Post on 12-Aug-2015
Os quatorze artigos que formam este segundo volume contemplama reflexão teórica e metodológica, seja a reflexão aplicada a umobjeto, seja ainda a articulação entre uma e outra — e buscamresponder as perguntas norteadoras, quais sejam:
1. Quais são as especificidades de cada abordagem? Que interfapossui com outras correntes e/ou disciplinas? Que objetosprivi legia em suas pesquisas?
2. Que categorias, nas várias abordagens, têm-se mostrado maisprodutivas na análise de discursos de diferentes gêneros, emdomínios diversos?
3. Quais são as tendências mais recentes observadas em cadadisciplina e quais são os ganhos (ou eventuais perdas) dessas"novas" tendências em relação às tendências anteriores?
Com a coletânea de artigos apresentada neste segundo volume,esperamos ter complementado, de alguma forma, o volumeanterior, dando ao leitor uma visão geral de algumas (outras)maneiras de se fazer "análise do discurso" hoje, nas universidadese centros de pesquisa do Brasil e do exterior.
ISBN 978.85.209.2 52
EDITORANOVA
FRONTEIRA
ANALISESDO DISCURSO
VOIUMEZ
ORGANIZADORESGlaucia Muniz Proença LaraIda Lúcia MachadoWander Emediato
AUTORESAnne HénaultAntoine AuchlinArnaldo CortinaBeth BraitCatherine Kerbrat-OrecchioniChristian PlantinClaude ChabrolDenize Elena Garcia da SilvaDiana Luz Pessoa de Barros
Dylia Lysardo-DiasEmília MendesHelena Nagamine BrandãoIda Lúcia MachadoJanice Helena Chaves MarinhoMareei BurgerMaria Leda PintoViviane Ramalho
A diversidade de modelos teóricos no campoda Análise do Discurso, bem como sua
aplicabilidade a distintos corpora apresentadosnesta obra, apontam formas múltiplas de
abordagem e leituras transversalizadas, oque revela um vastíssimo campo disciplinar
em permanente movimento. Encontram-
se aqui contempladas algumas de suas
principais correntes, criticamente revistase discutidas por autores e pesquisadores
brasileiros e estrangeiros, com reconhecido
transito acadêmico no cenário internacional,
relativamente a suas áreas temáticas deespecialidade.
A leitura de ANÁLISES DO DISCURSO HOJE - v. 2
desperta, dentre outros, alguns questionamentosbastante atuais, em termos dos desdobramentosfuturos desse e de outros marcos teóricos. São
eles: em que medida os campos disciplinares
não-convencionais — inclui-seaí a Análise do Discurso — promovem,de fato, os deslizamentos nas chamadas
fronteiras do conhecimento para buscar os
avanços pretendidos no domínio da ciência?possível lidar com as múltiplas dimensões dacomplexidade de fenômenos e objetos — no
caso em tela, os discursos — sem transgrediros princípios metodológicos estabelecidos demaneira intradisciplinar ou até mesmo sem
comprometer sua sustentabilidade teórica? Quetendências se identificam como predominantes
na AD hoje e quais são as perspectivas desse
campo teórico para dar conta das produçõesdiscursivas que circulam e se proliferam no
mundo contemporâneo? Tanto a dialogicidadeinterna da obra como a sua projeção paraoutros textos e discursos permite desvelaresses questionamentos de uma forma inédita,profunda e, ao mesmo tempo, cuidadosa.
DO DISCURSOVOLUMES
ORGANIZADORESGlaucia Muniz Proença LaraIda Lúcia MachadoWander Emediato
4̂̂̂̂
AUTORESAnne HénaultAntoine AuchlinArnaldo CortinaBeth BraitCatherine Kerbrat-OrecchioniChristian PlantinClaude ChabrolDenize Elena Garcia da SilvaDiana Luz Pessoa de BarrosDylía Lysardo-DiasEmitia MendesHelena Nagamine BrandãoIda Lúcia Machado
Janice Helena Chaves MarinhoMareei BurgerMaria Leda PintoViviane Ramalho
© 2008, by Glaucia Muniz Proença Lara, Ida LúciaMachado e Wander Emediato
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasiladquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Todosos direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podeser apropriada e estocada em sistema de banco de dadosou processo similar, em qualquer forma ou meio, sejaeletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissãodo detentor do copirraite.
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Bambina, 25 - Botafogo - 22251-050Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel.: (21) 2131-1111 - Fax: (21) 2286-6755http: // www. novafronteira.com. bre-mail: sac(5ínovarronteira.com.br
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS. RJ
A551 Análises do discurso hoje, volume 2 / Glauciav.2 Muniz Proença Lara, Ida Lúcia Machado,Wander
Emediato (organizadores). - Rio de Janeiro :Nova Fronteira, 2008. - (Lucerna)
Inclui bibliografiaISBN 978-85-209-2152-4
1 .Análise do discurso. 2. Linguagem e línguas.I. Lara, Glaucia Muniz Proença. II. Machado, IdaLúcia. III. Emediato, Wander. IV Série.
CDD:401.41CDU:81'42
SUMARIO
Prefácio 7
A argumentação biface 13
Christian Plantín (GNR.S - Universidade de Lyon II)
Semiótica e retórica: um diálogo produtivo 27
Diana Luz Pessoa de Barres (USP/UPM/LEI)
Os livros mais vendidos: uma proposta de reconstitui cão
do ethos do leitor brasileiro contemporâneo 41
Arnaldo Cortina (FCL-UNESP/CAr)
Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy 69
Anne Hénault (Universidade de Paris IV — Sorbonne)
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna 83
Antoine Auchlin (Universidade de Genebra)
Mareei Burger (Universidade de Lausanne)
Memória, linguagens, construção de sentidos 115
Beth Brait (PUC-SP/USP/CNPq)
Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro:uma construção identitária 133
Helena Nagamine Brandão (USP)Maria Leda Pinto (UEMS)
Análises do discurso hoje
Analise discursiva da parodização dos provérbiosna mídia impressa 157
Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)
As palavras de uma Análise do Discurso 177
Ida Lúcia Machado (UFMG)
Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real,
efeitos de ficção e efeitos de gênero 199
Emília Mendes (UFMG)
Humor e mídia: definições, gêneros e cultura 221
Clauâe Chabrol (GRPC, Universidade de Paris III)
A construção mútua das identidades nos debates políticos natelevisão 235
Catherine Kerbrat-Orecchioni (Universidade de Lumière Lyon II)
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia 265
Denize Elena Gama da Silva (UnB)
Viviane Ramalho (UnB/UCB)
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos 293
Janice Helena Chaves Marinho (UFMG)
Sobre os organizadores e autores 313
PREFACIO
Mantemos aqui a proposta explicitada no primeiro volume, ou seja, a
de buscar apresentar para o leitor um painel diversificado de algumas
análises do discurso em desenvolvimento na atualidade e, ao mesmo
tempo, confrontá-lo com os diferentes corpora que vêm sendo estu-
dados pelos pesquisadores da área. Se algumas abordagens não foram,
mais uma vez, contempladas, nunca é demais repetir que não temos
a pretensão de exaustividade, dada a amplitude do nosso domínio de
investigação: o discurso.
Os quatorze artigos que formam este segundo volume contemplam
as mesmas vertentes do anterior — seja a reflexão teórica e metodoló-
gica, seja a reflexão aplicada a um objeto, seja ainda a articulação entre
uma e outra — e buscam responder às mesmas perguntas norteadoras,
quais sejam: 1) Quais são as especificidades de cada abordagem? Que
interfaces possui com outras correntes e/ou disciplinas? Que objetos
privilegia em suas pesquisas? 2) Que categorias, nas varias abordagens,
tem-se mostrado mais produtivas na análise de discursos de diferentes
gêneros, em domínios diversos (como o político, o religioso, o didáti-
co, o científico, entre outros)? 3) Quais são as tendências mais recentes
observadas em cada disciplina e quais são os ganhos (ou eventuais per-
das) dessas "novas" tendências em relação às tendências anteriores?
Dentro desse quadro, Christian Plantin, destacando a importância
da argumentação no/para o discurso, mas ao mesmo tempo consta-
Análises do discurso hoje
tando a diversidade de estudos nesse domínio, faz dialogar as diferen-
tes correntes para estabelecer suas convergências e divergências, bem
como suas contribuições específicas. Pontuando que a atividade ar-
gumentativa é uma atividade complexa, que implica a articulação de
saberes e comportamentos diversos e heterogêneos, o autor constata,
com pesar, que embora os programas, na França, proponham o ensino
da argumentação nos colégios e liceus, não existe no país nenhum
curso voltado para a reflexão dos mestres, situação, diga-se de passa-
gem, bastante próxima da nossa.
As contribuições de Diana Luz Pessoa de Barros, Arnaldo Corti-
na e Anne Hénault situam-se no domínio da Semiótica do Discurso.
Barros volta-se para o exame das relações de simbolização e semi-sim-
bolização que se instauram entre expressão e conteúdo na construção-
dos sentidos do texto. Analisando anúncios de instituições bancárias,
mostra como essas relações integram o fazer-persuasivo-discursivo do
enunciador, o que comprova o diálogo produtivo que se estabelece
entre semiótica e retórica. Também articulando essas duas vertentes,
Cortina propõe construir o ethos do leitor brasileiro contemporâneo,
por meio do estabelecimento de uma lista dos livros mais vendidos no
Brasil entre os anos 1966 e 2004, lista essa que a Semiótica Discursiva,
enquanto perspectiva teórico-metodológica utilizada, permite com-
preender como um texto passível de interpretação. Hénault, enfim,
parte de uma reflexão sobre as grandes etapas das recentes pesqui-
sas em semiótica para examinar a dimensão do sentir, a forte presença
emocional e empática nos escritos — mais especificamente, em duas
monografias sobre os pintores Giacometti e Goya — do poeta, ensaísta
e professor do Collège de France,Yves Bonnefoy.
Na articulação entre análise do discurso e ensino, o artigo de An-
toine Auchlin e Mareei Burger parte do princípio de que a retroinfor-
mação do aluno, quanto a suas produções e aos problemas de leitura
que elas podem desencadear, desempenham um papel essencial na sua
formação. Propõem, assim, uma abordagem do discurso centrada no
estudo da competência discursiva, uma vez que ela deixa transparecer
Prefácio
os contornos de uma identidade singular: o autor dos erros (uzalunu),
que não se confunde com a pessoa do aluno propriamente dita.
No âmbito do que denomina análise/ teoria díalógica do discurso, a
partir das contribuições dos trabalhos de Bakhtin e de seu Círculo,
Beth Brait apresenta algumas formas de produção do sentido em tex-
tos que mobilizam discursos verbais, visuais e verbo-visuais, tendo a
memória e seus sujeitos como tema privilegiado. A autora comprova,
assim, através desse "exercício", que a vertente teórica escolhida, que
se insere no vasto conjunto de pesquisas incluídas sob o rótulo Análise
do Discurso, assume forma, perfil e consistência própria.
O artigo de Helena Nagamine Brandão & Maria Leda Pinto e o
de Dylia Lyzardo-Dias integram o que Dominique Maingueneau cha-
ma de "tendências francesas de análise do discurso". Brandão e Pinto
discutem o discurso do homem pantaneiro, da perspectiva discursiva e
da perspectiva de Lakoff e Johnson (2002) sobre a metáfora, compreen-
dida como um fenômeno de linguagem de valor cognitivo. Articulan-
do os conceitos metafóricos desses autores com os aspectos teóricos
da análise do discurso na abordagem das falas pantaneiras, as analistas
objetivam estruturar as formas de percepção de mundo e a atuação do
pantaneiro no seu cotidiano para delinear a identidade desse sujeito.
Já o texto de Lyzardo-Dias analisa a paroclização de provérbios por
jornais impressos como um fenômeno de reescrita e um caso de hete-
rogeneidade enunciativa.Trata-se, segundo a autora, de uma estratégia
discursiva marcada pela insubordinação diante do convencional por
meio da inversão satírica de um enunciado culturalmente produzido,
o que implica a ré-configuração de universos de referência e de visões
de mundo convencionalizados.
Ida Lúcia Machado aborda a Semiolingüística enquanto teoria ana-
htico-discursiva, ressaltando suas bases lingüísticas, que vão de par comseus aspectos sociocríticosjá que tal teoria leva em conta o produtor
de determinados atos linguageiros, o local e a época em que tais atos
toram produzidos e com que finalidade (visada). Para ilustrar o que foi
^to, a pesquisadora toma como exemplo uma canção italiana e suas
Análises do discurso hoje
sucessivas versões para o francês e para o português. Ainda no quadro
teórico-metodológíco da Teoria Semiolingüística, Emília Mendes faz
urna releitura dos efeitos de real e dos efeitos de ficção, a partir de sua
definição na obra Langage et discours (1983), de Patrick Charaudeau,
incluindo ainda um terceiro elemento: o efeito de gênero, definido
na Grammaire du sens et de fexpression (1992) do mesmo autor. Nessa
releitura, usa os instrumentos oferecidos pelo estágio atual da teoria,
buscando mostrar que esses "efeitos" podem auxiliar no estudo de di-
versos corpora, sejam eles de estatuto factual ou ficcional. Assumindo
contribuições de Patrick Charaudeau, mas também de outros estudio-
sos que se debruçaram sobre o humor (Anne Marie Houdebine, Guy
Lochard, Jean Claude Soulages, entre outros), Claude Chabrol busca
caracterizar o ato humorístico, tomando como corpus textos midiáti-
cos (caricaturas, anúncios publicitários) produzidos na Espanha e na
França.
No domínio da análise do discurso e, mais especificamente, no
da análise do "discurso em interação", Catherine Kerbrat-Orecchioni
analisa um debate político entre Nikolas Sarkozy, então ministro do
Interior, e Jean Marie Lê Pen, presidente do partido Front National
(de extrema direita), transmitido pelo canal de televisão France 2, para
mostrar como as noções de identidade (mais ampla) e de ethos (mais
restrita) "funcionam" e se constróem mutuamente nas trocas verbais.
Finalmente, duas análises do discurso que não haviam sido con-
templadas no primeiro volume, marcam aqui sua presença. Trata-se da
Análise de Discurso Crítica (ADC) e do Modelo de Análise Modular
do discurso (MAM). A primeira vem representada no artigo de De-
nize Elena Garcia da Silva e Viviane Ramalho, o segundo no texto
de Janice Helena Chaves Marinho. Para situar a ADC na esteira dos
escudos do discurso, Silva e Ramalho apresentam, inicialmente, a traje-
tória dessa disciplina, marcada pelo privilégio dado à linguagem como
prática social e ao discurso como objeto historicamente produzido e
interpretado em termos de sua relação com as estruturas de poder e
com a ideologia. Em seguida, assumindo o diálogo que existe entre a
W
Prefácio
(FAIRCLOUGH, 2003) e a Lingüística Sistêrnico-Funcional (HALLI-
DAY, 1994), as autoras mostram sua aplicabilidade teórico-analítica em
textos que versam sobre a representação da pobreza nas ruas pela mídia
impressa e sobre o discurso da propaganda brasileira de medicamen-
tos. Já o artigo de Marinho, com base no MAM, segundo o qual é na
forma de organização relacionai que se estudam as relações textuais e
o papel dos conectores na sinalização ou na determinação dessas rela-
ções, analisa o uso de conectores em dois gêneros textuais pertencen-
tes ao domínio jornalístico — o texto de opinião e a notícia.
Com a coletânea de artigos apresentada neste segundo volume,
esperamos ter complementado, de alguma forma, o volume anterior,
dando ao leitor uma visão geral de algumas (outras) maneiras de se fa-
zer "análise do discurso" hoje, nas universidades e centros de pesquisa
do Brasil e do exterior.
Os organizadores.
li
A ARGUMENTAÇÃO BIFACE
Christian Plantin (CNRS - Universidade de Lyon U)
Os estudos de argumentação têm sua origem em três disciplinas clássi-
cas: a retórica, a lógica e a dialética. Elas constituem uni fundo sempre
estimulante para a reflexão, já que o desenvolvimento das competên-
cias lingüísticas que elas se propõem a organizar — falar bem, racioci-
nar bem e dialogar bem — não perderam sua atualidade.
1. Diversidade e unidade
O ano de 1958 é urna data-chave: é a data do aparecimento de duas
obras "refundadoras": Lês usages de Targutnentation, de Stephen EToul-
min, e Lê traité de Y argumentation: Ia nouvdle rhétorique, de Chaim Perel-
rcian e Lucie Olbrechts-Tyteca. Os estudos de argumentação foram em
seguida estruturados e enriquecidos com novas contribuições: a nova
retórica, a nova dialética, a teoria da argumentação na língua, a teoria
das falácias, a lógica informal, a lógica substancial, a lógica natural, até
° estudo do raciocínio "desconstruído". Cada urna dessas escolas situaa argumentação num espaço diferente da linguagem — na língua, no
^scurso, na comunicação, nas interações, etc. — e constrói, em con-
seqüência, o objeto, os métodos e os objetivos desse estudo de ma-
deira específica. Essas diferenças de perspectiva trazem conseqüênciaslmportantes sobre o que se deve entender por desenvolvimento das
ftipetencias argurnentativas: avaliação, organização do ensino teórico
Análises do discurso hoje
ou prático, relação da argumentação com a demonstração, sua relação
com as emoções — em resumo, tudo o que se refere às "questões
vivas" nesse campo e aos resultados esperados no que tange à educa-
ção. Os efeitos um tanto maléficos dessa diversidade não devem ser
esquecidos; e foi preciso esperar a escola de Amsterdã para que fosse
introduzida, nos anos 1980, uma prática regular da discussão teórica
entre as diferentes visões.
Entretanto, numerosas práticas atuais, tanto no campo da pesquisa
quanto no do ensino, ainda estão marcadas por essa configuração em
guetos. Não é muito satisfatório resolver utilizar, separadamente, um
elemento escolhido aqui ou ali por sua comodidade imediata, sem se
preocupar com incompatibilidades ou redundâncias. Outra solução,
que tem certa eficiência imediata, consiste em aderir a uma visão da
argumentação, escolher "seu" autor e "seu" conceito, aprofundá-lo e
pô-lo em prática: porém um dia é preciso se interessar pelo que fazem
os outros. Há uns vinte anos, toda a argumentação estava compreen-
dida na língua, e o estudo dos conectores era o acesso obrigatório.
Mas os tempos mudaram. Perelman, cuja obra não tinha sido verda-
deiramente aprofundada nos anos 1970, voltou à moda nas ciências
humanas, enquanto Toulmin e Grize são os preferidos no campo das
ciências — e ainda não chegamos ao fim da história.
É necessário levar em conta as contribuições das diversas correntes,
fazê-las dialogar para estabelecer suas convergências, reconhecer suas
afirmações incompatíveis e suas contribuições específicas. Para isso,
partiremos do fato de que a função argumentativa, ou função crítica, é uma
função da linguagem que organiza as funções primárias (exprime o
"eu", a impressão sobre o outro, descreve o mundo). A atividade argu-
mentativa é uma atividade de alto nível, que implica a coordenação de
saberes e comportamentos diversos e heterogêneos; não é algo simples,
como comer uma maçã, mas extremamente complexo, como dirigirum automóvel.
Ela se situa num espaço intermediário, organizado por urna tensão
entre o trabalho enunciativo e o trabalho interacional. Um locutor
14
A argumentação biface
hábil constrói uma intervenção contínua, planificada, na qual encadeia
as boas razões e mostra um mundo coerente; e esse trabalho extrai seu
sentido da existência de um dizer outro, como num espelho, no qual
outras boas razões sustentam visões antagônicas, consideradas corno
não menos coerentes. O encontro hic et nunc desses discursos define
a situação argumentativa em que se trata não com o outro como o
representamos, e sim corn o outro enquanto interlocutor que está pre-
sente e que fala, numa interação que constitui o momento de verdade da
argumentação, quando ter razão também é convencer o interlocutor
ou concordar com ele.
2. O pólo das boas razões
Argumentar é ligar proposições, constituir um discurso coerente, ba-
seado num elemento considerado como evidente (para os sentidos, para
a intuição intelectual ou moral), e dele fazer derivar uma proposição
segunda menos segura. É apoiar uma afirmação — a conclusão — sobre
uma boa razão — o argumento.
As obras de Toulmin, assim como as de Perelman e Olbrechts-
Tyteca, dependem no essencial desse pólo das boas razões. Em ambos
os casos, deve-se procurar o paradigma do discurso racional no campo
do direito. Pode-se pensar que essa vontade de restituir urna dose de
"logos" ao discurso sociopolítico tenha sido motivada pela rejeição aos
discursos totalitários nazistas e stalinistas.
O famoso modelo de Toulmin é uma lógica substancial. É uma lógica
na medida em que sua estrutura de base é a de um silogismo jurídico
(os A são B, isto é um A, logo isto é um B). Afirma-se que tal ser possui
determinada característica (Harry nasceu nas Bermudas), que os seres
que possuem essa característica (nascer nas Bermudas) pertencem a
determinada categoria (ser de nacionalidade britânica) e conclui-se
que esse ser pertence à categoria considerada (Harry é de naciona-
lidade britânica). Toulmin põe assim no primeiro plano da atividade
argumentativa a atividade de categorizaçao: pensar é classificar.
15
Análises do discurso hoje
Esse modelo faz intervir uma restrição: "essa conclusão é válida
salvo se... (ele mudou de nacionalidade)". Essa reserva corresponde a
um possível contra-discurso. Temos aí a estrutura dita de raciocínio por
ausênda:<sAíé uma maior informação, se eu sei que Piu-piu é um pás-
saro, posso concluir que ele voa — a menos que me digam que ele é
um pingüim".
Desde Aristóteles, foram propostas diversas tipologias dos argu-
mentos. Perelman e Olbrechts-Tyteca se inscrevem nessa tradição, que
mostrou que a simples argumentação recorria a procedimentos muito
diversos para fundamentar suas conclusões: as estratégias que utilizam
a definição, a analogia, a causa, os contrários, a pessoa, estão certamente
entre os mais usados. Um tipo de argumento (ou topos, pi. topot) é um
discurso genérico, uma matriz discursiva. No caso do argumento do -
"declive escorregadio", isso daria: "Não devemos tomar esse caminho,
pois, se começarmos, não saberemos mais como parar e seremos leva-
dos a aceitar o inadmissível"; essa forma gera, entre outras, a argumen-
tação concreta, ou entimema seguinte: "Não se deve legalizar o haxixe,
porque, se o fizermos, seremos levados a legalizar o crack". É curioso
constatar que freqüentemente pedimos emprestadas ao Tratado [Lê traité
d'argumentatíon] oposições no fundo pouco robustas teoricamente e
empiricamente pouco rentáveis (convencer/ persuadir, auditório universal/
particular, argumentar/ demonstrar) e que não fazemos caso de reflexões
mais técnicas, bastante elaboradas e muito férteis, que ele consagra aos
tipos de argumentos que nos contentamos, no melhor dos casos, em
considerar como uma espécie de catálogo.
3. O pólo lógico-Iingüístico
As propostas de novas teorias da argumentação não encontraram eco
na França dos anos 1970;Toulmin só foi traduzido em 1994. De fato, a
introdução do conceito no campo das ciências humanas é obra de Du-
crot (La preuve et lê dire, 1973, cap. XIII, "As escalas argumentativas") e
de Anscombre-Ducrot, numa obra complexa, com o título-programa
A argumentação biface
U Argumentation dam Ia langue (1983). Esse conceito de argumentação
não se situa mais do lado de uma pesquisa dos princípios de raciona-
lidade do discurso, mas numa reflexão sobre o sentido dos enuncia-
dos. Segundo Ducrot, esse sentido é dado pela intenção lingüística
do enunciador. O sentido de "ele é inteligente" é descritível como
a conjunção das conclusões a que esse enunciado pode servir, con-
clusões que são assimiladas a prosseguimentos possíveis: por exemplo,
"é preciso contratá-lo", ou "ele pode resolver o problema", "ele verá
a armadilha", etc., (mas não teremos "ele é inteligente; não poderá
resolver esse problema"). Não são mais, como no caso de Toulmin, as
ligações entre elementos do real que fundamentam a argumentação,
mas as ligações, na língua, entre enunciados. Essa teoria da significação
produziu resultados muito interessantes sobre os conectores (mas, aliás,
etc.) e sobre os operadores argumentativos (quase, apenas, etc.). Sua
generalização se choca com certo número de dificuldades, mas ela
colocou no primeiro plano a noção de orientação, cuja importância é
capital na argumentação.
A partir do fato de que os conectores trabalham as orientações, apli-
cações precipitadas concluíram que bastavam alguns conectores bem
colocados para construir uma argumentação. É inverter o problema.
Como veremos, o sentido argumentativo (orientação argumentativa)
é produzido por uma pergunta argumentativa, e o uso de conectores
só se compreende no âmbito de tal pergunta.
No mesmo momento, Grize e a escola de Neuchâtel propuseram
um. modelo de lógica natural para a pesquisa dos aspectos cognitivos da
argumentação (GRIZE, De Ia logtque à l'argumentation, 1982). O discurso
constrói uma "esquematização", isto é, uma "iluminação" dos aconte-
cimentos.Todas as operações de construção do enunciado contribuem
para a construção dessa esquematização. Trata-se igualmente de uma
teoria generalizada que traduz bem a argumentação como constru-
ção de um ponto de vista. A abordagem diagonal da argumentação
acrescenta uma pergunta: o que acontece quando um ponto de vista
encontra um outro ponto de vista?
Í7
Análises de discurso hoje
4. Um diálogo orientado por uma pergunta
Argumentar é dialogar com um interlocutor, isto é, encadear propo-
sições num discurso coerente, baseado em elementos compartilha-
dos (os argumentos) e deles fazer derivar urna proposição segunda (aconclusão), que não é compartilhada, mas disputada. A argumentação
se situa na divergência dos discursos mantidos, por exemplo, sobre a
qualificação de um acontecimento: Quem é o responsável/ culpado?Quem lançou o dardo que matou a vítima durante o treinamento?
Foi a vítima que não respeitou as regras de segurança? Trata-se de um
crime? Ou de um acidente?; "Você roubou a mobilete?" vs. "Não, to-mei-a emprestada!": De que se trata na verdade? De um roubo ou de
um empréstimo? A essas perguntas, os protagonistas trazem respostas,inconciliáveis. Porém não basta que afirmem: já que o outro diz outra
coisa, é preciso elaborar a afirmação "seca", sustentá-la com um dis-curso, fornecer indícios, testemunhos orientados para uma ou outra
posição. E o conjunto dessa atividade que constitui a argumentação.O que devo acreditar, o que devo fazer? Enquanto todos vêem ascoisas do mesmo modo, fazem o mesmo sem dizer nada, não há pro-
blema; mas logo que os discursos se opuserem de forma construída
aparece uma pergunta argumentativa que torna manifesta uma situa-ção de bloqueio (de "estase") nos fluxos coordenados de linguageme de ação.
Argumentar é uma atividade biface que se exerce sobre um fundo
de tensão irredutível entre monólogo e diálogo, entre trabalho enun-ciativo e trabalho interacional. O diálogo constitui o fundo: estamosno domínio do discutível. É uma realidade de ordem antropolingüís-
tica; é difícil imaginar uma sociedade sem pluralidade de interessesàs vezes contraditórios. A argumentação é um modo de tratar essasdivergências. Apenas um modo entre outros: por exemplo, o macho ou
a fêmea dominante pode. se encarregar do problema e resolvê-lo à suamaneira. Para que haja argumentação, é preciso que se esteja situadonum campo de sentido e que haja ao menos uma pergunta comparti-
Í8
A argumentação biface
lhada, por bem ou por mal. Segue-se que um discurso não contradito
vale como a verdade.Esse ponto de partida permite situar um conjunto de noções clás-
sicas pouco levadas em conta pelos modelos centrados na argumen-
tação como encadeamento monologal de proposições: por exemplo,
o peso da prova. Essa noção absolutamente fundamental remete irre-
dutivelmente a dois opositores, a dois pontos de vista: um dominante;
o outro dominado e tentando se impor, e que deve não só "trazer",mas também "fazer" suas provas. Poder-se-ia ainda citar a exigência de
univocidade da pergunta e as diferentes modalidades da pertinênciada resposta dada (petição de princípio, resposta fora do assunto). Há
argumentação antes dos argumentos.
5. Dialogismo, polifonia, intertextualidade
Fala-se de interação ou, em primeira aproximação, de diálogo, paradesignar situações de fala, nas quais os interlocutores estão fisicamente
em situação face a face, dispõem de igual direito à palavra, trocam oral-
mente, e de forma contínua, réplicas relativamente breves. A conversaé um exemplo de interação. Os conceitos de polifonia e de intertex-tualidade permitem estender a concepção dialogada da argumentação
ao discurso monolocutor.Bakhtin mostrou a presença do diálogo em qualquer discurso (pro-
dução verbal desenvolvida, estruturada, ininterrupta, atribuída a ummesmo locutor-fonte):"a orientação dialógica do discurso é natural-
mente um fenômeno próprio a todo discurso" (Esthétique et théorie
àu roman, 1978, p. 102). Essa tese do dialogismo inerente a todo dizere urna das aquisições em que se baseiam a análise do discurso, em
geral, e a do discurso argumentativo, em particular: "todo discurso édirigido para uma resposta, e não pode escapar da influência profundado discurso-réplica previsto" (op. cit., p. 103). Todo discurso seria nãosomente dialogai, mas polêmico. De qualquer maneira, Bakhtin inteirovai no sentido da superioridade do diálogo.
Análises do discurso hoje
Essa realidade dialógica é fundamental para a teoria da argumenta-
ção na língua, que se baseia na natureza polifônica dos encadeamentos
de enunciados num mesmo discurso. O "foro íntimo" é aí visto como
um espaço dialógico, no qual coexiste um conjunto de proposições
orientadas, cada urna delas sendo atribuída a uma "voz" que é sua fon-
te: o enunciador. O locutor se situa em relação a essas vozes, isto é, ele
se identifica com algumas e rejeita outras. Se nos reportamos à famosa
análise dos conectores (mas, por exemplo), vemos que o que aparece
na superfície como um monólogo baseia-se num verdadeiro diálogo
interior, que obedece a exigências gramaticais, libertado da exigência
do face a face, mas que permanece um discurso biface, articulandoargumentações e contra-argumentações.
A noção de intertextualidade, entendida como remetendo tanto ao -
texto oral quanto ao escrito, é retornada em argumentação na relação
discurso/ contra-discurso e, mais especificamente, pela noção de script
argumentativo: é o conjunto dos argumentos/ contra-argumentos li-
gados a uma pergunta. Constata-se, com efeito, que o conjunto das
proposições/ contra-proposíções ligadas a questões como a da legiti-
midade ética da clonagem apareceu completo quase imediatamente;
os sujeitos apenas repetem argumentos que estão dispersos no espaço
sociocomunicacional. Nessa concepção, a atividade argumentativa do
locutor consiste essencialmente em reformulações, adaptações, atuali-zações de discursos já ditos. Estamos muito longe da "invenção".
Falar-se-á de modelo dialogai da argumentação para englobar, ao
mesmo tempo, tudo o que se relaciona ao discurso face a face, de um
lado, e de outro, o dialógico, isto é, o dizer outro, citado (o polifônicoe o intertextual).
6. Interações, debates, diálogos
As conversas comuns são semeadas de contradições. Quando essascontradições são ratificadas (levantadas por um ou outro dos parcei-
ros), elas fazem emergir uma situação argumentativa. Consideremos
20
A argumentação biface
a troca seguinte: "O que vamos comer hoje à noite?" "Macarrão!"
"Outra vez? Já comemos macarrão no almoço!" "Justamente, temos
que acabar com ele!" Uma pergunta de teor informativo recebe sua
resposta: esta é rejeitada, apoiada numa boa razão, que repousa sobre
um princípio dietético de variedade na alimentação; esse argumento é
devolvido pelo advérbio justamente, em favor da conclusão oposta (va-
mos comer), em virtude de um outro princípio de economia doméstica:
não se joga comida fora. Conflito sobre os princípios, confrontação
dos discursos, inversão das orientações, toda a problemática da argu-
mentação se encontra nesse pequeno exemplo de interação banal.
O estudo das interações verbais dispõe de um conjunto de instru-
mentos bem ajustados; ele supõe a constituição de corpora gravados
(em vídeo ou em áudio) e transcritos, que constituem dados estáveis e
transmissíveis.Todas as interações não são argumentativas,mas o estudo
da argumentação no diálogo não pode deixar de levar em considera-
ção os fenômenos interacionais. Por exemplo, se nos interessamos pela
maneira como o professor escuta ou não escuta as argumentações dos
alunos, ou o que ele realmente escuta de seus argumentos, ou se escuta
alguma coisa (e reciprocamente), é preciso necessariamente levar em
conta o fato de que se trata de um dizer em interação.
Pode-se falar de diálogo para situações de interação em que os in-
terlocutores, seja de comum acordo, seja seguindo a injunção de urna
norma social, respeitam um certo número de regras. A Nova Dialética
da Escola de Amsterdã (VAN EEMEREN e GROOTENDORST, 1996) se in-
teressa pelos diálogos argumentativos em que os interlocutores devem
respeitar regras explícitas, tendendo a maximizar o rendimento do diá-
logo: os participantes exprimem livremente suas opiniões e suas obje-
ÇÕes; não falam fora do assunto; levam em conta os dizeres do outro;
estão dispostos a renunciar à sua primeira posição e a adotar o pontode vista do outro, etc. O diálogo argumentativo é visto como um meio
de construção do consenso.A argumentação procura e evita o diálogo. Por um lado, argumen-
tar é construir o discurso orientado para a afirmação de urna con-
Análises do discurso hoje
clusão; por outro, é confrontar esse discurso com um outro discurso
igualmente planejado, mas que não conclui a mesma coisa, ou propô-lo a alguém do qual ignoramos o que ele vai dizer.
O debate é um dos lugares da argumentação para os quais devemosmobilizar os recursos da análise das interações. No caso da sala de aula,
interessar-nos-emosf por exemplo, pelos modos de retomada do dis-
curso, pelas formas de expressão do acordo e dos desacordos (cada umquer legitimamente preservar sua face e sua identidade), pelos modos
de afirmação das conclusões, pela repartição dos papéis argumentativose interacionais, pelos modos de aparição, de fragmentação e de deriva-
ção das questões, pelos tipos de argumentos introduzidos, pelas aliançase adesões, pelas formas de concessões, etc. Existe aí um imenso campopara a exploração empírica.
A argumentação é uma atividade onerosa, tanto na sua dimensão cog-nitiva quanto na sua dimensão relacionai. Manter uma posição é man-
ter uma face, uma identidade, uma diferença. O diálogo argumentativo
orientado para o consensual supõe que se esteja pronto ou que seja possí-vel renunciar a essa diferença, o que nem sempre é o caso. O debate podeconduzir à imobilidade, e até mesmo ao reforço das posições que ele pre-
tendia precisamente fazer evoluir. Mudar de opinião, alinhar-se pela po-sição do outro, é sempre submeter-se, reconhecer que se enganou, logoperder um pouco a face, renunciar a esse fragmento de identidade que
estava ligado à posição repudiada. Duas conseqüências: não há argumentosem emoção; é preciso levar em conta as "condições de disputabilidade"de urna questão em tal ou qual grupo, em tal ou qual momento.
Nem todos os diálogos argumentativos respeitam as regras deorientação para o consenso: líderes políticos de campos opostos, àsvésperas de uma eleição, não renunciam a seus pontos de vista ori-
ginais ao termo de um debate em que se enfrentam. Estão presosnum paradoxo, em que cada um deve apresentar ao mesmo tempoargumentos tidos como aceitáveis por todos e afirmar uma posiçãobem particular. Poder-se-ia falar de diálogo orientado para o aprofun-damento das diferenças.
22
A argumentação biface
As situações de trabalho colaborativo, na sala de aula ou fora dela,
põem em jogo outra situação de argumentação em interação. Com
efeito, apenas se argumenta nos negócios humanos em geral (política,
filosofia, direito, etc.), sobre o modo dissertativo e segundo o modelo
ideal e jamais atingido da demonstração lógica elementar. Argumenta-
se em ambientes materiais onde o sentido da argumentação esta sem-pre ligado a projetos, objetos e ações. Os trabalhos práticos de ciências
propõem assim situações argumentativas quase experimentais, em que
se pode observar como se trabalha, paralelamente, a linguagem e os
objetos, com fins de construção dos saberes.
7. O que é uma boa argumentação?
"E aquela com que eu concordo"; a argumentação só convence os
convencidos. Se considerarmos a dificuldade encontrada quando setrata de rejeitar um mau argumento para uma conclusão aceita e deaceitar uni bom argumento para uma conclusão rejeitada, podemos ser
tentados por essa resposta um tanto rápida.A contribuição fundamental da teoria das falácias — isto é, das pa-
lavras enganosas —, tão mal compreendida na França, é introduzir na
crítica a avaliação das formas argumentativas. Aprender a argumentaré aprender a criticar os argumentos, tanto os seus quanto os dos ou-
tros. Essa problemática foi reatualizada pela obra de Hamblin, Faüades
(1971, não traduzida em francês). Dela podemos reter que a críticatende a eliminar os discursos ambíguos, impõe o respeito a um méto-
do n.o tratamento dos objetos e de suas relações, o todo levando emconta as condições pragmáticas da aceitabilidade das argumentações.
Num segundo nível, a avaliação pode igualmente basear-se numahierarquia intrínseca dos argumentos. Nesse caso, consideraremos queuma argumentação baseada na definição (que exprime a natureza do°Rjeto tratado; "para argumentar é preciso saber do que se fala") ounuma relação causai será intrinsecamente melhor que as argumenta-ções baseadas no prestígio do locutor ou no da fonte citada por ele (essa
23
Análises do discurso hoje
preferência supõe que definição e relação causai foram estabelecidas
corretamente, o que é precisamente o objetivo da crítica de primeironível).
Podemos enfim ampliar o problema e adotar uma perspectiva dia-
lética: uma boa argumentação é uma argumentação que foi analisada
de modo contraditório. A avaliação não se refere mais a um episódio
discursivo, mas ao próprio discurso e, em seguida, ao debate no qual
ele se situa. O corolário é que uma posição é considerada legítima se
foi submetida ao processo de discussão considerado normal pelo gru-
po. Numa última etapa, poder-se-ia dizer que um bom argumento é
um argumento que sai vivo de uma boa discussão: seja porque é reto-
mado como fundando uma conclusão à qual se adere, seja porque foi
julgado digno de uma refutaçào ou de uma concessão.
8. Perspectivas
Não se pode opor tipos ou "módulos" narrativo/ descritivo/ argu-
mentativo pela simples razão de que, num texto argumentativo, podem
ser encontrados uma narração, uma descrição ou um retrato argumen-
tativamente orientados no sentido de um ponto de vista, em oposição
a outro ponto de vista. Argumentar é operar derivações (ou inferên-
cias) num fundo de contradição. Além disso, deve-se caracterizar os
discursos não como sendo ou não argumentativos, mas como o sendo
mais ou menos. O lugar dado à palavra do outro é um elemento de-
terminante do grau de argumentatividade de um texto, que corres-
ponde a um traço, um descritor utilizável para a descrição dos gênerosdiscursivos.
Se quisermos opor a argumentação a alguma coisa, é preciso con-
trastá-la com discursos de revelação ou de intuição, afirmando dire-
tamente o dever e a verdade (não dialogais, não inferidos); ou ainda,
como o faz Pontalis (En marge desjours, Gallimard) opor "o pensamen-
to sonhante" ao "pensamento discursivo, argumentado, amarrado ao sa-ber, que só quer se justificar e não consente em se contradizer".
24
A argumentação biface
O lugar-comum que liga a argumentação à persuasão deve ser re-
visto. Se persuadir é mudar as representações do interlocutor, é a coi-
sa mais fácil do mundo, e nào é absolutamente apanágio da retórica
argumentativa. Dizer que já é meio-dia e cinco a alguém que pensa
que ainda não é meio-dia pode mudar suas representações de modo
dramático, se ele devia pegar um trem às doze e três. O estudo dos ins-
trumentos efetivos da persuasão (discursivos ou não) e a medida de sua
eficácia são do domínio da psicologia, que pouco se preocupa com as
problemáticas da argumentação. Se estivermos seriamente interessados
na persuasão, é preciso integrar ao campo a conversão, a religiosa assim
como a política.Os modelos do monólogo argumentativo só permitem levar em
conta a intenção de persuadir. Acompanham um modelo unidírecio-
nal da persuasão em que um persuadido é o alvo daquele que persuade
e que gostaria bastante de fazê-lo adotar seu ponto de vista. Os meca-
nismos da persuasão postulados repousam infine sobre a identificação
do persuadido com aquele que persuade. Os modelos do diálogo são
bidirecionais e enfatizam os mecanismos de co-construção das crenças
ou das decisões. Encontra-se aqui a tensão entre os dois pólos da ação
argumentativa.Pedimos às vezes ajuda à argumentação, como a urna bóia à qual se
tenta atrelar a formação do indivíduo e do cidadão. Muitas considera-
ções ainda devem temperar o otimismo dessa ideologia educativa. Pri-
meiramente, a argumentação não é forçosamente uma alternativa ao
uso da força: a História mostra que os dois se combinam muito bem.
