Post on 15-Nov-2018
AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: reflexões acerca de trajetórias de vida, biografias e escritas da história
Erivan Cassiano Karvat
PPGH/DEHIS UEPG
Resumo: A presente discussão – seguindo a sugestão do Simpósio Temático Trajetórias no Paraná: reflexões, dinâmicas e perspectivas na História em “envolver análises e reflexões (...) que se utilizem das trajetórias de vida como método de pesquisa histórica” – objetiva levantar questões acerca das possibilidades do estudo de trajetórias individuais e da construção biográfica e de suas relações com trajetórias de instituições. Para tanto, parte-se da trajetória de Faris Antonio Salomão Michaele (1911-1977), personagem ligado à fundação do Centro Cultural Euclides da Cunha, criado em 1948, em Ponta Grossa, e nome atuante no cenário intelectual dos Campos Gerais ao longo das décadas de 1940-1970, principalmente. Através da leitura de diferentes abordagens biográficas/historiográficas acerca da trajetória de Faris Michaele (DITZEL, 1998 e WANKE, 1999 ou CAMPOS; MARCHESE, 2010 e MOLAR, 2014, entre outras), pretende-se pensar a própria produção biográfica, seus problemas e contextos de produção, bem como a relação entre a trajetória do autor e as leituras acerca das instituições culturais e o papel do intelectual em regiões periféricas. Voltando-se sobre o lugar ocupado por estes intelectuais, seus perfis e características, busca-se refletir sobre as possibilidades de uma História Intelectual voltada à produção cultural de/em círculos periféricos, bem como acerca de questões caras à própria produção do conhecimento histórico e seus vínculos com biografias e trajetórias, como, por exemplo, a relação memória X esquecimento, a produção das narrativas encomiásticas e os mecanismos de canonização no campo da historiografia. Palavras-chave: trajetórias, intelectuais, biografia.
Suponhamos que eu me encontre junto á janela do vagão de um trem que viaja uniformemente e que deixe cair uma pedra sobre o leito da estrada, sem lhe conferir nenhum impulso inicial. Então (abstraindo do efeito da resistência do ar) eu vejo a pedra cair em linha reta. Um pedestre que esteja observando minha ação a partir do solo observa que a pedra cai à terra percorrendo um arco de parábola. Pergunto-me, então: as “posições” seguidas pela pedra estão situadas, na “realidade”, sobre uma reta ou sobre uma parábola? (...) vemos claramente que não existe uma trajetória em si, mas apenas uma trajetória em relação a um determinado corpo de referência. (Albert Einstein, A teoria da relatividade especial e geral, 1916).
A citação de Einstein, na epígrafe apresentada acima, tem somente o objetivo
de nos lembrar que, originalmente, o termo designa a curva ao longo da qual um
corpo se move no espaço. Portanto, ainda que vejamos a recorrência dos estudos
acerca de trajetórias nas Ciências Sociais, cabe-nos observar, que um primeiro
emprego trata de um problema da Mecânica – ou da Física (mais notadamente
derivando do chamado Espaço de Fase) (ISAACS, 1996:159) – a trajetória supõe
movimento (e variação no tempo) e que, portanto, é sempre relativa a determinado
referencial; observando-se que, do ponto de vista do estudo do movimento, não há
sentido se falar em movimento sem se especificar o referencial que está sendo
adotado. Portanto, mais do que meramente trajeto ou espaço percorrido para se ir
de um lugar a outro – mais que o sentido de meramente passagem derivado do
latim Trajectoria – a trajetória supõe a descrição das posições sucessivamente
ocupadas por um corpo em seu deslocamento de uma posição á outra no espaço,
num sistema que muda com o tempo.
