, ao se tornar cidadão: a
liberdade natural. Esta perda é sempre uma privação, uma amputação, uma violência.
Como um ser, naturalmente livre, poderá consentir em se impor essa amputação de sua
liberdade natural? Tal é precisamente o problema que o contrato social deve resolver. É
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evidente que não se pode opor a esta imensa perda senão ganhos também imensos.
Rousseau vê dois ganhos: a liberdade política e a propriedade.
Mas ainda é preciso que esses ganhos sejam realistas. A liberdade política, aparticipação no poder político, não são mais que palavras ocas para alunos de colégio,
que justamente não são cidadãos, e é decididamente uma provocação para aqueles a
quem as leis Pasqua e outras recusam a cidadania. Quanto à propriedade, o que ela
significa para aqueles que nada possuem? Pedir a colegiais, em nome de uma
"cidadania” que eles não têm, que troquem liberdade natural por... absolutamente nada,
seria tomá-los por imbecis, seria incitá-los explicitamente a recusar toda disciplina.
Alguém acreditaria verdadeiramente que um jovem de treze anos possa se impor a simesmo essa extraordinária violência que é a perda de seu "direito ilimitado a tudo
aquilo que o seduz e que ele pode alcançar ” (Rousseau), sobretudo em troca de nada?
Essas ideologias escolares oficiais da cidadania, que tentam substituir, em boa lógica
liberal, o contrato pela autoridade da lei, exprimem de fato a vulgar demissão educativa
do liberalismo. Nunca haverá disciplina sem a coerção que o educador exerce,
unilateralmente e sem contrapartida. Compete ao educador e à instituição escolar retirardos alunos o peso da coerção educativa, assumindo a carga dessa exigência em seu lugar
(9) – em vez de se isentar de sua responsabilidade, exigindo dos alunos que interiorizem
a obrigação por pseudo-contratos, que só podem, no melhor dos casos, conduzir a
pechinchas sempre decepcionantes, não tendo a escola nada a vender (ao menos
enquanto ela ainda não vende seus diplomas).
A conversão ao saber
Pois bem, a educação não tem só uma dimensão negativa. A instrução e a cultura são a
parte positiva da educação. Ora, como o explica tão bem Platão na República e em sua
famosa alegoria da caverna, a própria instrução comporta uma parte negativa.
Certamente, já não se trata aqui de destruir, de perder alguma coisa, mas de utilizar
capacidades preexistentes. “Cada um possui a faculdade de aprender e o órgão destinado
a isso”. Mas a instrução exige uma “conversão da alma”, um desvio forçado do olhardas sombras da caverna e da imediatez sensível. Para ver mais longe do que a ponta de
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seu próprio nariz, é necessário olhar para outro lugar, para domínios cuja serventia não
podemos saber, pois não somos o centro deles.
Essa conversão, esse desvio, não são espontâneos, e não se fazem sem sofrimento e semcoerção. Depois de se ter “libertado de suas correntes” e se “curado de sua ignorância”,
o prisioneiro deverá ser “forçado” a se levantar, a virar a cabeça, a caminhar, a elevar os
olhos para a luz. “Ao fazer tudo isso, sentirá dor, e o ofuscamento o impedirá de
distinguir os objetos cujas sombras via outrora”. Ficará num primeiro momento
“embaraçado” por aquilo que verá nesse novo dia, e começará por acreditar que as
sombras da caverna eram mais reais do que o que vê agora. “E se o arrancassem dali à
força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir, antes oarrastassem até a luz do sol, não seria natural que ele sofresse vivamente, e reclamasse
por causa dessas violências? E depois de chegar à luz, com os olhos ofuscados pelo
brilho, nem sequer pudesse distinguir uma só das coisas que agora chamamos
verdades?” (10)
Se existe coerção e sofrimento nessa conversão para o saber, não me parece contudo que
exista violência: ao contrário da disciplina, a instrução não destrói nada naquele que seinstrui. Ela permite e exige uma tomada de distância em relação aos preconceitos e aos
interesses espontâneos, mas não faz violência, no sentido de que ela é uma contribuição,
um acréscimo de ser. Se essa contribuição pode ser experimentada como uma violência,
é unicamente em função desse fantasma tipicamente comercial (11) de um indivíduo
completo e perfeito tal qual é, à cuja demanda bastaria satisfazer para completar essa
perfeição.