Em segundo lugar, a argumentação trabalha na oposição (tanto do que
se deve pensar como do que convém fazer), que ela pode contribuir
para aprofundar ou resolver. Em terceiro lugar, é uma grande utopia
pensar que poderemos um dia esvaziar, com a colherinha da crítica, o
oceano da ignorância e da desonestidade. Em quarto lugar, dizer quea argumentaçâo repousa sobre um conjunto de "acordos prévios" (PE-
R.ELMAN e OLBRECHTS-TYTECA) é dizer que ela funciona bem no seio
unia comunidade de crenças e dar-se ao menos a metade da solução
25
Análises do discurso hoje
do problema que se pretende resolver. Faltam-nos estudos sobre os
casos de desacordos radicais. A argumentação deve renunciar ao debateintercomunitãrio para se limitar ao intracomunitário?
Os programas prevêem o ensino da argumentação nos colégios eliceus. Entretanto, não tenho conhecimento de que exista na França
nenhum curso estruturado propondo um volume suficiente de ensinodas bases indispensáveis à reflexão dos mestres.
Referências
PLANTIN, Christian. L'argumentation. Paris: Seuil, 1996. (Coll.Mémo)
- L'argumentation, histoire, théories,perspectives. Paris: PUF, 2005.
(Coll. Que sais-je?)
26
SEMIÓTICA E RETÓRICA: UMDIÁLOGO PRODUTIVO
Diana Luz Pessoa de Barros (USP/UPM/LEI)
1. Considerações iniciais
Os diálogos entre semiótica e retórica têm sido muito produtivos, seja
no tratamento das questões discursivas de persuasão e argumentação,
com os contratos fiduciários, a interação entre sujeitos e a construçãoda identidade ou do ethos do enunciador, seja no exame das figuras deconteúdo e de expressão, com as relações entre temas e figuras e entre
expressão e conteúdo. Neste artigo serão apresentados alguns resul-tados de nossas reflexões sobre as relações ditas de "motivação" que
se estabelecem entre expressão e conteúdo. Serão examinadas quatroquestões principais: o tratamento dado ao plano da expressão nos es-tudos sobre a linguagem; as conceituações de simbolização e de semi-
simbolização; os diferentes tipos de semi-simbolismo; os papéis dosprocedimentos de simbolização e de semi-simbolização e da relação
entre eles na construção dos sentidos. A descrição das estratégias desimbolização e de semi-simbolização põe em jogo princípios teóricose ferramentas metodológicas da semiótica discursiva francesa, perspec-tiva teórica adotada neste trabalho, e tem por objetivo último a análise
das relações entre a motivação na linguagem e os sentidos na sociedadee na cultura.
Análises do discurso hoje Semiótica e retórica: um diálogo produtivo
2. O plano da expressão nos estudos da linguagem
O exame dos significantes e o dos significados estiveram, até recente-
mente, separados no quadro dos estudos lingüísticos.
Se a lingüística, no seu início, com disciplinas como a fonética e
a fonologia, privilegiou o estudo dos significantes em relação ao das
estruturas semânticas, a partir dos anos 1960, os lingüistas, sobretudo
aqueles que se interessaram pelo texto e pelo discurso, se debruçaram
sobre questões de significação e sentido. Por outro lado, os especialistas
em literatura já tinham conseguido, desde a primeira metade do século
XX, um equilíbrio melhor no exame da expressão e do conteúdo dos
objetos literários, graças, entre outras razões, à contribuição dos estu-dos retóricos e estilísticos.
O aparecimento e a consolidação dos estudos sobre o texto e o
discurso, ao favorecer a abordagem dos problemas de significação e
de sentido, trouxeram novas interrogações e outras direções ao exa-
me do plano do significante lingüístico e recuperaram também o
diálogo com a retórica. Essa mudança deveu-se, antes de mais nada,
ao estabelecimento de uma distinção clara entre o significante dos
signos (entendidos como lexemas) e o plano da expressão dos textos,
de que se ocupam os especialistas do texto e do discurso. Operou-se,
assim, uma primeira escolha sobre a dimensão e a natureza do plano
da expressão. Houve mudança de ponto de vista, pois o plano da
expressão deixou de ser concebido apenas como significante oposto
ao significado, no interior do signo, e passou a ser pensado também
como o conjunto expressivo dos textos-enunciados de diferentes ti-
pos. Preparou-se assim o terreno para uma nova reflexão sobre a
expressão. Foi também revelada a precariedade dos estudos até então
existentes sobre o plano da expressão, pois se a fonética e a fonologia
se encontravam bastante bem desenvolvidas, os estudos sobre o plano
da expressão dos textos eram, e ainda são, pouco numerosos, pouco
sistematizados e dirigidos pontualmente a questões específicas, emquadros teóricos variados.
28
Nossas preocupações e os resultados ainda incipientes que aqui
apresentaremos inserem-se nesse quadro: o do exame do plano da ex-
pressão dos textos e das relações de construção do sentido tecidas en-
tre os dois planos da linguagem, o da expressão e o do conteúdo, nos
termos de Hjelmslev (1968).
Na tradição saussuriana, ninguém ignora que a função maior,
primordial do plano da expressão é a de "fazer passar", "expressar"
conteúdos com os quais mantém relações arbitrárias. No entanto, é
também verdade que relações novas e motivadas podem-se estabe-
lecer entre expressão e conteúdo. A estilística, a retórica, os estudos
literários procuram há muito tempo aprofundar essas questões. No
âmbito das teorias do texto e do discurso, a semiótica tem obtido
bons resultados no exame do plano da expressão, nas manifestações
textuais não apenas verbais, mas também na pintura, na música, nos
textos sincréticos em geral.
Para a semiótica, as relações novas entre expressão e conteúdo de-
correm dos sistemas simbólicos e semi-simbólicos. Esses sistemas po-
dem intervir nos textos "poéticos" de qualquer tipo (poesia e outros
textos literários, bale, pintura, fotografia, etc.) e têm por função desfa-
zer a relação já estabelecida entre expressão e conteúdo e entre o tex-
to e a "realidade", para estabelecer novas perspectivas, susceptíveis de
refundir ou de refazer o "real, e para instalar a verdade textual de um
mundo sensorial, corporal — formado de sons, cores, formas, cheiros1—, redesenhado pelo texto.
•*• Simbolisníos e semí-simbolismos: conceituação
^s procedimentos semi-simbólicos e simbólicos ocorrem em qual-
quer tipo de texto, mas foram analisados, sobretudo, pelos senlioticistasd° visual e por Jean-Marie Floch, em particular, a partir dos estudosae Hjelmslev (1968) sobre sistemas simbólicos. O conceito de semi-
^bohsmo assinala, em semiótica, a relação entre uma categoria (umae'açao) da expressão e uma categoria do conteúdo, e diferencia-se,
29
Análises do discurso hoje
assim, dos sistemas simbólicos de Hjelsmelv, em que há relação termo
a termo entre expressão e conteúdo.
Floch (1985, p. 15-16), para definir o semi-simbolismo, retoma
uma passagem de Lévi-Strauss em que o antropólogo diz não estar
de acordo com Mallarmé, que considera impróprios os nomes fran-
ceses jour, para dia, e nuit, para noite, pelo fato dejour (dia) empregar
sons graves e nuit (noite), sons agudos. Segundo o poeta, deveria
ocorrer o contrário, porque a relação com o plano do conteúdo é
culturalmente abusiva: sonoridade grave de jour vs. sonoridade aguda de
nuit estão em correlação, no plano do conteúdo, com claridade/ vida
vs. obscuridade/ morte. Lévi-Strauss não vê nisso nenhum problema,
pois, para ele, os sons graves de jour estão relacionados com a con-
tinuidade ou a extensão do dia e da luz, interrompidos pela noite-
aguda, pontual, intensa. São, para os dois pensadores, sistemas semi-
simbólicos diferentes.
Vejamos um exemplo de sistema simbólico e semi-simbólico:
SistemasH
- conteúdor expressão
simbólico:—
- conteúdo
brancopaz
—semi-simbólico:—Texpressão claro/ pontiagudo vs. escuro/ arredondado
vida vs. morte
(em Os girassóis, de Van Gogh)
Os dois tipos de sistemas criam relações "motivadas" entre expressão
e conteúdo, fortemente sensoriais e corporais, e estão fundamentadas
sobre a tensividade que sobredetermina os termos dos dois planos: no
símbolo, o branco, da expressão, e a paz, do conteúdof são determinados
pela extensão ou como termos extensos; no sistema semi-simbólico, o
amarelo escuro e as formas arredondadas, da expressão, e a morte, no con-
teúdo, são determinados como termos extensos, e o amarelo claro e as
formas agudas, assim como a vida, como termos intensos. Em outras pa-
lavras, a natureza morta de Van Gogh trata do caráter transitório e pas-
30
Semiótica e retórica: um diálogo produtivo
sageiro da vida e de uma morte que dura. Outros textos podem mos-
trar, serni-simbolicamente, o acontecimento extraordinário, pontual da
morte em uma vida que dura.Veja-se, por exemplo, Fita verde no cabelo,
de Guimarães Rosa (1985). A relação com a tensividade permite não
só o estabelecimento das relações simbólicas e semi-simbólicas entre
expressão e conteúdo, como também o exame dessas relações em um
patamar mais afastado do da substância da expressão e do conteúdo.
Apontadas as semelhanças entre eles, é preciso agora diferenciar os
sistemas simbólicos e semi-simbólicos.
Nos sistemas simbólicos, a relação entre expressão e conteúdo é
culturalmente determinada e perpassa diferentes textos (a relação en-
tre branco e paz, por exemplo). Já nos sistemas semi-simbólicos, põe-
se em xeque nosso modo culturalmente estabelecido de sentir e de
conhecer o inundo e cria-se uma nova verdade e uma outra sensação
desse mundo, em que, por exemplo, a claridade e as formas agudas ligam-
se à vida, e a obscuridade e as formas arredondadas, à morte. O mundo é
refeito, sobretudo na dimensão do sensível, pelo texto que constrói os
semi-simbolismos.
São apresentados a seguir alguns exemplos extraídos de anúncios
publicitários de bancos, em relação ao cromatismo, à cor.
1) simbolismo: cores simbólicas da bandeira (azul/ amarelo) nos
anúncios do Banco do Brasil;
2) semi-simbolismo: variação de tonalidade (anúncios do Banco
do Brasil):
__ amarelo quente
^cumplicidade, proximidade
Em anúncios de crédito,para mostrar o que o
banco pode fazer pelocliente.
vs.
vs.
azul frio
distância, seriedade, competência
Em anúncios de investimentos,para persuadir o cliente que confiaseu dinheiro ao banco de que eleé sério e competente e garante os
investimentos.
31
Análises do discurso hoje Semiótica e retórica: um diálogo produtivo
3) semi-simbolismo: variação de saturação das cores e de tonalidade
(anúncios do Banco do Brasil):
cor quente e escura
cumplicidade, agressividade,proximidade
Em anúncios de patrocíniodo esporte.
vs.
vs.
cor fria e clara
seriedade, competência,sofisticação, elegância,
distanciamento
Em anúncios dirigidos a pessoajurídica, sobretudo a grandes
empresas.
4) semi-simbolismo: variação de tonalidade (anúncios do Bradesco):
vermelho quente(de sua identidade visual)
novidade, agressividade,modernidade
vs.
vs.
cores frias e escuras (marrom,cinza, preto, verde ou azul escuros)
seriedade, competência,personalização, sofisticação
5) semi-simbolismo: variação de tonalidade (anúncios do Itaú):
laranja
simplicidade, facilidade,descompíicaçào
vs.
vs.
outras cores (de outros bancos)
complicação, dificuldade,complexidade
4. Tipos de semi-simbolismos
Há diferentes tipos de semi-simbolismos, seguindo três variáveis: as
unidades do plano do conteúdo, em correlação; a dimensão no texto;
as unidades do plano da expressão.
O primeiro critério de classificação, o do tipo de conteúdo, distin-
gue os semi-simbolismos cujas categorias do conteúdo são genéricas
e abstratas dos que têm conteúdo passional e contratual. O primeiro
caso caracteriza os textos poéticos, sejam eles verbais, visuais, gestuais,
etc. (Os girassóis deVan Gogh, por exemplo) ou os que produzem al-
32
uns efeitos poéticos (anúncios de banco, como os do Itaú com a cor
laranja). O segundo caso define, sobretudo, os textos conversacionais
e as canções. Os textos falados, graças aos diferentes recursos e proce-
dimentos utilizados — as pausas, as interrupções, os prolongamentos
sonoros — combinam e alternam aspectualmente continuidade e des-
continuidade, aceleração e desaceleração. Cada pausa ou interrupção é
seguida de uma duração pela repetição ou pela paráfrase, cada prolon-
gamento sonoro de vogai, de uma correção pontual, e assim por diante.
A fala se constrói em jatos. Essa organização da expressão sonora cor-
relaciona-se, por sua vez, com organizações do plano do conteúdo, no
caso, de sua estruturação contratual e passional, construindo assim um
sistema semi-simbólico que recobre o texto inteiramente. O arranjo
da expressão sonora entre pontualidades e durações, acelerações e desa-
celerações homologa-se, no plano do conteúdo, às relações contratuais
e de ruptura de contrato, e às relações afetivas e passionais de aproxima-
ção interessada e de distanciamento desapaixonado que caracterizam
a cooperação e a interação entre sujeitos, definidoras da conversação
(BARROS, 1995 e 1998). Os procedimentos de expressão da conversa-
ção ligam-se assim à organização interacional do conteúdo, ou seja, às
relações de envolvimento interpessoal, inclusive passionais ou afetivas.
Na conversação, fabricam-se, com o semi-simbolismo, efeitos de envol-
vimento emocional, enquanto na poesia, com os recursos semi-simbó-
licos, refaz-se o mundo ou o saber sobre ele. Começam a aparecer as
aproximações e as diferenças entre a afinidade afetiva e emocional da
conversação e o envolvimento estético da poesia.
O segundo critério de classificação do semi-simbolismo é o de sua
extensão no interior do texto. O semi-simbolismo pode estar locali-zado, circunscrito, como nos textos poéticos, ou estender-se em toda a
dimensão do texto, como nos textos conversacionais.
O terceiro e último critério de classificação do semi-simbolismo é0 dos tipos de plano da expressão: sincrético ou não-sincrético. O pla-n° da expressão é dito sincrético quando sua forma é preenchida porSubstâncias diferentes (sonoras, visuais, etc.). Em função da complexi-
33
Análises do discurso hoje Semiótica e retórica: um diálogo produtivo
dade de seu plano da expressão, os textos sincréticos podem engendrar
dois tipos de sistemas semi-simbólicos: o primeiro, em que a categoria
do plano da expressão é construída de termos que têm substâncias
diferentes, como por exemplo, traços sonoros e cromáticos, postos em
correlação, em conjunto, com uma categoria do conteúdo; o segundo,
em que os termos formados por substâncias diferentes sincretizadas no
texto estão em correlação, separadamente, com categorias do conteú-
do. Os anúncios publicitários são textos sincréticos, mas produzem, em
geral, semi-simbolismos do segundo tipo. Na publicidade da imprensa
escrita, por exemplo, os semi-simbolismos são, sobretudo, visuais, al-
gumas vezes sonoros, mas sempre separados. Os anúncios publicitários
dão ao verbal um papel principalmente racional e, por isso, raramente
exploram a sonoridade da expressão verbal. Atribuem ao visual, poj
sua vez, uma função fortemente sensorial e afetiva. Daí a preferência
pelo semi-simbolismo visual nos anúncios publicitários, em geral, e
nos de instituições bancárias, em particular.
5. Gradações entre o simbolismo e o semi-simbolismo
Se há textos, raros, em que não ocorrem relações novas entre expressão
e conteúdo, em que a expressão cumpre apenas seu papel de expressar
conteúdos, na maior parte deles são encontradas relações motivadas
entre expressão e conteúdo, de dois tipos: simbólicas e semi-simbólicas.
Em outras palavras, as relações motivadas que se estabelecem entre ex-
pressão e conteúdo vão desde a novidade poética do semi-simbolismo
próprio de cada texto até o simbolismo culturalmente estabelecido,
que perpassa diferentes textos e que estabelece, termo a termo, e não
mais categoria com categoria, a relação da expressão com o conteúdo.
Entre esses pólos extremos, há graus, pois nada é completamente novo
ou completamente estereotipado, e produz-se sempre um vaivém en-
tre a novidade e a estereotípia.
Nossa hipótese é a seguinte: a correlação textual entre uma ca-
tegoria da expressão e uma categoria do conteúdo, que caracteriza
34
semi-simbolismo, é condição de sua novidade e poeticidade, mas
uso freqüente, a reiteração e a aceitação cultural podem levar ao
apaeamento de um dos termos postos em relação, tanto no plano
da expressão quanto no do conteúdo, e produzir o efeito simbólico
contrário, o de estereotípia. É o que acontece, por exemplo, na re-
lação entre um certo tipo de papel (mais grosso, mais liso, etc.}, no
plano da expressão, e o efeito de sofisticação, elegância, no plano
do conteúdo. Tudo indica que houve um sistema semi-simbólico
primeiro, papel grosso e liso vs.papelfino e áspero correlacionado com
sofisticação, elegância, refinamento vs. vulgaridade, deselegânàa, grosseria,
que foi reiterado e aceito na cultura e que se tornou símbolo em
uni dado momento, podendo então prescindir de um dos termos da
categoria.O semi-símbolo torna-se então um símbolo, e a novidade poéti-
ca do texto cede espaço ao lugar-comum da cultura. Essas mudanças
ocorrem aos pouquinhos e produzem textos que apresentam graus
intermediários entre o semi-simbolismo e o simbolismo. Os textos
transformam relações semi-simbólicas em relações simbólicas e vice-
versa, conforme o efeito que querem produzir. Se o semi-simbolismo
constrói formas novas de sentir o mundo, criando relações sensoriais
novas com os objetos, razões diversas de uso (a repetição, sobretudo),
em um momento histórico e em uma dada cultura, fazem dele um
sistema de símbolos.Transforma-se a novidade em estereotipia e passa
também a ser outro o papel da relação, agora simbólica, entre expressão
e conteúdo nos textos: o de apontar os valores da sociedade, os mitos da
vida quotidiana, como foi dito por Roland Barthes.
A publicidade emprega bastante bem os dois procedimentos, o de
serrü-simbolização e a sua transformação em simbolização ou, ao con-Crário, o uso de símbolos e sua ressemantização como semi-símbolos.
Serão retomados os exemplos já apresentados do uso das cores em
Propagandas de banco. Nesses anúncios, tanto se criam, com as cores,
semi-símbolos, que são transformados em símbolos, quanto se reto-
símbolos da cultura, que são mudados em semi-símbolos.
35
Análises do discurso hoje
O Bradesco, por exemplo, emprega o sistema semi-simbólico já
apontado com o vermelho vs. outras cores. A cor vermelha, porém, é
usada pelo banco também simbolicamente — em anúncio do Dia dos
Namorados, para significar paixão, caso em que já se apagou a relação
categoria] em favor de uma relação termo a termo — ou, mais fre-
qüentemente, a meio caminho entre o semi-símbolo e o símbolo, ao
relacionar o traço quente de sua cor identitária com a identidade, no
plano do conteúdo, de banco novo, moderno, agressivo, jovem. A ca-
tegoria da expressão quente vs.frio, correlacionada a do conteúdo novo,
jovem, moderno vs, antigo, conservador, tem já um certo grau de estereo-
típia cultural simbólica, mas ainda não se apagou nenhum dos termos
da correlação semi-simbólica.
Já o Banco do Brasil faz, em geral, o caminho inverso: o azul e o ama-
relo de seus anúncios são simbólicos (ou meta-simbólicos, pois remetem
à bandeira, símbolo da pátria) e próprios de banco nacional e/ou esta-
tal. Nos últimos governos, porém, o banco procurou afastar-se de seu
caráter nacional e, sobretudo, estatal. Para tanto usou traços cromáticos
diferentes no azul e no amarelo e criou, assim, a partir dos símbolos, no-
vos semi-simbousmos: azul quente vs. azul frio, correlacionados com cum-
pliddade, envolvimento vs. distanciamento educado e elegante (anúncios para
pessoa física vs. jurídica); amarelo quente vs. azul frio, correlacionado com
envolvimento do banco com o cliente (amarelo, em anúncio de crédito) vs.
seriedade, competência (azul, em anúncio de investimento), claro vs. escuro,
para efeitos de sofisticação, elegância ou de seriedade, competência. Criaram-se
os serni-simbolismos a partir de cores simbólicas. No inicio do Governo
Lula houve a retomada do sentimento de nação, e o Banco do Brasil,
assim como outros bancos, recuperou e reforçou seu caráter de banco
nacional e estatal, e, conseqüentemente, suas cores simbólicas.
O Itaú, por sua vez, usou as cores azul/ laranja/ amarelo de forma
parecida com o Bradesco (quente vs. frio, correlacionado com banco
moderno, ágil vs. banco antiquado, emperrado). Além disso, construiu, nos
seus textos, uni sistema semi-simbólico novo que pouco a pouco se
transforma e leva à estereotipia simbólica:
36
Semiótica e retórica: um diálogo produtivo
laranja
descompli cação
facilitação, simplificação
realidade
vs.
vs.
vs.
vs.
outras cores
complicação
dificultação
irrealidade
Esse semi-simbolismo usado, em um primeiro momento, em anún-
cios de banco na internet, foi-se "engessando", com a finalidade de se
tornar um símbolo do banco (um banco descomplicado, simples) e,
quem sabe, mais tarde, um símbolo na nossa cultura. Aparece, atual-
mente, em outros tipos de anúncios e em outras situações.
Em. síntese, os resultados desses primeiros estudos mostram que os
sistemas semi-simbólicos produzem efeitos de poeticidade e, levados
às últimas instâncias, fazem do texto um objeto que dá prazer estético.
Já os símbolos tornam palpáveis, tangíveis conteúdos culturalmente
estabelecidos e, levados às últimas conseqüências, expõem ou apontam
os valores da sociedade.
Vale a pena, ainda, examinar o jogo textual de transformações ou
de passagens entre o semi-simbólico e o simbólico, entre a novidade
poética e estética e as determinações culturais, pois, ao tratar dessas
questões também no plano da expressão e por meio dos simbolismos
e dos semi-simbolismos, teremos, sem dúvida, ganhos teóricos e me-
todológicos no exame dos textos e saberemos mais sobre a construção
dos sentidos na sociedade.
«• Considerações finais: figuras da expressão e figuras do
conteúdo
s relações simbólicas e as semi-simbólicas produzem figuras da ex-
Pressao (GARROS, 1988), como as descritas acima. As figuras da expres-
° são diferentes das figuras do conteúdo, em que, na perspectiva da
"^otica francesa, se relacionam as isotopias figurativas do discurso.
questões para novos estudos. Faremos, aqui, para concluir, apenas
37
Análises do discurso hojeSemiótica e retórica: um diálogo produtivo
duas observações sobre as relações entre figuras da expressão e figuras
do conteúdo:
1) a de que as figuras do conteúdo nào são, no quadro teórico es-
colhido, "figuras de palavras", mas de texto inteiro (são, por exemplo,
metáforas de texto inteiro, produzidas pela relação entre duas isotopias
figurativas);
2) embora as figuras do conteúdo e as da expressão sejam responsá-
veis pelos efeitos sensoriais dos textos e pelas relações corporais entre
enunciador e enunciatário, têm elas papéis diferentes na construção
dos sentidos.
Greimas, em "Conditions d'une sémiotique du monde naturel"
(1970, p. 52-56), afirma que o plano da expressão (a forma da expres-
são) do mundo natural torna-se plano do conteúdo (forma do con-
teúdo figurativo) das línguas naturais. Disso resulta, segundo o autor,
que: "a) a correlação entre o mundo sensível e a linguagem natural
deve ser buscada não no nível das palavras e das coisas, mas no das
unidades elementares de sua articulação; b) o mundo sensível está ime-
diatamente presente até mesmo na forma lingüística e participa de sua
constituição, oferecendo-lhe uma dimensão da significação que, em
outros estudos, chamamos de semíológica."1 (p. 56; tradução nossa).
Com as relações entre duas semióticas, a do mundo natural e a das
línguas naturais, a semiótica propõe uma outra perspectiva de exame
da referência e explica o papel das figuras de conteúdo na construção
dos sentidos dos textos.
As figuras do plano do conteúdo constroem-se, dessa forma, com
conteúdos já transformados, decorrentes do plano da expressão de uma
outra semiótica. São relações de conteúdo, que produzem os efeitos de
sentido de sensorialidade "de papel", de "linguagem", e de poeticidade
1 a) Ia corrélation entre lê monde sensible et lê langage naturel est à rechercher non auniveau dês mots et dês choses mais à celui dês imites élémentaires de leur articulation;b) lê monde sensible est irnmédiatemenc présent jusque dans Ia forme linguistique etparticipe à sã constituition, en lui ofifrant une dimension de Ia signrfication que nousavons ailleurs appelée sémiologíque (p. 56).
38
em seu sentido mais cabal. Já as figuras da expressão estabelecem rela-
ções motivadas entre a expressão e o conteúdo de uma mesma semió-
tica e criam efeitos de novidade e de estereotipia cultural na leitura do
mundo. São outras figuras e novas relações com a retórica.
Referências
BARROS, D.L.P. de. "Problemas de expressão: figuras de expressão".
In: Significação, 6,1988, p. 5-12.. "Procedimentos de construção do texto falado: aspectuali-
zação". In: Língua e literatura, 21,1995, p. 67-76.."Procedimentos e recursos discursivos na conversação". In:
PPüETI, Dino. Estudos de língua falada: variações e confrontos. São Pau-
lo: Humanitas, 1998.
FIORINJosé Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo, Atica, 1988.
FLOCH,Jean-Marie. Petites mythologies de l'oeil et de Fesprit. Paris,Ams-
terdam; Hadès-Benjamins, 1985.FONTANILLEJacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação.
São Paulo: Discurso/Humanitas, 2001.
GP-JEIMAS, Algirdas Julien. De Yimperfecüon. Paris: Pierre Fanlac,
1987,. "Conditions d'une sémiotique du monde naturel". In:
GREIMAS,AJ. Du sens. Essais sémiotiques. Paris: Seuil, 1970, p. 49-91.
; COURTES, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo, Cul-
trix, (s/d), (1. edição francesa de 1979).
GUIMARÃES ROSAJoão."Fita verde no cabelo". In: Ave, Palavra. 3.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
HjELMSLEV, Louis. Prolégomènes à une théorie du langage. Paris: Minuit,
1968.
OS LIVROS MAIS VENDIDOS: UMAPROPOSTA DE RECONSTITUIÇÃODO ETHOS DO LEITOR BRASILEIROCONTEMPORÂNEO
Arnaldo Cortina (FCL-UNESP/CAr)
1. Introdução
Nas sociedades humanas a comunicação é um processo central e deter-minante, pois é a partir dela que as relações se instauram. Isso não signi-
fica desconsiderar os fatores econômicos que estão na base das relações
sociopolíticas das diferentes sociedades do planeta, como bem mostramos estudos ern sociologia e economia, mas é possível entender que esses
mesmos fatores são determinados por e, ao mesmo tempo, determinamdiferentes processos e veículos de comunicação. A semiótica, portanto,entendida como urna teoria que pretende explicitar "as condições da
apreensão e da produção do sentido" (GKEIMAS; COURTÉS, [s/d], p. 415),revela-se como um instrumento importante para a compreensão e para
a explicação de diferentes manifestações da comunicação humana.
O desenvolvimento do projeto semiótico iniciado nos anos 1960 porGreirnas voltou-se primeiramente para o desvendamento do sentidono texto escrito, no princípio o literário, depois o religioso, o político,° jurídico, etc. Buscou-se, assim, descrever a estrutura da significação
de uma unidade maior que a da frase, o que significou uma expansãodos estudos de semântica que eram realizados até então. Com o avanço° projeto, verificou-se que a concepção de texto poderia alargar-se
mais, urna vez que não se restringia mais apenas à modalidade
Análises do discurso hoje i_Jí livros fJiflii
escrita. A partir de então, o projeto semíótico buscou verificar suaproposta metodológica em diferentes veículos de produção de sentido,o que propiciou uma gama de trabalhos voltados para o estudo da pin-tura, da escultura, da propaganda, do cinema, da música, etc.
Ocorre, porém, que esses estudos inicialmente procuravam examinarum objeto específico, isto é, um quadro, uma escultura, uma propaganda,
etc., com o objetivo de descrever as relações de sentido ali presentes, Oque se pretende agora examinar é uma dimensão mais vasta do con-ceito de texto, isto é, uma vez que o arcabouço teórico-metodológico
da semiótica revela-se como um sistema econômico e preciso, pode-sechegar a examinar, então, um conjunto de textos na sua totalidade.
O propósito de que a teoria semiótica não se restringia ao exame deum texto literário, ou propriamente narrativo, já se encontra manifesta-do em Greimas (1983), quando o autor publica seu texto "La soupe aupistou ou Ia construction d'un objet de valeur". Nesse texto, Greimasmostrará a eficácia do modelo semiótico para a análise de um texto tãodistinto daquele que era normalmente utilizado pelo grupo de semioti-cistas, como a receita de cozinha. Embora esse tenha sido um exercícioimportante para colocar em ação as ferramentas do modelo semióticopara a depreensão do sentido, o trabalho de Greimas (1983) voltou-se,uma vez mais, para a unidade textual e não para a noção de conjunto.
Nosso propósito será examinar um outro suporte de comunicaçãoque pode parecer também inusitado, tal como foi a receita de cozinhaanalisada por Greimas nos anos 1980. Diferentemente do texto deanálise do trabalho de Greimas. o que procuraremos interpretar aqui éuma lista de livros mais vendidos no Brasil, entre os anos 1966 e 2004.Nosso propósito será examinar essa lista para chegar à construção deum possível perfil do leitor brasileiro contemporâneo. Para realizar essatarefa, portanto, partiremos da discussão do princípio de totalidade e,para chegar a esse perfil de leitor, discutiremos a noção de ef/ior.Antes,porém, cabe uma explicação rápida de como chegamos à lista dos li-vros mais vendidos, que aparece em anexo no final deste texto.
O levantamento dos ciados para estabelecer o gráfico l, em anexo,foi realizado por meio do registro das listas de livros mais vendidos,
42
rmblicadas em dois jornais brasileiros. O primeiro jornal, fonte da pes-
auisa, foi o Leia, periódico mensal que circulou no território nacionaldurante o período de abril de 1978 a setembro de 1991.0 segundo, foi
o Jornal do Brasil, diário carioca que publicou listas dos livros mais ven-didos no Brasil a partir de 1966 até o mês de dezembro de 2004, dataem que encerramos o levantamento de dados. Como o segundo jornalinterrompeu a publicação das listas dos mais vendidos durante o perío-
do de fevereiro de 1976 a abril de 1984, propusemos uma fusão dos
dados dos dois jornais de forma a cobrir um período que compreendeos anos de 1966 até 2004. A descrição desses dados por meio de um
agrupamento temático aparece na tabela l, também em anexo.
2. Conceito de totalidade em análise
No volume 72 da Acte sétnioíique, de 1986, foi publicado o artigo de
Viggo Brondal, intitulado Omnís et tõtus, que havia aparecido na ActaJutlandica, em 1937. Partindo da observação do latim, segundo Brondal(1986), para examinar o conceito de totalidade devem-se levar ern con-sideração as noções de integralidade (tõtus), de universalidade (omnis),de distributividade ou iteratividade (quisqué) ou de generalidade (quis-
<jHíim).Em inglês, por seu turno, o pronome quisque assume duas formasdiferentes: e.very e each, que têm situações de uso próprias. Seu texto, po-rém, irá centrar-se na oposição entre tõtus e omnis, uma vez que, nas lín-
guas ocidentais, essa diferença do latim se perdeu. Para Brondal (1986,p- 12-13), "os termos mais gerais que designam a totalidade são, em
nossas línguas, os pronomes indefinidos: enquanto pronomes, designamobjetos puros (isto é, sem qualidade), enquanto indefinidos, destacam o
caráter indeterminado ou quantitativo desses objetos".1
O exame, portanto, da chamada categoria dos indefinidos latinos
destaca três séries distintas em que eles se distribuem. A primeira,cnarnada integral, compreende as formas: ümis (um), solus (só) e tõtus
' Todas as citações do texto de Brondal (1986) aqui apresentadas foram por nós tra-
duzidas.
sinatises ao aiscursa noje
(todo, tudo); a segunda, denominada numérica, rièmo (ninguém) [com
o neutro nihil (nada)], quis (um), alius (outro) e omnis (todo, tudo);
a terceira, designada como constitutiva ou estática, üttus (nenhum) equidatn (algum).
Por meio de urna série de relações estabelecidas entre essas diferen-
tes formas do latim para expressar a idéia de totalidade e, em oposição
a ela, a de unidade, Brondal (1986) chega à seguinte distinção entre asformas tatus e omnis:
Tatus, termo integral correlativo a ütius [...], exprime uma totalidade
como negação da unidade independente. Acentua a absorção dos indiví-
duos isolados numa massa indivisível. Um todo nesse sentido é tomado
como um bloco inteiro em que as partes são indistintas ou dominadas.
Omnis, termo numérico, correlativo a nêttío [...], designa, ao contrário",
uma totalidade mais nuançada ou diferenciada. Exprime a reunião de
indivíduos num grupo ou comunidade. As partes que o compõem são
reconhecidas, por um lado, como reais, por outro, como formando umconjunto, (p. 15)
De acordo com o levantamento etimológico apresentado por
Brondal (op. dt., p. 17), o sentido específico da raiz nominal dos dois
termos em questão constrói-se da seguinte forma: totus, "termo culmi-
nante da série integral, expressão da coerência ou da indívisibilidade
de um corpo, originou-se de um substantivo que destaca justamente
a solidariedade quer política [civilização], quer étnica [povo]"; omnis,
por sua vez, "termo culminante de uma construção aritmética, ex-
pressão de um conjunto ordenado, originou-se do próprio nome do
homem: ser ao mesmo tempo social e racional".
Seguindo, portanto, as proposições de Brondal (1986), chega-se à
constatação de que o conceito de totalidade, expresso por tõtus, opõe-
se ao de unidade, expresso por ünus, enquanto a noção de totalidadeexpressa por omnis tem como oposição tièmo.
Ao se referir ao texto de Brondal, Greimas irá observar que o es-
tudo realizado pelo autor não se restringe apenas aos chamados pro-
44
nomes indefinidos, mas inclui também os determinativos. Acrescenta
ainda que, "ao se referir à substância semântica, pode-se então dizer,
com Brondal, que os quantitativos (ou indefinidos) recobrem, articu-
lando-o e estruturando-o, o campo nocional de totalidade" (GREIMAS,
1986, p. 21). Por esse motivo irá afirmar, no final de seu texto, que,
para descrever a noção de totalidade na língua (pelo menos a francesa
a que ele se refere), o termo mais adequado é "quantitativos" e não
indefinidos, como propõe Brondal (1986).Greimas (1981), quando procura definir o actante coletivo, também
aborda a noção de totalidade e a contrapõe à de unidade. Esse actante
desempenha um papel no nível da semântica discursiva, uma vez que
compreende o processo de figurativização, e reúne diferentes unidades
para constituir um conjunto. Segundo o autor, há duas espécies de ac-
tantes coletivos: os sintagmáticos e os paradigmáticos. Para exemplificar o
primeiro tipo, Greimas (1981, p. 85) dá o exemplo da Renault na medida
em que, enquanto definidos pelo conjunto de suas funções, "diferentes
atores (engenheiros, contramestres, operários especializados, etc.) substi-
tuem-se progressivamente uns aos outros para, executando um programa
único, produzir o objeto-automóvel".Para exemplificar o tipo sintagmá-
tico, refere-se a uma turma, ou classe, do último ano do colégio. Nesse
caso, os atores individuais que compõem esse actante (turma da escola)
correspondem a uma totalidade que é parte de uma totalidade maior
(o colégio, por exemplo), ao mesmo tempo em que é constituído por
atores-indivíduos que estão agrupados, obedecendo-se a um critério es-
pecífico, quer seja sua função, quer sejam suas qualificações.
Nos dizeres de Greimas (1981), a estrutura do actante coletivo
pode ser assim descrita:
Suponhamos que exista de início uma coleção qualquer de indivíduos
discretos caracterizados como unidades (U), pelo fato de serem descontí-
nuos, e como integrais (i), por possuírem, os traços de individuação. Para
que esses indivíduos-atores possam ser considerados como pertencentes a
um actante coletivo representando uma nova totalidade (T), que chama-
remos partitiva (p), isto é, um todo do qual seriam partes, é preciso que,
45
Os livros mais vendidos...
embora subsistindo como unidades (U), eles abandonem sua integridade
(i), para serem considerados apenas como partitivos (p), isto é, como indi-
víduos dos quais sejam levadas em consideração apenas as determinações
que eles compartilham com o conjunto de seus congêneres, pertencentesà mesma coleção, (p. 86)
Essa descrição da constituição do actante coletivo segundo Grei-
mas (1981) pode ser representada pela seguinte disposição do quadra-
do semiótico, tal como aparece à página 86 de seu texto:
Observando a configuração acima do quadrado semiótico pode-se
perceber que, para se constituir enquanto uma totalidade parcial (Tp),
porque representa o conjunto (T),formado por diferentes partes (p), o
actante deve partir de sua configuração enquanto unidade individual
(Ui) e assumir a disposição de uma unidade partitiva (Up), sua posi-
ção negativa. A partir dessa assunção, atingirá a posição imediatamentecomplementar, qual seja, a da totalidade parcial (Tp).
Ao examinar essa questão aqui apresentada, Discini (2003, p. 33) irá
contrapor a esquematização proposta por Greimas (1981) à descrição
do sistema pronominal do latim de Brondal (l986), para retomar a dis-
cussão sobre a noção de totalidade. Dessa forma, interpreta da seguinteforma o quadrado semiótico de Greimas (1981):
Tp (unus)
U p (tõtus)
Nessa representação, portanto, a unidade integral, que é individua-
lizada, nêmo (nada), nega a si mesma e afirma seu caráter partitivo,
46
(todo) e esse último, por sua vez, implica a totalidade que suas
pr0priedades pressupõem logicamente, isto é, sua totalidade partitiva,
flrtití (um).Ao confrontar essa esquematização com o conceito de estilo cons-
truído em seu trabalho, Discini (op. aí., p. 34) dará um novo formato
a esse esquema proposto por Greimas (1981) para, uma vez mais, rela-
cioná-lo com a proposta de Brondal (1986).
Up (nemo)
Tp (omnis)
U i (unus)
Ti (tõtus)
Nesse novo esquema proposto pela autora, a unidade partitiva
(riêmo) opõe-se à unidade integral (ünus), enquanto a negação da uni-
dade partitiva é a totalidade integral (tõtus} e a negação da unidade
individual é a totalidade partitiva (omnis). A totalidade integral pres-
supõe a unidade integral e vice-versa; a totalidade partitiva pressupõe
a unidade partitiva e vice-versa. Para construir seu conceito de estilo
Discini (op. dt.,p. 34-35) afirma o seguinte:
O Ünus pressupõe o tõtus, o "bloco inteiro", a totalidade integral, a qual
"destaca a absorção dos indivíduos isolados numa massa indivisível". Estilo
é, então, totalidade, enquanto unidade integral (unus) e enquanto totalida-
de integral (tõtus), sendo que um termo pressupõe outro, numa relação de
interdependência. É o recorte do leitor que decide o que é considerado
unus ou tõtus. [...]O tõtus supõe o mais-de-um, mas considerado do ponto de vista da se-
melhança, que implica um efeito de unidade [...]. Omnis implica uma
totalidade, mas não levando em conta a semelhança. É uma totalidade nu-
mérica [...]. O íõíws,"onde as partes são indistintas ou dominadas", é uni-
ficado, em estilo, por uma recorrência de um modo de dizer, que emerge
da recorrência de um dito. Desse eixo, tõtus/ TÍ«ns desponta o efeito de
individuação, base do estilo. Desse eixo desponta o ethos constituinte do
efeito de sujeito de uma totalidade.
47
Análises do discurso hojeOs livros mais vendidos...
Com o intuito de traçar, portanto, o perfil do leitor brasileiro con-
temporâneo, examinaremos exatamente o eixo tatus/ ünus, tal como
foi proposto por Discíni (2003). A totalidade integral, que corresponde
à lista dos livros mais consumidos por esse público durante o período
de 1966 a 2004, determinará a configuração desse sujeito-leitor con-
temporâneo, a unidade integral. Dessa forma, procuraremos recons-
tituir o ethos do leitor brasileiro da c ontemporancidade. Para tratar
propriamente dessa questão, vale a pena retomar a concepção de texto
e discurso para a semiótica, uma vez que as listas dos livros mais con-
sumidos serão tomadas como um texto para análise.