Disto – ou dito isto – e amparando-nos nas observações da Mecânica, lugar
primeiro da problematização sobre as Trajetórias – podemos observar duas
questões que nos tocam quanto à sua presença, seu uso e recorrência, nas próprias
Ciências Sociais: o lugar do chamado referencial (ou do observador) e, por
conseguinte, a ausência de um sentido quando não referido tal observador. Em
outros termos, pura ilusão (ou, ilusão biográfica?) acreditar na possibilidade de uma
perspectiva de trajetória pura (ou próxima) acerca de um efetivo real vivido. O
sentido, desse modo, emana da observação que, como tal, descreve (ou organiza) o
movimento. O observador atribui propriamente sentido à trajetória; trajetória que
nada mais é que fundamentadora de sentido/sentidos à uma dada experiência,
principalmente no que se refere à relação individual X social . Neste sentido, é
fundamental anunciar que o aspecto mais caro ao elemento relacional no trato de
uma dada trajetória de vida toca a questão da relação de um determinado
sujeito/ator/personagem em relação às posições – e deslocamentos – que assume
em um determinado campo (ou campos)
Ainda em relação à observação de Einstein - da relação trajetória X corpo de
referência, talvez seja interessante recuperar-se os sentidos que a expressão
assumiu historicamente nas Ciências Sociais. Para tanto, transcreva-se uma breve
observação de um dos seus mais destacados defensores, Pierre Bourdieu:
Diferentemente das biografias correntes, a trajectória descreve a série das posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor nos estados sucessivos do campo literário, dando-se por entendido que é apenas na
estrutura de um campo, quer dizer, uma vez mais, relacionalmente, que se define o sentido dessas posições sucessivas, publicação nesta ou naquela revista ou por este ou aquele editor, participação neste ou naquele grupo, etc. (BOURDIEU, 1997:50).
A citação de Bourdieu é quase que um manifesto em oposição à utilização
das chamadas Histórias de Vida, adotadas nas Ciências Sociais principalmente por
orientação da obra de Daniel Bertaux, entendidas como carecedoras de uma
problematização entre a trajetória estudada e suas relações com os
circunstaciamentos sociais ou com as “condições concretas de existência a ela(s)
subjacentes” (GUÉRIOS, 2011:12). Neste sentido é fundamental, portanto, situar o
sujeito/agente social em seu grupo social e em seu tempo. Do enfrentamento da
construção das trajetórias – ou da “trajetória construída”, segundo Bourdieu
(1996:292) – deve resultar a biografia e, desse modo, diferente das tentativas de
apreensão teleológicas e /ou reducionistas e que buscam estabelecer uma
sequencia lógica/cronológica dos eventos da vida de uma pessoa, como se tal vida
pudesse supor um conjunto coeso, “coerente e orientado” (BOURDIEU, 1997:53).
Assim, para Bourdieu, a ilusão biográfica advém de uma ideia de biografia
(“corrente“) na qual
a vida organizada como uma história (no sentido da narrativa) desenrola-se, segundo uma ordem cronológica, que é também uma ordem lógica, a partir de um começo, uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até ao termo que é também um alvo, um cumprimento (telos). A narrativa (...) propõe acontecimentos que (...) tendem a, ou pretendem, organizar-se em sequencias ordenadas segundo relações inteligíveis (1997:54).
Ao contrário, a construção da noção de trajetória suporá a “série das posições
sucessivas ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes
em espaços sucessivos” (BOURDIEU, 1996:292) e também “num espaço ele próprio
em devir e submetido a transformações incessantes” (BOURDIEU, 1997:58).
Portanto, noções como agentes, estrutura do campo (simbólico, político,
cultural) e suas “forças”, habitus, disposições, estratégias, colocações e
deslocamentos passam a compor a intriga biográfica, sendo a trajetória a própria
objetivação da relação entre os agentes – e seus habitus – e as “forças do campo”,
lembrando que “para que um campo funcione, é necessário que haja paradas em
jogo [objetos de disputas1] e pessoas prontas a jogar esse o jogo, dotadas de
habitus que implique o conhecimento e o reconhecimento das leis imanentes ao
jogo, das paradas em jogo, etc.” (BOURDIEU, 2003:120).
Assim:
É com relação aos estados correspondentes da estrutura do campo que se determinam em cada momento o sentido e o valor social dos acontecimentos biográficos, entendidos como colocações e deslocamentos nesse espaço (...). Toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus (...). (BOURDIEU, 1996:292).
Diferentemente das biografias que impõe um senso de coerência, no entanto,
esvaziadas de tensão entre sujeitos e circunstâncias sociais (entendendo-se, aí,
pertencimento e posição num dado campo, deslocamentos, etc) – e para as quais
Bourdieu sugere como o “absurdo” de uma suposta tentativa de em se “explicar um
trajeto de metrô sem se levar em conta a estrutura da rede” (BOURDIEU, 1996:292
e 1997:58) – temos no exercício das trajetórias sociais exercícios que intentam
alocar o agente em tensão ao seu tempo, sua geração ou a um dado campo,
possibilitando-se enfrentar, assim, o lugar e posições que o agentes assumem
(negam ou reivindicam) e que, por vezes, sugerem contradições (ou outras
dinâmicas) quanto aos próprios papéis assumidos e/ou ideias enunciadas por estes
mesmos agentes. Contradições e/ou dinâmicas, estas, não subsumidas às biografias
que comumente transformam vidas em espécies de curriculum vitae ou cartões de
apresentação, nos quais uma carreira ou uma vida é enredada “como uma série
única e em si suficiente de acontecimentos sucessivos sem outro elo que não a
associação a um “sujeito” cuja constância não pode ser mais que a de um nome
próprio socialmente reconhecido” (BOURDIEU, 1996:292).