A influência dos professores
Em suma, aprender, se é possível para todo mundo, não é fácil para ninguém. As
matemáticas, a filosofia, a educação física, a gramática, todas as disciplinas escolares,
tudo é difícil, verdadeiramente difícil, e a obrigação social sozinha não permite esta
conversão ao saber: é necessária a mediação do professor, a confiança a priori do aluno
em seus professores. A escola exige e exigirá sempre de seus alunos um enorme ato defé: mesmo que o sucesso da aprendizagem e a natureza dos saberes ensinados permitam
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a crítica e a verificação retrospectivas deste ato de fé inicial, o próprio princípio que
permite esse ponto de partida não pode depender de uma relação comercial entre oferta e
procura, nem de uma lógica do “contrato”, nem mesmo de uma concepção abstrata,
consumista, da justiça, que reivindica os “direitos das crianças” e a igualdade entrealunos e professores. A escola deve, evidentemente, como toda instituição, respeitar os
direitos de todos. Mas ela tem, como única razão de ser, oferecer aos alunos os meios
de realizar e fazer respeitar um único direito: o direito de aprender.
A relação pedagógica é, antes de tudo, uma relação de influência, e é portanto desigual
em sua essência. Esta influência só é possível mediante a confiança que os alunos
depositam (transferem, para falar como Freud) em seus professores. É por isso que é tãoessencial, diante da crise da escola dos pobres, recusar todas as tentativas de utilizar a
influência pedagógica para objetivos não pedagógicos, de fazer a escola participar em
empreendimentos de mentira social e de controle dos comportamentos. Se a violência da
cultura já não consegue mais se distinguir da violência social global, então ela será
recusada com a mesma violência em retorno, e o motor que permite a instrução desabará
definitivamente.
Também por isso é tão essencial manter uma solidariedade sem quebra dos professores
e defender coletivamente a autoridade dos professores – de todos os professores. É uma
tendência natural na hierarquia da Educação Nacional, como em toda burocracia,
responder à violência escolhendo, entre os mais fracos (doentes, jovens, mulheres,
imigrantes, ou simplesmente pessoas mais gentis) as vítimas expiatórias, os “maus
professores”, que aceitam se sacrificar para proteger os outros. Politicamente, os anos 30
nos ensinaram quais são as conseqüências dessa covardia diante da violência (12), etambém que, nas burocracias, não faltam esses pequenos chefes tentados a se apoiar na
violência para aumentar seu próprio poder (donde tentativas de aproveitar da violência
para atribuir aos chefes da comunidade o direito de recrutar e de colocar na rua
professores, conforme o modelo da empresa privada). Mas, pedagogicamente, todo
educador que trabalha contra a autoridade de um professor deve saber que ele trabalha
para serrar o galho sobre o qual a escola está apoiado.
A alegria, o medo e a superstição
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Que resta então para a escola, se ela nada tem a prometer senão o que efetivamente pode
fazer, que é instruir? Pois bem! Instruir, justamente.
É hora de recordar um caráter muito particular desse bem que é a instrução. Nada é
definitivamente adquirido pelos homens, todo bem, todo direito, pode lhes ser tirado.
Mas aquilo que eu aprendi, aquilo que eu sei, faz parte daquilo que eu sou, não daquilo
que eu tenho: ninguém pode me despojar disso. Aprender não é apenas saber mais, é ser
mais. “A alegria, diz Spinoza (14), é a passagem do homem de uma menor para uma
maior perfeição”. Aprender é então uma atividade alegre por natureza. É esta alegria de
aprender, uma vez experimentada, o verdadeiro motor da atividade do aluno paracontinuar a aprender. Precisemos: a alegria não é nem o prazer nem a felicidade
(aprender é freqüentemente muito laborioso, as fases de enfado e de sofrimento não
faltam). A alegria não é uma recompensa, uma promessa, um prêmio, uma astúcia
pedagógica: é a própria essência do resultado pedagógico: um acréscimo de ser, uma
passagem para maior perfeição.