3. Ethos e pathos na visão da semiótica
Uma vez que a semiótica desloca suas preocupações com a questão do-
significado, própria da denominada perspectiva semiológica com que
ela se confunde inicialmente, e passa a privilegiar o sentido, quando
trabalha com uma extensão lingüística superior à da frase, precisa de-
senvolver um método para o tratamento de seu objeto.
Quando dizemos que a semiótica, ao investigar o sentido, propõe
ir além da frase significa dizer que privilegia, inicialmente, uma outra
dimensão lingüística, qual seja, o texto. Assim, podemos dizer que, ao
tomar o texto como seu objeto, a atitude da semiótica será a de "des-
crever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz"
(BARROS, 1990, p. 7; grifos-da autora). O texto, por sua vez, deve ser
compreendido, segundo a perspectiva semiótica, como um "objeto de
significação" ou como um "objeto de comunicação", Esses conceitossão assim caracterizados por Barras (1990, p. 7):
A primeira concepção de texto, entendido como objeto de significação, faz
que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanis-
mos que o estruturam, que o tecem como um "todo de sentido". [...] A
segunda caracterização de texto não mais o toma como objeto de significa-
ção, mas como objeto de comunicação entre dois sujeitos. Assirn concebido, o
texto encontra seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa socie-
dade (de classes) e determinado por formações ideológicas específicas.
48
Ao trabalhar com o conceito de texto segundo a perspectiva dos es-
tudos semióticos, estaremos sempre levando em consideração tanto sua
cUmensão significativa quanto a comunicativa, uma vez que elas estão
sempre interligadas, porque não se pode falar em significação se ela não
é decorrente de uma interlocução. Mesmo que examinemos um texto
escrito, cuja aparência é a de ser oriundo apenas do sujeito produtor, seu
dizer só adquire sentido na medida em que é dirigido a um outro sujeito
que, pelo fato de ser o destinatário da mensagem, nele interfere. Ao ana-
lisar um conjunto de ciados dos livros mais lidos ao longo do período da
pesquisa, destacaremos a segunda dimensão em relação à primeira.
O sentido de um texto, segundo a semiótica, constitui-se por meio
de uma sucessão de níveis, concebidos a partir de seu plano do conteú-
do, que compreende o discursivo, nível mais superficial, mais próxi-
mo da manifestação textual; o narrativo, nível intermediário, que com-
preende a busca do sujeito pelo objeto; e o nível fundamental, que
abarca as oposições semânticas mínimas a partir das quais o discurso se
manifesta. A essa maneira de descrever a produção do sentido no texto,
a semiótica dá o nome de percurso gerativo de sentido.
Ao invés de reproduzir mecanicamente a arquitetura do percurso
gerativo de sentido, sua utilização torna-se mais fecunda quando se
atribui uma maior mobilidade à relação entre seus diferentes níveis
de constituição. Devem-se prever, durante a análise, a articulação sin-
tático-semàntica de cada um dos níveis e a inter-relação dos próprios
níveis entre si. Assim, as isotopias temático-figurativas articuladas no
discurso pela instância da enunciação, no nível discursivo, refletem as
relações de busca do sujeito pelo objeto, no nível narrativo, que, por
sua vez, são determinadas pelas oposições semânticas mínimas do nível
lundamental. Entender o percurso gerativo de forma dinâmica e nãoestatica é unia maneira de tornar as análises de textos mais produtivase de assumir a mobilidade dos sentidos.
No que diz respeito às formas de produção do efeito de sentidono nível discursivo, a semiótica, sob a influência dos estudos de Ben-veniste (1976), identifica as projeções de pessoa, espaço e tempo en-
1uanto forma de manifestação da enunciação. Assim, todo discurso, ao
Análises do discwso hojeOs livros mais vendidos...
ser acionado, projeta um eu, um aqui e um agora que correspondem àsinstâncias básicas da enunciação. O eu é conseqüência do ato de dizer,
ou seja, sempre que o discurso se manifesta é porque ele é o resultado
de um ato enunciativo. Mesmo que se faça uma asserção genérica,como "A água é formada por dois átomos de hidrogênio e um deoxigênio", existe um sujeito da enunciação nela pressuposto, que, no
caso do exemplo apresentado, corresponderia a:"Eu digo que a água é
formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio." Não existeenunciado que não seja o resultado de uma enunciação.
Entendido o discurso enquanto manifestação de linguagem, o su-jeito que enuncia, o enunciador, é uma imagem de sujeito por eleconstruída, ao mesmo tempo em que o enunciatário também o é.
Essas duas instâncias de discurso sustentam o jogo persuasivo que seconstrói no discurso.
Aristóteles ([s/d], p. 33-34}, em sua Arte retórica, dizia:
Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso
procede de maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de
confiança. As pessoas de bem inspiram confiança mais eficazmente e mais
rapidamente em todos os assuntos, de um modo geral; mas nas questões
em que não há possibilidade de obter certeza e que se prestam a dúvida,
essa confiança reveste particular importância. É preciso também que este
resultado seja obtido pelo discurso sem que intervenha qualquer pre-
conceito favorável ao caráter do orador. [...] Obtém-se a persuasão nos
ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os juí-
zos que proferimos variam, consoante experimentamos aflição ou alegria,
amizade ou ódio. [...] Enfim, é pelo discurso que persuadimos, sempre
que demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade, de acordo
com o que, sobre cada assunto, é suscetível de persuadir.
Na passagem acima reproduzida, Aristóteles fala das três provas for-
necidas pelo discurso para se produzir o efeito persuasivo, próprioda arte retórica. A primeira diz respeito ao enunciador, a segunda aoenunciatário e a terceira ao próprio discurso, na medida em que é
50
nroduto de um processo constitutivo de verossimilhança. O que o
estagirita já disse em sua Arte retórica é o que a semiótica procura
demonstrar, segundo sua concepção de enunciador e enunciatário en-
quanto construções de imagens do autor e do leitor no próprio texto
com o objetivo de tornar o discurso verossímil.
Essa afirmação de Aristóteles de que a persuasão do ouvinte é obtida
pela capacidade que o discurso tem de nele instaurar a paixão é a base de
nossa proposta para o estudo sobre os livros mais consumidos pelo leitor
brasileiro de 1966 a 2004. A paixão, segundo a semiótica, é um efeito
produzido, em um primeiro momento, por meio do processo de moda-
lização. Assim, a adesão de um leitor ao discurso veiculado por um texto
é resultado da instauração de um querer sobre o ser do enunciatário. De
certa forma, o público que consome determinada obra é impulsionado
por esse querer, que tem por objetivo preencher duas funções: por um
lado, o leitor quer estar informado sobre alguma coisa, o que, no caso
dos livros mais vendidos, corresponderia a estar inserido no universo de
conhecimento dos leitores que lêem o que o mercado editorial publica;
por outro lado, esse movimento de leitura pode-se dar por identificação,
ou seja, o leitor lê aquilo que julga ser sua própria verdade ou, arriscando
mais ainda, aquilo que ele deseja ouvir (ler) para reafirmar sua verdade.
Na medida, porém, em que os actantes são posições enunciativas, ao
se constituir o texto, o actante passa a ser investido de um componente
teniático-figurativo que o torna um ator. Ele corresponde, portanto, ao
enunciador e ao enunciatário do discurso. O enunciador do texto é seu
autor, e o enunciatário, seu leitor. Cabe dizer, porém, que autor e leitorsao entendidos aqui como simulacros e não como seres do mundo real.
Isso significa dizer que o enunciador é a imagem de autor construída
Pelo discurso, da mesma forma que o enunciatário é a imagem deleitor, construída pelo enunciador, com o objetivo de determinar o su-
Jeito para quem ele dirige o seu dizer. É nesse sentido, portanto, que se
^z que o enunciatário é a outra face do sujeito da enunciação, uma vez
9ue dois enunciadores estão manifestos, o Enunciado^ (o enunciador
Propriamente dito) e o Enunciador (o enunciatário).
51
Análises do discurso hoje Os livros mais vendidos...
A semiótica, no entanto, além de reconhecer no texto essas duas
formas de manifestação do autor e do leitor, identifica nesse mesmoobjeto semiótico ainda a realização do narrador, do narratário, do in-terlocutor e do interlocutário. Qual é, porém, a diferença entre eles?
Se recuperarmos a distinção entre totalidade e unidade apresentada noitem anterior, diríamos que enunciador e enunciatário dizem respeito
a totalidades, isto é, remetem ao autor, instância englobante de umaobra, e seu leitor, o sujeito com quem dialoga. Já a distinção entrenarrador e narratário centra-se na unidade, pois o narrador é a formaespecífica como o enunciador pode manifestar-se em um discursoparticular e o narratário é o sujeito particular a quem ele se dirige.
Quando, no interior do texto, o enunciador projeta outros atores, aspersonagens, por exemplo, a quem dá a voz em discurso direto, mate-rializam-se as figuras do interlocutor e do interlocutário.
Retomando uma vez mais a perspectiva retórica de Aristóteles an-teriormente referida, identifica-se em sua proposta que o efeito per-suasivo do discurso assenta-se na inter-relaçao entre o orador e seuauditório. Isso significa admitir que a força persuasiva do discurso re-side na capacidade que o orador deve ter para moldar seu discurso, deacordo com o público a quem ele se dirige. Ao abordar o estilo comoo recurso utilizado pelo orador para exprimir o conteúdo que deseja
transmitir a seu auditório, Aristóteles ([s/d], p. 187) afirma:
[...] há una estilo apropriado a cada gênero e a cada disposição. Entendo
por gênero as diferentes idades: crianças, homem, velho; o sexo: mulher
ou homem; a nação: lacônio ou tessálio. As disposições são as maneiras de
ser que dão à vida tal ou tal caráter, pois a vida dos indivíduos não ostenta
sempre tal ou tal qualidade, devido a urna disposição qualquer. Portanto,
se o orador emprega as palavras que são próprias da disposição, exprimirá
o caráter. Pois um rústico e uma pessoa culta não podem empregar as
mesmas palavras nem da mesma maneira.
Além de levar em consideração o tipo de público a quem se dirige,Aristóteles vai mais longe e afirma que, ao construir sua argumenta-
52
C5O o orador deve "prever as censuras de outrem", pois, assim fazen-do, garantirá ainda o efeito de verossimilhança, que é decisivo para o
estabelecimento da persuasão, na medida em que o ouvinte passa a
acreditar na verdade do que é dito. Nas palavras de Aristóteles: "o que
ele [o orador] diz parece então ser verdade, visto que tem consciênciado que faz" (p. 187).
O que se percebe, então, já nas proposições do estagirita, na Anti-
güidade Clássica, é o caráter constitutivo do enunciatário como ele-
mento presente no ato enunciativo, à maneira como vimos defenden-
do aqui no âmbito da proposta semiótica. Além disso, ao argumentar
sobre o caráter dialógico do discurso, razão pela qual afirma que a
retórica mantém uma relação com a dialética2, Aristóteles afirma o
princípio passional da argumentação presente em todo texto. Uma
vez que, para ele, a defesa do ponto de vista do orador e sua relação
com o auditório baseiam-se na construção de provas, afirma que essas
provas são de três tipos, residindo cada uma delas ora no caráter moral
do orador, ora nas disposições criadas nos ouvintes e ora no próprio
discurso. O caráter passional está presente, portanto, no terceiro tipo
de prova de que se vale o orador/ enunciador. "Obtém-se a persuasão
nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os
juízos que proferimos variam, consoante experimentamos aflição oualegria, amizade ou ódio" (p. 33).
Partindo dessa mesma consideração de Aristóteles, Fiorin (2004b)
ira afirmar que no ato de comunicação estão envolvidos, portanto,
três elementos: o ethos, o pathos e o íogos. O primeiro diz respeito ao
enunciador do discurso, ou, como já foi apontado anteriormente, à
imagem de autor que o texto constrói ao estabelecer o ato enuncia-
tivo. O pathos, por sua vez, diz respeito ao enunciatário, entendido
corno "o estado de espírito do auditório" e "a disposição do sujeito
o sentido em que é empregado o termo "dialética", na Arte retórica, é o de que anseituiçao dos argumentos do discurso se dá por meio do diálogo, uma vez que aJencia do raciocínio lógico está fundamentada em idéias prováveis que, por essaa°. são passíveis de sofrer uma refutação.
53
Análises do discurso hoje
para ser isto ou aquilo", conforme considera Fiorin (2004b, p. 71). O
conceito de pathos tem a ver, então, com a imagem do leitor que se
instaura quando o enunciador constrói o seu dizer, e não com o leitor
real que se dispõe a ler um texto, conforme também já foi apontado
mais acima. Nesse sentido, podemos dizer que um texto é sancionado
positivamente pelo leitor na medida em que seja capaz de provocar a
adesão passional. O logos, por fim, refere-se ao próprio discurso, isto é,
aos recursos de que pode se valer para construir sua argumentação.
4. O ethos do leitor brasileiro contemporâneo
Com o intuito de recuperar os pressupostos da semiótica acima apre-
sentados para o tratamento das questões relativas ao processo de pró-,
dução do texto, valer-nos-emos do corpus desta pesquisa para realizar
um exercício interpretativo dos dados mostrados pela relação das obras
que aparecem na tabela l, em anexo. Ressalte-se, uma vez mais, que
não descreveremos o corpus da pesquisa. Pretendemos aqui reconstituir
o ethos do leitor brasileiro contemporâneo a partir de uma leitura es-
pecífica da referida tabela.
Além disso, ainda neste item, examinaremos mais detidamente as
manifestações discursivas em dois dos livros indicados como os mais li-
dos pelo público brasileiro durante o período de 1966 a 2004, segundo
o mesmo gráfico. Além de tornar mais claro o que foi anteriormente
apresentado, pretendemos mostrar que os conceitos desenvolvidos pela
semiótica para o exame da constituição discursiva do texto não se
resumem a uma simples questão terminológica, como querem fazer
entender aqueles que a acusam de hermetismo teórico.
Observando, portanto, a tabela l, percebe-se que as obras ali elen-
cadas estão distribuídas nas seguintes categorias: auto-ajuda, memória,
ação/ intriga, humor, fantasia e didatismo histórico-filosófico. Enquan-
to na categoria de auto-ajuda aparecem 13 livros mais vendidos, nas
demais a variação do número de obras classificadas é bastante pequena,
duas para memória, para fantasia e para didatismo histórico-filosófico e
54
Os livros mais vendidos...
uma para ação/ intriga e para humor. O que esse texto nos diz é que o
conjunto de hábitos, portanto, o ethos do enunciatário brasileiro é vol-
tado para os livros que abordem questões ligadas mais, por exemplo, a
ternas individuais que a temas sociais. Utilizamos aqui o termo ethos do
enunciatário porque, na medida em que a tabela l registra a preferência
dos leitores contemporâneos brasileiros, o que está nele realizado é o
discurso desse actante coletivo, isto é, ele torna-se um enunciador. Mas
o exame dos dados dessa lista certamente conduzirá ao pathos do enun-
ciatário, na medida em que poderemos perceber quais os sentimentos
que impulsionam o leitor a realizar suas escolhas de leitura.
Em verdade, dos 21 que aparecem na lista, apenas quatro deles per-
tencem ao universo da temática social, que são Olga e Estação Ca-
randiru, da categoria de memória, e O mundo de Sofia e A viagem do
descobrimento, da categoria do didatismo histórico-filosófico, embora
se possa ressaltar o caráter individualizante das duas obras de memória
que aparecem no gráfico em análise.
Pode-se, então, observar, em termos de porcentagens, que 60% dos
livros mais lidos pelo leitor brasileiro contemporâneo pertencem à
categoria de auto-ajuda, enquanto os restantes 40% estão distribuídos
entre as outras cinco categorias levantadas, na seguinte proporção: 10%
didatismo histórico-filosófico, 10% fantasia, 10% memória, 5% ação/intriga e 5% humor.
Levando em consideração a proporção acima referida, verificamos
que, segundo a tabela l em anexo, 17, dentre os livros distribuídos en-
tre as categorias de auto-ajuda, ação/ intriga, fantasia e humor, tratam
de temas mais voltados para questões individuais, enquanto os quatro
°utros, distribuídos entre as categorias de didatismo histórico-filosó-ç
ico e memória, abordam temas mais coletivos. A partir dessa consta-a?ao, portanto, o quadro acima assume a seguinte configuração: 81%
°s textos tratam da temática individual e 19%, da temática coletiva.
vJs livros das categorias de memória e didatismo histórico-filosófi-
°> Olga, Estação Carandiru, O mundo de Sofia e A viagem do descobrimen-
> discutem, respectivamente, a perseguição aos judeus pelo regime
55
Análises do discurso hoje
nazista alemão durante a Segunda Grande Guerra, a condição de vida
dos presidiários do Carandiru em São Paulo, a recomposição didática
da história da filosofia do mundo Ocidental e uma versão do desco-
brimento do Brasil que contradiz a que considerou a descoberta um
acaso. Portanto, o que se conclui é que o leitor brasileiro volta-se para
esse tipo de leitura modalizado pelo querer-saber.
Por outro lado, o que os leitores buscam nos livros das categorias
de ação/ intriga, humor e fantasia refere-se a um saber que não é da
ordem da aquisição de conhecimento, mas sim ao de uma realidade
distinta daquela em que vivem, portanto um deslocamento do tempo
real para o da imaginação.
Dentre os livros da categoria de auto-ajuda, o que se identifica é
uma subdivisão das 17 obras em subcategorias que se manifestam na
seguinte proporção: autoconhecimento, 39%; misticismo e esoterismo,
23%; individualidade e sexualidade, 15%; mundo dos negócios, 15%;
crenças, 8%.
"Autoconhecimento", que envolve cinco diferentes livros, e "mis-
ticismo e esoterismo", com três livros, correspondem a 62% das pre-
ferências dos leitores na categoria de auto-ajuda. "Individualidade e
sexualidade" e "mundo dos negócios", cada uma com dois livros, cor-
respondem, juntas, a 30% das buscas dos leitores, sobrando 8%, com
apenas urna obra, para "crença".
A diferença entre "autoconhecimento" e "misticismo e esoteris-
mo", alérn do fato de o primeiro ser constituído por livros de não-fic-
ção e o segundo, por livros de ficção, configura-se a partir de subtemas
da individualidade. Os livros de "autoconhecimento" oferecem saberes
a partir dos quais os leitores poderão chegar à cura de suas doenças,
conquistar sucesso pessoal e/ou profissional, adquirir maior capaci-
dade comunicativa e atingir um estado pleno de felicidade consigo
mesmos e com as pessoas que os cercam. Os livros de "misticismo e
esoterismo" discutem a crença em elementos não naturais, tais comoenergia das pedras, anjos, bruxas, etc., como forma de adquirir maior
espiritualidade e, conseqüentemente, maior felicidade.
56
Os limos mais vendidos...
Os dois livros do subtema de "individualidade e sexualidade" pro-
curam discutir, a partir de duas posturas diferentes — uma mais passio-
nal outra mais prática — a busca do prazer sexual. As obras relativas a
"inundo dos negócios" dirigem-se a um público que gerencia empresas,
pretendendo mostrar formas de melhor administrar os negócios. O úni-
co livro de "crenças" corresponde à reprodução e à afirmação do pensa-
mento da Igreja Católica como forma de atingir o equilíbrio espiritual.
Percebe-se, portanto, por essa apresentação das listas dos livros mais
consumidos pelo público brasileiro, no período de 1966 a 2004, que
o ethos desse ator chamado leitor constrói-se a partir da afirmação do
individual, da preocupação com as questões que tocam mais especi-
ficamente o bem-estar físico, econômico e espiritual do ser humano.
Pode-se dizer, ainda, que esse leitor é aquele que procura no que lê uma
resposta a problemas de ordem mais prática e particular do que àqueles
que dizem respeito às grandes temáticas coletivas. Se a felicidade ou
o bem-estar chegam a ser propostos para uma coletividade, isso é en-
tendido corno uma soma particular de estados de diferentes sujeitos e
não como um estado coletivo. O exame do ethos desse leitor brasileiro
contemporâneo parece captar um reflexo de nossa sociedade capitalista,
em que o consumo e, em decorrência disso, a estabilidade econômica
são elementos decisivos em seu comportamento. Se se observa a preo-
cupação do leitor com o lado humano e espiritual, isso é pensado em
decorrência de uma adequação ao sistema socioeconômico em que ele
está inserido e não especificamente por causa de urna pré-determina-
Cão. Queremos dizer, com isso, que o leitor brasileiro dos últimos anos
e menos modalizado pelo dever-ser e mais pelo poder-ser.
Para concluir esse exame dos constituintes subjetivos dos livros
eleitos pelos leitores brasileiros, será observada mais especificamente a
configuração discursiva de dois dos textos mais lidos durante o perío-
do da pesquisa. Demonstraremos, a título de exemplo, como se ma-
rufestam os enunciadores nas duas obras escolhidas e em que medida
instaura-se os efeitos de subjetividade e de objetividade em cada umdeles. Nesse sentido, portanto, não estabeleceremos o ethos do enun-
57
Análises do discurso hoje
ciador, mas a forma como ele se projeta no interior do discurso. Paratanto, reproduzimos os seguintes trechos:
(1) O rapaz chamava-se Santiago. Estava começando a escurecer quando
chegou com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto
tinha despencado há muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido
no local que antes abrigava a sacristia.
Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem pela
porta em ruínas, e então colocou algumas tábuas de modo que elas não
pudessem fugir durante a noite. Não haviam (sic) lobos naquela região,
mas certa vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo
o dia seguinte procurando a ovelha desgarrada.
Forrou o chão com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de -
ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, de que precisava co-
meçar a ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram tra-
vesseiros mais confortáveis durante a noite.
Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as estre-
las brilhavam através do teto semidestruído.
"Queria dormir um pouco mais", pensou ele.Tivera o mesmo sonho da se-
mana passada, e outra vez acordara antes do final. (COELHO, 2001, p. 21-22)
(2) A grande desvantagem de ter apenas 28 anos é não ter tido tempo de
acumular dezenas de histórias e "causos" pra contar. Para contar histórias com
essa idade é preciso vasculhar os primeiros anos de vida. E preencher um ca-
pítulo inteiro com quedas de triciclo e primeiros beijos não vai ser fácil.
Porém, quem compra um livro acha que tem o direito de ouvir detalhes
picantes, lados obscuros e impropriedades variadas. Farei o possível para
agradar.
Lendo o livro do lacocca, fiquei com vontade de ser um pobre imigrante
italiano para dar a volta por cima, despejando rancor e bílis em cima do
mundo malvado. Já o Akio Morita me fez querer ter nascido no Oriente
para poder andar a 180 quilômetros por hora com cara de quem está par-
ticipando de uma cerimônia de chá.
58
Os livros mais vendidos...
Enfim, não vai dar para partir de nenhum empurrão ambiental como
estes. Vou ter que me ater a fatos bem menos cinematográficos, e difi-
cilmente o leitor fará uso do lencinho que preparou para as passagens
emotivas. (SEMLER, 1988, p. 15)
O trecho (1) corresponde aos primeiros parágrafos da primei-
ra parte da narrativa de O alquimista, de Paulo Coelho. Nesse trecho
percebe-se que o enunciador manifesta-se na forma de um narrador
que não se materializa por meio do pronome pessoal eu; diferente-
mente, há um sujeito que narra e que se refere aos fatos narrados
segundo a forma da terceira pessoa, o ele. Assim, o sujeito que realiza
determinadas ações expressas pela narrativa, a personagem Santiago, é
um sujeito que não corresponde ao narrador que conta a história; ele é
o sujeito de referência do enunciador.Ao mesmo tempo, o espaço em
que ocorrem os fatos narrados é um espaço do lá, distinto do aqui do
enunciador; o tempo da narrativa é o do então, manifestado lingüistica-
mente pelo pretérito imperfeito e pelo pretérito perfeito 23, segundo
proposta de Fiorin (1996), distinto do agora do enunciador.
O narrador manifestado no enunciado dirige-se a um narratá-
rio, projeção discursiva da imagem que o enunciador constrói de seu
enunciatãho, que, no caso de (1), não é materializado por meio de
um pronome ou substantivo. O narratário, para quem o enunciador se
dirige, corresponde também a uma terceira pessoa, o "ele".
Por meio desses procedimentos discursivos, pode-se perceber o
efeito de objetividade presente nessa narrativa que pretende recons-
truir um espaço mítico próprio das lendas e das fábulas. Essa é a forma
raais adequada para a construção de urna verdade que não pode ser
atribuída a um sujeito individual, mas sim a fatos que parecem, ser
contados por si próprios.
Segundo Fiorin (1996), o pretérito perfeito 1 corresponde à forma verbal que indicaanterioridade em relação ao momento da enunciação, enquanto o pretérito perfeito 2,3 que assinala concomitância em relação a um marco temporaf pretérito.
59
Análises do discurso hoje Os livros mais vendidos...
Quais são os índices apresentados pelo enunciado que remetem à
maneira como a narrativa constrói a imagem de seu narratário? A re-
ferência ao pastor e suas ovelhas é um primeiro índice de remissão ao
contexto dos discursos fabulares.Além disso, há uma expressão manifes-
tada no enunciado que recupera implicitamente uma passagem bíblica:
"ovelha desgarrada". A referência a essa expressão retoma indiretamen-
te a parábola bíblica da volta do filho pródigo. Portanto, infere-se disso
que o sujeito a quem o narrador se dirige é alguém que, espera-se, possa
reconhecer esse interdiscurso; portanto é um destinatário com quem
compartilha um conhecimento sobre o texto bíblico. O ambiente em
que se dá a cena narrada é o interior de uma velha igreja abandonada,
o que também remete ao universo do vocabulário cristão.
Outro elemento presente nessa cena de início da narrativa é o "si-
cômoro". Essa escolha vocabular do sujeito da narrativa pode ter como
propósito chamar a atenção do narratário para esse objeto, cujo nome
é incomum, ou então impressionar pela erudição, isto é, pela constru-
ção da imagem de um sujeito narrador sábio, pois ao invés de usar o
termo mais popular, "figueira", faz uso da forma mais científica, pois
remete ao nome de classificação da planta Jíotf sycomoms. Acreditamos
que essa segunda hipótese esteja, de antemão, descartada, já que um
narrador que pretende mostrar erudição não cometeria um erro de
concordância no parágrafo logo abaixo, ao construir uma frase com o
verbo "haver". Parece, então, que o uso do termo desconhecido serve
para apontar algo para o narratário, porque o final da narrativa irá reto-
mar exatamente essa mesma igreja abandonada e essa mesma figueira
que aparecem na cena de abertura, pois o tesouro que o pastor queria
encontrar em um lugar tão distante estava escondido ali, naquele mes-
mo lugar, debaixo daquela figueira. Outra característica da tabula ouda parábola é sua circularidade narrativa.
Um elemento que poderia ser chamado metalingüístico é a refe-
rência que a narrativa faz ao próprio livro, enquanto objeto material,
quando, no contexto da história, o herói é um leitor que usa o livro
corno travesseiro para dormir. É uma imagem um tanto esdrúxula, mas
60
está manifestada no texto. Por fim, mais um índice da imagem que o
narrador faz de seu narratário pode ser detectado no último período
Jo último parágrafo acima reproduzido: "Tivera o mesmo sonho da
semana passada, e outra vez acordara antes do final." À medida que a
história vai sendo narrada, percebe-se que o sonho é um elemento
mítico, pois o que Santiago sonhava repetidamente era exatamente
um aviso de uma força oculta que o chamava para sua "Lenda Pessoal",
grafada em maiúsculas no próprio texto.
O narratário construído, portanto, pelo texto de Paulo Coelho, é
um sujeito de discurso que manifesta um pathos de enunciatário com
quem o ethos do enunciador dialoga. O leitor da obra de Paulo Coe-
lho identifica-se com esse ethos e, por esse motivo, escolhe ler suas
obras. Em termos de uma narrativização do discurso, diríamos que o
enunciatário aceita o contrato proposto pelo enunciador, na medida
em que assume como seus os valores manifestados na narrativa, o que
constitui uma sanção positiva do fazer do enunciador.
O trecho (2), que corresponde aos primeiros parágrafos do pri-
meiro capítulo, intitulado "Memórias de um velhinho de 28 anos", do
livro Virando a própria mesa, de Ricardo Semler, apresenta, por sua vez,
um enunciador que se projeta no enunciado na forma de uni narrador
em primeira pessoa. O enunciado é fruto da manifestação de urn eu
que conta determinados fatos em que está envolvido. O espaço do
enunciado é o espaço do aqui, aquele em que se coloca presentemente
o enunciador, e o tempo, por sua vez, é o do agora. A partir de seu pre-
sente ele pode referir-se a fatos anteriores, concomitantes ou posterio-
res. Em (2) podemos constatar o uso do presente e do futuro do pre-
sente para indicar, respectivamente, a concomitância e a posterioridade
relativas ao tempo da enunciação. Ao reconstituir suas experiências emenipresas brasileiras, o enunciador utilizar-se-á, também, da forma do
pretérito perfeito l, segundo proposta de Fiorin (1996), para indicar aanterioridade em relação ao tempo da enunciação.
Além de ser a abertura da narrativa, momento em que o narradorapresenta-se para o narratário, quando se instaura, portanto, o contra-
Análises do discurso hoje
to entre os dois sujeitos, o que se pode observar, ainda em (2), é queo narratário está manifestado no enunciado por meio do sintagma
oracional "quem compra um livro". Ao construir essa expressão, o dis-
curso materializa uma figura de leitor e, no caso do texto em questão,
chega a fazer referência à própria crença desse sujeito:"[...] acha que
tem o direito de ouvir detalhes picantes, lados obscuros e improprie-dades variadas." Numa forma dialógica, o narrador responde à crença
do narratário com o enunciado "Farei o possível para agradar", que serefere à sua própria performance enquanto ator responsável por deter-
minados acontecimentos que configuram a história narrada no livro.
Ao se referir a outros dois textos de memórias que se identificamcom a subcategoria de "mundo dos negócios" em que esse texto foi
por nós classificado, o narrador remete a um universo de conhecimento.de seu narratário, o que, pela intertextualidade estabelecida, deve ser a
de um homem de negócios também. Ao se reportar ao livro de lacoccaem co-autoria comWilliam Novak, lacocca. Uma autobiografia, que,jun-tamente com ele, aparece na lista dos mais vendidos da década de 1980,o narrador instaura uma identidade temática, mas aponta uma diferença
de enfoque, ao afirmar que o dizer de lacocca está carregado de "rancore bílis em cima do mundo malvado". As escolhas lexicais do narradorpara caracterizar seu concorrente são as de uma pessoa que usa uma
linguagem mais descontraída, menos formal, traço que também remeteà identificação do narrador com seu narratário durante o desenrolar detoda a história. Sua referência à obra de Akio Morita, Made inJapan.Akío
Monta e a Sony, também bastante vendida na década de 1980, emboranão apareça no grafico l, é outra forma de identificação temática e dedistinção de enfoque, quando se refere ao comportamento de playboy do
autor japonês, em uma construção como: "andar a 180 quilômetros porhora com cara de quem está participando de uma cerimônia de chá".Akio Morita foi um dos criadores da Sony, responsável pelo lançamentomundial de produtos de alta tecnologia, que se tornou um símbolo doJapão moderno. Sua autobiografia é considerada um clássico da litera-tura mundial de business que, ao mesmo tempo, veicula a idéia de que aforça de vontade é a base de uma carreira bem-sucedida.
62
Os livros mais vendidos...
por meio dessas referências, o narrador constrói sua identidade, que
consiste em se afirmar, ao mesmo tempo, como um jovem e como um
jnpresário brasileiro, características que podem ser identificadas em
seu próprio discurso.iSTo último parágrafo do trecho de Semler acima reproduzido, o
narratário é novamente materializado no enunciado, agora por meio
do substantivo "leitor": "Vou ter que me ater a fatos bem menos cine-
matográficos, e dificilmente o leitor fará uso do lencinho que preparou
para as passagens emotivas" (grifo nosso). E essa irônica referência ao
leitor configura-o por meio do estereótipo de leitor de romances, do
qual o dizer do narrador quer se distanciar.
Curiosamente, é preciso apontar, o livro de Ricardo Semler não
pretende ser uma narrativa ficcional como o de Paulo Coelho. A pro-
posta de Virando a própria mesa é de produzir uma análise da relação
empregado/ patrão em empresas brasileiras, para defender a idéia de
que a postura de um relacionamento mais dinâmico e mais aberto
por parte do empresário é economicamente mais eficiente do que a
do empresário que se distancia de seu operário, porque dele desconfia
sempre. Talvez o sucesso desse livro venha exatamente dessa caracte-
rística, qual seja, a de abordar subjetivamente um tema que, aparente-
mente, merece um tratamento mais objetivo. Seu tom de "memória-
crítica" acaba criando uma empatia com seu enunciatário, que passa
a acreditar no que lê, pois interpreta o que ali é colocado segundo
°s padrões da "experiência" (porque o narrador fala do lugar de um
sujeito que viveu as situações de relação patrão/ empregado em em-
presas) e da "sinceridade" (porque o narrador atribui a seu relato um
tom de descontraçao e de espontaneidade).
Embora não tenhamos esgotado a discussão sobre a questão teó-rica da semiótica em foco neste trabalho, pudemos mostrar as bases a
partir das quais propomos construir o perfil do leitor brasileiro entrea década de 1960 e a de 2000. A constituição desse perfil organiza-
se, então, a partir do exame das formas de configuração do pathos doeruinciatãrio em relação a seu outro, o ethos do enunciador.
Análises do discurso hoje
Compreendida a constituição do ethos corno urna imagem do au-
tor, isto é, "um autor discursivo, um autor implícito" (Fiorin, 2004b,
p. 120) e a do pathos "como a imagem que o enuncíador tem do seu
auditório" (Fiorin, 2004a, p. 71), verificamos como a conformação do
leitor brasileiro contemporâneo está manifestada nas listas dos livros
mais vendidos no Brasil durante o período de 1966 a 2004. Nesse
sentido, porém, os conceitos de ethos e de pathos são intercambíáveis.
Quando examinamos como os textos que aparecem nas listas dos mais
vendidos constituem seus leitores, focalizamos o pathos; quando, por
outro lado, observamos o perfil que as listas, entendidas como um
discurso, constróem, do leitor brasileiro contemporâneo, evidenciamos
seu ethos.
5. Considerações finais
O que o exame do gráfico l e da tabela l revela, conforme procura-
mos mostrar nos itens anteriores, é a grande incidência dos textos de
auto-ajuda na preferência do leitor brasileiro contemporâneo. Dessa
forma, o que se pode concluir é que a alta porcentagem desse tipo
de texto nas escolhas do leitor deve-se ao fato de que, na sociedade de
consumo dos dias de hoje, acentua-se o individualismo em detri-
mento do coletivo. Nesse sentido, portanto, a presença do traço da
individualidade é uma característica central na constituição do ethosdesse leitor.
Segundo alguns estudos que trataram das questões das sociedades
modernas, ou pós-modernas, o crescimento do individualismo leva os
sujeitos a um sentimento de falta. Como os princípios das instituições
e da tradição religiosa são cada vez mais questionados e colocados em
xeque, os indivíduos buscam uma alternativa para o que se poderia
chamar seu "estado de crença". Como não pode mais apoiar-se nas
certezas da tradição, o homem contemporâneo passa a apreender a
realidade que o cerca em função do segredo, do engodo, do mistério,
do incompreensível, etc. Esse destronamento dos valores será, então,
64
Os livros mais vendidos...
responsável pela perda de sentido das grandes narrativas e, conseqüen-
temente, o impulsionador das narrativas místicas, esotéricas e das di-
ferentes situações propiciadoras da auto-ajuda, que não se limitam aos
livros, pois essa perda se manifesta em outros meios de comunicação.
Nesse sentido, portanto, o livro é um bem de consumo, da mesma
forma que a temática de que trata também o é.
Para retomar a discussão sobre as noções de totalidade e de unidade
com que iniciamos este trabalho, poderíamos dizer que a caracterís-
tica do individualismo que reconhecemos como constitutiva do ethos
do leitor brasileiro contemporâneo não aponta, porém, para o ünus
brondaliano, mas sim para o conceito da totalidade em que podem
ser reconhecidas cada uma das partes do conjunto, o que correspon-
de à concepção do pronome latino omnis apontada por Brondal. Essa
parece ser a posição de Fiorin (1997), quando, ao analisar a diferença
entre íõtus e omnis na cultura contemporânea, afirma que "a diversida-
de caracteriza o fõtus, pois ganha ela sentido pela articulação com uma
totalidade. Já a característica do omnis é a fragmentação das partes que
a compõem. Ora, a cultura contemporânea nega um processo de tota-
lização e constrói, se me permitem o bárbaro neologismo, um processo
de omnização, de universalização".
Nesse sentido, o que propomos, então, é que o esquema utilizado
por Discini (2003) para explicar o conceito de totalidade ligado à
noção de estilo, tal como foi apresentado no item l deste trabalho,
deva sofrer uma modificação e, dessa forma, explicar em que medida
a totalidade passa a ser entendida nesse processo de caracterização do
leitor contemporâneo brasileiro, que é um consumidor das obras que
discutem questões não mais coletivas, mas individuais. O quadrado
serniótico poderia, então, apresentar-se da seguinte forma:
Tp (omnis)
lUp (nemo)
65
Análises do discurso hoje
A totalidade integral (totus) é negada, constituindo-se como unida-
de parcial (nêmo), conceito complementar da totalidade parcial (omnis).
Dessa forma, portanto, poderíamos caracterizar o processo de "omni-
zação", de universalização, apontado por Fiorin (1997).
Referências
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 16. ed.Trad. Antônio Pinto
de Carvalho. Rio de Janeiro:Tecnoprint, [s/d].
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo:
Ática, 1990.
BENVEN1STE, Émile. Problemas de lingüística geral. Trad. Maria da
Glória Novak e Luiza Néri. São Paulo: Nacional/EDUSP, 1976.
BRONDAL.Viggo."Omnis et totus". ln:Actes sétniotiques. Documents.
VIII, 72,1986. p. 11-18.
DISCINI, Norma. O estilo nos textos. História em quadrinhos, mídia, lite-
ratura. São Paulo: Contexto, 2003.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciarão. As categorias de pessoa,
espaço e tempo. São Paulo: Ática, (Ensaios 144), 1996.
. Reflexões para o estabelecimento de uma política para as huma-
nidades. Texto da conferência apresentada durante o XII Encontro
Nacional da ANPOLL, realizado na UNICAMP, em Campinas, SP,
de 28 a 30 de maio de 1997 — http://www.unicamp.br/-anpoll/
boleconf.html, consultado em 28/08/07.
."O ethos do enuncidador". In: CORTINA,Arnaldo;MAR-
CHEZAN, Renata Coelho (orgs.). Razões e sensibilidades. A semió-
tica em foco. São Paulo: Laboratório Editorial/Cultura Acadêmica,
2004a. (Série Trilhas Lingüísticas, v. 6), p. 117-138.
. ''O pathcs do enunciatário". In: Alfa. Revista de Lingüís-
tica, v. 48, n. 2. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2004b, p.
69-78.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica e ciências sociais. Trad. Álvaro Lo-
rencini e Sandra Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1981.
t; h
Os livros mais vendidos...
Du sens II. Paris: Seuil, 1983.
"Analyse du contenu. Comment definir lês indéfinis?" In:
Actes sétniotiques. Documents.VIII, 72, 1986, p. 19-33.