O interesse sobre o problema das trajetórias abre possibilidades para um
campo de investigação sobre o qual temos nos voltado nos últimos anos: a atenção
1 Na obra original – Questions de sociologie – o termo que aparece é enjeux (questões). A tradução brasileira, de
1983, toma o termo, muito convenientemente em nosso entendimento, como objetos de disputa, diferente da
tradução portuguesa, na qual nos guiamos, que adota “paradas em jogo”. Cf. BOURDIEU, P. Questions de
sociologie. Paris: Minuit, 2009. p. 114 e Questões de sociologia. Rio de janeiro: Marco Zero, 1983.
sobre grupos/círculos/ sociabilidades intelectuais em regiões periféricas, sobre a
produção intelectual destes grupos ou sobre as possíveis caracterizações destes
intelectuais (provincianos(?), produtores culturais(?), mediadores(?), etc.) buscando
melhor compreende-los e às sua produção, bem como quanto ao seu papel na
circulação, divulgação e/ou rotinização das ideias (KARVAT ; CHAVES, 2013.
MACHADO ; KARVAT, 2013. KARVAT ; GUEBERT, 2013).
Voltando-nos mais especificamente ao Centro Cultural Euclides da Cunha
(CCEC) – criado na cidade de Ponta Grossa (Pr) em 06 de maio de 1948,
permanecendo em atividade até 1985, tendo tido seu período de maior relevância na
década de 1950 – (KARVAT, 2015), vemos um grupo de “intelectuais”, inspirados na
figura de Euclides da Cunha e sua obra, dedicados a “debater” questões referentes
(poderíamos dizer) à identidade nacional e ao pertencimento regional. Tais questões
foram veiculadas principalmente através do jornal do CCEC, significativamente
intitulado Tapejara2 – que circulou de 1950 a 1976, totalizando 24 edições.
Dentre o conjunto de agentes que compõem o Centro, destaca-se (ou é
destacado) o seu fundador o professor Faris Antonio Salomão Michaele (1911-
1977).
O interesse sobre a História Intelectual e o foco sobre uma instituição cultural,
como o caso do CCEC, localizada numa cidade do interior do país, constituída por
homens de letras, envolvidos em debater a identidade nacional/regional num
momento de tensão em função de mudanças estruturais que por que passava o
estado do Paraná, mais suscita-nos indagações do que aferir colocações
conclusivas.
Dentre estas indagações se coloca, por exemplo, o problema da dimensão
regional da História Intelectual (PASOLINI, 2013). Em certo sentido, podemos fazer
as mesmas questões que Ricardo Pasolini reivindica pensando no cenário argentino:
o que significa ser um "intelectual" na "província", ou na "periferia" dos centros urbanos, ou nos mundos culturais "locais"? E a partir disso, que imagem da vida cultural nacional pode resultar da redução da escala de
2 Segundo Eno Wanke, na abertura da sua biografia de Faris Michaele, tapejara [do tupi tape‘yara, ‘aquele que
toma o caminho‘]– de acordo com o Dicionário Eletrônico Aurélio – significa conhecedor de caminhos ou de
uma região, bem como pessoa hábil e entendida. (WANKE, 1999). Os integrantes do CCEC aludem a si mesmos
como tapejaras.
observação? Finalmente, que tipo de estatuto epistemológico tem então a própria noção mesma de região? (PASOLINI, 2013:190).