É contra esta alegria de aprender que declararam guerra todas as forças hostis à escola,e evidentemente em primeiro lugar a violência. A superstição, sabemos desde Spinoza,
apóia-se sempre sobre as paixões tristes – e, evidentemente, em primeiro lugar no medo.
O medo é a outra grande causa, além do menosprezo de si, que impede nossos alunos
de aprender. É por isso que a luta coletiva para a segurança na escola é uma luta
essencial: a segurança não é apenas um dos direitos do homem, é um valor escolar
essencial, uma condição do resultado da aprendizagem.
É por isso que a escola deve repelir, como tantas violências anti-educativas, todas essas
pressões exercidas sobre nossos alunos, visando a confrontá-los permanentemente com
a insegurança e com o medo. Quando os velhotes e as babás que promovem as
campanhas oficiais contra a AIDS compreenderão que, quando se fala de sexualidade
aos jovens, não é à linguagem do medo que se deve se prender, mas à da
responsabilidade (portanto, da liberdade)?
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Quando cessarão de fazer pressão sobre jovens escolarizados, que certamente são filhos
de desempregados e que serão também desempregados, mas que no momento não são
desempregados, para lhes reinjetar permanentemente, em nome de uma obscura
ideologia do “projeto”, o medo do desemprego e da insegurança? Como têm razãonossos alunos de empurrar sabiamente tudo isso para depois! Não se vive e não se
aprende no futuro anterior; vive-se e se aprende no presente. Em tempo: o tempo para
viver e se divertir, o tempo para aprender, eis o que eles têm ainda, eis o que se quer
arrancar deles. Eis o que devemos defender junto com eles.
A crise está aberta
A crise está aberta, isto é, declarada: quaisquer que sejam as tentativas de sufocação e de
retardamento, já ninguém pode hoje impedir as explosões. Ou a escola conseguirá se
concentrar sobre seu objeto, a instrução, e chegará a opor a violência da cultura e a
alegria de aprender ao medo, ou então ela renunciará à sua função e se tornará cada vez
mais uma empresa de adequação dos comportamentos, de distribuição de anestésicos e
de mentira social. No segundo caso, parece-me evidente, ela será rapidamente inundada
pela violência.
Mas dizer que a crise está aberta, é também dizer que o jogo não está ganho. Os antigos
compromissos e as velhas mentiras tiveram seu tempo, as coisas já não podem continuar
do jeito que eram. O pior é doravante possível. Mas não é certo.
_____________________________________________________
1. Ver por exemplo, na Universidade Sindicalista, os artigos de Hélène Latger sobre a educação cívica
e a cidadania (US 397 p.10), de Catherine Remermier sobre a violência contra a escola (US 395p.12) etc.
2. Claro, a violência na escola é também ipso facto uma violência contra a escola. Pois ela é umanegação de sua função específica. Mas esta negação não é específica da violência. A tentativa defazer da escola um campo de batalha como os outros está em perfeita coerência com as pressões quea escola sofre para “se abrir sobre a vida” e se transformar em simples "lugar de vida" (sendo a "vida"o eufemismo oficial para designar o mercado).