; COURTÉSJoseph. Dicionário de semiótica.Trud.Alceu Dias
Lima et ai. São Paulo: Cultrix, [s/d],
Anexos
59
4038
34 34 33 33 3130 30 29 29 28
2624 24 24
23 23 22 22
II 11n a> o (j
l
m f Ç
i?li
TJ O
sl ~° ili
O -g •= g .= » £Q
o
S3Q C &J2 J=^ d í* s= T;
I e - s í 3 2 ; «|i l§ u f*Fi_ "0~ E ^2
35 13 S£:I3
i 05-^
Gráfico l - Livros mais vendidos no Brasil entre 1966 e 2004
1. Auto-ajuda
Nome do livro Nome do autor
1 • 1 . Autoconhe cimento
(8) Você pode curar sua vida
P) O sucesso não ocorre por acaso
(13) Inteligência emocional
Oí>) Comunicação global
_(20)_/1 me da felicidade
Louise Hay
Lair Ribeiro
Daniel Goleman
Lair Ribeiro
Dalai Lama/Howard Cuder
Década
1990
1990
1990
1990
2000
J^2. Misticismo e esoterismo
67
Análises do discurso hoje
(1) O alquimista
(5) Brida
(1 1} A profecia celestina
Paulo Coelho
Paulo Coelho
James Redfield
1990
1990
1990
1 .3. Individualidade e sexualidade
(6) A insustentável leveza do ser
(18) 203 maneiras de enlouquecer um homem na cama
Milan Kundera
Olivia St. Claire
1980
1990
1.4. Mundo dos negócios
(2) Virando a própria mesa
(17) íacoaa. Uma autobiografia
Ricardo Semler
Lee lacocca/William Novak
1980/90
1980
1 .5. Crenças
(19) Minutos de sabedoria Carlos Torres Pastorino 1990
2. Memória
Nome do livro
(12) C%
(21) Estação Carandím
Nome do autor
Fernando Moraes
DraurioVarella
Década
1980
2000
3. Ação e intriga
Nome do livro
(10) Operação cavalo de Tróia
Nome do autor Década
J.J.Benkez 1980
4. Humor
Nome do livro
(4) As mentiras que os homens contam
Nome do autor
Luis Fernando Verissinio
Década
2000
5. Fantasia
Nome do livro
(7) As brumas deAvalon
(14) Harry Potler e a pedra filosofal
Nome do autor
Marion Zimmer Bradley
J. K. Rowling
Década
1980
2000
6. Didatismo histórico-fílosófico
Nome do livro
(3) O mundo de Sofia
(15) A viagem do descobrimento
Nome do autor
Jostein Gaarder
Eduardo Bueno
Década
1990
1990
Tabela l — Distribuição dos livros mais vendidos em diferentes categorias, segundo
a ordem em que aparecem no gráfico ?
DIZER (E NÃO DIZER) YVESBONNEFOY1
Anne Hénault (Universidade de Paris IV- Sorbonne)
Muitos textos de Yves Bonnefoy (e principalmente as monografias
que ele consagrou a um certo número de autores2) podem contribuir
para o progresso dos conhecimentos nas ciências da linguagem, e, mais
especificamente, na semiótica. Sabe-se que essa disciplina exclui de
suas problemáticas a dimensão psicológica. Ela está também muito dis-
tante dos questionamentos naturais que suscitariam a força de emparia
que poderia vir desses textos e o fato de eles provocarem, em cada
leitor, a sensação de que foram para ele concebidos. A semiótica não
pode se contentar em caracterizar tais atos de linguagem como metexis
68
1 O presente artigo é resultado da tradução da segunda parte de uma comunicaçãointitulada:"Dire (et ne pás dire)Yves Bonnefoy", que foi apresentada pela autora numdos famosos Colóquios de Cerisy (França), realizado de 23 a 30 de agosto de 2006.Talcolóquio teve como tema: "Yves Bonnefoy, poesia, pesquisa e conhecimentos". Cabe
esclarecer que Yves Bonnefoy (nascido em 24 de junho de 1923) é um nome de desta-que na França. Atua no campo da poesia contemporânea, escreve como ensaísta, exerceatividades editoriais no âmbito das ciências humanas e produz trabalhos na área de his-tória da arte, sem contar seus ensinamentos no renomado Collège de France. (N. O.)2 Refiro-me essencialmente ao Prefacio do catálogo Chillida (Paris: Galerie Lelong,1990, p- 3-18), a Giacotnett. Biographie â'une oeuvre (1991); a Remarques sur lê âessin (Pa-ris: Mercure de France, 1993); a Goya (Bordeaux: William Blake & Co. Edit, 2006) etambém aos diferences estudos consagrados a Baudekire, entre os quais os que foramPrimeiramente apresentados na Bibliothèque Nationale de France (Conferência DelD"ca, 2000 e 2003): Baudelaire: Ia tentation de 1'oubli (BNF, 2000) e Lê poete et "leflot
dês multitudes" (BNF, 2003).
Análises do discurso hoje
(presença calorosa e assumida, numa identificação do "eu" com o Ou-
tro, no mais profundo e no mais angustiante de sua condição mortal)
em oposição a mimesis (pura "representação" distanciada, marcada pelanegatividade inerente à linguagem3).
A semiótica, quando começou a se interessar pelo sensível, deu-se
por objetivo abordar e tratar a expressão das paixões, domínio de elei-
ção da psicologia, por meio de cálculos de sentido mais formais, feitos
a partir de análises (estritamente gramaticais) do plano da expressão
dos textos. O texto, qualquer que seja o significante (verbal, pictural,
musical, fotográfico, etc.) é uni espaço fechado, do qual a semiótica se
proíbe sair e do qual ela não deve deixar de lado nenhum elemento
constitutivo. É apenas a esse preço que se pode começar a situar os
esquematisníos de expressão mais profundos e, portanto, mais signifi-.cativos.
Nessa perspectiva, diferentes momentos de expressão em que a
escrita chega a guardar algumas marcas, insignificadas, mas indiscuti-
velmente presentes, de uma intensidade emocional sentida4, puderam
começar a ser descritos, de modo sistemático e segundo procedimen-
tos explícitos. Até então a lingüística considerava que essas marcas só
eram perceptíveis no oral, na presença efetiva de um locutor empre-
gando unia linguagem corporal espontânea (feita de mímicas, de ges-
tos ou de variações do tom e da cadência da voz), que acompanhava
sua linguagem puramente'verbal. Em contrapartida, a semiótica pôde
formular a hipótese de que seria preciso procurar marcas também na
escrita (ainda que fossem de outra natureza). Foi nesse espírito que se
iniciou a observação de tais modulações da escrita, modulações an-tropológicas e não estilísticas, vistas, por um lado, em documentos de
arquivos do século XVII (bastante discretos e pouco eloqüentes sobrea real experiência vivida dos enunciadores), e, por outro lado, apreen-
3 O jargão semiótica emprega aqui a metáfora mecânica da"debreagem enunciativa".4 E, de algum modo, conservada e sempre presente no discurso, a um ponto tal quepode contagiar pela sua presença.
70
Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy
em momentos de expressão pessoal de um dos primeiros textos
publicados por Freud.Essas duas séries tão diferentes de documentos demonstraram que
é possível que a escrita traga a marca de uma comunicação absolu-
tamente primitiva, quase corporal, por parte do enunciador; e pu-
dernos assim começar a explicar a eficiência de tais marcas, no que
diz respeito ao contágio emocional3. São precisamente essas tentativas
anteriores que devem nos incitar hoje a ir buscar, nas publicações de
Yves Bonnefoy — descritas por todos como portadoras de uma forte
presença emocional e, portanto, perfeitamente empáticas —, índices
ou verificações da gramática profunda do discurso apaixonado (isto
é, o discurso realmente carregado de afetividade e de discriminações
sensoriais e sensíveis, registradas de tal modo que parecessem ter sido
realmente vividas).Para isso, é necessário mudar de papel e, ao invés de procurar não
dizer o que se apropria da substancia do conteúdo dos escritos de Yves
Bonnefoy, deve-se lançar à comunidade dos pesquisadores em ciências
da linguagem um convite para explicitar radicalmente o que caracteri-
za z forma do conteúdo desses escritos empáticos. Trata-se de uma tarefa
de longo fôlego, cujo programa podemos esboçar apenas sumariamen-
te. Dois textos, sobretudo, vão nos interessar aqui, Giacometti e Goyaft;mas antes de começar a abordá-los, seria útil lembrar as grandes etapas
das recentes pesquisas nesse campo. Isso permitiria contextualizar os
questionamentos aos quais devem ser submetidas as supracitadas mo-
nografias.Se é verdade que a primeira semiótica (1964-1979) deve grande
parte de suas descobertas iniciais em narratologia à desconsideração
Trata-se de nossa obra Lê Pouvoir comme passion (1994), consagrada aos jovens "tecno-cratas" da época de Luís XIII; e de um artigo que se refere ao caso de Miss Lucy, nosEstudos sobre a histeria em Freud (ver Anne Hénault, 2002, p. 255-276).
Nessa mesma perspectiva, eu gostaria de questionar também o pequeno texto incan-descente que L'Improbab!e consagra ao biógrafo de Sade, descobridor da correspon-dência do autor dejusttne: Gilbert Lely.
11
Análises do discurso hoje
dos componentes psicológicos da personagem, em benefício de uma
abordagem puramente relacionai e sintáxica da trama narrativa das
histórias, também é verdade que, desde os anos 1977-1980, pesquisas
inspiradas na fenomenologia foram feitas em direção às "paixões" pro-
priamente ditas. Na época, a palavra não era "politicamente correta", e
a Escola de Paris foi intimada a explicar essa escolha. Ela respondeu em
termos bastante cartesianos que, se a narratologia primeira tinha che-
gado a explicar a maneira pela qual a linguagem apreende, fragmenta,
discretiza de maneira regular, e figura esquematicamente os processos-
chave através da Ação humana (assim como as transformações que dela
resultam), a semiótica da Paixão teria que descrever a maneira pela qual
a linguagem apreende e figura realmente (isto é, universalmente, fora
dos procedimentos oferecidos pela retórica que permanecem relativos
a uma dada cultura) as modulações passionais, as sensações internas e
contínuas provenientes dos humores e dos estados de espírito que são
a transcrição primeira do que o sujeito humano sofre e somatiza, a
maior parte das vezes fora da linguagem. Nessa problemática /Paixão/
torna-se o termo a ser oposto categoricamente a /Ação/.
Sempre em conseqüência de preocupações com procedimentos e
métodos, os dez primeiros anos dessa pesquisa coletiva foram consa-
grados à análise de /paixões-lexemas/ como a cólera, a nostalgia, a ava-
reza, cada uma aparecendo como o roteiro de um pequeno romance
estereotipado. Essa pesquisa só pôde começar a se libertar do entra-
ve lexemático quando foi possível reunir um número suficiente de
documentos (no caso, não escritos literários, mas arquivos políticos
autênticos do ano de 1622) para mostrar que não há necessidade de
encontrar, no discurso escrito, uma temática passional explícita (e me-
nos ainda seu léxico) para poder provar que um texto foi escrito sob
o império da paixão. O processamento cruzado de todos esses textos
(aparentemente frios e totalmente indenes da menor expressão inten-
cional do nível passional) provou que existia, em sua trama, o aflorar
do sentir que realmente constituía o seu sentido latente e eficaz. Para
textos desse gênero, cuja existência talvez fosse esperada por ele, mas
72
Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy
que ele não pudera descobrir (referimo-nos aqui a textos isentos de
qualquer pretensão retórica ou literária), A.J. Greimas tinha forjado a
expressão tão pesada quanto saborosa de "textos perfumados por odo-
res proprioceptivos": textos nos quais transpirava de algum modo o
cheiro do corpo de uma pessoa concreta e particular, segundo a espe-
cificidade de seus ritmos vitais — textos habitados por um corpo real
e por urna sensibilidade ainda mais eficiente e decifrável ao procurar
tão bem se dissimular.A dimensão do sentir7 consiste nessa invasão do passional, ou pelo
menos do emocional e do somático, num discurso que não procura
dizer tal dimensão, mas que, na realidade, se vê obrigado a exprimi-la,
por nela confiar inteiramente: como esquema de apreciação da situa-
ção, de ajustamento ao real e, finalmente, de decisão axiológica para se
situar em seu ârnago. O sentir, ao que parece, só pode dizer a verdade:
ele é cúmplice dos arcanos da vida.
A dimensão do sentir seria, então, na escrita, da mesma ordem que
esse "supra-segmental" de que falam os lingüistas para o oral: um conjun-
to de sinais quase corporais, postos em funcionamento de modo instin-
tivo, fracamente controlados, mas altamente significativos e quase sempre
autênticos, a ponto de fundar testes de veridicção realmente sérios.
Os desenvolvimentos da semiótica são fortemente limitados pela
aparelhagem gnosiológica, teórica e metodológica que atesta sua ob-
jetividade. É por isso que essa primeira pesquisa sobre o sentir, que
resultou na obra Lê Pouvoir comme passion é ainda bastante tímida — e
provavelmente decepcionante — se a compararmos às imensas mono-
grafias que Yves Bonnefoy consagrou, de fato, ao sentir de Giacomettie de Goya em relação às etapas de construção de suas verdades e de
suas obras. Porém, penso que esses escritos, mais livres que os nossos,
O termo em francês é "'éprouver\ que aqui optamos por traduzir como "sentir". (N.O.)
73
Análises do discurso hoje
são susceptíveis de solucionar alguns impasses nos quais a semiótica,
em seus desenvolvimentos recentes8, correu o risco de se fechar.
Nas monografias citadas (e em muitas outras, certamente), Yves
Bonnefoy aborda profundamente a observação e a descrição de um
dos funcionamentos mais enigmáticos e mais cruciais do sentir: o que
aparece como uma das chaves, talvez mesmo a chave da inteligência
soberana, ativa em todas as grandes sínteses — sejam elas da ordem da
ciência, da arte ou da decisão política e estratégica (no sentido mais
lato). Essas sínteses parecem só poder intervir quando todas as faculda-
des de um ser que sente (espírito conceptual e corpo próprio, cérebro
direito e cérebro esquerdo, pensamento conceituai e estar-no-mundo
global, ou presença) estão mobilizadas na extrema atenção de uma ta-
refa capital a cumprir. Por suas monografias,Yves Bonnefoy tornou-se .
capaz de observar e de mostrar o modo como se operam essas sínteses,
esses surgimentos de sentido social que são as grandes obras (ou também as
grandes decisões políticas). Fica bem evidente que é nesse ponto que
deveríamos procurar as mais importantes esquematizações do devir,
e não apenas nos termos — no fundo sadianos — da circulação dos
objetos de valor entre sujeitos, antes de tudo invejosos9.
O verdadeiro devir reside nesses surgimentos, cuja emergência Yves
Bonnefoy se aplica a descrever em termos mais precisos, mais bem do-
cumentados e irrefutáveis. Assim, ele mostra como situar e designar o
processo de emergência10, o suplemento qualificativo ou ontológico que
toda verdadeira criação representa. Este me parece ser um ponto fun-
damental, a ser destacado no colóquio Poesia e Saberes: as "Biografias das
Obras", às quais Yves Bonnefoy se dedicou nesses últimos vinte anos
e que devem ser incorporadas ao dossiê de um estudo sistemático da
8 Ou seja, desde a morte de Creimas em 1992 (ou melhor, desde 1986, segundo alguns
membros da Escola de Paris, pois os últimos anos da vida do grande pesquisador foramtomados por uma longa doença).9 É dessa maneira esclarecedora, mas mínima, que o devir foi inicialmente tratado pela
semiótica da ação; e, acé o momento, a semiótica das paixões não o elaborou melhor.10 Lembro aqui os trabalhos mais recentes de John Searle.
74
Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy
imaginação cientifica (lembro particularmente aqui os trabalhos de Gerald
Holton).Constataremos, além disso, que, graças a essas pesquisas e através de
verificações concretas, as idéias de Yves Bonnefoy podem juntar-se à
etapa final do pensamento de Merleau-Ponty, ou seja, às conclusões
a que esse filósofo chegou em La prose du monde, Signes, Lê visible et
rinvisiUe, ou em seus Cursos no Collège de France. O esclarecimento
de certos momentos de verdade dos artistas que Bonnefoy estuda vai
encontrar eco nas palavras do filósofo:"Para a consciência, não há dife-
rença entre o ato de se atingir e o ato de se exprimir" (MERLEAU-PONTI,
1969, p. 26), ou ainda:4'Não somos nós que falamos, é a verdade que se
fala no fundo da palavra." (MERLEAU-PONTI, 1964, p. 239).
As grandes biografias de obras elaboradas porYves Bonnefoy ofere-
cem um corpus11 inesperado para a pesquisa no campo da semiótica das
paixões, particularmente no que diz respeito ao sentir da criação, que
deveria ser analisado paralelamente com o sentir da ambição ou com
o sentir do "amor romântico" (segundo a expressão ern voga hoje em
dia nas ciências humanas; os biólogos falam de "infatuação"). No que
concerne ao sentir da criação, o Giacometti e o Goya se esclarecem mu-
tuamente. Ambos se desenvolvem segundo urn esquema narrativo que
respeita a ordem cronológica, como uma espécie de roteiro em que os
elementos cruciais de uma vida, na medida em que podem ser conhe-
cidos, funcionam como revelações, provadas visualmente (no caso das
artes plásticas) por avanços consideráveis, tanto na ordem da expressão
quanto na ordem do conhecimento de si.
Poder-se-á pensar talvez que "o filme" seja ainda mais surpreenden-
te no Goya, tão condensado e tão narrativo. Três provas picturais maio-
res esclarecem a procura de si mesmo como descoberta do verdadeiro:
1) O primeiro auto-retrato pintado após o grave problema de saúde
do artista e o início da sua experiência de surdez em 1.795-
1797.
75
Análises do discurso hoje
2) O inacreditável ex-voto dedicado às qualidades de compaixão
do Doutor Arieta no quadro de 1820: Goya soigné par lê âocteur
Arieta [Goya tratado pelo Doutor Arieta], pintado logo após a
segunda doença (gravíssima) de Goya e usado na capa da obra.
3) Enfim, Lê Chien [O Cão], uma das mais importantes "pintu-
ras negras" da Quinta dei Sordo, que Yves Bonnefoy analisa de
modo verdadeiramente semiótico e demonstrativo, abordandosucessivamente12:
- o nível dos significantes, com um estudo das variações na opo-
sição primeiro plano versus plano de fundo, no universo da
pintura clássica, assim como nas primeiras obras do pintor,menos expressivas;
— e o nível dos significados,, com uma segunda categoria explica- -
tiva, tomando como argumento a ausência ou a presença da
relação sujeito/ objeto (investida do semantismo predador/presa).
Ao final dessas três etapas, cada uma apoiada numa prova material
incontestável, Yves Bonnefoy depreende o sentido da progressão de
Goya na conquista de sua expressão própria: com essas três obras (às
quais seria conveniente acrescentar Caprices [Caprichos] e o conjunto
das pinturas negras) passamos do "quase nada" dos clichês idílicos das
tapeçarias ao "absolutamente tudo" do Ser como presença.
Para progredir no conhecimento semiótico de urna gramática pro-
funda do sentir [de l'éprouver\t seria conveniente comparar termo a
termo as duas biografias e tentar, de algum modo, uma montagem
paralela dos dois "filmes". O conjunto de Giacometti e, sobretudo, as
páginas 353-412 são escandidas de uma maneira comparável à que
acabamos de evocar, por revelações eruditas que se vêem imediata-
12 Consultar sobre esse método o conjunto dos trabalhos de Jean-Marie Flocb, publi-cados pela Presse Universitaire de France, especialmente os três estudos retomados porAnne Hénault (org.) Questions de Sémiologie, p. 103-169.
76
Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy
inente transcritas e provadas por modificações radicais de expressão:
estas se traduzem em obras inesperadas, rompendo com as formas ex-
pressivas precedentes. Através de suas análises,Yves Bonnefoy teria sido
levado a encontrar as leis quase matemáticas de uma expressão rigoro-
sa, como elas se exprimem em Leíbniz (1942, p. 216):"Uma coisa ex-
prime outra (em minha linguagem) quando há uma relação constante
e regulada entre o que se pode dizer de uma e de outra. É assim que
uma projeção de perspectiva exprime o seu geometral." Não se pode
exprimir de forma melhor a relação necessária que a ciência (matemá-
tica, física ou química), mas também o conhecimento artístico, registra
entre um fato verificado e sua expressão.A temática maior desse encadeamento de revelações vitais em Goya
é a de uma experiência da compaixão que consegue progressivamente
levar o pintor ao seu ser verdadeiro, todo feito de humanidade. Ao
contrário, o encaminhamento iniciático de Giacometti compreende,
em primeiro lugar, a aceitação de uma disponibilidade em relação à in-
fluência do acaso em sua vida e ern sua criação13 (Cotnposition avec trois
figures et une tête [Composição com três figuras e uma cabeça], 1950);em segundo lugar, inextricavelmente ligado ao primeiro, a aceitação
do amor do Outro em sua finitude e em seu caráter mortal (seu "O
que jamais será visto duas vezes"): dom, sentido de partilha, confiança
invadem o humor de Giacometti e conduzem sua arte ao apogeu14.
Em terceiro lugar, a experiência se amplia e se formula na própria
linguagem da mística, enquanto sua expressão artística se revela corno
uma espécie de saber cumulativo cientificamente verdadeiro15.
Sem poder imaginar apresentar atualmente uma descoberta semió-
tica consolidada, decorrente dessas montagens paralelas, pode-se ao
menos reter um primeiro esquema, extraído desses dois percursos ini-
ciáticos da criação artística maior; pois esses encaminhamentos, que
13 Giacometti, p. 349-353.14 Ibidetn, p. 369-372.15 Stidetn, p. 382-390
77
Análises do discurso hoje
diferem tematicamente na sua experiência de vida singular, são, noentanto, semelhantes em sua síntese axiológica:
1) Uma fidelidade absoluta, a qualquer preço, ligada à sua própriaverdade16.
2) Uma aptidão para sair de seu "egotismo" e viver a transitividade(a interação com o Outro).
3) Uma verdadeira permeabilidade aos grandes acontecimentos da
vida pessoal (importância determinante dos problemas de saú-
de em ambos os casos) e da vida coletiva (guerra, decadência
política para Goya; acasos objetivos, sofrimentos e encontrosdecisivos na Paris daqueles anos para Giacometti).
4) Uma capacidade para ir até o fim do que é enfrentado no mo-mento.
5) Uma disponibilidade ao surgimento do desejo de realizar o que,
até então impensável, torna-se de repente indispensável.
Todo um conjunto de competências (entre as quais a veridicção, a
mobilidade e a disponibilidade interiores, a concentração, a capacidade
de amar) vê-se assim mobilizado de maneira comparável nos dois casos
— o todo determinando um saber-ser da "descoberta" artística (logo,historicamente determinada, e tão necessária quanto a descoberta
científica). Desse modo, Goya, Giacometti e todos os pesquisadores
de sentido assumem a expressão coletiva como individual do que era
para viver em seu tempo, em seu espaço, em seu ambiente social. A
evolução de sua linguagem plástica tem a mesma autenticidade que ada "língua natural" que partilham com seus concidadãos.
De um ponto de vista filosófico (especialmente o de Merleau-Pon-
ty), a busca da expressão semelhante àquela queYves Bonnefoy usou
para analisar a escansão é uma ação singular de revelação de verdades
16 Goya, Lês peintures noires, p. 64. "Goya se recusando a Goya? Goya se retirando desua verdade? Mas o que é essa verdade senão a visão que se impusera a ele, tanto pelocorpo quanto pelo espírito na época dos 'Caprices' [-..]."
78
Dizer (e não dizer) Yvcs Bonnefoy
históricas: "Longe de a expressão ser a obra da consciência, esta aparece
de preferência como o horizonte de uma expressão que é em primeiro
lugar anônima e, finalmente, fato do mundo mais do que do espírito".
Deixando-se captar por um fragmento de si mesmo, o mundo atinge
um novo modo de manifestação (BARBARAS, 1998, p. 195), o que, nas
próprias palavras de Merleau-Ponty, assim se exprimia: "Não sornos nós
que falamos, é a verdade que fala a si mesma no fundo da palavra".17
De um ponto de vista semiótico, o que reterá nossa atenção não é a
singularidade e a adequação histórica da expressão, mas, ao contrário, o
caráter comparável da energéia, dos processos que permitem sua emer-
gência — caráter aparentemente generalizante e a-temporal: aquilo
que, se repetindo, desenha ao mesmo tempo o roteiro específico de
emergência dessas novas significações e a gramática previsível de um
tal roteiro. Teríamos aí uma forma recorrente, pouco sensível às varia-
ções culturais — isto é, o exato objeto do saber semiótico, aquele que
funda e delimita sua existência enquanto disciplina de tipo científico.
Tudo leva a crer que esse esquema do sentir nas grandes buscas vitais
(logo, na expressão artística) é dotado de uma profundidade antropoló-
gica comparável à do esquema narrativo. O desafio de procurar extrair
esse esquema dos resultados obtidos nas monografias deYves Bonnefoy
(pela comparação sistemática dos acasos das vidas, consideradas junta-
mente com os progressos na expressão dos quais esses acasos parecem
ter sido o motor) é certamente nienos arriscado que o de Freud, ao ve-
rificar suas observações sobre a essência do sonho a partir de Gradiva, o
romance de Jensen. Entretanto, a resposta que ele acreditou ter que dar
a seus detratores pode ser transposta para o campo da semiótica:"[...]
há muito menos de liberdade e de arbitrariedade na vida psíquica do
que estamos inclinados a admitir; talvez não haja nenhuma [...]. O que
chamamos acaso no mundo exterior reduz-se a leis; o que chamamos
arbitrário na vida psíquica também repousa sobre leis, mesmo se agora só0 pressintamos obscuramente" (FREUD, 1986,1991).
visibte et 1'invisible, p. 239.
79
Análises do discurso hoje Dizer (e não dizer)Yves Bonnefoy
O propósito de uma pesquisa como a da semiótica do sensível pode
parecer bem austero se comparado a uma leitura menos inquiridora
das biografias artísticas.Todavia, os progressos que esperamos ver e rea-
lizar graças a tal análise receberam, de antemão, sua legitimação graças
à pena de "pesquisadores do sentido", comoValéry e Cassirer.
Não há dúvida de que há presciência e antecipação em sustentar,
como o fazValéry em seus Cahiers, a seguinte idéia: "A antiga retórica
considerava ornamentos e artifícios essas figuras e essas relações que
[...] os progressos da análise verão uni dia corno efeitos de propriedades
profundas, ou o que se poderia chamar: sensibilidade formal". Há uma
pista de pesquisa extremamente contemporânea a deduzir de algumas
afirmações como esta, de Ernest Cassirer: "A intuição não é extensa,
mas concentrada. Reduz-se de alguma forma a um ponto. E apenas
nessa concentração que é encontrado e valorizado esse momento no
qual se acentua a significação" (CASSIRER, 1989, p. 113). Claude Zíl-
berberg infere dessas visões verdadeiramente antecipatórias unia idéia
que, ainda hoje, situa-se na extrema vanguarda da pesquisa semiótica: "A
partir do momento em que a prosódia encontra um lugar na teoria,
a separação entre plano do conteúdo e plano da expressão tende a se
inverter: a prosódia torna-se plano do conteúdo, e a significação, plano
da expressão".18 Esses dois pensamentos, de Cassirer e de Claude Zil-
berberg, resumem e sintetizam o conjunto de minha proposta nos seus
dois componentes (provisoriamente) distintos.
É por isso que se pode afirmar que os fascinantes romances de pen-
samento que são esses estudos/ retratos da criação artística elaborados
porYves Bonnefoy contêm um procedimento suscetível de oferecer
aos pesquisadores numerosos exemplos desses falares da significação,
dessas prosodisaçòes do conteúdo e, logo, desse material rigoroso de
onde poderia originar-sef num futuro próximo, uma descoberta rele-vante para as ciências da linguagem.
1 Claude Zilberberg, art. cie. in Langages, n. 137, p. 137, nota 4.
Referências
3ARBARAS, Renaud. "Lê tournant de 1'expérience". In: Recherches
sur Ia phtlosophie de Merleau-Ponty. Renaud Barbaras (éd.). Paris:
Vrin, 1998.CASSIRER, Ernest. Langage et mythe. Paris: Minuit, 1989.
FREUD, Sigmund. Lê Delire et te revê, dans "La Gradiva dejersen".
Trad. Paule Arbex et Rose-Marie Zeidin. Paris: Gallimard, 1986,
réédk."Folio/essais" 1991.
HÉNAULT, Anne. Lê Pouvoir comme passion. Paris: PUF, 1994.
."Pour une lecture sémiotique dês modulations passionnelles
du discours". In: ANIS, J.; ESKÉNAZI, A. e JEANDILLOU, J.F.
(eds.). Lê signe et Ia kttre. Hommage à Mic/id^mVé. Paris: 1'Harniattan,
2002. p. 255-276.LEIBNIZ, G.W. "Lettre à Arnauld". In: LEIBNIZ, G. W Oeuvres choi-
sies. L. Prenant (éd.). Paris: Garnier, 1942.
MERLEAU-PONTY.Maurice.Ld prose ífw monde.Claude Lefort (éd.).
Paris: Gallimard, 1969.. Lê visible et Tinvisible. Claude Lefort (éd.). Paris: Gallimard.
CoU"Tel",1979 [1964].
80
UZALUNU: ANALISE DO DISCURSO EENSINO DE LÍNGUA MATERNA1'2
Antoine Auchlin (Universidade de Genebra)Mareei Burger (Universidade de Lausanne)
1. Introdução
í.í.Análise ao discurso e ensino de língua materna
A expressão genérica "análise do discurso" (AD) tem. urna extensão pro-
blemática e sujeita à caução, fato para o qual chamamos a atenção no
momento de nossa conferência. Sem nos dissipar nos amálgamas vagos
e fáceis, gostaríamos de interpelar alguns de nossos colegas que, sob um
ou outro ângulo, adotam discursos como sua matéria-prima. Se, para
nós, de um lado, AD tem como protótipo o percurso que melhor co-
nhecemos e que é praticado em Genebra — compreendendo desde os
princípios das estruturas hierárquicas (ROULET et ai, 1985) até os refina-
mentos atuais do modelo em termos modulares (ROULET, 1999) — de
°utro, nossas observações se direcionam igualmente a outras abordagens
das grandes massas verbais. Incluímos aqui também as posições que su-
pÕern que o discurso não constitui um fato passível de estudo cientí-
'•-onferência apresentada no III Encontro Franco-brasileiro de Análise do Discurso' Análise do Discurso e Ensino de Língua Materna. UFRJ, de 13 a 15 de outubro
e 1999. Até a finalização desta tradução, o original em francês ainda não havia sido
Texto traduzido por Emília Mendes (PRODOC/CAPES - UFMG).
Análises do discurso hoje
fico próprio (REBOUL e MOESCHLER., 1998; ver SIMON, 1999). Em outras
palavras, interessam-nos, de urna maneira geral, todas as abordagens que
chamam a atenção para o manejo de unidades verbais mais complexas
que a frase e que se subscrevem, de uma forma ou de outra, no mito
objetivista, retomando os termos de Lakoff e Johnson (1980).
Particularmente, somos solidários à petição de princípio de acordo
com a qual nada deve ser ignorado do "contexto real" de produção do
discurso, posição também tornada pública, aqui mesmo, pelas contri-
buições de J.-P. Bronckart, P. Charaudeau ou de D. Maingueneau. En-
tretanto, em nosso ponto de vista, "o contexto real" compreende tanto
os dados que o próprio pesquisador explora num texto e faz emergir
um discurso, quanto os dados que desencadeiam uma experiência lin-
guageira malsucedida. Em outros termos, a própria experiência da lei--
tura do pesquisador-analista-do-discurso é parte integrante do que ele
compreende por "discurso". A propensão objetivista não quer saber de
nada disso e se obstina em considerar que o discurso "está no" texto,
no suporte, no próprio material. Para nós, o discurso — e o que é con-
veniente analisar como tal — é a própria experienàação que se organiza em
razão de um tratamento de unidades lingüísticas em cadeia.
Quanto ao "ensino da língua materna" (ELM), seria possível tratar
disso de maneira tão genérica? Nosso ponto de partida foi o ensino da
escrita para adultos escolarizados (STROUMZA, 1996; AUCHLIN, 1996b;
STROUMZA; AUCHLIN, 1997). Nesse quadro, nós nos perguntávamos
como tirar o máximo proveito do que os alunos revelam a respeito
do estado de sua habilidade redacional (o "manifesto pelo aluno" de
B. Delforce) e, mais particularmente, o que, neste estado particular da
habilidade, pode ser considerado responsável pela ocorrência de ele-
mentos que desencadeiam pequenas infelicidades. É desse ponto que
emerge a problemática do diagnóstico da competência discursiva. Sob
essa forma, tal questionamento não tem nada de específico nesta situa-
ção particular, mesmo se ele foi tornado possível por esta mesma si-
tuação. Nossas observações, em sua generalidade, concernem assim a
toda situação de ELM.
84
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
A distribuição e o nível do saber escrever (a literacia) em meio à
população aparecem freqüentemente superestimados. Seriam eles o
efeito de uma vontade coletiva de dissimular um erro julgado vergo-
nhoso, ou de uma vontade de classe social de guardar de forma egoísta
o segredo desse poderoso vetor de distinção social que constitui o
saber escrever? Seja qual for o caso, os analistas do discurso podem
se tornar cúmplices dessa dissimulação, seguindo a interpretação da
caução social "fazer ciência" à qual alguns aderem. É preciso conside-
rar que o essencial do que deve ser escrito — "o discurso" — é uma
construção da qual o pesquisador teve que participar como leitor— e
que não existiria sem esta participação. Ele não pode dar conta inteira-
mente de seu objeto negando a existência de sua própria experiência,
o que, no entanto, é exigido pelo cânone epistemológico positivista.
Essa interpretação do contrato científico conduz o pesquisador a se
pronunciar somente sobre as coisas que já são reputadas passíveis de
ser objetivamente verdadeiras ou falsas, independentemente das par-
ticularidades do observador. No que concerne aos fatos da "realidade
de segunda ordem" (WATZLAWICK, 1991) como "o discurso", pode-se
dizer que esse fato restringe o campo de investigação científica, e, pior,
que condena os pesquisadores a negar sistematicamente as característi-
cas mais imediatamente evidentes de sua matéria-prima.3
Í.2. "Do erro apequena infelicidade textual"
Toda pessoa que ensina a escrita em língua materna confronta-se coma questão dos "erros". Como "coisa que advém", um erro é uma expe-
riência textual observável, geralmente malsucedida e "irruptiva". Noentanto, a noção de erro é enganosa: é muito restritiva na sua extensão
(algumas infelicidades textuais não são erros no sentido de infração aUrna convenção ou norma); e, por outro lado, localiza univocarnente a
infelicidade no produto verbal, um dos pressupostos maiores que nós
Sobre esta questão, consultar Núnez, 1997.
85
Análises do discurso hoje
gostaríamos de evitar. Preferimos a noção de "pequena infelicidadetextual" (STROUMZA; AUCHLIN, 1997), mais descritiva, menos carregada
de pressupostos quanto à localização e à responsabilidade do evento de
leitura irruptivo, e que, sobretudo, dá acesso a um conjunto de estraté-gias de remediação bem mais vasto.
Esta posição se distingue da idéia muito disseminada de que em ma-
téria de texto as infelicidades são imputáveis a uma gramática própria ao
aluno (REICHLER-BÉGUELIN, 1992). Como esta autora, pensamos que na"correção" o problema maior do professor deve ser "restabelecer-se" da
ocorrência de um problema e ir em direção às condições mais gerais que
o tornaram possível por parte de um aluno em particular. Mas o alvo vi-sado por este percurso não é a descrição de uma gramática. É, sobretudo,
a compreensão das condições sob as quais a competência discursiva que-produziu este texto pôde obter seu acordo interior com determinadomaterial verbal; material do qual se pensa ter desencadeado uma experiên-
cia de leitura malsucedida no corretor (STROUMZA; AUCHLIN, 1997).Na situação didática "ensinar-aprender a escrever", as infelicida-
des textuais são freqüentes. A incumbência pedagógica do professor é
possibilitar ao aluno evitá-las, o que supõe que ele compreenda, pelomenos um pouco, do que se trata essa tarefa.
1.3. A identidade, o externo e o interno
Essas experiências verbais malsucedidas caracterizam-se, para quemdeve compreender o seu próprio funcionamento, pela emergência deuma certa instância de discurso parasita, que toma para si a responsabi-
lidade da ocorrência do material que as suscita — já que o leitor asimputa a esta instância. Batizamos tal instância de uzalunu4.
4 Os autorüs criaram a forma "zélève", que corresponderia à junção, na língua oral, de"Lês eleves" (os alunos). Na tradução, a conselho dos próprios autores, adaptamos oconceito para o português. Daí a forma uzahmu (usada como substantivo masculinosingular), que seria o correspondente oral de "os alunos". (N.T.)
86
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
Nós nos interessamos exatamente por: (a) tal identidade particular
emana do aluno, mas que não é vista por ele; (b) essa identidade
nue o professor vê e gostaria de mostrar ao aluno; (c) esse fantasma
bem real entre o professor e o aluno. Em um primeiro momento,abordaremos essa identidade em termos de polifonia e de competência
discursiva, ou seja,"do interior" de seus próprios mecanismos. Em um
segundo momento, nós examinaremos as condições e determinações
psicossociais que permitem a emergência do uzalunu e que, enquantocláusulas virtuais de um contrato didático específico, dirigem even-
tualmente o tratamento a ser aplicado. A identidade é aqui vista do
exterior, sob o ângulo de suas determinações sócio-históricas.
2. Uma ou duas coisas que a análise do discurso ensina aoprofessor de redação em língua materna
A tendência utilitarista habitual quer que as disciplinas aplicadas tirempartido do trabalho das disciplinas-mães "fundamentais". Em matériade discurso, é sobretudo o inverso que deveria se produzir. Consi-
derando minimamente os dados provenientes do ensino da escrita, a
análise deve tomar conhecimento de alguns fatos5.
2.7. Imprevisibilidade aumentada
Uma das possibilidades dessa ocorrência concerne à questão da criati-
vidade discursiva. Por criatividade discursiva designamos o seguinte fato:
partindo de um ponto do encadeamento discursivo Px que segue umenunciado Ex, os encadeamentos possíveis, embora restritivos, são im-
previsíveis. Não podemos predizer as características do enunciado Eysegue Ex. Supomos, em geral implicitamente, esta imprevisibilida-
-Entre eles, alguns originam-se do "custo teórico" (no sentido de Ducrot, 1980) deblpóteses colocadas independentemente. É notadamente o caso da aplicação que seráeita aqui da noção de "polifonia" de Ducrot.
87
Análises do discurso hoje
de no interior do quadro da língua ou do "possível da língua" (MILNER,
1989) na qual dá o discurso.
Em situação de aprendizagem, esta garantia evidentemente não é
adquirida, e a imprevisibilidade discursiva aumenta. Isso se dá pelo sim-
ples fato de que as restrições lingüísticas convencionais podem não ser
respeitadas e, sobretudo, porque seu desrespeito, levando-se em consideração um
contrato de comunicação didático particular, é parte integrante do sentido próprio
do discurso. Num sentido inverso, esta dilatação do conjunto aberto dos
possíveis é contrabalançada pelo fato de que, desde que identifiquemos
as características próprias ao funcionamento da competência discursiva
de determinado aluno de redação, cada encadeamento é uma possibi-
lidade de formular e de verificar uma ou outra hipótese concernente
a este funcionamento.6 Dito de outra forma, o volume das prediçÕes-
aumenta e, por isso, a imprevisibilidade desse princípio diminui. Toda
a questão está na maneira de compreender, de analisar e de tratar os
deslocamentos ocorridos.
2.2. Experiendação e apreciação
Assim, a análise do discurso deve notar que, no âmbito do ensino da
escrita, a dimensão hedônico-apreciativa do tratamento do discurso é
incontornável.7 No entanto, uma consideração adequada da dimensão
apreciativa na qual se desenrola a compreensão dos textos é, confor-
me pensamos, incompatível com a postura objetivista que caracteriza
a tradição epistemológica descritiva em matéria de linguagem. Desde
6 Isso faz parte, na realidade dos fatos, do conhecimento de base que cada professoradquire de seus alunos. A questão é permitir-lhe explicitar e desdobrar utílmente esseconhecimento que permanece muito freqüentemente pré-teórico e intuitivo e, porisso, pouco operacionalizável.7 Alguns psicólogos cognitivistas ocuparn-se de descrever os processos redacionais enotam, recentemente, a existência e a importância disso (HAYES, 1996; GRABOWSKY,1996); mas o tratamento que propõem interessa-se mais pela estrutura de "cabeamen-to" do que pelas características dos dados linguageiros, com a exceção notável dostrabalhos de C. Bereiter e M. Scardamaglia.
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
gaussure, esta postura se contenta em se professar "não normativa" e
"não prescritiva", tentando excluir toda intervenção pessoal subjetiva
dos pesquisadores em sua pesquisa. Isso não é possível: seja porque os
pesquisadores renunciam a tratar do discurso, seja porque aceitam que,
para que haja discurso, é preciso que tenham passado por ele. O que
quer que seja dito por tais pesquisadores sobre a questão, ao lerem um
texto, eles se entregam a uma determinada experienciação através de
sua compreensão, de seu prazer, de seu julgamento. O discurso é esta
experienciação. Se deixa traços, mundanos ou linguageiros (texto im-
presso ou suporte de dados em áudio), são estes traços que são o produ-
to ou o resultado do discurso (não é o discurso que é um "produto")8.
Tanto lingüistas, analistas de discursos quanto professores se con-
frontam com o dado empírico "existem textos malfeitos", e isso não
ocorre exclusivamente nos trabalhos dos alunos. Entretanto, somente
os professores são os supostos encarregados da correção, por razões
relativas às particularidades do contrato de comunicação didático (cf
abaixo). A análise do discurso mostra que está em cima do muro quan-
to à sua concepção da natureza fenomenal dos "erros-em-discurso".