Perceba-se que uma agenda de investigação voltada para o objeto (ou
objetos) que nos interessam, parece exigir um foco renovado sobre temas já
bastante tocados, exigindo, mesmo, uma nova perspectivação:
– A noção de região/regional/local deve ser redimensionada e não tomada no
sentido de uma certa tradição que supõe sua existência como algo dado ou prévio
aos textos que a conformam, perdendo justamente o caráter da sua construção,
resultante de diferentes possibilidades e sentidos. Ou em outros termos, esta
tradição historiográfica parte da constatação que a região é um dado “em si”, com
uma existência independente dos discursos que a definem, constituída não
conceitual mas espacialmente (ALBUQUERQUE JR., 2008). Desse modo, um ponto
de partida é buscar perceber a elaboração de diferentes representações, usos e
apropriações do termo a partir da própria articulação conferida pelos agentes em seu
círculo intelectual. Perspectiva, esta, que parece animar a própria existência do
CCEC e dos auto-aclamados tapejaras.
– Como pensar a produção intelectual regional, periférica ou provinciana?
Qual estatuto cabe ao homem de letras que enuncia sua fala e dirige seu olhar a
partir de uma mirada que se quer e se vê “do interior” ou de província?
Fundamentalmente, para além das autocaracterizações que estes grupos inflijam à
sua própria existência, cabe pensar no uso retórico de determinadas expressões, (de
modéstia, por exemplo), buscando delimitar seu lugar e sua relação com outros
intelectuais ( LOPES; DENIPOTI, 2010), ao mesmo tempo que imprescindível o trato
histórico a estas designações, que contextualize suas recorrências Neste sentido, o
uso do termo Intelectual Regional, conforme sugere Luis Rodolfo Vilhena parece
bastante sugestivo ao período de maior atividade do CCEC. Vilhena (1996) traz para
o debate um grupo que ele considera “um participante do complexo panorama
intelectual dos anos 50”, o chamado Movimento Folclórico. Ainda que não possamos
atribuir relação direta dos integrantes do CCEC a tal movimento, com sua análise
Vilhena chama atenção para a constituição de um network entre diferentes
intelectuais, de diferentes locais – principalmente de fora do eixo Rio-São Paulo – e
que a partir de congressos trocavam experiências e chamavam atenção para sua
própria existência. Em nosso entendimento, Vilhena chama atenção do para os anos
1950, década ainda pouco observada pelos interesses de uma História Intelectual (e
– conforme assinala o próprio Vilhena – “essencial para a compreensão da história
das Ciências Sociais no Brasil”) na qual convivem diferentes projetos de sociedade e
que aponta, mais enfaticamente, para a convivência de diferentes clivagens
intelectuais, tensionando, por exemplo, aquilo – que na falta de uma melhor
denominação – poderíamos chamar de embate entre conservantistas e
modernos/modernizadores e que se agonizaria ainda mais na década seguinte. De
mesma forma, a observação de uma rede (network), naquela década, nos faz
lembrar a articulação do CCEC ao chamado movimento euclidiano, responsável pela
invenção de uma tradição euclidiana no país e o que faz supor acerca do
intercâmbio entre os seus integrantes/freqüentadores, animados em torno de
problemas comuns.
– Acerca da relação centro X periferia de um ponto de vista
histórico/historiográfico3, lembramos com Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo, que
além de congregar diferentes sentidos, tal relação não pode ser avaliada como
passiva, numa dimensão de termos que são mais complementares que antitéticos.
Conforme diz o historiador italiano, referindo-se ao campo da história da arte italiana:
Se o centro é por definição o lugar da criação artística e periferia significa simplesmente afastamento do centro, não resta senão considerar a periferia como sinônimo de atraso artístico, e o jogo está feito. Trata-se, bem vistas as coisas, de esquema subtilmente tautológico que elimina as dificuldades em vez de tentar resolvê-las. Experimente aceitar os termos “centro” e “periferia” (e as respectivas relações) na sua complexidade: geográfica, política, econômica, religiosa – e artística (GINZBURG ; CASTELNUOVO, 1991:6).
Neste sentido, o olhar sobre o local, o regional ou o periférico pode ser bastante
significativo no plano de uma História Intelectual, pois pode projetar interesse em aspectos
nem sempre percebidos quando se parte de um olhar que tende a homogeneízar ou
universalizar determinadas leituras ou interpretações, não reconhecendo possibilidades
postas pela circulação de idéias e textos, por suas apropriações e usos – usos que
emanam de interesses e possibilidades postas justamente por isto que podemos chamar
de uma mudança de cenário. Neste sentido, determinadas idéias e autores tendem a
serem lidos conforme disposições de questões locais/regionais/periféricas ou, ainda,
determinadas idéias e autores tendem a permanecer no campo de interesse deste cenário
mesmo quando já – do ponto de vista do centro – terem sua “credibilidade”
enfraquecida.