3. Reivindico a origem da função pedagógica deste léxico. Ensinar o manejo de diferentes registros delinguagem faz parte do trabalho da escola. É um dos efeitos interessantes da violência: ela produzuma distinção entre um “nós” que reúne curiosamente o autor da violência e sua vítima, (ambos
sabem o que é isso), e um “eles” que reagrupa todos aqueles, imediatamente reconhecíveis pelo seuvocabulário, que o usam para negar a realidade pelo eufemismo. O professor deve hoje prestar muitaatenção nas palavras que usa; o uso não-irônico da língua de pau politicamente correta (que se
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distingue muito bem tanto da língua do povo como da língua escolarmente correta), classifica-oimediata e intuitivamente entre os participantes do empreendimento de mentira social, portanto, entreos alvos da violência. Não é só isso. Os resultados de pesquisas sobre a popularidade de políticosdependem estreitamente da capacidade de eles manipularem os diferentes registros da língua. Omelhor resultado é obtido por aquele que sabe melhor utilizar todos os registros (Jacques Chirac).Aqueles que, como Le Pen ou Alain Juppé, não sabem falar senão num único registro, são
imediatamente estigmatizados como “populistas” ou como “tecnocratas”. Esta fraqueza testemunhauma falta de instrução, uma insuficiência de aprendizagens escolares.
4. A melhor é, em minha opinião, o livro de Raymond Boudon, L'inégalité des chances (A. Colin,1973). A primeira das conclusão deste estudo se enuncia assim: (p. 211) : "A desigualdade deoportunidades diante do ensino resulta principalmente da própria estratificação social." E sua"conclusão principal do ponto de vista prático” é expressa na p. 218 : "Uma política de desigualdadesocial e econômica direta pode apenas atenuar as desigualdades em suas diferentes formas". É precisorecordar o zero que levaria aquele que aproximasse do marxismo a sociologia de Boudon?
5. O único conjunto de regras que é claramente ensinada como tal aos meus alunos, que elesefetivamente conhecem, e com o qual eles têm uma relação normal, descontraída e saudável,inclusive quando eles o transgridem, é o código de trânsito. O código de trânsito é uma bênção para oprofessor de filosofia que quer fazer seu curso sobre o direito. Não estou surpreso de aprender, noestágio do SNES, através de meus colegas de colégio, que a mini-licença para poder dirigir uma motopassa doravante para quatorze anos. É também considerada por certos professores como uma dádivaeducativa. Enfim, uma relação clara com a lei. Mas também uma relação clara com a punição... Ocódigo de trânsito não tem nada a ver com a “cidadania” e com a democracia, mas apenas com a vidasocial em geral. Para depender do código de trânsito não há necessidade de ser um cidadão, basta serpedestre, motociclista, automobilista etc. Esta aprendizagem depende hoje do trabalho da escola, àmedida que essas regras dependem da socialização elementar, são contudo complexas, pois elasrefletem a complexidade da vida social. O importante e o difícil diante dessas regras, todos oscandidatos à licença de dirigir o sabem, não é se submeter a elas, e as respeitar: é conhecê-las. Etodos os professores de auto-escola bem sabem que os resultados dos candidatos nas provas teóricasde licença para conduzir dependem antes de tudo de seu nível escolar global. Pedir à escola que
ensine regras de socialização como o código de trânsito ou uma conduta responsável em matéria desexualidade não me parece então monstruoso: é preciso que alguém faça esse trabalho, e é um fatoque a escola é, mais ou menos, o único lugar onde o liberalismo não teve ainda sucesso em liquidarcompletamente toda ambição educativa; não me parece mesmo inconveniente incluir a parte teóricada licença de motorista (aquela que todo mundo deveria conhecer, mesmo que não conduzisse veículoalgum), pela mesma razão que outros saberes úteis à vida social (administração de um orçamento,primeiros-socorros etc.) nas BEP e nos exames finais do terceiro milênio. Mas apresentar o quedepende da disciplina social primária sob a nomenclatura geral de “educação para a cidadania”, comose faz neste momento a pedagogia oficial, mostra que, para o próprio Estado “democrático” aspalavras “democracia” e “cidadania” não querem dizer mais nada. Isso tem, é claro, uma explicaçãopolítica (o nominalismo: quanto menos o povo tem a realidade do poder, mais ele tem as palavras),mas também uma razão pedagógica – sempre essa insuficiência das aprendizagens escolares dosmembros da burocracia do Estado, que podem ter passado em seus concursos ignorando totalmente a
distinção entre o conceito de cidadão e o conceito de sujeito.