Tal concepção deve ser retomada no âmbito de uma visão geral do
que é o discurso e ser suscetível de ser acolhida sem distorção.
2.3. Uma conseqüência
A consideração do real linguageiro como "imperfeito" permite, por ou-
tro lado, enriquecer a noção de polifonia de locutores utilizada por
Ducrot (1984) para caracterizar o discurso relatado no estilo indireto.
•kssa forma de polifonia deve ser reconsiderada como um exemplo
particular em meio a outros possíveis: no discurso relatado no estilo
^reto, a co-presença de dois locutores aparece de fato como uma
variedade de polifonia sinfônica. Se nós a compararmos com a que se
Cf.Auchlin, 1998.
89
Análises do discurso hoje
pode efetuar no discurso do aluno, nós qualificaremos esta última de
"cacofônica"9.
Por todas essas razões, a análise do discurso deve agir partindo da
evidência de que a identidade dos agentes de discurso, dos alunos de
redação, possui duas faces: (a) é ao mesmo tempo plástica, na medida
em que o professor, que visa a agir sobre ela para transformá-la, deve
inicialmente construí-la; e (b) é também lábil, no sentido de que não
pode ser ancorada ontologicamente no mundo, na medida em que ela
somente é o que é em razão da atenção e da perspicácia que lhe con-
sagra o professor.Trata-se de uma identidade passageira.
3. Polifonias sinfônica e cacofônica
Em um artigo no qual falávamos da "estranha polifonia" do texto de
alunos de redação, nós, Stroumza e Auchlin, sustentávamos a idéia de que,
em tais textos, as pequenas infelicidades emergem dos fatos de linguagem
que pertencem ao que é mostrado pelo texto e podem ser pensados
como o produto de uma instância de fala em vários pontos comparável
ao locutor enquanto tal (L) da teoria polifonica de Ducrot (1984).
É locutor (L) para Ducrot o ser que, de acordo com o enunciado,
toma a responsabilidade de sua enunciação. Um locutor é um ser in-
tensional (com um s), uma instância que somente se constitui em razão
do que ela opera.
O discurso relatado direto é o caso de polifonia que mais se asse-
melha ao que nos interessa aqui: trata-se de wa**. polifonia de locutores:
(1) Júlio": "Pedroy mes disse: 'na minhay opinião, o tempo estará bom'."
O enunciado complexo (1) é uma construção polifônica que mos-
tra dois locutores enquanto tais: o primeiro, "Júlio" que é responsável
9 Esta idéia é apresentada de uma forma um pouco diferente em Stroumza;Auchlin,1997.
90
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
nela enunciação de todo o enunciado; o segundo, o locutor "Pedro"
aue, por sua vez, desdobra-se em duas formas: está presente como ser do
mundo, representado na predicação "Pedro disse...", e como locutor en-
quanto tal pela enunciação de "na minha opinião,...", que o apresenta
corno seu responsável.
Após um dado enunciado complexo, duas grandes classes de enca-
deamentos são possíveis. As primeiras classes Ducrot nomeia "polifo-
nia", quando encadeamos o conteúdo do discurso imputado ao locu-
tor reportado (e, de alguma forma, admitimos sua autoridade). É o que
acontece em (T), na seqüência de (1):
(!') Façamos então nosso piquenique.
A outra classe de encadeamentos é ilustrada por (l"):
(l") Coitado do Pierre, está sempre otimista.
Ducrot nomeia "discurso relatado" essa maneira de encadear, não
sobre o que fala o locutor reportado, mas sobre a própria enunciação
que lhe é imputada, ou a esta ou àquela de suas características10.
Nossa hipótese é a de que os objetos textuais desencadeiam uma
ruptura da continuidade da experiência de leitura, uma pequena in-
felicidade textual. Estas infelicidades podem ser imputadas ao próprio
autor, agente intensional designado pelo "erro" como seu responsável,
ou em todo caso, construído a partir dele como assumindo a respon-
sabilidade de sua ocorrência.
Esta instância, de acordo com o que pensamos, é por vários pontos
de vista assimilável a um locutor. Dos diferentes argumentos invocados
Por Stroumza e Auchlin, retenhamos aqui o do encadeamento discur-
-E exatamente o mesmo caso ilustrativo, fora da relação de discurso, da réplica, opostaa resposta (GOFFMAN, 1973 e MOESCHLER, 1982); em algumas das perspectivas tais enca-
eamentos, oblíquos, são casos marcados,
9Í
Análises do discurso hojeUzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
sivo: se o locutor é um ser que, de acordo com o sentido do enunciado,
é responsável por sua enunciaçao e se, de outro lado, o que nomeamos
o sentido de um enunciado reside nos encadeamentos nos quais este
pode se instaurar, então, na medida em que os "erros" dão lugar a en-
cadeamentos, eles devem ser considerados corno a ação de um locutor.
Ora, o diálogo pedagógico se constrói realmente sobre este modo deencadeamento, do mesmo modo, oblíquo:
(2) Várias ações individuais deveriam autorizar urna diminuição da pro-
pensão à construção do mal-entendido, (trabalho universitário)
(2') Professor (na margem): Fale isso para si mesmo!
A partir de (2) é bem possível ter uma seqüência como (2'), onde-
o sarcasmo não deixa de apresentar as características que nós pontua-
mos, que são: de uma parte, "encadear de maneira oblíqua sobre o
locutor agente do "erro" e, de outra, endereçar-lhe indiretamente uma
sugestão sobre o assunto. É em razão destas afinidades com o quadro
pedagógico que nós nomeamos este locutor de uzalunu.A sobrecom-
plexidade redacional de (2), que é urna característica do que é mos-
trado, é seguramente o meio de expressão do uzalunu. Através desta
sobre complexidade, o uzalunu realiza perfòrmativamente seu objetivo
expressivo, que é o de fazer partilhar com o leitor seu próprio esforço
mental ou, em todo caso, de fazer do leitor uma testemunha disso.11
Um traço distingue estes casos do discurso relatado direto ordiná-
rio: a natureza da relação que empreendem os locutores "co-presen-
tes". Nos dois casos standards da "polifonia" e do "discurso relatado", as
vozes dos locutores, relatante e relatado, completam-se, imbricam-se,
levam em consideração tanto uma quanto a outra, e sua ligação, amigá-
vel ou não, é sinfônica. Ao contrario, o uzalunu ("co-locutor") mantém
11 Mas se o leitor pode testemunhar, esforço que ele deve fazer por si próprio e quepode ir além do que o redator poderia imaginar ou esperar, esse leitor teria que, alémdisso, buscar urna alternativa de formulação.
92
rorcosamente com o locutor intencionado oficial uma relação cacofô-
ftica- Esta cacofonia tem sempre o efeito de enviesar ou cobrir, parcial
otl totalmente, a voz do locutor oficial12.Nessa perspectiva, (2) é um caso totalmente excepcional: a mise-en-
dí»ime"auto-denegativa" que ele apresenta, em razão de seu conteúdo,
torna a cacofonia fortuitamente muito harmoniosa. Para tanto, a rela-
ção entre estes dois locutores não é menos constitutivamente cacofô-
nica — e ela não age a favor da credibilidade do locutor oficial.
O exemplo (3) abaixo também não é tão bem-sucedido:
(3) Saber escrever, saber falar ou saber falar, saber escrever, qual é destes
dois saberes o que devemos adquirir primeiro?
De acordo com os processos naturais, a primeira coisa que uma criança
faz, ao nascer, é emitir sons.
Neste caso, respeitemos a natureza e aprendamos a falar antes de escrever.
Estes saberes são, em seguida, consolidados ou aprendidos na escola. [...]
(Início de texto, trabalho universitário)
Este exemplo ilustra a complexidade da organização linguageira
pela qual se instala a cacofonia. Vemos nela, em particular, uma ins-
tância de fala ligada a uma preocupação de exaustividade, desejosa
do absoluto rigor do silogismo, e preocupada em "amarrar" sua tese
fundamentando-a sobre um raciocínio. É o que "faz" o locutor ofi-
cial; é também, muito provavelmente, a representação que o aluno-
Nós afirmamos, em nossa exposição, que as manifestações do uzalunu correspon-diam a um efeito de ethos "em negativo" (AUCHLIN, no prelo). De fato, esta posição1130 é defensáveljá que o descrédito resultante da presença do uzalunu afeta o locutor°ricial (sua credibilidade ou sua audibilidade). É preciso concluir disso que é a ca-cofonia ela própria a co-presença de dois locutores não harmonizados sobre a cena'"Scuísiva, e não uzalunu sozinho, que é o responsável por esce ethos negativo. Pode-setlrar partido do que concerne à compreensão do efeito de ethos: ele não emerge do
Iocutor", mas sobretudo da maneira pela qual é ocupada a cena do discurso, isto é, ocaiUpo acionai dos intérpretes experienciadores.
93
Análises do discurso hoje Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
redator empírico faz de seu texto (talvez porque fosse o seu texto13,
mas é possível que este aluno-redator talvez não notasse muitas dessascaracterísticas de mesma ordem em um texto de outra pessoa). No
entanto, um leitor, um pouco mais sensível às condições de execução
do raciocínio lógico, constrói um locutor diferente na sua experiênciado texto, um uzalunu, que mostra que ele se satisfaz com aparências
verbais superficiais para conduzir seu discurso, instituindo uma relaçãomágica e encantatória nas palavras, etc.
De tais esboços de análise, o que é preciso reter é a necessidade,para o professor, de construir para si próprio uma representação, oumelhor, uma percepção interna e íntima do universo do redator en-
quanto tal. Uma figuração como esta aproxima-se do que nomeamosdiagnóstico da competência discursiva.
4. A competência discursiva e seu diagnóstico
A defrontaçao, por parte do professor, com problemas de leitura
("pequenas intelicidades textuais") nos textos de alunos deve ser vis-ta como um recurso potencial a serviço destes últimos, recurso esteque o professor deve explorar. Mas, para permitir aos alunos tirar
proveito de seus "erros", o professor deve tratá-los de maneira espe-cífica. Para M.-J. Reichler-Béguelin, o problema maior do professoré compreender como o aluno pôde cometer o erro que cometeu,
de acordo com qual "gramática" implícita ele agiu. Assim como estaautora, supomos que seja possível "restabelecer", por indução, umaocorrência singular das propriedades reiteráveis em direção a um
princípio causai mais geral; e, por outro lado, supomos que este aces-
so seja uma condição para um trabalho pedagógico pretendido, paraumfeedback "cirúrgico"14.
13 A "propriocepção" textual é um circuito manifestamente extenso para se instalar.Ver a diferença colocada por Ricardou (1978) entre a releitura e '"redescobertas".14 Como dizem os militares-cínicos.
94
Se o contrato didático fornece um quadro que constitui uma con-
dição necessária para este exercício, ele não é urna condição suficiente:existência de um contrato não revela nada sobre a maneira de o reali-
zar. Como compreender e interpretar as pequenas infelicidades, como
cOrnpreender o discurso do uzalunu, e como, a partir disso, articular
o retorno didático de maneira útil? É uma questão de postura e de
estratégia da parte do professor.A relação didática, desse ponto de vista, tem pontos comuns com
outras relações de ajuda, como as psicoterapias, por exemplo. O fato éconhecido pelos terapeutas sisteniaticistas com o nome de "paradoxo
da relação terapêutica" e se enuncia dessa forma: "Como ajudar alguém
a não necessitar de ajuda?" Além de ser relações inegáveis, são relações
que mobilizam, na pessoa auxiliada, uma parte dela mesma que eladesconhece e da qual ela deseja, ou se supõe que ela deseje, o desapare-
cimento — o "eu" nevrálgico, ou o uzalunu^. O "paradoxo do profes-
sor", nessa perspectiva, consiste em como o professor — para permitirao aluno fazer desaparecer o uzalunu — deve, num primeiro momento,
procurar torná-lo o mais tangível e o mais manifesto possível.No que concerne à natureza da relação pedagógica, nós postula-
mos, seguindo o pensamento de W. James, que o melhor que um pro-fessor pode fazer por seus alunos é torná-los mestres de suas escolhas,
isto é, responsáveis — o que nós chamamos de "ideal jamesiano". Estaquestão é essencial quando ensinamos a escrita: os alunos, em algunspontos, têm um desejo muito forte de desposar estilos, de se deixar
"uir nas identidades pré-formadas, que eles habitarão tanto bem quan-to mal, descobrindo um uzalunu para mascarar um outro; é o estadocoquete do "preparado para escrever", do qual (2) e (3) acima são
excelentes ilustrações.Talvez seja uma etapa importante na maturação^ competência discursiva na forma escrita (vide os diferentes estadosat}uisicionais descritos por Bereiter, 1980), mas isto não é seguramente~~~~ e felizmente — o estado terminal de maturação. A otimização pe-
•se que o uzalunu é um colega do l'étourdit/ aturdido de J. Lacan.
95
Análises do discurso hoje
dagógica consiste em remeter os alunos a si mesmos — a ferramenta
e a mediação a serviço dessa otimização é o que nós chamamos de 0
"espelho experto".
A postura do "espelho experto" (STROUMZA; AUCHLIN, 1997) decor-
re desta otimização pedagógica, visando a fazer advir uma pessoa que
escolhe o que ela faz, dominando, ou pelo menos, respondendo por
suas escolhas. No que concerne ao professor de redação, isso consiste
em permitir à pessoa ver e perceber o que ela faz, isto é, remeter-lhe
a uma imagem tão explícita quanto possível das tantas experiências de
leitura possíveis de seu texto. Fazer o contraste, de um lado, do que
compreendemos que o aluno quis dizer com, de outro lado, o que com-
preendemos que ele diz e que vem do uzalunu. Isso já será um efeitode "espelho experto".
Se retornarmos aos exemplos (2) e (3) acima, o que nos interessa
é o fato de que seus redatores obtiveram seu acordo interior imple-
mentando um dispositivo linguageiro virtualmente cacofônico, isto é,
permitindo a emergência e a identificação de dois locutores distintos:
um locutor oficial e um uzalunu, em relação cacofônica. Esta pro-dução virtualmente cacofônica é constitutiva e específica do modo
de funcionamento destas competências discursivas. Estes modos de
funcionamento são típificáveis (recorrentes em espécie). Portanto, eles
podem ser estudados tanto do ponto de vista "clínico", visando a des-
crever cada caso em sua singularidade, quanto do ponto de vista "pa-
tológico", buscando retirar ligações e generalizações de um conjunto
de casos clínicos. Como praticante, o professor é evidentemente con-
cernido pelo aspecto clinico. A última questão que nos interessará será
a de saber como as hipóteses diagnosticas se formam e se estabilizam
no diálogo didático, como o professor pode, no fim das contas, colocarlegitimamente sua intuição em proveito do aluno.
A identificação do uzalunu é objeto próprio do diagnóstico da com-petência discursiva: o diagnóstico consiste em revelar as característi-cas particulares do funcionamento de uma ou de outra competência
discursiva, a maneira e as condições sob as quais ela atinge seu estado
96
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
je equilíbrio ou acordo interior com o material textual que produz,
virtualmente cacofônico. Enquanto diagnóstico de uma competência
Discursiva, o professor supõe uma certa visão, algumas hipóteses-qua-
dro sobre a natureza e o funcionamento da competência discursiva16.
Para nós, a competência discursiva não se assemelha à reunião cumu-
lativa de domínios de conhecimentos distintos de pesquisadores inspirados
pela competência de comunicação de Hymes (1984), os mais ativos
em matéria de didática e ensino de línguas. A nosso ver, a competência
discursiva é nossa condição de seres equipados de linguagem, de forma
que nós podemos tratar das seqüências de enunciados como pertencen-
do à esfera do vivido e fazer uma certa experienciaçao específica disso.
É bem essa experienciaçao, e ela somente, que é conveniente nomear
"discurso" e não as seqüências verbais que alimentam a competência
discursiva, sobre as quais projetamos, erradamente, propriedades de sua
experienciaçao. Por isso, recusamos igualmente a tese (freqüentemente
julgada à revelia como implícita por pesquisadores) segundo a qual po-
demos dar conta do discurso restituindo "sua interpretação".
O funcionamento da competência discursiva consiste: (a) em ajus-
tar permanentemente um ser-fora-da-fala, sujeito falante (em um sen-
tido próximo daquele de Ducrot) e um ser-de-fala, uni locutor; (b) em
ajustar entre eles um estado de equilíbrio nomeado "acordo interior",
sob a forma de um sistema auto-regulado (sistema termodinâmico). As
propriedades dos objetos verbais apresentados, o texto do discurso, são
aquelas pelas quais o sistema (a competência) "se auto-regula", ajusta
as necessidades expressivas do sujeito falante às contingências dos lo-
cutores possíveis e obtém, assim, por si só, seu acordo interior.17
Fazer o diagnóstico de uma competência discursiva operacionaliza,
concretamente, um componente empático, a percepção em ação
mundo de regulação próprio a um dado aluno de redação. Trata-se
tentar sentir, do interior, como o aluno de redação pôde obter seu
-r-h
^ o componente propriamente dedutivo do diagnóstico.Para mais detalhes: Auchlin, 1996a, 1996b e Stroumza; Auchlin, 1997.
91
Análises do discurso hoje Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
acordo interior pelo texto; de perceber sob quais condições este texto
pôde ser satisfatório para ele. Esta percepção em ação é uma condição
da operacionalização do componente indutivo do diagnóstico, que
consiste em formar hipóteses a partir desta percepção. Acessoriamente,
a abordagem aqui é sistêmica ao postular que é o mesmo dispositivo,
uma competência discursiva, que é o objeto visado pelo diagnóstico e
o próprio meio deste diagnóstico.
Um estudante, em uma cópia de exame, ortografa a palavra êxito
como "hêxito". O que podemos compreender disso? Além do erro
ortográfico, é a diferença ortográfica que é levada em consideração pelo
uzalunu, que é o seu próprio trabalho. É preciso compreender essa
forma como um sintoma para buscar outras eventuais manifestações da
"mesma patologia". Estas manifestações não seriam, necessariamente,
ortográficas, mas teriam a ver com as razões que tivessem presidido a
emergência dessa forma, logo, tendo uma relação com o propósito do
uzalunu. Qual é este propósito? O uzalunu mostra que ele torna com-
plexa uma forma de origem simples, convertendo-a em uma forma
não atestada. Isso pode (entre outras coisas) tanto servir para tornar
público um desejo de se fazer conhecedor, quanto ser um pedido de
reconhecimento quanto a sua pertença — pretendido pelo próprio
desejo de se tornar público — à comunidade daqueles que sabem (ou
que têm acesso às coisas complicadas).
5. Estatuto do uzalunu
De tais considerações, deduz-se que o estatuto do uzalunu é comple-
xo, compósito ou ainda heterogêneo, a começar pelo local onde se
localiza. De fato, o uzalunu emerge da conjunção de duas dimensões
do discurso.
O uzalunu comporta uma dimensão linguageira dada pelos enun-
ciados de um texto, exemplificada aqui pelo neologismo hêxito. A
identidade do uzalunu é assim, tributária desse neologismo: em outras
palavras, se não há hêxito (com h), não haverá uzalunu.
98
Jvlas a identidade do uzalunu também depende de uma segunda
dimensão do discurso que nós nomearemos psicossocial. Ela considera
que o discurso é plenamente significante, levando-se em conta a rela-
ção de comunicação instaurada entre as instâncias empíricas, ou seja,
em carne e osso.
Com efeito, o discurso constrói expectativas em função dos sujei-
tos da comunicação, bem como finalidades práticas- Em nosso caso, a
identidade do uzalunu é dependente de uma relação de troca especí-
fica entre um aluno e um professor. De modo mais específico, é mais
relativa ao aluno: ou seja, se não há aluno, não haverá uzalunu.
O uzalunu constitui, a partir e fundamentalmente desse ponto, uma
instância compósita na medida em que advém do encontro entre o
uso da linguagem e o uso de uma situação de comunicação cujos traços são
respectivamente: unidades lingüísticas e desempenho de papéis psicossodais.
Tornemos estes pontos mais precisos.
6. Discurso e polifonia
De certa forma, podemos sustentar que o discurso é o produto de uma
atividade. Enquanto tal, o discurso deixa, então, duas espécies de traços:
Hnguageiros e psicossociais. Tanto uns quanto os outros constituem o
discurso e manifestam, numa problemática da identidade, uma mesma
realidade polifônica dos sujeitos.
6. í. Polifonia linguageira
Na ótica de um lingüista como Ducrot, um enunciado é polifônico
quando identificamos nele uma superposição de vozes associadas a
instâncias diferentes. Assim, o enunciado seguinte é polifônico no pla-
no linguageiro.
(4) "Você declarou: vou pendurar as chuteiras! Eu não acredito nisso!"
99
Análises do discurso hoje
De fato, percebemos facilmente que as palavras remetem à imagem
de dois sujeitos: o sujeito EU-1 que traz um julgamento proferindo"Eu não acredito nisso!", e que apoia este julgamento sobre palavras
enunciadas por outra pessoa, um EU-2 que teria proferido "Vou pendu-
rar as chuteiras!". Assim, as marcas de pessoa remetem uniformemente
a duas instâncias diferentes, pois EU-1 nào poderia ser responsávelpela declaração atribuída como sendo testemunho das marcas de um
discurso reportado "você declarou", ao contrário de EU-2.
Podemos ainda detalhar esta estrutura polifônica distinguindo <su-jeito que reporta> as palavras de um <outro sujeito> para se definir, em
último lugar, como um <suj eito de opinião>. Esta é, aproximadamente, aimagem da enunciação dada pelas palavras. Mas esta imagem seria incom-
pleta se não levarmos em conta a vertente psicossocial da enunciação.
6.2. Polifonia psicossocial
Consideremos que o enunciado (4) seja dito por um jornalista quetem como objetivo suscitar uma reação por parte de seu convidado,uma estrela do futebol. As palavras participam então de uma situação
do tipo "entrevista midiática" que manifesta uma outra forma de poli-fonia dos sujeitos. Não é mais a dimensão do DIZER que é priorida-de, mas uma dimensão mais englobante do SER e do FAZER.
Num quadro midiático, o sujeito que diz; "Você declarou: vou pen-durar as chuteiras! Eu não acredito nisso!" não é o centro de interesse
da comunicação: ele não é a estrela, e sim o outro. Este outro, precisa-mente, trata de coletar o discurso para torná-lo público. A expectativada comunicação midiática faz do entrevistador um avalista de seu con-
vidado. Mas, ao mesmo tempo, o entrevistador, a serviço de seu convi-dado, é também um jornalista: isto é, uma instância de retransmissãoque informa ao seu público o que se passa no mundo. O jornalistaopera, assim, a serviço de seu público.
Nesse sentido, um enunciado "Você declarou: vou pendurar aschuteiras! Eu não acredito nisso!" manifesta uma polifonia da identi-
100
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
dade psicossocial dos sujeitos. Ele realiza, localmente, um objetivo de
cc,rnunicação (suscitar uma reação) que se explica, globalmente, pelaatividade de entrevistar (solicitar o discurso do outro). Esta atividade
específica é legitima pela pertença do entrevistador à categoria socio-
profissional dos jornalistas. Dito de outra forma, o sujeito psicossocial
comporta três identidades independentes umas das outras, mas en-
gajadas, ao mesmo tempo, por seu discurso: ser um jornalista, ser um
entrevistador, ser aquele que suscita uma reação.
7. Contratos de comunicação
Em resumo, o discurso dá uma imagem duplamente polifônica da
enunciação no plano linguageiro e no plano psicossocial. Efetivamen-te, no registro musical, duplicar a pluralidade das vozes é visualizar que
a sinfonia do discurso não se orquestra sem mostrar dificuldades. Po-
demos, até mesmo, temer uma certa propensão à cacofonia discursiva.Ora, o enunciado do jornalista não soa falso: apesar das — ou graçasàs — instâncias múltiplas que aí se operam. Ele soa, sobretudo, preciso.
Desse fato advém a hipótese das cognições (dos saberes e das habili-dades) socialmente construídas e partilhadas que tornam o discurso ao
mesmo tempo interpretável e aceitável.Estas cognições determinam e explicam a polifonia generalizada
dos discursos. Mais precisamente, elas testemunham um quadro de ex-pectativas, ou um contrato de comunicação18. De nossa parte, postula-dos a hipótese de que os sentimentos de felicidade ou de infelicidade,
de cacofonia ou de harmonia no discurso dependem dos modos deWianifestação de um dado contrato. Consideremos dois exemplos quetesternunham respectivamente um pequeno sucesso e uma pequenall>felicidade de comunicação.
Ver as noções mais ou menos idênticas de "sentido da estrutura social" (CICOUREL,19?9),"horizonte de saberes" (HABERMAS, 1987), ou "cognição social" (SHOTTER; CER-
) SHOTTER71994).
ÍOí
Análises do discurso hoje
7.1. Pequena felicidade de comunicação
Na rua, um passante A interpela uni outro passante B
(5) Na rua, A diz a B:
A: "Com licença, você pode me dizer que horas são, por favor?"
Dizendo isso, o passante faz claramente três coisas. Inicialmente,
usando "com licença", ele constrói linguageiramente um <sujeito que
intervém sobre o território do outro> e testemunha, assim, a consciên-
cia que ele tem da face do outro (no sentido de GOFFMAN, 1973). Em
seguida, com "você pode me dizer que horas são?", o passante constrói
linguageiramente um <sujeito que questiona> — com uma questão
marcada corno tal no plano sintático e lexical. Enfim, com "por favor",
o passante constrói linguageiramente um <sujeito que pede> — a lo-
cução "por favor" levando a considerar a questão como uma demandade fazer.
Assim, o passante A elabora uma proposição de relação social, isto
é, uma proposição de troca entre dois sujeitos, o que supõe, ao mes-
mo tempo, um mecanismo de ajustamento, isto é, um contrato e uma
avaliação positiva ou negativa da troca. Com efeito, a reação do outro
passante B e a réplica seguinte correspondem, termo a termo, ao con-trato de troca;
(6) O outro passante B, respondendo:
B: "Não tem de quê. Sim. São exatamente nove horas."
Dizendo,"Não tem de quê", B reage, efetivamente, à idéia da ofen-sa territorial. Dizendo, em seguida, "sim", ele responde literalmente
à questão de A. Por fim, dizendo "São exatamente nove horas", B dá
uma seqüência favorável ao pedido de A e a troca pode se fechar.
Isso nos leva às duas considerações seguintes: a primeira recai sobre aligação entre as duas identidades psicossocial e linguageira dos sujeitos.
102
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
por sua troca, cada faceta pertinente dos sujeitos psicossociais é traduzida
em palavras. O que eles fazem e o que eles são é fortemente manifestado.
pito de outra forma, as palavras aqui são suficientes para dizer o contra-
to, ou se o preferirmos, o contrato e as palavras se interpõem. A segunda
consideração recai sobre a construção da relação com a produção nesta
troca. Observamos que o que é proposto por um é aceito pelo outro.
As palavras do discurso refletem este estado, elas revelam a construção
do contrato de troca. Em suma, o sentimento de uma comunicação
rotineira bem-sucedida parece estar ligado ao fato de os sujeitos se con-
tentarem com uma construção local de uni contrato de troca.
7.2. Pequena infelicidade de comunicação
O exemplo autêntico que segue é totalmente contrário ao anterior.
Jean-Pierre Papin, jogador, estrela do futebol francês, é entrevistado
por Hughes Delatte, um falso aprendiz de jornalista.
(7) Delatte: "Jean-Pierre Papin... Bom dia!"
Papin: "Bom dia!"Delatte: "Você é jovem, esportivo, rico, célebre, pai de família,
o que falta "ainda no seu pdímarès?"19
Papin: "Não muitas coisas!?"
Delatte: "Veneza, talvez?"Papin: "Ah! Eu já fui lá..." <sorriso uni pouco constrangido>
Delatte: "Você já foi, oh" (silêncio um pouco constrangido).
"Bom!"
A troca começa pelos cumprimentos usuais, depois se encadeiacom uma questão do jornalista:
(8) "Você é jovem, esportivo, rico, célebre, pai de família, o que falta
ainda no seu palmarès?"
O termo palmarès significa "quadro de medalhas". {N.T.)
103
Análises do discurso hoje
Esta questão parece embaraçar o convidado, como se alguma coisa
de cacofônico aflorasse ali. Este sentimento difuso deve-se, sem dúvida,ao fato de associar os traços "rico e célebre" com o traço "pai de famí-
lia" na lista das qualidades do convidado; mas também na formulação
inábil de um pressuposto: o que falta pressupõe que realmente "algumacoisa falta a você".
Dito isso, o convidado aceita esse quadro de troca, ele responde
validando o pressuposto. E sua resposta, embora mínima, é correta:
Papin: "Não muitas coisas!?"
Delatte: "Veneza, talvez?"
Papin: "Ah! Eu já fui lá..." <sorriso um pouco constrangido>Delatte: "Você já foi, oh" (silêncio um pouco constrangido)
"Bom!"
que mostra que o apresentador esperava algo mais. De fato, ele remete
seu convidado a um lugar comum. O convidado persiste e o entrevis-tador fecha a troca.
Parece-nos ter aqui a impressão de uma troca malsucedida, apesarde uma estrutura completa como, precedentemente, na troca entre os
dois passantes; apesar também de uma boa vontade recíproca. Comefeito, coloca-se uma questão e responde-se a ela; depois pede-se
uma confirmação que é dada. A infelicidade comunicacional não é,
pois, totalmente dada pelas palavras. Este sentimento de infelicidade,se o admitimos, provém de um flutuamento no plano da situação,isto é, das identidades psicossociais dos sujeitos e, mais precisamen-
te, da maneira pela qual os parceiros se definem um em relação aooutro.
Assim, a pequena infelicidade localiza-se, inicialmente, no fato deo jornalista não conseguir se fazer reconhecer corno entrevistador. Sesua pergunta parece inesperada, é porque ela iludiu as expectativas:existem boas e más perguntas de entrevistadores. A pequena infelici-dade se dá na seqüência em que o jornalista não sabe chamar a aten-
104
cão
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
de seu convidado. Existem maneiras e maneiras de se chamar a
atenção, de onde advérn a idéia de um contrato tácito que se encontra
aqui, sobretudo, mal circunscrito, provocando uma espécie de espanto
respectivo diante dos assuntos propostos.Em resumo, nós sustentamos que todo discurso se compreende
levando-se em consideração um contrato pertinente que se manifesta
de diversas formas, de acordo com o que se tem como preferência,
palavras ou ações de papéis desempenhados pelos sujeitos.
S. Contrato didático
Podemos definir esquematicamente a relação entre um aluno e umprofessor. Como todo contrato de comunicação, ela supõe convencio-
nalmente três parâmetros:
a) \xmzjinaUaade ou um objetivo,b) por conseqüência, meios para atingir o objetivo,
c) e, enfim, conseqüências previsíveis da troca.
A finalidade da troca didática, qualquer que seja a sua particularidade,
nos parece ser globalmente FAZER CONHECER, isto é, comunicar saberesa alguém que não dispõe deles, ou que dispõe de maneira lacunar.20
Isso implica, em todos os casos, a idéia de um saber de referência, queconstitui o objetivo da troca e que funda a didaticidade da comunicação,
para retomar o termo de Beacco e Moirand (Langages, n. 117,1995). Osmeios da troca são, entre outros, atividades como "ensinar" ou "avaliar
conhecimentos", ou ainda "testemunhar seu interesse em aprender" oufazer aprender". Enfim, as conseqüências da troca didática, ou se o pre-
ferirmos, das expectativas, é a operacionalização possível em contextos
didáticos dos conhecimentos adquiridos pela troca didática.
que não se limita a uma transmissão mecanicista (conhecimento), mas implica, dedecisiva, uma consciência reflexiva: um co-nascimento.
Í05
Análises do discurso hoje Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
Uma das especificidades da comunicação didática então não é ser-
vir para seu próprio fim, mas testar, simular, encenar saberes e habilida-
des cujas expectativas estão em outra esíera. Nesse sentido, o contrato
didático se define pelo fato de considerar outros contratos cujas ex-
pectativas estão temporariamente neutralizadas. A troca didática tor-
na-se então o local a partir do qual se interroga a lógica contratual de
outros discursos, para apropriar-se disso conforme suas necessidades e
para, em seguida, melhor explorá-lo.
A troca didática apresenta, assim, por definição, uma forte propen-
são à cacofonia. Em virtude do contrato, esta não deveria ser vexatória
nem para o aluno nem para o professor. Sua relação implica, de fato,
produzir a cacofonia, desalojá-la, explicá-la. Chamar a atenção sobre
esta dimensão do contrato é, em suma, conjurar antecipadamente os-
estigmas que o uzalunu poderia vir a sofrer.
No entanto, nada impede que a cacofonia seja dolorosamente
vivida. Se o uzalunu é "inocente" no quadro didático, ele se torna
"faltoso", por vezes de maneira vergonhosa, em todos os contex-
tos futuros nos quais ele arrisca se manifestar e cujas expectativas
para a pessoa são totalmente diferentes. Dessa circunstância origina-
se o paradoxo do aluno. Em situação didática, ele pode e mesmo
deve cometer erros para evitar cometê-los em outros momentos.
Ao mesmo tempo, sua angústia cresce com a idéia de se mostrar e
de se aceitar como o uzalunu que ele talvez seja ou que se supõeque ele seja.
8. l. Identidades e papéis na troca didática
Para limitar a abrangência desse paradoxo, o contrato da troca didática
deve estabelecer contornos muito fechados. Consideremos o esquema
abaixo que sintetiza tanto as identidades do aluno e do professor quan-
to seus desempenhos de papéis, compreendidos como comportamen-
tos esperados e recorrentes.
106
]) Identidades e papéis em uma troca didática
TROCA DIDÁTICA
Professor(Atividade de comunicação)
i"Ser detentor de diploma"(Pré-condição social)
AIu n o -aprendiz(Atividade de comunicação)
t
"Estado d s saber lacunar"(Pre-condição social)
1
ENT1D
Ilustrando, podemos sustentar que a troca entre professor e aluno im-
plique, para o primeiro, pré-requisitos sociais, como o fato de ser habi-
litado a ensinar, por exemplo, possuindo um diploma e, para o segun-
do, ainda não dispor dos conhecimentos a ser adquiridos. Com efeito,
° uzalunu resulta de uma constatação endereçada por uma instância
autorizada a constatar: isto é, o professor. Esta constatação se direciona
Para uma instância a priori incapaz de conduzir esta verificação por si
Propria, isto é, o aluno. Estes parecem ser os limites mais englobantes
ua troca didática e estão ilustrados pelos retângulos superior e inferior
107
Análises do discurso hoje
do esquema. Nós postulamos a hipótese de que eles sustentam impli-
citamente os enunciados e marcam os limites além dos quais a trocacessa de ser didática.
Os desempenhos de papéis ilustrados pelos círculos do esquema
são os elementos que asseguram explicitamente a coordenação da tro-
ca didática. Os papéis colocam ern relação direta o professor e o aluno
em função das fases precisas da atividade didática. Assim, uma fase de
ensino supõe a atenção do aluno; uma fase de avaliação supõe corre-
lativamente que o aluno manifeste saberes e habilidades (e, portanto,
uzalunus). Os papéis constituem, a partir disso, retomadas estáveis que
permitem verificar a relação didática e tornar exatas as expectativas
dos uzalunus. Nesse sentido, os textos e os enunciados se produzem e
se interpretam sempre no quadro dos papéis específicos.
8.2. Níveis de enunáação na troca didática
Conseqüentemente, todo discurso constrói uni contexto enunciativo
em três níveis: (a) a. atividade de comunicação globalmente em curso
constitui um primeiro nível de enunciação, o âmbito mais engloban-
te; (b) os desempenhos de papéis que constituem, efetivamente, fases
pontuais da atividade global fundam um segundo nível; e, enfim, (c)
os enunciados, que manifestam a dimensão linguageira da atividade
de comunicação, constituem o terceiro nível da enunciaçào intervin-
do localmente. Podemos representar este três níveis de engajamento
enunciativo da seguinte forma:
2) Níveis de engajamento enunciativo
1 . { N Í V E L G L O B A L D A A T I V I D A D E }
2. { (nível das fases da atividade: desempenho de papéis ) }
3. { ( [ NÍVEL LOCAL DOS ENUNCIADOS ] ) }
108
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
Em um tal quadro, uma palavra como hêxito constrói, de imediato,
um contexto de interpretação com três desdobramentos. Estes fundam
a legibilidade dos enunciados no sentido de que funcionam como
marcas da intencionalidade em atividade convencionadas em um qua-
dro de comunicação. Assim, eles constróem em conjunto o formato da
pertinência dos enunciados. Nesse sentido, hêxito participa da constru-
ção de sua interpretabilidade sobre uni modo específico que podemos,
brevemente, descrever.
3) Nível global da atividade
{ N Í V E L G L O B A L D A A T I V I D A D E }
— relação entre um EU professor e EUs alunos.
Inicialmente, hêxito somente manifesta um uzalunu porque o atri-
buímos a um aluno na sua relação com um professor: isto é, apreende-
mos a manifestação linguageira do uzalunu em um nível global.
4) Nível pontual das fases da atividade
{ (nível das fases da atividade: desempenho de papéis ) }
— relação entre um EU avaliador e EUs mostrando suas habilidades.
Em seguida, hêxito somente manifesta um uzalunu porque o atri-
buímos a um aluno no papel em que este supostamente mostra com-
petências específicas: por exemplo, ortográficas. Em outros termos,
localizamos o uzalunu, mais precisamente no interior do dispositivo
enunciativo, como um elemento pertinente de um desempenho de
papel.
109
Analises do discurso hoje
5) Nível local aos enunciados como traços da atividade
{ ( [ N I V E L L O C A L D O S E N U N C I A D O S ] ) }
= relação entre as marcas lingüísticas de "Eu"
"hlxito"
"Você escreveu 'hêxito'!"
Enfim, hêxito somente manifesta um uzalunu porque sua aparição
foi notada pelo professor: um traço material e linguageiro é marcado e
comentado, o que supõe uma ocorrência pontual e preambular, assim
corno sua inscrição nos dois outros níveis de enunciação.
9. Expectativas ídentítárias do uzalunu
Se a materialidade hêxito permanece uniforme em qualquer que seja
o contexto, logo, suas expectativas comunicacionais são variadas. Elas
não desencadeiam, forçosamente, uma construção de uma identidade
de uzalunu, nem a estigmatizam — quando aparece — associando-lhe
irremediavelmente conotações negativas. As expectativas ídentitáriasdo uzalunu dependem assim, amplamente, do desempenho do papel
que as faz advir e do seu reconhecimento. Podemos evocar rapida-mente três casos ilustrativos.
9.1.O bom uzalunu
O uzalunu somente aparece como tal na seguinte configuração: o res-
ponsável pela enunciação é a entidade polifônica "aluno" considerada
em seu papel de "mostrar saberes e habilidades" e, mais precisamen-te ainda, competências avaliadas sob a medida de normas evidentes,como as normas ortográficas.
6) Em fase da atividade AVALIAR; competências ortográficas (escrever correto)
{EU -ALUNO (EU - papel "mostrar competências" [EU - "hê-xito" ] ) }
110
Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna
Nesta configuração, concebe-se que hêxito seja o objeto do ajusta-
mento e de uma avaliação negativa pelo professor. Nessa perspectiva,
a constatação do erro não é vexatória para EU-ALUNO, ou pelo menos
não o deveria ser. De fato, o aluno realiza as expectativas do contrato
didático: o uzalunu se manifesta para ser corrigido e,por conseqüência,
não engaja nenhuma expectativa identitária marcada.
9.2. O uzalunu virtual
Ao contrario, podemos visualizar, sempre nesta configuração, que um
uzalunu pode não ser identificado e que isso possa ser virtualmente
vexatório para o professor. Nesse caso, pode até mesmo ter sua credi-
bilidade comprometida, caso um olho atento externo venha observar-
lhe o esquecimento da correção. Esquecer o uzalunu é negá-lo. E isso
eqüivale a pontuar uma falha na relação didática, construindo uma
identidade "inesperada" do professor.
9.3. O uzalunu autônomo
Enfim, mostrar o uzalunu, mas lhe imputar um julgamento positivo,
só é possível se visualizarmos um desempenho de papel inesperado
por parte do professor. Isso implica, por exemplo, passar ou, sobretu-
do, transitar por uma fase de atividade "avaliar outra coisa que não a
ortografia". Assim, o professor valoriza a imagem do ALUNO apesar de
— ou graças a — seu erro. Por conseqüência, o uzalunu é reconsidera-
do a partir de um lugar ou perspectiva diferente, e este distanciamento
enunciativo é, sem dúvidas, salutar. Na realidade, podemos pensar que
a utopia didática consiste em libertar a relação do aluno com seus uza-
lunus, tornando-a autônoma.