Ginzburg e Castelnuovo, mais do que apontar uma reificação ao uso da
oposição centro X periferia, assinalam, através do estudo da história da produção da
arte italiana, para a constituição histórica desta oposição, observando que tomar
toda forma de “atraso” como periférico ou toda periferia com “retardatária” implicaria
em adotar uma visão linear da história dessa forma de produção:
Deste modo acaba-se por procurar na arte da periferia aqueles elementos, aqueles cânones, aqueles valores que são estabelecidos tendo precisamente como base os caracteres das obras produzidas no centro; e no caso de se reconhecer a existência de cânones diferentes, esses são examinados só em relação ao paradigma dominante, com um procedimento que leva facilmente a juízos de decadência, de corrupção, de baixa de qualidade, de rudeza, etc. (GINZBURG: 1991, 53).
Ainda que os historiadores italianos falem em uma certa “autonomia da
periferia”, para nós interessa ainda mais o reconhecimento daquilo que podemos
chamar de dinâmica da produção da periferia, menos preocupados com o caráter de
autonomia. Tal reconhecimento ao se voltar sobre intelectuais alocados fora dos
centros de reconhecida de nobilidade intelectual persegue a complexidade no
campo de produção das ideias e, desse modo, sobre intelectuais e textos,
reconhecendo a própria complexidade da relação entre ideias X intelectuais X textos
alocados em centros de produção e ideias X intelectuais X textos situados na
periferia destes centros. Se “identificar pura e simplesmente a periferia com o atraso
significa, em última análise, resignar-se a escrever eternamente a história do ponto
de vista do vencedor de round”, conforme se referem Ginzburg e Castelnuovo, mais
necessário ainda é romper com a resignação de uma escrita de história que vivifica
as leituras feitas a partir de cânones estabelecidos historiograficamente, resignação
que é construída e, portanto, interessada. E mais que isto, portadora de sentidos
3 A presente observação – com breves modificações – foi extraída de KARVAT, 2015.
que justificam determinados modos de compreensão e de autoridade (intelectual) e,
com isto, promotoras de seleções e silenciamentos. Adotar a relação do periférico
correspondendo ao atrasado, justifica resignadamente, por exemplo, o desinteresse,
até pouco recente, em torno de idéias, intelectuais e textos compreendidos como
periféricos, o que lhes conferia a pecha de pouco pertinentes. Relação e
entendimento que, no campo da História Intelectual, não se pode validar.
Poderíamos neste caso, em especial, também falar em complexidade intelectual ou
da produção intelectual, entendo nesta a dimensão da circulação, apropriação e
usos dessa produção pelos atores acima referidos (mediadores/portadores, etc...)?
Complexificar tal entendimento supõe – a partir da tensão centro X periferia –
buscar, na expressão de María Del Mar Carnicer e Rebeca Camaño Semprini,
características particulares e lógicas diversas que “contradizem a tradicional imagem de
homogeneidade (...) contribuindo para a complexificação do conhecimento histórico”
(CARNICER ; SEMPRINI, 2014:92).
– Por fim, cremos, neste sentido, que tal complexificação passa pela chamada
redução ou jogos de escalas, uma vez que tal abordagem revela uma versão diferente
acerca do social, evitando generalizações, sendo que a variação de escala “significa
modificar sua forma e sua trama” (REVEL, 1998:20), revelando aspectos sutis e talvez mais
sugestivos quando se trata de espaços periféricos e regionais e suas relações e
identidades e intentando estabelecer articulações (e não apenas generalizações) entre o
local/periférico e o nacional/centro.
Assim, voltando ao problema das trajetórias, entendemos que a recorrência a tal
possibilidade permite um olhar renovado acerca do objeto apresentado acima. Ou seja,
com recurso ao foco na dinâmica das trajetórias, se pode refletir em torno das questões
formuladas por Pasolini e apresentadas anteriormente como, a relação entre centro e
periferia, constituição de campos, definição de região e do próprio estatuto de intelectual. O
estudo de trajetórias, vinculado ao jogo de escalas, deve propiciar um melhor entendimento
acerca da existência e presença de intelectuais, suas ideias e posições frente a outros
intelectuais e seu tempo, evitando-se atrelar tais experiências a um contexto dado, que as
justificaria, ou buscando-se regularizá-las a partir de generalizações. Da mesma forma,
evita a compreensão equivocada das biografias, como já comentadas nas páginas
anteriores, isto é, como uma sequência lógica e cronológica que atrela acontecimentos tal
unicamente a vida individual de um dado agente/personagem, alijando-o das circunstâncias
sociais e históricas.