6. A indulgência não é amor. O amor é exigente. Ver o Banquete de Platão. E é o respeito, não o amor,que deve ser exigido entre alunos e professores.
7. Freud: "Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seusparticipantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior — e este é o caso em todasas culturas atuais—, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensahostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cujariqueza não possuem mais do que uma quota mínima. (...) Não é preciso dizer que uma civilizaçãoque deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta, não temnem merece a perspectiva de uma existência duradoura. (Freud, L'avenir d'une illusion, Quadrige-
PUF 1995, p. 12). Esta obra de Freud é um dos melhores ensaios filosóficos sobre a questão dapossibilidade de uma educação leiga.
5/14/2018 Bourdin - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/bourdin 28/28
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8. Kant, Traité de pédagogie, trad. Barni, éd About, Hachette 1981.
9. Assumindo igualmente o inevitável momento de revolta contra esta opressão sofrida, revolta salutar enecessária à constituição de uma pessoa autônoma obedecendo às pressões que ela própria se impõe –ao contrário dessa inércia suave, esta aceitação sorridente temperada pela prática da vagabundagemgeneralizada, que uma instituição que não assume suas próprias exigências gera necessariamente
entre os alunos, em lugar da contestação ativa. Mas saibamos também que a constituição dessa pessoaautônoma não revoga a necessidade da repressão. Para dizê-lo na linguagem de Freud: que se trate deum colegial de Clichy sous Bois, de um ministro da República ou de um PDG de grande empresa,chamar o indivíduo a interiorizar as exigências culturais e a se constituir um superego é um objetivorealista ... até certo ponto... Além deste ponto, “observamos com surpresa e preocupação que amaioria das pessoas obedece às proibições culturais nesses pontos apenas sob pressão da coerçãoexterna, isto é, somente onde essa coerção pode fazer-se efetiva e enquanto deve ser temida. (...) Háincontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas quenão se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais, e que nãohesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possampermanecer impunes”. (L'avenir d'une illusion, p. 12).
10. Platão, République, livre VII, 515c-516a, trad. R. Baccou.
11. A passagem do fetichismo da mercadoria, analisada em seu tempo por Marx, ao fetichismo
generalizado do mercado, no qual nos banhamos hoje, mereceria um estudo.
12. 19 de junho de 1933: o comitê diretor do partido social-democrata alemão (SPD) exclui de si mesmoos membros judeus da direção do partido. 22 de junho de 1933: Hitler dissolve o partido social-democrata e a Gestapo prende seus dirigentes parlamentares.
13. Falar de "capital cultural" para designar a instrução é uma inaptidão conceitual: a instrução não é umcapital, ela faz, ao contrário, parte do que Marx chama a “força do trabalho”, que é precisamente oque o capital explora. Esta antífrase não é então só uma forma de eufemismo, ela participa de umamentira social fortemente interessada na natureza real do capital. É essencial para os professores
desmascarar essa mentira, a fim de poder compreender seu lugar na divisão do trabalho. Pois osprofessores estão em posição de co-produtores de uma riqueza essencial, da riqueza principal de todasociedade: a capacidade de produzir riquezas. Esta riqueza é uma mercadoria: mas esta mercadoriapertence aos nossos alunos . Eles vão, em seguida, colocá-la à venda (ou antes alugá-la) no mercadode trabalho, onde o capital (o verdadeiro) o compra. Assegurando o desemprego o excesso de ofertasobre a procura, a lei do mercado faz baixar os preços. É natural que haja uma correspondênciaestreita entre o preço dessa mercadoria no mercado de emprego e o estatuto social e econômicodaqueles que contribuem para produzi-la, a saber, os professores. Se o trabalho se desvaloriza, aprofissão de professor se desvaloriza também. Não há pois necessidade de procurar muito longe aforça social que pode ser a aliada dos professores na defesa da escola e da instrução: são nossosalunos.
14. Ethique, livre III, Définitions des sentiments.