10. Conclusão
Na busca do ideal jamesiano — tornar o aluno responsável por si mesmo
~~— o professor, que tem a tendência a impedir os erros "para não os ver
111
Análises da discurso hoje Uzalunu: Análise ao Discurso e ensino de língua materna
mais", deve, ao contrário, dar ouvidos às vozes dos uzalunus, para, tendo-
as ouvido, devolvê-las para seus responsáveis. Este desempenho do papel
da escuta das cacofonias pede uma atenção de maestro de orquestra, meio
focalizada, meio flutuante. Ela é inesperada, já que é pouco praticada, e
não pertence ao repertório das práticas sociais de base. Neste caso, não é
somente a responsabilidade dos professores que está engajada.
Referências
AUCHLIN, A. "Approche expérientielle de Ia communication écrite
(présentation)". In: Cahíers de linguisíiquefrançaise 18,1996a, p. 331-
338.
. "Du texte à Ia compétence discursive: lê diagnostic comme
opération empathico-inductive". In: Cahiers de linguistique française
18,1996b, p. 339-355.
/'Lês dimensions de 1'analyse pragmatique du discours dans
une approche expérientielle et systémique de Ia compétence dis-
cursive". In:VERSCHUEREN,J. (éd.). Pragmatics in 1998: Selected
Papers from the ffh International Pragmatics Conference, v. 2, Anvers:
IPrA,1998,p. 1-21.
."Ethos et expérience du discours: quelques remarques". In:
Actes du colloque "Politesse et idéologie", U.C.L. Louvain-la-Neuve,
novembre 1998 (no prelo).
BEREITER, C."Development in Writing". In: GREGG, L.; STEIN-
BERG, E. (éds.). Cognitive Processes in Writing. Lawrence Erlbaum
Associates: Hillsdale (N.J.), 1980, p. 73-93.
BEREITER, C.; SCARDAMALIA, M. Surpassing Ourselves: an Inquiry
into the Nature and Implications of Expertise, Chicago, La Salle III:
Open Court, 1993.
BRONCKART, J.-P. Activité langagière, textes et discours. Paris: Dela-
chaux et Niestlé, 1996.
BURGER M. "Positions d'interaction: une approche modulaire". In:
Cahiers de linguistique fiançaise 19,1997, p. 11-46.
112
CHARAUDEAU, P. "Lê contrat de communication dans Ia situation
classe". In: Ulntemction, adualíté de Ia recherche et enjeux didactíques.
Universidade de Metz, 1993, p. 121-135.
. "Roles sociaux et roles langagiers". In:VERONIQUE, D.;
VION, R. (éds.). Modeles de Tintemction verbale.Aix, Publications de
1'Université d'Aix-en-Provence, 1995,p.79-96.
CICOUREL A. La sociologie cognitive. Paris: P.U.F., 1979.
0ELFORCE, B. "Didactique et compétence de communication:
compétence du sujet ou Heux problématiques dês discours". In:
Modeles linguistiques 11,1989, p. 59-79.
DUCROT, O. et ai Lês mots du discours. Paris: Minuit, 1980.
. Lê dire et lê dit. Paris: Minuit, 1984.
GOFFMAN, E. La mise en scène de Ia vie quotidienne, 2 tomes, Paris:
Minuit, 1973.GRABOWSKI, J. "Writing and Speaking: Common Grounds and
Ditferences, Toward a Regulation Theory of Written Language
Production". In: LEVY, CM.; RANSDELL, S. (éds.). The Science
of Writing, Theories, Methods, Individual Diferences, and Applications.
Lawrence Erlbaum Associates: Mahwah (N.J.), 1996, p. 73-92.
HABERMASJ. Théorie de T agir communicationnel Paris: Seuil, 1987.
HAYES, J.R. "A New Framework for Understanding Cognition
and Affect in Writing". In: LEVY, C.M.; RANDELL, S. (éds.).
The Science of Writing, Theories, Methods, lindividual Differences, and
Applications. Lawrence Erlbaum Associates: Mahwah (N.J.), 1996,
p. 1-28.HYMES, D.H. Vers Ia compétence de communication. Paris: Hatier-credif,
1984.
JAMES,W Conférences sur Téducation,Paris: L'Harmattan, 1996 [1992].
LACAN, J. Lê séminaire, livre II. Paris: Seuil, 1978.
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we Live by. Chicago: Umver-
sity of Chicago Press, 1980.LANGAGES 117. Contributions de Achard, P, BeaccoJ.P.; Moirand,
S., BoutetJ., Gardin, B.; Lacoste, M., 1995.
Análises do discurso hoje
MILNER, J.-C. Introduction à une sdence du langage. Paris: Seuil, 1989.
MOESCHLERJ. Dire et contredire. Pragmatique de Ia négation et acte de
réfutation dam Ia conversation. Berne: Lang, 1982.
NUNEZ R. "Eating Soup with Chopsticks: Dogmas, Difficulties, and
Alternatives in the Study of Conscious Experience". In: Journal of
Consáousness Studies, 4-2,1997, p. 143-166.
REBOUL, A.; MOESCHLERJ. Pragmatique du discours. Paris: Colin,1998.
REICHLER-BÉGUELIN M.-J. "L'approche dês "anomalies" argu-mentatives". In: Pratiques, n. 73,1992, p. 51-78.
RICARDOUJ."Écrire en classe". In: Pratiques, n. 20,1978, p. 23-70ROULET, E. et ai. L'articulation du discours enfrançaís contemporain. Ber-
ne: Peter Lang, 1985.
. La description de l'organisation du discours. Dês dialogues orauxaux discours écrits. Paris: Didier, 1999.
SHOTTER J. Conversational Realities. London: Sage, 1994.
; GERGEN,K. (éds.). Texts ofldentity. London: Sage, 1989.SIMON,A.C. "Compte-rendu de Pragmatique du discours (Moeschler,
J.; Reboul,A.; Colin, 1998)" In: Revue de sémantíque et de pragma-
tique5,1999, p. 171-180.
STROUMZA, K. "Intégrité dês formes de l'écrit". In: Cahiers de lin~guistiquefrançaise 18,1996, p. 357-380.
; AUCHLIN, A. "L'étrange polyphonie du texte de
1'apprenti rédacteur". In: Cahiers de linguistique française 19, 1997,p. 267-304.
MEMÓRIA, LINGUAGENS,CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
114
Beth Braít (PU C-SP/USP/CNPq)
"E o senhor, como se chama?"
"Espere, está na ponta da língua''
Tudo começou assim.
{UMBERTO Eco)
1. Considerações indispensáveis
Sem insistir na discussão de determinados conceitos sugeridos pelos
trabalhos de Bakhtin e seu Círculo, este texto procurará, pela leitura
do corpus selecionado, utilizar sugestões teóricas que marcam o que
hoje se pode denominar análise/ teoria dialogica do discurso. Dentre essas
sugestões destacam-se: a) a multiplicidade de discursos que constituemum texto ou um conjunto de textos e que se modificam, se alteram ou
subvertem suas relações, por força da mudança de esfera de circulação;
b) as relações dialógicas como objeto de uma disciplina interdisciplinar,
denominada por Bakhtin metalingüística ou translingüística, e que hoje
Pode ser tomada como embrião da análise/ teoria dialogica do discur-s°; c) o pressuposto teórico-rnetodológico de que as relações âialógicasSe estabelecem a partir do ponto de vista assumido por um sujeito;
Análises do discurso hoje
d) as conseqüências teórico-metodológicas de que as relações dialógicas
não são dadas, não estando, portanto, jamais prontas e acabadas num
determinado objeto de pesquisa, mas sempre estabelecidas a partir de
um ponto de vista; e) o papel das linguagens e dos sujeitos na cons-
trução dos sentidos; f) a concepção de texto, independentemente da
natureza de seus planos de expressão, como assinatura de um sujeito,
individual ou coletivo, que mobiliza discursos históricos, sociais e cul-
turais para constituí-lo e constituir-se.
Considerando esses aspectos, o objetivo deste texto é apresentar
algumas formas de produção do sentido em textos que mobilizam dis-
cursos verbais, visuais e verbo-visuais, tendo a memória e seus sujeitos
como tema privilegiado. Para tanto, a perspectiva escolhida é a análise/
teoria dialógica do discurso, vertente que, no vasto conjunto das pesquisas,
incluídas sob a denominação análise do discurso, assume forma, perfil e
consistência própria.
2. Aproximação de uma análise/ teoria dialógíca dodiscurso
Em linhas gerais e sem estabelecer uma definição fechada, uma vez que
esse fechamento significaria uma contradição em relação aos termos
que postulam a análise/ teoria dialógica do discurso, é possível expli-
citar seu embasamento constitutivo como sendo a indissolúvel relação
existente entre língua, linguagens, história e sujeitos. E é essa condição
substantiva que a faz enfrentar os estudos da linguagem como lugares
de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável,
e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias
dominantes em determinadas épocas. A concepção de linguagem, de
construção e produção de sentidos está necessariamente apoiada nas
relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados.
Nessa perspectiva, os estudos da linguagem são concebidos como formu-
lações em que o conhecimento é produzido e recebido em contextos
históricos e culturais específicos, pautando-se o pesquisador, necessa-
116
Memória, linguagens, construção de sentidos
ríamente, por uma ética que tem na linguagem, e em suas implicações
nas atividades humanas, seu objetivo primeiro. Sob esse prisma, as ati-
vidades artísticas, intelectuais, acadêmicas, etc. são enfrentadas como
estando sempre atravessadas por idiossincrasias, singularidades, que têm
a ver com sua natureza e com o ponto de vista que as focaliza.
Essa perspectiva, ao mesmo tempo teórica e analítica, origina-se e
firma-se de maneira curiosa. Sem que tivesse sido proposta formalmen-
te e sem a historicidade consagrada à Análise do Discurso Francesa, por
exemplo, instaura-se a partir das obras escritas por Bakhtin e seu Cír-
culo e, mais especificamente, pela maneira como essas obras foram sen-
do conhecidas, lidas e interpretadas nas últimas décadas. É importante
considerar que nos anos 1990 o pensamento e os escritos bakhtinianos
passam a ser reconhecidos e explicitados como produto de trabalhos de
vários autores, aí incluídos Mikhail Bakhtin (1895-1975), Matvei Isae-
vich Kagan (1889-1937); Pavel Nikolaevich Medvedev (1891-1938);
Lev Vasilievich Pumpianskii (1891-1940); Ivan Ivanovich Sollertinskii
(1902-1944);Valentin NikolaevichVoloshinov (1895-1936) e outros.
Independentemente do peso intelectual e das especialidades de cada
um dos membros dessa verdadeira esfera intelectual denominada poste-
riormente Círculo de Bakhtin, a abundância temática e reflexiva carac-
terizada pelo amplo leque formado pelos escritos desses autores expõe
uma filosofia da linguagem que polemiza, no momento de sua pro-
dução, com a lingüística, com a psicanálise, com a teoria literária e, de
maneira mais específica, com as culturas e ideologias marcantes naquele
momento. Hoje, graças ao poderoso arcabouço de conceitos e reflexões
representado pelo conjunto dos textos, fortes elos são estabelecidos com
várias áreas do conhecimento, caso da antropologia, dos estudos da lin-
guagem em geral, da historiografia, das teorias políticas, etc.
É nesse multifacetado panorama que a análise/ teoria dialógica do
discurso1 surgiu, estabelecendo diálogo com outras perspectivas enun-
Para mais detalhes, consultar Brait, B. "Análise e teoria do discurso". In: Bakhtin:°utros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 9-31.
117
Análises do discurso hoje
ciativas e discursivas, e, mais fortemente, com aquelas que têm no su-
jeito histórico, social, múltiplo, o centro de suas preocupações e que
entendem a linguagem como constitutiva desses sujeitos.
3. Memória: língua e linguagens costurando sentidos
O arcabouço advindo dos trabalhos de Bakhtin e seu Círculo pode,
com adaptações que dizem respeito às singularidades das linguagens
escolhidas para análise e interpretação, oferecer elementos para a leitura
do verbal, como tradicionalmente os trabalhos têm sido entendidos, e
do visual, como fica sugerido em vários textos de alguns dos autores.
Para este texto, e de acordo com pesquisa em andamento, a hipótese
principal é a de que, em determinados textos, a articulação entre os ele-
mentos verbais e visuais forma um todo indissolúvel, cuja unidade exi-
ge do analista o reconhecimento dessa particularidade e a utilização de
metodologia e fundamentação teórica compatíveis com essa realidade.
Para discutir e enfrentar essa hipótese, recorro a três publicações
que, de diferentes formas, possibilitam a compreensão da memória
como construção em que um sujeito, individual ou coletivo, atribui
sentido à própria existência ou a um ou mais aspectos da vida cole-
tiva, do universo em que se insere, da instância espaço-temporal em
que se coloca para se compreender e compreender o mundo. Essa
concepção, como não poderia deixar de ser, está diretamente ligada à
linguagem enquanto constitutiva do homem e de todas as atividades
que ele desenvolve, pratica e que, necessariamente, o constituem. Esse
conceito de linguagem, por sua vez, implicando memória e implicado
em memória, envolve tanto a língua, enquanto manifestação verbal,
isto é, manifestação oral e escrita da linguagem, como as demais mani-
festações, de cunho visual e mesmo verbo-visual.
As obras escolhidas como corpus deste trabalho nào têm caráter teó-
rico ou científico, no sentido de discutir objetivamente um conceito
de memória. Na verdade, são produções estéticas, de diferentes gêneros,
que mobilizam a questão da memória, das memórias, das lembranças,
118
Memória, linguagens, construção de sentidos
dos esquecimentos, em relação direta com a língua, com as produções
visuais, verbo-visuais e com a linguagem em geral, expondo, de manei-
ra contundente, a construção de sentidos, de sujeitos e de identidades.
Os trechos delas destacados e aqui apresentados reforçam os estreitos
laços que unem memória e língua, memória e outras linguagens.
3. i. A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustrado, de
Umberto Eco
A primeira obra escolhida é A misteriosa chama da minha Loana. Romance
ilustrado, de autoria do italiano Umberto Eco, que teve sua primeira edi-
ção em 2004/ Milão, e tradução brasileira, de Eliana Aguiar, em 2005.
Esse romance, cujo gênero fica definido na segunda parte do título
— "romance ilustrado" —, é, por assim dizer, um texto híbrido em que
há uma confluência entre a narrativa verbal e a narrativa visual, de for-
ma a promover uma forte e inegável interdependência dos dois planos
de expressão. Isso significa que o visual, em lugar de funcionar como
mera ilustração para o verbal, como poderia sugerir uma leitura super-
ficial da segunda parte do título, participa ativamente da construção de
sentidos e de efeitos de sentidos. O escritor lança mão desse privilegia-
do recurso, que parece abranger uma gama muito grande de linguagens
e, portanto, apresentar-se como suficiente para satisfazer plenamente as
necessidades de informação dos sujeitos, com a finalidade de montar
uma história em que, ironicamente, o protagonista é alguém que acorda
uni determinado dia e descobre que perdeu a memória.
Curiosamente, não toda a memória. Ele perdeu a memória afeti-
va, a memória ligada à sua identidade civil, às pessoas próximas, à sua
história pessoal. Restou-lhe, entretanto, uma memória viva, atuante,
constituída pelas leituras feitas durante essa vida da qual ele não conse-
gue se lembrar. E essa memória cultural, artística e, mais especialmente,
literária, começa a falar por ele, sem que ele tenha controle sobre ela,
sem que ele a evoque conscientemente. A qualquer pergunta, a qual-
quer tentativa de responder quem é, de demonstrar conhecimento
119
Análises do discurso hoje
a respeito das pessoas que o rodeiam, ele profere citações, paráfrases,trechos de obras, falas de personagens. Esse mundo literário, ficcional,fala por ele, como se fosse ele, assumindo-se como o que resta dele. E,
durante toda narrativa, o protagonista sai em busca desses textos vivos
que, como cacos de um mosaico, precisam ser remontados.
O começo dessa situação de sofrimento, que necessariamente im-
pulsiona o protagonista a fazer um esforço doloroso para reconstituirsua memória, se reconstituir e dar sentido a si mesmo, aparece no tre-
cho inicial do primeiro capítulo da primeira parte. E justamente essetrecho que está aqui recortado, antes mesmo da articulação com o vi-
sual, e que foi escolhido pela sua condição privilegiada e expressiva nosentido de se colocar como momento inaugural, fundador, primeiro,em que as relações entre língua e memória se expõem como busca da
construção dos sentidos que referendam um sujeito, ou seja, o sujeitoperdido em busca do qual se mobiliza a narrativa toda.
"E o senhor, como se chama?"
"Espere, está na ponta da língua"
Tudo começou assim.
{ECO, 2005, p. 9)
Nessas frases iniciais do romance, a questão da identidade se colo-ca lingüisticamente como memória/ esquecimento, por meio de umbreve diálogo entre dois interlocutores e que é finalizado por uma
terceira voz: a do narrador. Há uma interrogação que vem de umdos interlocutores. Há uma resposta a essa interrogação que se coloca
como esquecimento e que se reveste de uma entonação de súplica,dada pelo verbo esperar, no imperativo, e pela expressão "está na pontada língua". Esse outro interlocutor, que em breve o leitor saberá queé o protagonista, afirma a possibilidade da resposta, do conteúdo daidentidade, por meio da língua, mas não chega a ela. A asserçâo donarrador — "Tudo começou assim" — completa o conjunto, que seoferece como início, começo, ato inaugural.
120
Memória, linguagens, construção de sentidos
Se, por um lado, há uma inegável intertextualidade com "no co-
meço era o verbo", que evoca uma memória bíblica para dar sentido
ao homem, para situar miticamente a vida, há também a ausência do
nome, da designação da pessoa, de sua prova primeira de identidade,
aspecto que marca lingüisticamente a falta, a ausência, a fratura desse
sujeito. Esse nome é buscado, desesperadamente, por meio da expres-são "está na ponta da língua". Essa expressão é curiosa porque funcio-
na como ponto de partida para a compreensão do protagonista e do
romance como um todo. Seu significado, como se sabe, está ligado a
"muito bem estudado, decorado, aprendido", ligando a expressão à
vida do aprendizado, da escola, de um significado dominado que deve-ria vir de pronto, de imediato. Entretanto, embora ligado a um conhe-
cimento e tendo o verbo estar no presente, refere-se a uma ausência,algo que já esteve, que deveria estar, que provavelmente estará, mas que
não se concretiza nesse momento: está na ponta da Kngua, pronto para
sair, rnas não se consuma.Por outro lado, e de forma complementar, a expressão pode ser
compreendida de uma outra maneira. Se a ponta da língua for tomada
metaforicamente como fio, aí ela funcionará como elo, como cordão(umbilical?) que será puxado pelo sujeito para chegar ao nome, para
exibir o nome, a designação, a identidade, a memória.E é a essa ponta exposta da língua, que esconde muito mais do
que mostra, que o protagonista vai se agarrar e, como herói do avesso,vai retornar aos espaços de sua infância, de sua adolescência para, nos
sótãos, nas prateleiras, socorrer-se das linguagens, caso dos livros, dis-cos, publicidades, revistas, etc., com o objetivo de moldar peças e, comelas, re-significar sua existência, traçar sua memória. E aí o caminho
da língua, das leituras, mesmo não sendo o único, constitui-se comoum começo adâmico, como uni reencontro com o que, tendo sido e
existido, não existia mais no nível da consciência. Para adentrar o rei-n° da significância ele tem, necessariamente, de buscar seus temas vialinguagens que o constituíram, recuperando, pelo reconhecimento da
, a sua identidade.
121
Análises do discurso hoje ._./'
3.2. Istambul. Memória e cidade, de Orhan Pamuk
A segunda obra escolhida é Istambul Memória e cidade, de autoria doturco Orhan Pamuk, que teve a primeira edição em 2003 e a tradução
brasileira, de Sérgio Flaksman, feita a partir da edição inglesa, em 2007.Esse livro é uma autobiografia ilustrada com fotos e alguns dese-
nhos, que se confunde com uma espécie de biografia da cidade de
Istambul. A memória que impulsiona a narrativa se constrói na in-
tersecçào das identidades sujeito/ cidade, oriente/ ocidente, sentidos
perdidos/ simulados/ reconstruídos.
E é justamente essa característica híbrida que aproxima essa obra do
romance de Eco.Também aqui, a construção da memória se dá a partirdo recurso às linguagens verbal e visual, como uma indicação de que o
mundo chega, e se vai, por meio desses dois planos de expressão e, não
raras vezes, por meio da articulação indissolúvel de ambos. Esse texto,mais declaradamente autobiográfico que o de Eco, coloca o foco em
lugares sociais e afetivos naturalmente diferentes, na medida em quetrata de outro sujeito, outros espaços, outra cultura. Entretanto, o trecho
escolhido, como o anterior, estabelece uma significativa relação entrelíngua e memória. A língua turca, enquanto sistema lingüístico, prevêformas diferentes de sistematizar e mobilizar a memória, possibilitando
aos falantes usar tempos verbais que distinguem o que foi visto, teste-
munhado, daquilo que foi ouvido a partir de relato de outras pessoas.
Em turco, temos um tempo verbal específico que nos permite distinguir
o que ouvimos dizer daquilo que vimos com os próprios olhos; quando
relatamos sonhos, contos de fadas ou fatos do passado que nào podemos
ter testemunhado, é esse o tempo que usamos. É uma distinção muito
útil quando "rememoramos" as nossas primeiras experiências de vida, o
berço em que dormimos, o carrinho de bebê em que éramos empurrados,
nossos primeiros passos, tudo da maneira como nos foi contado pelos pais,
histórias que ouvimos com a mesma atenção arrebatada que poderíamos
dar a algum relato brilhante de outra pessoa. E uma sensação tão agra-
dável quanto a de nos ver a nós mesmos em sonho, mas pagamos por ela
322
Memória, linguagens, construção de sentidos
um preço elevado. Depois que se gravam em nossos espíritos, os relatos
alheios sobre o que fizemos passam a contar mais do que as coisas de que
nós mesmos nos lembramos. (PAMUK, 2007, p. 16)
É curioso como o autor demonstra, nesse trecho, a funcionalidade
desses diferentes tempos verbais que reconstituem o passado, distin-
guindo vivido de ouvido. É por meio desse recurso lingüístico que o
indivíduo pode falar de si mesmo pela via de um desdobramento,
posicionando-se no lugar de quem olha e de quem é olhado. Ao mes-mo tempo em que constata essa riqueza da língua e a importância
para a precisão de referências da memória, sinaliza uma conseqüênciaperversa. Por força da relação língua-memória proporcionada por essaduplicidade temporal, a sedução dos discursos ouvidos ganha espaço
em relação aos eventos vividos e passa a ocupar um lugar maior, de
sobreposição. Num certo sentido, essa reflexão sobre a relação língua-memória está diretamente ligada à narrativa que ele está construindo.Nela, como na de Umberto Eco, a memória é reconstruída ou, maisespecificamente, construída com muita pesquisa, envolvendo mais coi-
sas ouvidas e lidas do que coisas vividas e hipoteticamente guardadasem uma memória virtual e pronta a aparecer e fazer sentido.
Isso não significa que a memória seja somente construção de sen-tidos por oposição a vivências. De fato a memória implica, como nãopoderia deixar de ser, coisas vividas e prenhes de sentido. Entretanto, aforça da língua e, nesse caso, a especificidade da língua turca que pode
distinguir, para efeito de memória, o que foi vivido do que foi ouvido,acaba por constituir-se como uma forma não apenas de construção,
mas de fragmentação/ multiplicação do próprio sujeito. Isso, de certaforma, corrobora a idéia bakhtiniana de que o eu se constitui no nós,a partir dos outros e somente com os outros. Idéia central para o pen-samento dialógico: o eu, de diferentes e complexas formas, constitui asua individualidade, as suas identidades, a partir dos outros e da manei-ra como esses outros atuam lingüística e discursivamente nos diferentes
planos de sua existência. Isso está em Pamuk e está em Eco. Nas duas
narrativas, entretanto, o constituir-se pelo outro significa, precisamente
123
Análises do discurso hoje
como no pensamento bakhtiniano, não um assujeitamento, mas uma
imensa luta responsiva, estridente, para fazer o eu ser uma entre as tan-
tas vozes que constituem a polifonia da existência.
3.3. Mani-Oca (Maison de Mani)
O terceiro texto escolhido para discutir as relações memória, lingua-
gens, construção de sentidos é uma versão francesa da lenda sobre o
nascimento da mandioca, que se encontra na obra Legendes, croyances
et talismans dês indiens de. 1'Amazone/ Lendas, crenças e talismãs dos ín-
dios do Amazonas, publicada pela primeira vez em Paris em 1923, em
francês, com adaptações dos textos feitas pelo francês P.-L. Duchartre
e ilustrações do artista pernambucano Vicente do Rego Monteiro.
O pesquisador brasileiro Jorge Schwartz fez reaparecer essa obra em
2005, agora com tradução da pesquisadora e tradutora Regina Salga-
do, numa edição-caixa intitulada Do Amazonas a Paris. Aí se encon-
tram edições fac-similares de Legendes croyances et talismans dês indiens
de l'Amazone e Quelques visages de Paris, com as traduções e os respec-
tivos comentários.
MANI-OCA
124
Memória, linguagens, construção de sentidos
MANI-OCA2 (Maison de Mani)
11 y a longemps Ia filie d'un tuchaua (chef) devint enceinte.
Lê tuchaua volait punir 1'aniant de sã filie.
Mais devant lês prières conime lês menaces Ia jeune fiUe restait insensible,
disant qu'elle n1 avait jamais connu l'homme.
Lê chef avait decide de Ia tuer quand i] lui vint un songe.
Un homme tout blanc lui apparut et lui dit:
"Ne tue pás tá filie car elle est innocente; elle n'a jamais connu
1'homme".
Neufmois après Ia vierge accoucha d'une filie d'une rare beauté,mais elle
était tout à fait blanche.
Ce fait causa une grande surprise, non seulement dans sã tribu mais dans
lês tribus voisines qui vcnaient pour Ia regarder.
La petite filie reçu lê nom de Mani. Elle marcha et parla de três boniie
heure.Une année après sã naissance elle mourut sans avoir été rnalade et sans
avoir ressenti aucune souíFrance.
Elle fut enterrée dans sã propre hutte.Tous lês jours on découvrait et on
arrosait Ia sépulture, selon lê coutume.
Au bout de quelque temps une plante tout à fait inconnue poussa en cet
endroit et pour cette raison personne n'osa 1'arracher.
La plante poussa, fleurit et donna dcs fruits. Lês oiseaux qui en mange-
aient, aussitôt devenaient ivres.
Puis il arriva que Ia terre se fendit.
AJors on put reconnaitre dans Ia racine, toute blanche dans k terre, lê
corps même de Mani.
Ainsi lês hommes ont appris à manger lê manioc, appelé de cette façon
parce que Ia racine est Ia demeure de Mani.
2 Imagem: SCHWARTZ, J. (org.). Do Amazonas a Paris. As lendas indígenas de Vicente
ao Rego Monteiro. Edição fac-similar. Tradução e notas Regina Salgado Campos. São
Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2005.
125
Análises do discurso hoje
Embora não haja menção, o texto francês foi, certamente, baseado
no texto registrado por Couto de Magalhães (1837-1898) em O Se/-
vagem, obra escrita a pedido de D. Pedro II para figurar na Exposição de
Filadélfia, em 1876. É um tratado sobre o idioma, os usos, os costumes
e os mitos dos índios brasileiros. Foi recuperado, mais tarde, por Câ-
mara Cascudo e aparece no Dicionário ao Folclore Brasileiro. 4. ed. São
Paulo: Global Editorial, 2005, p. 357, e, na versão de 2005, Regina
Salgado transcreve indicando essas mesmas fontes.
MANI-OCA (Casa de Mani)
Em tempos idos, apareceu grávida a filha dum selvagem, que residia nas
imediações do lugar em que está hoje a cidade de Santarém.
O chefe quis punir no autor da desonra de sua filha a ofensa que sofrerá
seu orgulho e, para saber quem ele era, empregou debalde rogos, ameaças
e por fim castigos severos.
Tanto diante dos rogos corno diante dos castigos a moça permaneceu
inflexível, dizendo que nunca tinha tido relação com homem algum.
O chefe tinha deliberado matá-la, quando lhe apareceu em sonho um
homem branco, que lhe disse que não matasse a moça, porque ela efetiva-
mente era inocente, e não tinha tido relação com homem.
Passados os nove meses, ela deu à luz uma menina lindíssima e branca,
causando este último fato a surpresa não só da tribo como das nações
vizinhas, que vieram visitar a criança, para ver aquela nova e desconhecida
raça.
A criança, que teve o nome de Mani e que andava e falava precocemente,
morreu ao cabo de um ano, sem ter adoecido e sem dar mostras de dor.
Foi ela enterrada dentro da própria casa, descobrindo-se e regando-se
diariamente a sepultura, segundo o costume do povo.
Ao cabo de algum tempo, brotou da cova uma planta que, por ser inteira-
mente desconhecida, deixaram de arrancar. Cresceu, floresceu e deu fru-
tos. Os pássaros que comeram os frutos se embriagaram, e este fenômeno,
desconhecido dos índios, aumentou-lhes a superstição pela planta.
Í26
Memória, linguagens, construção de sentidos
A terra afinal fendeu-se, cavaram-na e julgaram reconhecer no fruto que
encontraram o corpo de Mani.
Comeram-no e assim aprenderam a usar a mandioca.
O fruto recebeu o nome de Mani-oca que quer dizer: casa ou transfor-
mação de Mani.
O percurso dessa memória coletiva representada pela lenda é bas-
tante curioso. Recuperando o rastro desses registros, tem-se, inicial-
mente, a passagem da oralidade primitiva para a escrita portuguesa,
processo realizado por um pesquisador que, no século XIX, ouviu
o indígena, registrou sua fala, traduziu para o português e conseguiu
imprimir em letras de forma, perpetuando o relato, a memória de um
povo. O objetivo de registro indica tripla preocupação: transforma-
ção da oralidade constitutiva da cultura em questão em escrita que
a perpetuasse; preservação da identidade e da memória de um povo;
divulgação de narrativas que dão sentido ao universo dos indígenas
brasileiros, projetando-os para além de suas fronteiras.
Essa passagem do oral para o escrito, implicando o contato de duas
línguas, de forma que urna se transforma em outra, necessariamente
incorpora e faz circular diferentes discursos, construindo diferentes
sentidos e produzindo diferentes memórias, especialmente se forem
consideradas as diferentes esferas de produção, circulação, recepção aí
implicadas. Aquilo que estava muito próximo do mito transforma-se,
pelo registro etnográfico, em dimensão histórica, antropológica, pas-
sando de narrativa com funções sociais, culturais, a lenda registrada.
Um outro gênero, um outro funcionamento. O mesmo vai se dar com
° registro etnográfico em português ao ser passado para a língua fran-
cesa com desenhos de Rego Monteiro.
O efeito da dimensão verbo-visual construída para abrigar a nar-
rativa, associando a língua francesa a desenhos de um artista brasileiro,
pernambucano, residente na Cidade Luz naquele momento, é a inte-
gral re-significação da lenda, nurna atitude explicitamente antropofa-
ã^a. Se o ponto de vista indígena é intensificado, fazendo novamente
127
Análises do discurso hoje
dialogar mito e arte, outros discursos passam a constituir esse texto
verbo-visual, mostrando o viés da língua estrangeira que enuncia a
narrativa, o cosmopolitismo da linguagem visual e, conseqüentementeum conjunto de assinaturas que transitam do mito à arte, de um tempo
imemorial à virada do século XIX para o XX, com os traços caracte-
rísticos da vanguarda, das artes européias.
A verbo-visualização antropofagica concretiza-se por meio de vo-
zes de diferentes fontes, cuja materialidade, lingüística e visual, sinaliza
lugares discursivos, sociais, culturais e artísticos, que apontam para além
daqueles explicitados como sendo a América, de onde a lenda é ori-
ginária, e a França, pátria da língua em que a lenda foi traduzida. Há,
pelo efeito do conjunto, uma espécie de plurilingüismo verbo-visual,
o qual vai gerando uma multiplicidade de sentidos e efeitos de sentido
que vão muito além da tradução de uma língua para outra e da riqueza
da ilustração dedicada à lenda. É o conjunto que se oferece como um
complexo de vozes, de discursos que fazem circular imaginários e for-
mas de traze-los para dentro do texto, fazendo-os circular em direçãoa uma recepção múltipla.
Um dos elementos que possibilita essa afirmação, essa apreensão
da lenda sob um prisma inusitado, que preserva sua identidade e, ao
mesmo tempo, revela a alteridade que a enuncia, é a condição do
ilustrador, artista situado em diferentes lugares geográficos, culturais
e estéticos, sujeito múltiplo que imprime sua voz por meio do texto
visual que redimensiona a leitura da lenda. Ele deixa sua assinatura a
partir de um ponto de vista estético-cultural que, curiosamente, não é
exclusivamente brasileiro ou ficticiamente indígena. Isso se deve não
apenas à sua privilegiada condição de artista, mas de artista brasileiro
que foi para a França pela primeira vez aos 11 anos, que circulou entre
Paris, Recife e Rio de Janeiro inúmeras vezes, vivenciando, portanto,
a língua francesa e a língua portuguesa, assim como as duas culturas
— a européia e a brasileira —, desfrutando e participando dos movi-
mentos artísticos que caracterizam as primeiras décadas do século XX-
Acrescente-se a isso tudo a explícita valorização das raízes brasileiras
128
Memória, linguagens, construção <te sentidos
fincadas no universo indígena, conseqüência de sua visceral ligação
com a pátria de origem, mas também com o tema do primitivo tão caro
às vanguardas artísticas das primeiras duas décadas do século XX.
Observando-se a ilustração com cuidado, embora a reprodução dei-
xe muito a desejar, é possível detectar traços que revelam alguns dos
discursos advindos de diferentes culturas e diferentes práticas discursivas
e sociais, os quais atravessam essa complexa emmciação, configurando
um enunciador pluricultural, plurilíngüe, que imprime sua visão múl-
tipla à representação do universo do indígena brasileiro. Não é difícil
identificar, por exemplo, a presença de ornatos geométricos, máscaras,
figuras humanas e animais esquematizados de origem indígena e que
constituem elementos essenciais às cenas apresentadas.Também fica pa-
tente a marca marajoara3 nas máscaras, na disposição de braços e pernas
das figuras, no detalhe dos dedos das mãos e dos pés, simetricamente
dispostos e ressaltados, nos círculos que envolvem a rótula dos joelhos,
nos arabescos, na rígida estrutura geométrica da fauna, nas tonalidades.
Ao mesmo tempo em que se explicita o aproveitamento de formas
e cores características da arte indígena, da sensibilidade estética do ha-
bitante da Amazônia, como estratégia de recolocar em circulação dis-
cursos que identificam o universo retratado, outros discursos circulam,
integrados ao primeiro, fazendo presentes vozes advindas de outros
universos. Esse é o caso, por exemplo, da tonalidade oriental. O evi-
dente discurso visual oriental está indiciado nos corpos e semblantes,
na figurativização dos índios, materializado pelo grafismo japonês, pela
estamparia japonesa dos séculos XVIII e XIX. Não se pode deixar de
notar, ainda, a presença de ao menos mais um discurso, de mais urna
voz estética que se mistura às demais: a presença da estética Art Nou-
veau, estilo decorativo, por assim dizer, compreendido entre o final do
século XIX e os anos 1920.
Termo que designa estilo de ornamentação inspirado nos motivos indígenas da ilhade Marajó, situada no estado do Pará, mais precisamente na foz do rio Amazonas [tupi
129
Análises do discurso hojeMemória, linguagens, construção de sentidos
Portanto, além da plasticidade, da beleza, do valor antropológico e
cultural, esse belíssimo texto verbo-visual aparece como um raro mo-
mento em que a voz do chamado primitivo, de seu olhar sobre o mun-
do, é acolhida pelo dito civilizado como uma voz forte, que merece
figurar como memória de um povo. Mas essa acolhida, essa memória,
como nos textos de Eco e Pamuk, é construída a partir de um diálo-
go com outras vozes. Pela força das linguagens que concretizam esse
enunciado verbo-visualmente elaborado, o cruzamento de diferentes
práticas discursivas e a presença de diferentes olhares sobre o mundo
tornam essa lenda e sua ilustração o testemunho de um acontecimento
discursivo multicultural. Esse texto, prenhe de vozes oriundas de dife-
rentes lugares, desnuda os traços de um sujeito múltiplo e de um lugar
complexo por meio do qual o indígena, o primitivo, é apreendido e
expresso.
O resultado é um conjunto de discursos que faz a riqueza dessa
lenda e das demais que compõem a obra Legendes. Ao enunciar a lenda
em francês com uma ilustração que fala com a narrativa e dela torna-
se protagonista, Vicente do Rego Monteiro faz presentes universos
distantes, aproximando-os, fazendo-os dialogar e fazendo-os produzir
novos diálogos. De um lado a riqueza que advém do universo tido
como primitivo, que é o do indígena da Amazônia, de seu imaginário
dado pelo verbal e pela originalidade de um visual propiciado pelas
artes indígenas. De outro, e sem opacificar o primeiro, as formas dos
discursos das vanguardas produzidas na Europa e já em circulação no
Brasil modernista.
Num único texto verbo-visual, a memória múltipla, plurilíngüe,
resgata um magnífico percurso que vai do mito à arte, contando,
pela lenda da nossa prosaica mandioca, nosso aipim, nossa mani-oca,
a história de diferentes povos, diferentes culturas, diferentes mo-
mentos, resumidos na articulação de linguagens portadoras de ricos
discursos. Entre o vivido, o ouvido e o construído perpetuam-se
riquezas que apontam para a idéia de que no começo estão sempi"e
as linguagens.
í30
4. Brevíssimas e provisórias considerações finais
Para finalizar provisoriamente esta reflexão, recorro a uni texto do
jovem escritor, filósofo e crítico literário francês, François Poirié, nas-
cido em 1962 e grande estudioso da obra do filósofo Emrnanuel Lé-
vinas, que parece dialogar com o que tentei apresentar neste trabalho.
Centrado nas especificidades do pensamento de Lévinas, ele apresenta
categorias e concepções filosóficas que, numa certa medida e sob um
certo ponto de vista, podem propiciar o estabelecimento de relações
âialógicas com a análise/ teoria dialógica do discurso.
Se uma metafísica busca edificar-se, ela encontrará — entre outras ba-
lizas — o Sujeito, ou seja, o pensamento, ou ainda o Eu. Se uma ética
quer se fundar, é do Sujeito, dos sujeitos, dos sujeitos-objetos que ela
partirá, que ela falará. Emrnanuel Lévinas sabe muito bem disso, ele se
interrogou longamente, de uma nova maneira e audaciosa, sobre este
nascimento — difícil — de um Sujeito, metafísico e moral. Nascimen-
to? Seria a palavra correta? Não seria mais uma resplandecência, uma luz
mais potente que a noite repentina, e que é o desvelamento do Sujeito, a
aparição do Sendo [étant]? Uma eclosão, no meio do há (il y a) anônimo
e impessoal, no meio do ser geral, a aparição de um Sujeito, a exibição
de um ser individualizado. Milagre e mistério desse advento. (POIRIÉ,
2007, p. 15-16)
Referências
BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto,
2006.BRANDIST, Craig; SHEPHERD, Davis; TIHANOV, Gaiín (eds.).
The Bakhtin Circle. In the Mastefs Absence. Manchester/New York:
Manchester University Press, 2004.
CASCUDO, Câmara. Dicionário ao Folclore Brasileiro. 4. ed. São Paulo:
Global Editorial, 2005.
131
Análises do discurso hoje
ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Trad. Eliana Aguiar.
Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005.
MONTEIRO,V. do R. (Ilustrador) (1923) - Legendes, croyances et talis-
mans dês indiens de rAmazone. Adaptations de PL. Duchartre. Illus-
trations de V. de Rego Monteiro. Paris, Editions Tolmer e Quelques
visages de Paris. Paris: ImprimerieJuan Dura, 1925. In: SCHWARTZ,
J. (org.). Do Amazonas a Paris. As lendas indígenas de Vicente do Rego
Monteiro. Edição fac-simüar. Trad. e notas Regina Salgado Campos.
São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2005.
PAMUK, Orhan. Istambul. Memória e ádade.Ttíid. Sérgio Flaksman. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
POIRIE, François. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas.Tmâ. J. Guins-
burg, Márcio H. de Godoy eThiago Blumenthal. São Paulo: Pers-
pectiva, 2007.
132
DISCURSO E METÁFORA NA FALADO HOMEM PANTANEIRO: UMACONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
Helena Nagamíne Brandão (USP)Maria Leda Pinto (UEMS)
1. Introdução
Este artigo toma como objeto de estudo o discurso do homem panta-
neiro, tendo como ponto de partida a perspectiva discursiva e a perspec-
tiva de Lakoff e Johnson (2002) sobre a metáfora, compreendida corno
um fenômeno de linguagem de valor cognitivo. Para a concretização da
pesquisa, estabelecemos dois objetivos: compreender a metáfora enquan-
to processo cognitivo de construção do sentido e buscar nas histórias de
vida relatadas pelos próprios pantaneiros representações e imagens dis-
cursiva e metaforicamente construídas de si e de seu cotidiano.