O caso das abordagens em torno da vida do professor Faris Michaele, personagem
associada à própria existência do CCEC, é significativa para pensarmos os aspectos
comentados acima e que possibilitam a abertura para futuras indagações, sugerindo que
falemos em As Vidas de Faris Michaele.
Sem a menor preocupação em mapear todos os textos que se voltam aos
elementos biográficos de tal personagem (como jornais, notas e discursos solenes), para
fins desta apresentação, podemos citar Faris A. Michaele, publicado em 1957 pelo general
Murillo Teixeira Barros, vice-presidente do CCEC e a referencial biografia do já citado
WANKE, (1999), Faris Michaele, o tapejara. Além destas, podemos lembrar a dissertação
de Carmencita Ditzel, O Arraial e o fogo da cultura: os euclidianos pontagrossenses (1998),
o artigo de Névio Campos e Elisa Marchese, Faris Michaele: trajetória de um intelectual
moderno, de 2010 e a tese de Jonathan Molar, Faris Michaele: cultura e modernidade no
Centro Cultural Euclides da Cunha de Ponta Grossa – CCEC (1930-1983), defendida em
2014.
Podemos, assim, pensar dois conjuntos: aquele das chamadas “biografias
ordinárias”, representado pelos textos de Barros e de Wanke e, outro, englobando as
demais apresentações, de orientação e caráter acadêmicos.
As biografias citadas, dentro de uma perspectiva que particulariza o regional,
promovem uma “exaltação localista”, pondo em relevo o chamado espaço regional
(PASOLINI, 2013:191). Podemos, também, pensar a orientação destes textos em relação
à ilusão biográfica, remetendo à vida como uma espécie de projeto original, dotado de
sentido e coerência, no qual abundam as expressões “já”, a partir de” e os “desde muito
jovem” (BOURDIEU, 1997; 53). Na relação entre o relevo local e a exaltação da
personagem, Wanke, por exemplo, sugere uma divisão para a “História Cultural’” de Ponta
Grossa, em duas fases: “a. F e d. F – antes de Faris e depois de Faris”. Neste sentido,
parece reverberar as observações de Pasolini, para o caso argentino: há uma
“autocelebração da comunidade local”, sendo que os universos locais se convertem em
regiões que se explicam a si mesmas fora de toda influência, empréstimos o
ressignificação” (PASOLINI, idem). Curiosamente, enquanto o opúsculo do general não
aparece citado, o trabalho de Wanke se tornou base de informação cronológica e biográfica
para as abordagens acadêmicas, presente em todas as discussões sobre a trajetória de
Michaele e do CCEC. Neste sentido, ainda que o conjunto de trabalhos de verve
acadêmica, cada uma à sua maneira, venham (ou tenham) discutido o problema da
produção e circulação cultural regional e revelado aspectos da vida intelectual local, ainda
carece-se de uma melhor problematização, principalmente no que se refere a própria
constituição da região por estes intelectuais, questão-chave para o entendimento, cremos,
da própria criação do CCEC. Por exemplo, mais do que a ênfase num certo sentido de
modernidade (em relação à Faris e ao CCEC) – presente no conjunto da produção
acadêmica – talvez coube-se um “passo atrás” e ao invés da ânsia da caracterizações,
pudéssemos ver um sentido de permanência (e tudo que esta ideia implica) de diferentes
preceitos e, mesmo, de diferentes concepções de tempo/temporalidades e que seriam
manuseados segundo necessidades impostas pela própria contingência do período no qual
personagem e instituição se inscrevem (no caso, os anos 1950). Neste sentido, por vezes
(e não poucas vezes), o que se vê nos enunciados do CCEC é um discurso que, lido à luz
da produção do período, se apresenta mais como algo antimoderno, reclamando a
permanência de preceitos e orientações que se esvaiam, revelando, portanto, seu caráter
conservador, de manutenção de determinados visões de mundo e valores – e, por quê
não?, de dada concepção de ordem temporal.
Ampliar o conhecimento acerca deste conjunto, principalmente o de textos “de
exaltação”, problematizando-os, reconhecendo os pontos de sua urdidura no que se refere
às posições ocupadas por seus autores no campo local, abre-se como um que próximo
passo necessário, sendo esta apresentação uma prévia e primeira (auto)provocação para
pensar possibilidades vindouras de investigação.
Referências
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