Para alcançar esses objetivos, buscamos na perspectiva teórica es-
colhida os fundamentos para a análise das histórias de vida dos panta-
neiros que compõem o corpus da pesquisa', constituído por narrativas
de quatro peões pantaneiros, todos nascidos no Pantanal. Esses pan-
taneiros já desempenharam quase todos — senão todos — os tipos
de trabalhos desenvolvidos nas fazendas pantaneiras. Alguns aspectos
Esse corpus foi coletado e analisado por Maria Leda Pinto em sua tese de Doutorado
Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros, defendida na USP em
, sob orientação da Profa. Helena H.N. Brandão.
Análises do discurso hojeDiscurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção identitaría
justificam essa opção. O primeiro deles se deve ao fato de que o peão
está sempre na fazenda, sendo mais fácil dialogar com ele do que com
o patrão que, em tempos de modernidade e novas tecnologias, passa
a maior parte do seu tempo nas grandes cidades. A segunda razão é
decorrente da primeira, visto que, se o peão é quem realmente vive e
convive na região, é ele que tem o que falar sobre a região e sobre sua
atuação enquanto sujeito que age nesse contexto.
A coleta dos dados se realizou por meio de um roteiro que, elabo-
rado com base nos objetivos estabelecidos para o trabalho, chamamos
de Roteiro de conversa com os pantaneiros. Esse contato com o pantanei-
ro ficou subdividido em três blocos em que buscamos coletar dados
pessoais, dados sobre o trabalho que executam e dados sobre como se
situam e/ou atuam nesse espaço.
Antes, porém, de analisar esses discursos, julgamos necessário for-
necer elementos esclarecedores sobre o contexto pantaneiro e tecer
algumas considerações sobre os pressupostos teóricos que fundamen-
tam a análise.
2. No Pantanal, o pantaneiro
Estudar o cotidiano e as representações do homem pantaneiro pressupõe
perceber esse homem nas suas relações com o espaço em que vive e atua.
Isso implica, no nosso entender, conhecer um pouco da história do pró-
prio espaço investigado: o Pantanal. Essa planície se constitui em um con-
junto de vários ecossistemas, pois "é o resultado da influência das regiões
fitogeográficas da Amazônia, ao Norte; dos Cerrados, a Leste; do Chaco,
a Oeste e, da Mata Adântica, a Sudeste" (MORAES, 2004, p. 6). Segundo ospesquisadores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária),
o Pantanal ainda se encontra em processo de formação, isto é, de sedimen-
tação (quaternária), oriunda dos rios da Bacia do Alto Paraguai.
A biodiversidade da região possibilita a caracterização de duas áreas
diferentes: o Pantanal Alto, que compreende as regiões mais altas, onde as
enchentes são menos freqüentes, e o Pantanal Baixo, formado pelas partes
baixas e depressões e, por isso, sujeito a inundações periódicas. Essas re"
giões se caracterizam, principalmente, pela vegetação, pelo tipo de solo e
pelas duas estações que predominam no Pantanal: a da seca e a das águas.
No período da seca os campos geralmente são cobertos por gramí-
neas e vegetação de cerrado. No período das águas, a vegetação varia
de acordo com o tipo de solo e de inundação, predominando espé-
cies de cerrados nas terras arenosas do Pantanal Alto e de gramíneas
nas terras argilosas do Pantanal Baixo.Essas duas áreas compreendem, na realidade, vários pantanais que,
de acordo com Nogueira (1989, p. 26), são resultantes da intrincada
rede hidrográfica, formada pelo rio Paraguai e seus tributários, que
condicionam a vegetação, a fauna, as condições do solo e a vida do
homem que as habita.Essas sub-regiões — de paisagens diferenciadas, tanto no que se refere
aos aspectos naturais, quanto à forma de ocupação humana — apresen-
tam diferentes classificações defendidas por historiadores e estudiosos do
Pantanal, bem como por projetos governamentais. Os pantaneiros, por
sua vez, estabelecem a sua classificação. Para eles existem os pantanais do
Rdo Negro, do Aquidauana, do Miranda, do Abobral, do Apa, do Tereré
e do Jacadigo, levando-se em conta, em quase todos, o papel exercido
pelos rios (NOGUEIRA, 1989, p. 26). Entretanto, a divisão rnais conhecida
e/ou citada é a seguinte: Pantanal do Aquidauana, do Paraguai, de Nhe-
colândia, do Abobral, do Miranda, do Nabileque e do Paiaguás.
O Pantanal apresenta dois aspectos importantes para a sua caracteri-
zação: o isolamento em relação às grandes metrópoles do país e a pro-
ximidade com dois países latinos (Bolívia e Paraguai), com os quais tem
convivido intensamente. Segundo Nogueira (1990, p. 21), o resultado
desse relacionamento foi a assimilação de muitos hábitos e costumes pa-
raguaio-guaranis, hoje integrados ao cotidiano do homem pantaneiro.
Esse pantaneiro2 que há muitos anos habita o Pantanal aprendeua conviver com um mundo inundado, úmido ou seco. É um homem
Entende-se, portanto, por homem pantaneiro, neste contexto, o elemento nativo do"antanal ou aquele que nele vive há mais de vinte anos, compartilhando hábitos ecostumes típicos da região, assimilados pela força do convívio diário com os mesmos(Cf. NOGUEIRA, 1989, p. 31).
134135
Análises do discurso hojeDiscurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção identitària
simples, calmo que, mesmo acostumado à solidão e ao isolamento, nãodeixa de lado a solidariedade: está sempre pronto a receber, a informar,a servir de guia, a explicar sobre animais e águas e a contar seus "cau-sos". Parodiando Euclides da Cunha, podemos dizer que o pantaneiro"é antes de tudo um forte", pois, atuando em uma área cheia de adver-sidades, está integrado a esse contexto e, apesar das vicissitudes que temque enfrentar, é feliz. Com seu chapéu de palha de abas largas na cabeça(o de feltro não é apropriado para as altas temperaturas do verão panta-neiro), calças jeans surradas, camisa ou camiseta de mangas curtas e fa-cão no cinturão, trabalha com o gado, sempre montado em seu cavalo.
Conhecedor da região, o pantaneiro sabe os perigos que enfrenta,mas sabe também respeitar esse espaço e preservá-lo. Desenvolve um
ritmo próprio de trabalho e cria suas próprias ferramentas. Ligadoprincipalmente às atividades da pecuária, que são predominantes no
Pantanal, tanto do ponto de vista hístórico-cultural, quanto socioeco-nômico, o pantaneiro desempenha várias funções inerentes à lida como gado, que vão de peão ou vaqueiro a gerente ou capataz. Atualmente,
com o desenvolvimento do ecoturismo na região, começam a surgiroutras funções, como a de guia turístico e a de motorista-safari.
Portanto, analisar a linguagem do pantaneiro a partir desse contex-to é, no nosso entender, ter a possibilidade de conhecer esse falante,sua identidade discursiva, as representações que tem de si mesmo e doespaço em que vive e atua. _
3. Metáfora: de ornamento retórico a mecanismo discursivode valor cognitivo
O estudo dos fenômenos metafóricos tem despertado a atenção dosestudiosos da linguagem desde a Antigüidade. Nesse sentido, Aristóte-les, em suas reflexões sobre a teoria da metáfora3, que vkia a ser desig-
3 Metáfora: vem do grego metaphorá que significa transporte, transferência, mudança. Na
Poética (cap. XXI), Aristóteles considera que a metáfora "consiste no transportar para
136
nada pelos teóricos de teoria substitutiva, concebe a metáfora como odeslocamento de um termo pertencente a um domínio para outro. É
urna operação em que se tira a palavra de um lugar que lhe é próprio
e a introduz em outro que lhe é estranho, a partir de uma relação de
semelhança existente ou intuída entre os dois termos.
Essa abordagem inspirou o tratamento da metáfora por séculos e
baseia-se essencialmente em duas percepções do uso da linguagem:a) a percepção que distingue o sentido literal do sentido figurativo,
isto é, uma palavra em seu sentido próprio, literal é substituída por
outra em sentido figurado;b) a percepção de que um termo metafórico remete sempre a uma
comparação entre dois ou mais objetos, isto é, a substituição de umtermo por outro só é possível porque existe uma relação de similari-
dade entre os objetos comparados.Dividindo as figuras em três grupos distintos, conforme a lógica
que presidia a relação entre os sentidos próprio e figurado, a retóri-
ca antiga reconhecia a seguinte classificação: os tropos4, as figuras depensamento e as figuras de palavras. Descritos como figuras que impli-cavam uma nova significação das palavras, diferente da usual, os tropos,
de acordo com a relação que estabeleciam entre o sentido original e onovo, compreendiam: a metáfora, a metonímia, a sinédoque, a ironia,constituindo-se a primeira (a metáfora) numa das suas formas básicas.
Para os antigos, as figuras de pensamento e as figuras de palavrasdistinguiam-se segundo "a crença de que pensamentos e palavras cons-tituíam entidades autônomas na formulação da linguagem". Afirma-va-se que o pensamento é anterior à sua expressão através da palavraou, na descrição de Quintiliano: "Assim como na ordem da natureza
primeiro é conceber as idéias para então enunciá-las: assim devemos
urna coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero
ou da espécie de um para a espécie de outro ou por analogia".Tropo é termo derivado do grego e significa desvio, implicando a idéia de mudança
de sentido da palavra — do literal para o figurado — entendendo-se o literal como o
uso normal e o figurado como desvio.
137
Análises do discurso hojeDiscurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: ama construção iâeníitaria
tratar primeiro das figuras, que pertencem aos pensamentos" para de-
pois tratar das figuras de palavras. (BRANDÃO, 1989, p. 22).
Outro aspecto a observar é o fato de que a conceituação tradicional
de metáfora está focalizada no nome ou palavra, isto é, na metáfora, o
objeto de transformação ou deslocamento é a palavra — substitui-seuma palavra por outra.
Outra observação a ser feita diz respeito ao fato de que, desde
Aristóteles até os autores clássicos subseqüentes como Cícero, Horácio,
Longino, Quintiliano, reconhecia-se o princípio do ornamento como
característica da linguagem figurativa da qual a metáfora representava
a principal forma de embelezamento. Opunha-se, então, a linguagem
poética, literária, retórica (ornamentada) à linguagem científica (não
ornamentada) que, pela exigência da objetividade, não podia fazer usode metáforas.
As pesquisas sobre a metáfora atravessaram mais de vinte séculos
sob a influência poderosa dessa dicotomia sentido literal vs. senti-
do figurado, adquirindo em diferentes momentos outras designações
tais como: sentido próprio vs. sentido acrescentado, sentido central
vs. marginal, sentido essencial vs. acessório, sentido original vs. desvio
de sentido, denotação vs, conotação, segundo as novas tendências, as
novas vertentes de estudos da linguagem que vão surgindo ao longo
da história.
Com essa longa tradição sedimentada na memória discursiva da
nossa cultura ocidental, ainda hoje, ao se falar em metáfora, é comum
pensarmos imediatamente no texto literário, em especial, no seu sen-
tido poético, já que ela foi considerada, por muito tempo, corno um
recurso estilístico essencialmente da linguagem poética, com função
de ornamento. Mesmo para algumas das abordagens relativamente
mais recentes, a metáfora não tem passado de desvio de um sentidoanterior ou, em outro aspecto, como sentido conotado, transformado,
além de indesejável no discurso científico e filosófico, já que apenas
a linguagem literal seria adequada à busca das verdades objetivas (AI."
MEIDA, 2005). Por outro lado, nos últimos trinta anos, tem surgido urna
variedade de teorias sobre a metáfora, principalmente no campo das
ciências cognitivas, da semântica e da pragmática, que têm provocado
uma mudança de paradigma.Uma das intervenções teóricas de maior repercussão em relação
a uma nova visão do papel da metáfora na linguagem ocorreu no
âmbito de uma área de estudos que vem se caracterizando como Lin-
güística Cognitiva, com a publicação, em 1980, da obra de Lakoffe
Johnson, intitulada Metaphors We Live By, traduzida para o português
com o título Metáforas da vida cotidiana (2002), que focaliza a metáfora
sob o aspecto conceituai e investiga sua influência na estruturação do
pensamento. Segundo Lakorf e Johnson, o "conceito metafórico" es-
trutura o pensamento e a ação humana:
[...] a maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente bem sem a
metáfora. Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na
vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento
e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não
só pensamos mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por
natureza. (2002, p. 45)
Para os autores, a metáfora é definida corno um processo cognitivo
próprio do sistema conceituai humano, diferente, portanto, da con-
cepção que a estudava apenas como uma figura de linguagem. Nes-
se sentido, a formação dos conceitos é orgânica, já que constitui um
princípio estruturante de natureza psicofisiológica. Esses conceitos di-rigem nossos pensamentos, mas não só isso: regem as nossas atividades
cotidianas até nas questões mais banais, exercendo um papel centralna definição de nossa realidade cotidiana, de nossas experiências. "Elesestruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no
ftiundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas" (LAKOFFe JONHSON, 2002, p. 45-46).
Para exemplificar o conceito metafórico, os autores partem do
conceito de DISCUSSÃO por meio da metáfora conceptual DISCUSSÃO
138 139
Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção ideníítaria
É GUERRA, presente em nossa vida cotidiana em um sem-número de
expressões, tais como:
Seus argumentos são indefensáveis. (Your daíms are índefensible.)
Suas críticas foram direto ao alvo. (His critiàsms were right on target.)
Destruí sua argumentação. (I demolished his argument]
Como podemos ver, embora não exista uma batalha física ou ver-
bal que esteja na base da estrutura de uma discussão, é assim que a
concebemos em nossa cultura. Por isso, para os autores, "a essência
da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de
outra" (p. 47-48).
Diante dessas considerações, podemos dizer que a grande importân-
cia do trabalho desses dois estudiosos está no fato de que concebem a
metáfora de forma muito mais abrangente do que as abordagens ante- -
riores, isto é, concebem-na como constitutiva da experiência humana,
sendo "vista como parte da experiência cotidiana do uso da língua, que
estrutura o pensamento e a ação humana" (IOANILHO, 1995, p. 39).
Em sua teoria, Lakoff e Johnson (2002, p. 59, 76,133) estabelecem
uma classificação dos conceitos metafóricos, agrupandos-os em três
grandes classes, a saber;
2. Metáforas estruturais — são aquelas nas quais "um conceito é es-
truturado metaforicamente em termos de outro". É o caso da metáfo-
ra DISCUSSÃO É GUERRA, em que o conceito DISCUSSÃO é definido em
termos do conceito GUERRA.
2. Metáforas orientaáonais ou espadais — são as metáforas que, dife-
rentemente das primeiras, "organizam todo um sistema de conceitos
em relação a outro". Essas metáforas recebem esse nome porque a
maioria delas tem a ver com a orientação espacial como, por exemplo:
FELIZ É PARA CIMA, que possibilita expressões como "Estou me sentindo
para cima hoje" (Tmfeeling up today}.
3. Metáforas ontológicas — essas metáforas surgem de nossa experiência
com substâncias e objetos físicos. Segundo os autores, "as experiências
que vivenciamos (especialmente com o nosso corpo) fornecem uma am-
140
pia base de metáforas ontológicas, ou seja, a maneira de concebermos
eventos, atividades, emoções, idéias... como entidades e substâncias". Um
exemplo é a metáfora A MENTE É UMA MÁQUINA, de onde surge a expressão
"Estou um pouco enferrujado hoje." (Tm a little rusty today.). Para Lakoff
e Johnson, a personificação seria uma metáfora ontológica, já que nos
possibilita compreender muitas experiências relativas a entidades não-
humanas como humanas. Assim "a personificação é, pois, uma categoria
geral que cobre uma enorme gama de metáforas, cada uma selecionando
aspectos diferentes de uma pessoa ou modos diferentes de considerá-la"
(p. 88). Um dos exemplos dados é a metáfora A INFLAÇÃO É UM ADVER-
SÁRIO, que se justifica cotidianamente em expressões do tipo "A inflação
roubou as minhas economias" (Inflation hás robbed me ofmy samngs.).
Os autores propõem, com sua teoria, que os conceitos metafóricos
decorrem da própria experiência humana, que manifesta uni sistema
conceptual subjacente à linguagem.
A ênfase dada por Lakoff e Johnson à busca por processos cogniti-
vos universais, em especial o estudo das metáforas orientacionais, pode
possibilitar-lhes uma imagem de cognitivistas não inclinados a uma
abordagem sociocultural. Entretanto, eles nos permitam intuir que têm
consciência da importância da relação entre metáfora e cultura quando
discutem o fundamento das metáforas estruturais. Segundo os autores:
As metáforas TRABALHO á UM RECURSO e TEMPO É UM RECURSO não são
universais. Elas emergiram em nossa cultura devido à maneira como con-
cebemos o trabalho, à nossa paixão pela quantificação e à nossa obsessão
por fins específicos. Essas metáforas enfatizam aqueles aspectos do trabalho
e do tempo que têm importância central em nossa cultura. (2002, p. 140)
Dessa maneira, é possível inferir que os autores demonstram a im-
portância do aspecto cultural, quando explicitam que as metáforas es-
truturam o pensamento humano. De acordo com Almeida (2005, p. 3)
esse estudo deixa:
141
Análises do discurso hoje
[...] subentendido que cada cultura tende a estruturar suas próprias formas
de pensar e agir no mundo, e que essas formas só coincidirão com as de
outras culturas devido a fatores que vão do mero acaso até a fatores sócio-
históricos, como o intercâmbio cultural.
Além de Lakoff e Johnson nos possibilitarem essa leitura dos fenô-
menos metafóricos, Zanotto {2002, p. 32) cita Gibbs (1999) como um
dos estudiosos que defende urna abordagem sociocultural da metáfora:
Para o autor, não há necessidade de se estabelecer urna distinção rígida
entre metáfora conceptual e cultural. E, nesse ponto, Gibbs apela para a
abordagem sociocultural da cognição, na linha de Vygotsky, Leontiev e
Luria, segundo a qual as teorias da cognição não deveriam insistir que as
estruturas cognitivas estão "na cabeça", mas deveriam reconhecer quão
"abrangente" ou "distribuída" no mundo a cognição pode ser.
Essa perspectiva mais abrangente da metáfora possibilita outros
avanços nos estudos desse fenômeno lingüístico, como, por exemplo, o
fato de que não dá para conceber a metáfora restrita à palavra. Segundo
Coracini (1991, p. 135),"as palavras não têm sentido próprio definido:
seu sentido é sempre contextual", já que sua natureza é polissêmica.
Portanto, entendemos que o efeito de sentido de uma metáfora é cons-
truído no contexto do texto. Conforme Zanotto (1998, p. 121):
Toda comunicação realizada em determinado meio sociocultural se de-
senvolve dentro de uma problemática da alteridade: o sujeito falante só se
define e só se comunica quando se dirige a um outro; assim, esse "outro"
está inserido nos projetos de fala do sujeito falante, o que nos conduz aos
conceitos bakhtinianos que consideram o ato de linguagem como funda-
mentalmente dialógico.
Para a Análise do discurso, o sentido literal, a unidade do sentidoé urna ilusão. Além disso, se contrariamente à concepção objetivista
142
Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção iaentitana
— que defende a transparência da linguagem e a sua unidade — en-
tendemos que o domínio da linguagem é o da opacidade e o da não-
transparência, podemos concluir que o sentido literal é um efeito de
sentido.
[...] a incompletude é uma propriedade do sujeito (e do sentido), e o
desejo de completude é que permite, ao mesmo tempo, o sentimento de
identidade, assim como, paralelamente, o efeito de literalidade (unidade)
no domínio do sentido: o sujeito se lança no seu sentido (paradoxalmente
universal), o que lhe dá o sentimento de que este sentido é uno. (ORLANDI,
2002, p. 81)
Além disso, as pesquisas lingüísticas na perspectiva discursiva têm
proposto uma ruptura com a idéia de uma linguagem pronta e aca-
bada, sem a mediação do sujeito sócio-historicamente situado que a
utiliza. Dessa forma, a partir do momento em que a linguagem não é
vista como uma mera representação da realidade, mas sim como uma
atividade histórica e social de sujeitos que, pelo discurso, constróem
essa realidade, a oposição entre linguagem literal e metáfora — en-
tendida unicamente como ornamento lingüístico — começa a perder
força. Segundo Almeida (2005, p. 2):
Isto se dá porque agora não se considera mais que exista unia linguagem
objetiva, capaz de representar fielmente a realidade. Nem a linguagem figu-
rada é vista mais como mero ornamento, já que as imagens evocadas por ela
fazem parte dos conceitos verbalizados. Em outras palavras, se uma metáfora
apresenta um determinado domínio em termos de outro, não temos aí uma
mera comparação, mas sim a criação de uma maneira de compreender o
primeiro, que transfere para ele características do segundo, as quais passam a
ser elementos constitutivos de nossa visão sobre aquele assunto.
Tendo em vista essas considerações sobre o sentido literal e os
aspectos socioculturais, acreditamos que não haja incompatibilidade
143
Análises do discurso hoje
teórica entre o que preconizam os estudos de base cognitiva sobre
a metáfora de Lakoff e Johnson e os pressupostos da Análise do dis-
curso; para nós a Análise do discurso se enriquece com esse diálogo
interdisciplinar, pois pode encontrar nessa abordagem um dispositivo
metodológico de grande auxílio analítico.
4. Como diz e o que diz o pantaneiro
Nos quatro discursos coletados, fizemos um recorte e, de acordo com
a abordagem desenvolvida pelos autores da obra Metáforas da vida co-
tidiana, destacamos algumas metáforas cuja presença se fez notar de
forma mais marcante, para verificar de que modo a linguagem dos
sujeitos da pesquisa estrutura sua maneira de perceber a si e o mundo,
de pensar e de agir sobre ele. Destacamos três conceitos relativos a
trabalho, felicidade e o que é viver. Esses conceitos se materializaram
lingüisticamente por meio das seguintes metáforas conceituais: TRABA-
LHO É RECURSO, TRABALHO É SOFRIMENTO, TRABALHO É PRAZER, VIVER É
APRENDER, FELICIDADE É VIVER BEM.
Para analisar cada uma dessas metáforas conceituais, rastreamos nos
depoimentos as expressões lingüísticas metafóricas5 que concorrem
para a construção de cada conceito metafórico:
A) TRABALHO É RECURSO (de sobrevivência)6
1} [...] você trabaia lá... por causa da sobrevivência você trabaia tem a
FARTURA (D l-linhas 78-79)
3 Estamos entendendo expressões lingüísticas metafóricas de forma alargada, isto é, todasas formas que expressam uma compreensão e uma experienciação de uma coisa emtermos de outra. (Cf. LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 48)6 As transcrições das falas dos pantaneiros obedeceram ao quadro de NORMAS PARATRANSCRIÇÃO do projeto NURC/SP. As variações de uso — por exemplo: "as vêis"/"às vezes" — devem-se ao fato de que, em dados momentos, esses pantaneiros, sen-tindo-se mais à vontade, falaram de suas vidas com mais espontaneidade; em outrosmomentos, no entanto, conscientes de que estavam sendo entrevistados, procuraramutilizar a variedade culta da língua.
Í44
Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção iáentitària
2) [...] a gente foi mora com a vó... minha vó era uma gaúcha MUI-
to trabalhadeira... Muito dinâmica... junto todo mundo num lugar só...
aprendemos muita coisa com ela... ajudávamos ela fazer flores (sabe?)...
pra pode ganha o pão. (D2-linha 9)
3) [...] os guRi... fomos criado com o papai... e trabalhando... desde
dez anos... oito anos a gente trabalho duro mesmo... fazia de tudo... fazia
de tudo (na vida)... {D2~linhas 14-16)
4) [...] nada segura NÓ/S... se você vem com trator bem... se não
vem... você vem a pé... ocê vem por dentro d'água... rasgando água
pela cintura... espantando jacaré...sucuri... mas você vem emBORA...por
quê? porque você é CRiado e nascido ALI... você não tem medo da-
quilo ali... né? você não tem medo... você tá vendo na sua frente três...
quatro jacaré... você vai pra cima deles... eles que tem que saí de você
né? (D2-linha 31)
5) [...] morei lá... uns deis anos... na fazenda São José [...] comecei a
enxerga e a... querer mudar de vida... né? [...] aí o E. me levou... pró Pe-
qui... aí eu já fui ser capataz mais evoluído, né! Mais... melhorado. Ai passei
a gerente... mas fazia tudo... gerente e capataz naquele tempo e pião
tudo era uma coisa só... trabalhava que só um condenado... né?... a gente
trabalhava pra mostra serviço... e tinha ambição de querer se gente... hoje em
dia é difícil... né?... pião ninguém quê se gente... quê se/qué ganha do
patrão... quê por o patrão na justiça eh:::... eh não... não quê nada... ele
quê só isso... só prejudica a quem dá pra ele a mão que mata a fome dos
filho dele também... né? (D2-linhas 64-75)
6) [...] ele é caboclo... trabalha desde criança e você pra cê... você
dá conta do recado... você tem que... não pode ser muito Jinínho não... você
tem aue ser meio grosso mesmo... porque senão você... éh... éh::... senão
você apalpa e não vai... (D2-linhas 253-256)
B) TRABALHO É SOFRIMENTO
1) [...] dos treze até os dezessete ano... eu trabaiei no... no campo...
rnas não... nunca tive acidente no campo... aí eu larguei de trabaia
no campo e passei a trabaia com trator... aí minha vida foi só trabaia no
145
Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção identitária
Pantanal com trator... éh:::..puxâ CARga... leva CARga... duma fazenda
pra otra... as vêis... a gente trabaiava o dono da fazenda tinha duas...
três fazenda... então... a gente tinha que locomove de uma pras otra pra
levar CARga, né? são mantiMENto... as vêis arame... éh material... que
as vêis tava construindo e a gente tinha que levar... e daí que a gente
começava a sofrer MAIS que a vida de campero. (Dl-linhas 5-13)
2) [...] então depois que você aprende nos lugar bom... aí você co-
meça a::... dirigir também nos lugar difícil... pra vê se você tem capa-
cidade de fazê o serviço que ele (o capataz) fez... então você já aprende
sofrendo... você já aprende trabaiando em cima daquilo ali que você
aprende... né? então hoje... você passa num lugar difícil... [...] não vai
deixar o trator na estrada... você vai vim com ele...você vai desatolar...
ocê vai sofre até você voltar aquele trator pra trás... [...] e isso que ele
(o capataz) num ajuda muito... você se vira... porque todas as vezes que
cai numa dificuldade... e o próprio cara que é profissional... tira você...
você jamais vai aprende... tá entendeno? [...] se ele fizer... você não tá
aprendeno... né? então... ele vai deixa você sofre um pouco... que é pra
você aprende... pra vê se você tem paciência... se você não é nervoso...
que as vêis a pessoa começa mexe fica muito nervoso... eleja larga de
mão... pega o caminho e vai embora e a... sua máquina ficou pra trás...
(Dl-linhas 133-134)
3) [...] pra onde eu cheguei hoje... eu passei por muita dificuldade
dentro do Pantanal... que antigamente era muito difícil... pra... pru
senhores vê... antigamente não existia condução... a condução nossa
no Pantanal era carreta de boi que era (cangado)... do Pantanal a Aqui-
dauana nóisgastava uma semana viajando... éh:: naquele batidão... devaga-
zinho... então era uma semana de viagem pra ir já... ia base de:: oito...
dez carreta em (cordoadas)... ia fazê a compra... pra... passa o ano... era
compra de ano... então... eles gastava semana enjoava de anda em cima
da carreta ia de a pé... burro de carga... ou ( ) aí montava de novo... í::...
só água naquele mundo. (D4-linhas 81-90)
4) [...] e continuei a vida no campo de novo... de campero... aí
levei uma (rodada) se quebrei tudo... quase morri... foi/ fiquei vinte e
146
quatro hora desacordado... essa é uma das dificuldade e o perigo que
a/o campero passa... igual... tem o Seu R. aqui... que trabalha conosco
aqui... que toma conta do gado... então ele éh:: o trab... o trabalho dele
é arriscado... que no momento que ele tá correndo atrás duma (vaca)
ele pode leva uma rodada... sozinho... se quebra ou enganchá no (arruo) sair
dipindurado sozinho... aí vai... vai a morte... né? (D4-linhas 37-45)
C) TRABALHO É PRAZER
1) [...] qualquer fazenda que eu trabalhei... eu chega eu só bem
recebido... porque nunca briguei com ninguém né? nunca saí de mal
com ninguém... então se num vai dá certo aquele um/negócio se pega
pede a conta e vai embora... pra num fica intrigando com os outros...
vai embora... então... briga num dá camisa pra ninguém... [...] aqui é tudo
muito bom...bom...aqui é tudo muito bom...bom...tudo mundo trata
um cum o outro brincando... num... num.,, manhece ninguém brabo com
ninguém... desde a hora que a gente se levanta cedo aqui um brincando
com o outro... tirando sarro e vai indo... é até de noite... eles vão fazê o
serviço deles ali... eu pego vô fazê o meu... (D3-linhas 126-129)
2) [...] pra mim é importante... importante pra fazenda né? éh... eu
comecei a mexe com o negócio de turismo aí... i é importante pra fazenda
né?!... i é importante pra mim também porque... que eu fico mexendo
cum eles (os turistas) e eu quero que a pessoa então... ele sai... ele sai
daqui contente... sai sastisfeito... né? nóis trata bem eles... (D3-linhas
199-203)
3) [...] vivo bem... graças a Deus... tenho ainda saúde pra trabalha
(tá)... trabalho... o que eu posso fazê... até eu fico inquieto... quando eu
tenho que... eu to à toa... não sei fica à toa... éh::... eu quero... quero
agir...quero/quero saí... enfim...éh... mexe o doce... né? como falam... tem
que mexe o doce senão não vai... [...] a gente/ eu trabaio demais... eu...
tudo o que eu pego eu quero fazê e vence... eu não fico apalpando... eu
quero... quero mostra serviço... até hoje eu ainda faço assim... eu não sei
esconde da/das coisas... eu quero mostra serviço né? e tudo o que eu faço...
eu faço com amor... (D2-linhas 219-234)
747
Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção identítaria
4) [...] o melhor emprego é de fazenda... o cara... que se... se ele soube
se tive ambição de ter alguma coisa, ele tem... porque é só ele econo-
miza... ganha ele ganha bem...coMida ele tem todo mês o patrão leva...
carne ele tem na fazenda, ele não vaipráfrente porque ele não quer...
moradia, água,luz... não paga nada... (D2-linhas 47-50)
5) [...] as responsabilidade que eu tenho... que eu uso aqui dentro da
empresa e com grande carinho... éh:: o que eu sinto do... daqui do
Pantanal nosso... queu... queu gosto muito de convive no dia-a-dia aqui
dentro do Pantanal... porque é um lugar gostoso... (D4-linhas 123-126)
6) [...] e nesse meio tempo eu adquiri também umas tropas e co-
mecei a viajÁ... comitiva... éh:: eu achei que ia dá dinheiro... mas não
dá... dá sopra come... comitiva não dá dinheiro... ela dá/éh um trabalho
muito cansativo... muito sacrificado... né? a senhora já penso você viaja
aí sessenta... setenta dias no lombo do burro i comendo aquela comi-
da... passando mau tempo... chuva... é gostoso... é bom... é divertido
que você vai cada dia num lugar... mas é sacrificoso... quem num tem
opinião num vai (D2-linhas 134-141)
Analisando os fragmentos selecionados, podemos dizer que em
relação à conceituação metafórica do TRABALHO, o discurso do pan-
taneiro aponta para a construção de três efeitos de sentido sobre essa
experiência:
- o trabalho é caracterizado por expressões metafóricas da área
semântica que o mostram como um recurso sacrificoso (trabalho duro
mesmo, trabalhava que só um condenado), desafiante pelos obstáculos a
serem enfrentados (rasgando água pela cintura), indispensável para a so-
brevivência ao prover as necessidades cotidianas (ganha o pão) e ao pos-
sibilitar a visão de um futuro melhor (comecei a enxerga e a querer mudar
de vida... querer ser gente);
- o trabalho é caracterizado por expressões metafóricas da área
semântica do sofrimento em decorrência das atividades executadas:
trabalho intenso e duro (minha vida foi só trabaiá puxando carga, levando
carga; ressalte-se aqui a ambivalência do termo metafórico carga: no
148
sentido concreto, significando mantimento, arame, material de cons-
trução, e no sentido mais abstrato, significando o peso do trabalho e da
vida que levou); necessidade de ser persistente para dar conta do recado,
não largar mão para pegar o caminho, virar-se quando cair em dificuldade; ne-
cessidade de ser meio grosso e não muito Jininho senão só apalpa e não vai;
- entretanto, paradoxalmente, apesar das dificuldades o trabalho
também é conceituado como prazer. Na fala do pantaneiro, há sem-
pre essa polarização, essa tensão entre o trabalho dificultoso, pesado,
intenso e o prazer que ele propicia pelo bom humor das pessoas (num
manhece ninguém brabo), pela boa convivência entre colegas, patrão e
turistas/visitantes (fico mexendo cum eles — os turistas), fazendo de tudo
para mexer o doce e com amor para mostrar serviço para o patrão.
D) VIVER É APRENDER
1) [...] éh um aprendiZADO... tudo que você aprende no Pantanal é
um aprendizado... porque se você não aprende...você num VIVE... você
não vive MESMO... (Dl-linhas 141-143)
2) [...] a gente aprendeu a vive... tá aprendendo... continua aprendendo...
porque tudo... cada dia tem uma coisa diferente... né? porque cada
pessoa tem uma maneira de pensa... e uma coisa pra... te ensina... né?
tem muito sabidão aí... que fala"ah... eu sei tudo" porque ganho tudo
de mão beijada... né? ou herdou de alguém... eu quero vê o caboclo
começa du nada... né? (D2-linhas 262-267)
3) [...] conforme a gente vem aprendeno de tratorista... então...você
vai aprendeno... você vai aprendeno... você vai aprendeno e vai subino...
né? vai subino... — então na Caimã... eu já entrei como encarregado de
máquina... daí eu comandava dezesseis tratorista... eu comandava lá...
tudo éh::... tudo era por minha conta... então... eu num precisava í no
gerente pra saber se eles podia pega um dia... se eles... precisava de um
dia de forga... eles num precisava í no gerente... eles podia vim ni mim
né? se eles precisasse dum dia... (Dl-linhas 223-230)
4) [...] mas::., a gente tem que (caça jeito) pra fazer as coisa bem
feito... pra você pode subi na vida... se você num fizé bem feito e com
i 49
Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem paníaneiro: uma construção identitária
tranqüilidade... você num sobe nunca na vida... nunca... nunca... nunca...
P l-linhas 237-240)
5) [...] aí tem que existir muita paciência... tranqüilidade... pra você
consegui leva aquele que foi posto pra você até no destino final... né? tem que
dá um jeito de se leva lá... então a gente::... cada lugar que a gente
trabaia... em todas as fazendas... cada um gerente... cada um capataz
tem seu modo de lidar... tá entendeno? aqui um lida dum jeito [...]
então você vai se habituano... a CAda tipo de fazenda é um tipo de... de
mandato... né? cada tipo de fazenda... você trabaia com tipo de pessoa
diferente... ocê tá entendeno? [...] então tudo você vai aprendeno con-
forme os... os líder da cabeça... que é o capataz... se não tem o gerente
é o capataz... se tem o gerente... primeiro é o gerente... (D l-linhas
167-182)
6) [...] até você acha urn meio de você tira a condução que você
atolou... pra pode vim embora... né? então... é onde você vai pegano
média cospatrão... (Dl-linhas 155-157)
Vivendo num espaço geográfico marcado pelas dificuldades do cli-
ma e da natureza e pela imensidão das longas distâncias onde tudo
está por ser desbravado, o discurso do pantaneiro conceitua viver pela
relação metafórica viver é aprender, em que podemos destacar a sua
percepção de que:
— a vida no Pantanal é eterna aprendizagem: a gente aprendeu a vive...
tá aprendendo... continua aprendendo — as repetições/ os paraleHsmos
sintáticos, reforçados gramaticalmente pelos verbos no tempo passado,
presente e prospectivo, têm caráter metafórico na medida em que su-
gerem a imagem de uma ação que se estende ao longo da vida;
— a aprendizagem é uma construção: é começa du nada e não ganha
tudo de mão beijada;
— a aprendizagem (fazê as coisas bem feito) é promoção, é mudança
de patamar na escala de poder ou na relação com o patrão (agente vai
aprendeno... vai subíno... né? — de novo aqui a repetição/ o paralelismo
sintático).
150
E) FELICIDADE É VIVER BEM
1) [...] o Pantanal éh bom... éh bom... mas a dificuldade lá não é
fácil... não é fácil mesmo... mas tem pessoas...lá dentro que::... se você
dê uma vida melhor pra ele... pra fora... ele não sai... ele NÃO acostu-
ma... que eleja nasceu e criou em cima daquilo ali... a dificuldade pra
ele... éh só afeliddade dele... (Dl-linhas 63-68)
2) [...] éh:: o que eu sinto do... daqui do Pantanal nosso... queu...
queu gosto muito de convive no dia-a-dia aqui dentro do Pantanal...
porque é um lugar gostoso... é um ar puro que a gente respira todos os
dias...(D4-linhas 124-127)
3) [...] eu acho que a felicidade da gente... é vive bem... né? você
vive bem... você sé uma pessoa boa... né? se você num seje muito
ingnorante com as pessoa... você trata todo mundo bem... as pessoa te
trata bem... acho que aí é a felicidade de você... então... toda vez que
você recebe... você recebe bem... você chega numa casa... você é mui-
to recebido... então... éh::: a felicidade... porque a partir do momento
que você seja uma pessoa fechada... né? que não se dá com todo mundo...
você:: éh::: dificilmente vai té felicidade... você recebe uma pessoa
alegre na sua casa né? (Dl-linhas 248-257)
4) [...] num tem tempo ruim pra mim... eu tandu muntado num cavalo...
eu to satisfeito... éh::... considero isso afeliddade... eu acho que a felici-
dade da gente... é vive bem... né? té lugar pra você na velhice... de...
ser amparado pelo menos té uma casa... té a família junto... num é?
(D2-linhas 238-242)
5) [...] eu queria éh té condições de fazer ela sé o que ela quê...
tá entendeno? isso é meu sonho... né? aonde você as vêis passa mais
dificuldade... pra poder dá felicidade prós seus filhos... tá entendeno?
EU...já to no fim da picada... né? mas queria dá::: a felicidade prós meus
filho... né? (Dl-linhas 496-499)
6) [...] ainda tem um monte de fazenda que num tem/tem pessoa
aí que tem dez... doze ano que trabaia na fazenda e num existe cum
carteira assinada...não tem ainda...né? por quê? porque eles num liga...
eles acha que aquilo ali pra eles éh uma felicidade... eles num pensam
151
Análises da discurso hoje
no amanhã... eles pensam o noje... se ele comeu hoje... pra ele tá bom...ele não pensa no amanhã pra eles... né? eles acham que xoda vida eles
vai manter e sobreviver no Pantanal... né? eles num vê a velhice deles...
(Dl-linhas 372-379)Enfim, como o pantaneiro concebe a idéia de felicidade? Como
vimos nas expressões metafóricas assinaladas acima, seu conceito defelicidade dele é atravessado pela mesma tensão anteriormente apon-
tada na relação trabalho dificultoso mas prazeroso, aqui agora expressa na
formulação a dificuldade pra ele. ..éh só a felicidade dele... em que uma ação(ser feliz) é experienciada em termos de outra (enfrentar dificuldades).
Assim, seu sistema conceituai de felicidade está assentado em expe-riências concretas de seu dia-a-dia em que ser feliz é viver num lugar
gostoso (apreensão metafórica do espaço por meio de uma experiênciagustativa em vez da visual); ser feliz é ser receptivo ao outro, ser hos-pitaleiro e não sé uma pessoa fechada; ser feliz é pensa não apenas no hoje,
mas também no amanhã.
5. Conclusão
É tempo de terminar o texto. Teceremos apenas um breve comen-
tário que pretende ser uma resposta mais explícita à parte do títuloque remete à questão da construção identitária. De que maneira essa
compreensão da metáfora como conceito que estrutura nossa maneirade perceber, pensar e agir cotidianamente contribui para a construção
identitária do sujeito, como no caso dos discursos dos pantaneiros?Ao mostrar como os conceitos metafóricos de TRABALHO, FELICIDA-
DE e VIVER emergiram em suas falas e estruturam suas formas de per-cepção do mundo e sua atuação no cotidiano pantaneiro, acreditamos
que a identidade desse sujeito foi se delineando e se mostrando aosolhos do leitor.
É um trabalhador que muitas vezes não tem o seu próprio espaçopara morar, não tem muitas possibilidades e opções de lazer; que traba-lha duro, mas gosta do lugar. Esse pantaneiro apresenta-nos o Pantanal
i 52
Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção identitária
e a si mesmo por meio de relações opositivas tensas e contraditórias,
como mostramos nas construções metafóricas do universo semântico
de TRABALHO É RECURSO, TRABALHO É PRAZER, VIVER É APRENDER, FELI-
CIDADE É VIVER BEM, mas, em contrapartida, TRABALHO É SOFRIMENTO.
Nossa análise procurou voltar-se para o "exterior" lingüístico das
histórias de vida desses pantaneiros, buscando apreender as condições
sócio-históricas de sua produção (BRANDÃO, 1994) e a constiuição de
uma identidade que se constrói na contradição em que ele mesmovive: o Pantanal é difícil, mas é bom; "eu vivo aqui, mas não quero isto
para os meus filhos". Décadas atrás, como migrante ou descendente
de migrantes, ele escolheu viver no Pantanal e, com certeza, queria osfilhos vivendo lá também, mas as mudanças econômicas e sociais que
foram alterando a vida no espaço pantaneiro foram, paralelamente,
transformando o peão pantaneiro. As transformações pelas quais teve/tem de passar como trabalhador — que tem de aprender sempre parapoder sobreviver — fazem-no ter novos sonhos (por exemplo, estudar
os filhos), assumir novos papéis, novas profissões. Profissões essas que
o fazem ver um mundo diferente daquele "mundo do trabalho" emque sempre viveu: a chegada da televisão, da internet, do celular, do
transporte do gado que hoje é feito por meios muito mais rápidosdo que as comitivas boiadeiras que gastavam dias, semanas, meses a fio,
transportando o gado.O conhecimento de outras possibilidades de vida: a facilidade
maior de vir à cidade, por estradas hoje asfaltadas com pontes sobre os
rios que antes tinham de ser atravessados a nado ou rasgando água pela
cintura, muda os gostos, as visões de mundo, os desejos do homem pan-taneiro. Desse modo, as histórias de vida desses peões, que compõem o
corpus desta análise, explicitam as tensões e contradições que emergem,como observa Mishler (2002, p. 111), "dos diversos mundos sociaisnos quais simultaneamente somos atores e respondemos às ações dosoutros". É possível afirmar que a identidade desses homens se constróia partir de dois eixos principais de interação com seus interlocutores:o contexto cultural e socioeconômico mais amplo de seu trabalho de
Í53
Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: uma construção identitáría
peão no espaço pantaneiro e da convivência com os países vizinhos
e o contexto imediato que compreende suas relações familiares, de
amizade e a relação com o patrão.
Trata-se, portanto, de uma identidade não totalmente acabada, ple-
na, completa, mas "em processo" que, como diz Hall (2004), vai sendo
construída, "formada e transformada", na medida em que o próprio
contexto pantaneiro vai se transformando e novas experiências vão
sendo vivenciadas no entrelaçamento entre linguagem e vida.
Referências
ALMEIDA, Ricardo Luiz T. "A educação formal e as metáforas do
conhecimento: a busca de transformações nas concepções e prá-
ticas pedagógicas". In: Ciências & Cognição; Ano 2, v. 6, nov/2005.
Disponível em http://www.cienciasecognicao.org/artigos/
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de
Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 3.
ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1994. Série Pesquisas.
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As figuras de linguagem. São Paulo:
Ática, 1989.
CORACINI,MJ.R.F. Umfazer persuasivo:o discurso subjetivo da ciência.
São Paulo: EDUC; Campinas, SP: Pontes, 1991.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu
da Silva e Guaracira Lopes Louro. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2004.
JOANILHO, M.P.G. Por uma abordagem discursiva da metáfora. Campi-
nas, SP: UNICAMP, 1995 (dissertação de mestrado).
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana.Trzd.
Mara Sophia Zanotto (coord.). Campinas, SP: Mercado das Letras,
2002. Coleção As Faces da Lingüística Aplicada.
MISHLER,Elliot G."Narrativa e identidade: a mão dupla do tempo".
Trad. Claudia Buchweitz. In: LOPES, Luiz P. da Moita; BASTOS,
J 54
Liliana C. (orgs.). Identidades: recortes multi e ínterdisciplinares. Cam-
pinas, SP: Mercado de Letras, 2002.
MORAES, A.S. ei ai. Embrapa Pantanal: 25 anos de pesquisas em prol da
conservação do Pantanal Corumbá-MS, 2004. <http://www.cpap.
embrapa.br/agencia/congresso/Socio/MORAES-031.pdf> Aces-
so em 30 mai. 2008.
NOGUEIRA, Albana Xavier. A linguagem do homem pantaneiro. Assis,
SP: UNESP, 1989 (tese de doutorado).
. O que é Pantanal. São Paulo: Brasiliense, 1990.
OR.LANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sen-
tidos. 5. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2002.
PINTO, Maria Leda. "Cotidiano e representação do pantaneiro nas
narrativas orais". In: ANASTÁCIO, Elismar Bertoluci de Araújo;
MALHEIROS, Márcia Rita Trindade L.; FIGLIOLINI, Márcia
Cristina Rocha. Tendências contemporâneas em letras. Campo Grande:
UNIDERP, 2005, p. 267-278.
ZANOTTO, M.S. et ̂ ."Apresentação à edição brasileira". In: LAKOFF,
G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana (coord. trad. Mara
S. Zanotto). Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC,
2002.
."A metáfora irônica dos cartuns". In; PAIVA,V.L.M. (org.).
Metáforas do cotidiano. Belo Horizonte: Editora do Autor, 1998.
155
ANALISE DISCURSIVA DAPARODIZAÇÃO DOS PROVÉRBIOS NAMÍDIA IMPRESSA
Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)
Os provérbios são expressões cristalizadas na sua forma e no seu con-
teúdo que traduzem valores morais e comportamentos tidos como
desejáveis, o que lhes conferem um inegável caráter ideológico. Sendo
parte da tradição de uma coletividade, eles registram a mentalidade
de um povo e deixam entrever um suposto consenso sobre o agir/
pensar no cotidiano das relações sociais. As verdades atemporais que
expressam estão impregnadas de um tom moral e didático e se fazem
presentes em diferentes produções escritas, ainda que os provérbios
sejam tradicionalmente associados à oralidade.
Mas o provérbio não se restringe a uma ocorrência da língua e a um
elemento de ordem cultural: ele é um acontecimento discursivo que
coloca em jogo as potencialidades de um dizer socialmente instituído.
A soma do sentido de cada termo que o compõe pouco tem a ver
com o significado que assume na totalidade da prática enunciativa. Daí
nosso interesse em refletir sobre o provérbio corno uma ocorrênciasociocomunicativa na qual uma estrutura padronizada é projetada em
diferentes contextos de interação, determina certas relações discursivase, conseqüentemente, interfere na configuração persuasiva textual.
O discurso da informação, por exemplo, cuja própria gênese encon-
tra-se calcada na novidade, mobiliza os provérbios no intuito não só de
estabelecer uma proximidade com o público-alvo, como também de ex-
plorar a economia cognitiva de uma formulação lingüística já conhecida
Análises do discurso hojeAnálise discursiva da parodizaçao dos provérbios na mídia impressa
e codificada corri valor de evidência cultural. Essa presença do provérbio
revela a inserção da vox populi, urna vez que sua enunciação é atribuída a
toda uma coletividade que, através dele, expressa uma "verdade imemo-
rial". Nesse sentido, a cada re-enunciação, essa verdade é reelaborada e
atualizada, contribuindo para a perpetuação do provérbio.
Entretanto esse processo de reelaboração inerente à enunciação
proverbial pode configurar-se como um mecanismo de transformação,
quando o provérbio é submetido a um trabalho de recriação: a fórmula
fixa proverbial é alterada para dar origem a uma outra fórmula que,
mesmo sendo nova, apresenta características da formulação proverbial
que lhe deu origem. Esse procedimento, definido por Grésillon e Main-
gueneau (1984) como um desvio1, consiste, segundo os referidos autores,
em produzir um enunciado com as marcas lingüísticas próprias do pro-
vérbio, mas que, efetivamente, não pertença ao estoque dos enunciados
reconhecidos como tal. É uma espécie de pseudo-provérbio que busca
assimilar a força argumentativa e o poder de sabedoria inquestionável
de um dizer conciso, socialmente instituído e historicamente legitima-
do. Parece-nos que a denominação desvio para esse procedimento está
relacionada ao que ele pode resultar em termos de afastamento entre o
provérbio dito original e sua versão transformada. Isso quer dizer que a
formulação convencional do provérbio é reorientada para outra forma
de compreensão, que pode ser mais ou menos semelhante àquela já tra-
dicional, mas que apresentará sempre um grau de familiaridade.
Esse procedimento de transformação é por nós concebido como
um trabalho de reescrita do provérbio no qual um dizer-já-consagra-
do serve de base para a produção de um dizer, digamos, inédito. A nova
versão do provérbio não representa a descaracterizaçao de um dizer
convencional, já que resulta de uma reformulação de um enunciado
estabilizado socialmente tendo em vista urna demanda sociocomuni-
cativa específica e particular. Essa reescrita do já-dito proverbial pode
1 Détournement, no original em francês, e desvio na sua tradução consagrada para oportuguês.
ter uma conotação paródica quando resultar em uma versão intertex-
tual marcada pelo deslocamento formal e/ou temático. Nesse sentido,
estaríamos nos distanciando de uma concepção tradicional da paródia
como imitação burlesca, para concebê-la como um fenômeno relativo
a um processo de diálogo intertextual (FÁVERO, 1994)2. Assim, a paró-
dia é, como nos sugere Machado (1999b), uma prática discursiva que
se configura como um caso de heterogeneidade enunciativajá que há
o dialogo entre discursos de diferentes ordens: "o dito conhecido" e
o "dito novo". Não se trata de uma fusão, mas de um cruzamento de
vozes, no qual se reconhece e se distingue um enunciado-fonte e um
enunciado produzido a partir dele.
É sob essa perspectiva que analisaremos a recriação de provérbios
em algumas notícias veiculadas em jornal impresso, focalizando tal fe-
nômeno como um trabalho de reelaboração de um dizer tradicional
que produz um outro dizer. Como os provérbios se inscrevem nos
sistemas simbólicos que regem a vida de um grupo social, a reescrita
deles implica a reconfiguraçao de universos de referência e de visões
de mundo convencionalizadas. Postulamos que a parodizaçao do pro-
vérbio não se resume a um trabalho de deformação ou de produção
de uma caricatura, mas configura-se como uma estratégia discursiva
marcada pela insubordinação diante do convencional, por meio da in-
versão satírica de um enunciado cultural. De alguma forma, o sujeito
enunciador do provérbio revela um ethos subversivo ao transgredir o
senso comum e romper com um automatismo inscrito na língua.
1. Deslocamento do senso comum
Consideremos a notícia (NI), veiculada no jornal Estado de Minas, de
30 junho de 1999, na coluna "Interesse Público", cujo título é A ocasião
ao
158
2 O próprio termo paródia significa, na sua etimologia, "canto paralelo" (para - "w
lado de" + ode - "canto") deixando subentendida a inter-relação entre diferentes
textos.
159
Análises do discurso Hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa
faz o projeto e o tema, a proposição de uma lei que obriga os hospitais a
não deixarem os pacientes esperando mais do que trinta minutos.
O enunciado A ocasião faz o projeto pode ser tomado como produto
da substituição do termo "ladrão" do provérbio A ocasião faz o ladrão pelo
termo "projeto": a troca lexical preserva a similaridade entre o enunciado
"original", o provérbio-fonte, e o enunciado derivado, o titulo paródico.
Trata-se de uma parodização do provérbio A ocasião faz o ladrão, que é
recriado e tomado como título da notícia. O título faz referência ao
oportunismo indicado pelo provérbio por meio de um deslocamento
para o relato de um fato político: tendo em vista a aprovação de uma lei
que obriga os bancos a atender seus clientes em 15 minutos, Geraldo
Félix, o vereador da cidade de Belo Horizonte, elaborou um projeto de
lei limitando o atendimento nos hospitais e postos de saúde municipais
em trinta minutos. Assim, o conceito expresso genérica e atemporal-
mente pelo provérbio é orientado para um fato situado no "aqui" e
"agora" de uma informação jornalística em particular.
É interessante notar que a formatação evidencia essa reorientação
na medida em que o corpo do texto da notícia está subdividido em
dois tópicos: o primeiro, intitulado "o CASO", dedica-se à exposição
dos acontecimentos; o segundo, intitulado "COMENTÁRIO", centra-se
na análise das implicações e dos desdobramentos dos fatos acima des-
critos. É esse segundo tópico que explicita como o provérbio se rela-
ciona com os fatos relatados pela notícia.
A alteração lexical que resultou na versão paródica incidiu so-
bre o último termo do provérbio-fonte que lhe serviu de base. Ou
seja, inicialmente, o enunciado-título apresentava todos os indícios de
que ele evocaria a versão original do provérbio, o que desencadeou
a expectativa da citação do provérbio na sua versão convencional. Ao
inovar justamente no termo final, o sujeito-jornalísta surpreende o
sujeito-leitor propondo-lhe uma versão paródica, versão que rompe
de maneira inusitada com a formulação que ele, sujeito pertencente a
um grupo social que partilha certas referências culturais, teria na sua
memória. Sob esse aspecto, o procedimento paródico produz um efei-
160
to de surpresa, que, por sua vez, atua como elemento capaz de captar a
atenção e motivar a leitura da globalidade da notícia.
Do ponto de vista cognitivo, essa leitura da seqüência da notícia mo-
biliza as representações evocadas tanto pelo provérbio-fonte, quanto pela
sua versão derivada. Logo, o novo-saber que a notícia apresentajá é, desde
o título (e pelo título), incorporada a um saber que os sujeitos-leitores
(supostamente) já possuem, o que representa um elemento facilitador
para a assimilação desse "novo saber". Ao manter um forte paralelismo
com o provérbio-fonte que lhe serviu de base, o título da notícia (NI)
não perde de vista o enunciado-fonte, o que garante, de certa forma,
que ele seja reconhecido na versão paródica. Essa versão apresenta uma
substituição lexical na qual o termo introduzido remete ao universo da
notícia. Assim, a versão derivada opera uma transformação do provérbio-
fonte, visando a uma adequação contextual deste, ou seja, a idéia genérica
que ele expressa é orientada para um acontecimento específico.
Outro caso parecido acontece na notícia (N2) intitulada MPB ganha
metaleiro e veiculada no Jornal do Brasil, em 06 de novembro de 1999,
na coluna "Supersônicas". O texto começa com a expressão Casa de
marceneiro, espeto de metal e seu conteúdo informativo diz respeito ao
fato de Francisco Faria, filho de pais cantores de dois diferentes gru-
pos de música popular brasileira, cantar e liderar uma banda de heavy
metal há cinco anos. Segundo a notícia, Francisco agora teria aceitado
convite para cantar com cantores de MPB, rendendo-se a uma música
mais tradicional. E possível reconhecer no enunciado Casa de marcenei-
ro, espeto de metal uma nova versão do provérbio Casa de ferreiro, espeto
de pau, versão esta obtida através da seguinte inversão:
Casa de ferreiro, espeto de pau
Casa de marceneiro, espeto de metal
Nesta inversão, a associação casa do ferreiro/ espeto de pau do provér-
bio-fonte é substituída pela associação casa de marceneiro/ espeto de metal.
161
Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa
A denominação do conceito de contra-senso do provérbio-fonte é
mantida no provérbio derivado, através do paralelismo da inversão: a
incoerência no fato de o espeto na casa do ferreiro ser de pau é similar
ao fato de o espeto na casa do marceneiro ser de metal.
Como o título MPB ganha metaleiro refere-se à presença de um novo
metaleiro no cenário musical, a versão paródica do provérbio Casa de mar-
ceneiro, espeto de metal, primeiro enunciado do corpo do texto da notícia,
retoma essa referência, propondo um jogo de palavras capaz de indicar
como o contra-senso expresso pelo provérbio-fonte se aplica ao fato des-
crito pelo título. A versão paródica, mesmo quando apresentada como
primeiro enunciado do corpo do texto da notícia, se volta para a inscrição
do universo da notícia no universo conceituai da fórmula proverbial.
Dessa maneira, o provérbio é moldado pelo contexto da notícia atra-
vés de um movimento de reescrita que explora o jogo de palavras já
proposto pelo provérbio-fonte Casa de ferreiro, espeto de pau e constitui
um procedimento paródico centrado na recontextualização de um para-
digma: o paradigma de contra-senso convencionalizado e sintagmatiza-
do pelo provérbio. A dimensão atrativa desse procedimento advém não
apenas do que ele propõe como algo inédito e surpreendente, mas tam-
bém da sua feição cômica: a versão paródica, ao ser reconhecida como
tal, pressupõe a "deformação" da representação cristalizada do provérbio,
representação inscrita na língua e na cultura. O status e o prestígio de
verdade absoluta do provérbio são, de certa forma, desestabilizados.
Os enunciados A ocasião faz o projeto, da notícia (NI) e Casa de mar-
ceneiro, espeto de metal, da notícia (N2), resultam de um trabalho paródico
marcado pelo deslocamento de uma fórmula convencional, o provérbio,
para uma outra situação, o que demanda o ajustamento desse outro mo-
delo ao seu universo referencial. Nesse deslocamento do senso comum,
a versão derivada do provérbio projeta o conceito que este último deno-
mina para o contexto da notícia através da inserção de termos capazes de
sinalizar essa relação. Por isso, a formulação paródica representa a síntese
dessa projeção, caracterizando-se como um mecanismo de reorientação
do conceito proverbial para uma circunstância em particular.
162
O procedimento formal de substituição de um termo por outro
na notícia (NI) e a inversão lexical na notícia (N2) representam mui-
to mais que a alteração de uma fórmula fixa: trata-se, na verdade, de
uma reconfiguraçao da "realidade", cuja visão convencional proposta
pelo provérbio é alterada sem ser, de todo, apagada. Formas ritualizadas
de comportamento e expressões convencionalizadas evocam um agir
institucionalizado que compõe um conhecimento mínimo necessário
dos padrões de conduta regulares que, em última instância, levam a
uma previsão de atuação social (cf. LARAIA, 2001). Como os provérbios
fazem parte da tradição cultural, a reescrita paródica deles impõe uma
alteração na lógica já preestabelecida quando os valores e idéias são
contestados. Entretanto, ao se propor que "a ocasião faz o projeto" e que
em"casa de marceneiro, espeto de metal", subverte-se o universo contex-
tual sem alterar os conceitos de oportunismo, expresso por "a ocasião
faz o ladrão", e de contra-senso, expresso por "casa de ferreiro, espeto
de pau". Tais conceitos são transpostos para um processo enunciativo
específico a partir do qual eles serão ressignificados.
Vale notar ainda que através da fórmula proverbial paródica em
(NI) e (N2) é possível reconhecer a formulação tradicional do provér-
bio, o que confere à parodização um caráter de fenômeno polifonico:
ela encerra um diálogo entre a vox populi do provérbio e a voz de
um sujeito-parodiador. Essas vozes co-habitam o provérbio paródi-
co por meio dessa duplicidade enunciativa que lhe é inerente, urna
vez que ele evoca necessariamente o provérbio-fonte. A proximidade
entre a versão derivada e a versão "original" do provérbio permite o
reconhecimento desta naquela devido à similaridade que essas versões
guardam entre si, o que cria um efeito de duplicidade.Tal similaridade
busca, no entender de Maingueneau (1998), a captação do gênero pro-
verbiaP, sobretudo no título, uma vez que ele absorveria algumas das
características mais marcantes do provérbio, aquelas mais eficientes do
3 O referido autor analisa o mesmo fenômeno. Entretanto, aborda a relação entre o
provérbio e o slogan publicitário.
Í 63
Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa
ponto de vista comunicacional. Ao captar o gênero proverbial, a no-
tícia assimila e reelabora seu modelo já institucionalizado, de forma a
adequá-lo ao mundo que ela constrói e veicula.
2. Abreviação paródica da fórmula proverbial
A notícia (N3), intitulada No time dos outros é refresco e veiculada pelo
Jornal ao Brasil, de 10 março de 1999, no caderno "Esportes", comenta
o fato de torcidas rivais irem ao estádio em jogo de rodada dupla para
torcer contra os tradicionais rivais de seus times, citando casais que
farão isso no jogo entre Fluminense e Lagartense, primeira partida, e
Flamengo vs. Botafogo da Paraíba, partida seguinte.
O provérbio Pimenta nos olhos aos outros é refresco pode ser reconhecido
no que seria a sua versão paródica: o enunciado No time dos outros é refresco.
Esse trabalho de recriação da fórmula proverbial compreendeu a supres-
são do termo "pimenta" e a substituição da expressão "nos olhos dos outros"
pela expressão "no time dos outros". Assim, do ponto de vista formal, tais
alterações mantêm o parâmetro instituído pela fórmula proverbial, per-
mitindo que a versão derivada deixe entrever seu enunciado-fonte. Em
termos de processos de constituição, esse trabalho de parodização pode
ser visualizado através de dois esquemas, cada um apresentando um per-
curso diferente, mas ambos gerando o mesmo título paródico:
Percurso 1:ProvérbioProvérbio abreviadoProvérbio abreviado parodiado
Pimenta nos olhos dos outros é refresco
Nos olhos dos outros é refresco
No time dos outros é refresco*
4 Vale notar que o provérbio Pimenta tios olhos dos outros é refresco tem outras versões,dentre as quais destacamos Pimenta no rabo dos outros é refresco. Tendo em vista essaúltima versão, o termo substituído seria justamente aquele relacionado a um registrode linguagem vulgar, não compatível com o registro de linguagem vigente no Jornaldo Brasil.
Í 64
Percurso 2:ProvérbioProvérbio parodiadoProvérbio parodiado abreviado
Pimenta nos olhos dos outros é refresco
Pimenta no time dos outros é refresco
No time dos outros é refresco
A diferença entre esses dois procedimentos é que, no primeiro, o
trabalho de parodização foi efetuado na versão abreviada do provérbio
e, no segundo, a parodização incidiu sobre a íntegra da formulação
proverbial original e foi, em seguida, abreviada. Entretanto, indepen-
dentemente da ordem das operações, o que é significativo é o que se
produziu como versão inédita de um dizer cristalizado e os efeitos de
sentido que esse novo dizer assume ern um dado contexto. Quando
um sujeito-parodiador recria um provérbio através da alteração da sua
formulação, ele o faz em conformidade com seus objetivos comuni-
cativos: a quem ele se dirige, com quais propósitos e dentro de qual
contexto de interação. Do ponto de vista discursivo, o interesse susci-
tado pela analise do trabalho paródico reside na possibilidade de des-
vendar as relações interacionais que caracterizam esse jogo entre visão
de mundo estabilizada e visão de mundo inovadora, proposta pelo uni-
verso midiátãco. Os aspectos formais são índices materiais desse jogo.
Retomemos o título No time dos outros é refresco, da notícia (N3),
tendo em vista o provérbio-fonte Pimenta nos olhos dos outros é refresco,
que lhe serviu de base. No que diz respeito à presença do termo "no
time", trata-se da inserção de um termo que indica o universo refe-
rencial da notícia, inscrevendo esse universo na formulação proverbial.
Em outros termos, opera-se um deslocamento do conceito que o pro-
vérbio representa para o caso do futebol, especificamente, a rivalidade
das torcidas dos times profissionais da cidade do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o título representa uma antecipação do que será
tratado no corpo do texto da notícia. Como o provérbio Pimenta nos
olhos dos outros é refresco, abreviado ou não, denomina o conceito de
falta de solidariedade, ele se ajusta ao fato relatado pela notícia: o com-
portamento das torcidas de futebol que vão aproveitar uma rodada
165
Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa
dupla no Maracanã para torcer contra (secar, conforme o texto) otradicionalmente rival.
Pode-se notar que o título paródico não apenas desloca um con-
ceito consensualmente admitido, como também o apresenta de forma
condensada. Considerando a relação: maior conteúdo proposicional/
menos palavras (ser breve e objetivo), que orienta a configuração da
notícia, o título paródico é altamente eficiente, já que consegue dizer
muito em pouco espaço, o que, diga-se de passagem, em nada compro-
mete sua outra função de atrair a atenção do público-leitor.
Mas a notícia (N3) apresenta, no corpo do seu texto, outro pró-
vérbio-paródico: Roupa suja se lava no Maracanã. Como o assunto da
notícia é o comportamento das torcidas em uma dada partida de fute-
bol, ern um dado estádio, a troca do termo "casa" do provérbio-fonte
Roupa suja se lava em casa pelo termo "Maracanã" faz jus a essa temática.
O termo introduzido refere-se ao local onde o esperado encontro que
está sendo relatado vai acontecer. Como o enunciado paródico está
no meio do texto, a referência ao Maracanã não é de todo inesperada,
pois já houve um relato anterior relacionado a esse local. Além disso,
o termo "Maracanã" na página de esportes de um jornal editado na
cidade no Rio de Janeiro já é familiar e, de certa forma, esperado, uma
vez que ele denomina o estádio de futebol mais famoso da referidacidade, e até mesmo do Brasil.
Essa substituição do termo- "casa" pelo termo "Maracanã" tem um
outro efeito, além desse efeito referencial: se, no provérbio-fonte,'Vrt5íi"
é usado como um termo genérico para fazer referência ao espaço de
convivência mais íntima, no provérbio paródico o termo "Maracanã"
designa um lugar público por excelência, mas que não deixa de ser
específico no que diz respeito ao encontro das torcidas dos times de
futebol. Assim, a descrição prescrita pelo provérbio refere-se ao âmbito
do estádio do Maracanã: lá é lugar propício para que as torcidas mani-festem sua rivalidade.
A presença de dois provérbios paródicos em uma mesma notícia,
como acontece em (N3), pode ser vista tanto como uma estratégia de
i 66
comunicação centrada na retomada de um universo referencial julga-
do partilhado com os sujeitos-leitores quanto como um mecanismo
de reelaboraçào de representações estereotipadas. No primeiro caso,
parece-nos que o sujeito-jornalista recorre à imagem que ele tem do
seu público-leitor, tentando aproximar-se dele através de enunciados
já familiares; sendo o futebol o esporte mais popular no Brasil, nada
mais coerente do que falar dele através de enunciados igualmente po-
pulares, logo, mais próximos, mais acessíveis ao leitor projetado como
leitor da página de esportes. No segundo caso, tratar-se-ia da constru-
ção de um "saber inédito" através da recriação de saberes amplamente
difundidos; o "novo saber" é apresentado explicitamente como uma
releitura de um saber já assimilado. Em ambos os casos, fica evidencia-
da a heterogeneidade discursiva.Vejamos, na seqüência, outra notícia cujo título é o resultado de
uma criação paródica igualmente baseada na abreviação do provérbio.
Trata-se da notícia (N4) intitulada Filho de bacalhau... e veiculada no
Jornal do Brasil, de 12 dezembro de 1999, no caderno "Esportes", que
aborda o fato de o filho de um dirigente esportivo do time do Vasco
da Gama estar assumindo o comando de esporte olímpico da mesma
equipe.O título da notícia é composto por um termo que pode ser asso-
ciado ao termo inicial do provérbio Filho de peixe, peixinho é. Assim, a
expressão "Filho de peixe" é compreendida como uma forma abreviada
do provérbio, forma esta usada para fazer referência ao conceito de
hereditariedade que o provérbio denomina. Como explicar a subs-
tituição do termo "peixe" pelo termo "bacalhau"'? Trata-se apenas da
substituição de um nome genérico por um nome designativo de urna
espécie em particular?Ora, uma referência a "bacalhau" na página de esportes de um jornal
editado na cidade do Rio de Janeiro pode ser associada ao time de fu-
tebol profissional do Vasco da Gama, cuja origem portuguesa motivou
essa relação: é um conhecimento de mundo ligado ao universo do fu-
tebol carioca. Isso quer dizer que, para os leitores da página de espor-
167
Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa
tes, essa referência é dada como codificada, sendo uma denominação
do time do Vasco da Gama. Articulando a codificação do provérbio à
codificação dessa referência, o título Filho de bacalhau pode ser visto
como resultado de um trabalho de parodização duplamente funcional.
Primeiro, porque esse trabalho produziu um título bem sintético: três
palavras apenas têm o potencial de evocar o conceito que o provérbio
denomina. Segundo, porque esse mesmo título tem a propriedade de
sinalizar a projeção do conceito de hereditariedade denominado pelo
provérbio para a situação do Vasco da Gama.
Do ponto de vista da instância de produção, o trabalho de parodi-
zação apoiou-se tanto na codificação do provérbio, quanto na conven-
cionalização da polissemia do termo "bacalhau". O sujeito-parodiador
aposta na capacidade inferencial dos sujeitos-interpretantes, contando
que eles serão capazes de resgatar essa relação de similaridade entre o
enunciado proverbial e o enunciado-título:
Filho de peixe peixinho é
*Filho de bacalhau bacalhauzinho é
Filho de peixe
+Filho de bacalhau
Assim, a síntese que caracteriza o enunciado Filho âe bacalhau é
justificável na medida que tal enunciado consegue ter uma carga in-
formacional compatível com sua função de título, além de ser capaz de
atrair a atenção pela sua originalidade.
É interessante notar certo tom irônico nesse título, já que a relação
de hereditariedade natural e inevitável expressa pelo provérbio é trans-
posta para a relação entre Eurico Miranda, famoso dirigente do Vasco
da Gama, e seu filho, Mário Miranda, o jovem superintendente de
esportes olímpicos do mesmo clube. O título comportaria uma insi-
nuação de que o fato de o filho estar no comando da equipe olímpica
deve-se ao seu vínculo familiar com o dirigente do clube do Vasco
da Gama. Nesse sentido, sua competência administrativa estaria sendo
questionada. As reticências que acompanham o título seriam, a nosso
í68
ver, uma indicação dessa possibilidade, deixando em aberto a confir-
mação da inevitável carga hereditária. Sob esse aspecto, cabe ao sujei-
to-leitor deduzir se Mário Miranda herdará também do pai o estilo
autoritário que lhe é característico e famoso no mundo do futebol.
A citação parcial do provérbio paródico ou a parodização da for-
mulação proverbial abreviada tem o mérito de envolver o sujeito-in-
terpretante que, dessa forma, é convocado não apenas a reconhecer na
versão derivada a versão original do provérbio, como também a com-
pletar o segmento paródico, tendo a possibilidade de seguir ou não
o conceito prescrito pela sabedoria proverbial. Mas a citação parcial
(a parodização incide sobre a forma abreviada do provérbio) remete
ainda à força da convencionalização: o provérbio encerra urn topos na
sua forma mais cristalizada, devido ao seu status de evidência cultural e
pelo seu caráter de premissa coletivamente partilhada.
3. Outros movimentos de parodização
Na notícia (N5), intitulada Mais vale uma camisinha usada corretamente do
que duas e veiculada no jornal Folha de São Paulo, de 15 novembro de
1999, no caderno "Folhateen", temos outro tipo de parodização em um
texto opinativo no qual a jornalista/ psicóloga responde a urna dúvida
sobre a vida sexual de um adolescente. Pode-se reconhecer no título a
referência ao provérbio Mais vale um pássaro na mão que dois voando, ape-
sar das alterações que esse título apresenta em relação ao seu enuncia-
do-fonte. Entretanto, tais alterações resguardam a estrutura proverbial já
conhecida "mais vale um l ...l do que dois". A elaboração paródica que
resultou no título Mais vale uma camisinha usada corretamente do que duas
pautou-se na retomada de uma estrutura já estigmatizada na qual foram
inseridos termos relativos ao tema da coluna-resposta da enunciadora-
jornalista. A idéia de escolha prescrita pelo provérbio é mantida, sendo
ela deslocada para o universo referencial da coluna.
O título de (N5) sintetiza a aplicação dessa idéia no contexto sexual,
mais especificamente, no que se refere ao comportamento dos jovens
169
Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios tia mídia impressa
e adolescentes, pois a coluna é endereçada a esse tipo de público. Aliás,
a coluna faz parte de um suplemento semanal, cujo nome "Folhateen"
já indica o seu público-alvo: o termo "Folha" remete ao jornal Folha de
São Paulo e o termo em inglês "teen" remete à adolescência. O caráter
prescritivo do provérbio-fonte ajusta-se à proposta da coluna escrita
pela jornalista-psicóloga Rosely Sayão: orientar a conduta dos jovens
através de respostas aos questionamentos por eles enviados. Nesse sen-
tido, o título-provérbio da sua coluna-resposta Mais vale uma camisinha
usada corretamente do que duas apresenta, ao mesmo tempo, a prescrição
sucinta de um comportamento desejável e um conselho imbuído da
sabedoria e da credibilidade associadas às fórmulas proverbiais. Dessa
maneira, o provérbio paródico (i) capta a atenção dos sujeitos-leitores
por constituir-se como uma pseudo-fórmula proverbial; (ii) sintetiza
o tema da notícia, projetando o conceito de previdência denominado
pelo provérbio no contexto de uma informação jornalística específica;
e {iii) prescreve um comportamento desejável através de um conselho
prático para os jovens leitores.
Apresentado sob a forma de provérbio-parodiado, esse conselho é
formulado como um trocadilho bem-humorado, o que favorece sua
memorização e, certamente, lhe confere menos formalidade do que
aquela que tradicionalmente caracteriza as intervenções de um espe-
cialista quando este é chamado a opinar sobre o assunto de seu conhe-
cimento. Sob esse aspecto, a linguagem da psicóloga-jornalista assume
o mesmo tom coloquial da linguagem do público jovem ao qual se
dirige, permitindo-lhe abordar um assunto de relativa gravidade de
maneira objetiva, mas descontraída.
Portanto, o trabalho de parodizaçào, ao dessacralizar uma fórmula
fixa que goza de amplo prestígio social através da troca de seus itens
lexicais, revela sua intencionalidade lúdica de alterar fórmulas fixas,
conhecidas e valorizadas justamente pela sua dimensão convencional.
Ao romper com essa convencionalidade e com a relativa rigidez de
tais fórmulas, esse trabalho busca efeitos de sentido compatíveis com a
proposta comunicativa do gênero no qual está inserido.
Í70
Nesse sentido, o título Mais vale uma camisinha usada corretamente do
que duas apresenta um saber supostamente desconhecido do público
leitor ao qual se endereça, conforme a proposta do discurso informa-
tivo jornalístico, e o faz de maneira atraente, j á que ele apresenta uma
versão "inédita" de um provérbio. Tal versão promove o ajustamento
do provérbio ao contexto da informação jornalística, integrando seu
conceito ao relato que a notícia apresenta. Esse ajustamento é feito
através de alterações que, ao mesmo tempo, recriam o provérbio e
mantêm sua formulação de base, já que, como dissemos, é possível
reconhecer o provérbio nessa sua versão inédita.Vejamos, finalmente, a notícia (N6) intitulada ídolo posto, ídolo assal-
tado: R.$ 2,50 na conta e veiculada na Folha de São Paulo, de 19 outubro
de 1999, no caderno "Cotidiano". O título é um enunciado derivado
do provérbio "Rei posto, rei morto": desse provérbio-base, o título con-
serva a estrutura marcada pelo paralelismo, mas efetua uma substitui-
ção lexical e acrescenta a expressão "R$ 2,50 na conta". Todas essas
mudanças buscam, conforme já afirmamos, incorporar ao provérbio os
elementos referenciais da notícia, de forma que ele torne-se um título
eficiente. Dessa maneira, o título-provérbio "ídolo posto, ídolo assaltado:
R$ 2,50 na conta" associa o conceito denominado pelo provérbio-
fonte (o conceito de substituição imediata) com os fatos que a notícia
relata: os recentes assaltos a pessoas famosas e a proposta do governo
do estado de São Paulo de instituir a cobrança de uma taxa de R$ 2,50
para financiar a segurança pública.Comparando o título ídolo posto, ídolo assaltado: R$ 2,50 na conta
com a versãío original do provérbio, Rei morto, rei posto, podemos notar
que o termo "rei" do provérbio-fonte foi substituído pelo termo "ído-
lo" no sentido de fazer uma referência genérica aos artistas, modelos e
jogadores de futebol a que se refere a notícia. O prestígio social dessas
personalidades é tomado como similar ao status até então desfrutado
pelos monarcas. Uma outra substituição é aquela do termo "morto" pelo
termo "assaltado": os ídolos citados fazem parte de uma lista de vítimas
de recentes assaltos. Assim como os reis se sucediam no poder, os ídolos
(até eles!) se sucedem como vítimas de assalto: segundo a notícia (N6),
Í7Í
Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa
à exceção de Pele (o propalado Rei do Futebol que, tão logo foi re-conhecido pelos assaltantes, foi liberado), as outras pessoas famosas não
escaparam da violência urbana. Mas essa sucessão de assaltos pode ter
uma conseqüência: a cobrança de uma taxa de R$ 2,50 para custear a
segurança pública. Se o processo sucessório dos reis não tinha nenhum
ônus, essa sucessão de assaltos a pessoas com um poder aquisitivo relati-vamente alto pode resultar em ônus para o contribuinte.
O provérbio Rei morto, rei posto é não apenas deslocado para o uni-
verso da notícia, como tem também ampliada a sua carga referencial. Issoporque a verdade imemorial do provérbio-fonte é acrescida de elemen-
tos não apenas inesperados, mas, sobretudo, típicos de uma sociedademoderna e urbana, aquela retratada pela informação jornalística. O tra-balho paródico que resultou no título ídolo posto, ídolo assaltado: R$ 2,50
na conta promove uma oposição entre o universo tradicional retratado
pelo provérbio-fonte e o universo contemporâneo retratado por esse tí-tulo. Trata-se de uma oposição entre o padrão estabelecido pela monar-quia e o criado pela violência urbana atual: essas duas visões de mundoestão inscritas no título-paródico como duas realidades diferentes, mastambém similares, já que urna foi construída com base na outra.
Sob essa perspectiva, a dimensão folclórica do provérbio-fonte
contrasta, de alguma maneira, com a dimensão efêmera da versão-derivada, uma vez que essa última não se tornou unia representaçãopública cristalizada. O aspecto cômico da formulação paródica refere-se ao que ela apresenta em termos de distorção do modelo tradicional
do provérbio-fonte. Isso porque o título ídolo posto, ídolo assaltado: R$
2,50 na conta apresenta uma outra concepção do processo de substi-tuição, concepção esta construída a partir de referências a fatos da vidacotidiana que em nada lembram o glamour da monarquia.
4. Considerações finais
A parodização do provérbio pode fazer apelo à substituição, à supres-são e/ou à expansão de seus itens lexicais no propósito de que os no-
172
vos termos inseridos remetam ao universo referencial da notícia. Dessa
maneira, o trabalho paródico rompe o sentido global do provérbio e
procede a um deslocamento do conceito que ele denomina para ocontexto específico de uma informação jornalística. O título-paródico
encerra, assim, uma síntese do tema da notícia, além de captar a aten-
ção dos sujeitos-leitores, que são surpreendidos por uma fórmula que
lhes soa familiar, mas que tem algo de inédita.O processo de parodização insere no provérbio-fonte elementos
referenciais da notícia de forma que a "nova" versão condense sua
carga mformacional. Conseqüentemente, o sentido sintagmatizadodo provérbio é orientado para o contexto específico da notícia. Sob
esse ângulo, como afirma Sant'Anna (1985), a paródia é um efeito
de deslocamento: ela estabelece uma diferença entre os textos, opon-do a visão convencional do provérbio-fonte à visão "atual" do pro-
vérbio paródico. Mas o provérbio-paródico não anula nem destrói oprovérbio-fonte; ao contrário, evoca-o porque os efeitos da paródiadependem do reconhecimento do texto que lhe serviu de base. Ao
provérbio-paródico subjaz o provérbio-fonte, ou seja, nele dialogampolifonicarnente uma versão convencional e uma versão moderna do
provérbio, o "dito velho" do provérbio-fonte e o "dito novo" do pro-
vérbio paródico.No que se refere aos mecanismos de transformação dos provérbios
em títulos de notícia via trabalho paródico, consideramos tratar-se deum procedimento que permite ao gênero proverbial ser incorporadoa um outro gênero, a notícia. O provérbio é adequado à intencionali-
dade do gênero para o qual migrou, gênero que o molda segundo suaproposta comunicativa. Dessa maneira, ele revela sua face camaleônica,já que se adapta a uma demanda situacional, assimilando uma formu-
lação conveniente a essa demanda.Deve-se ressaltar ainda que os títulos paródicos, para que funcio-
nem como tais, dependem da percepção desse trabalho de recriação:
o sujeito-leitor deve recuperar no título paródico o provérbio que lheserviu de modelo de construção. Cabe à instância de produção, deixar
173
Análises do discurso hoje
indícios suficientes na versão derivada para que se reconheça nela o
provérbio-fonte sob pena de não se obterem os efeitos paródicos.
No que diz respeito ao aspecto lúdico, a paródia promove um jogo
entre o sentido composicional e o sentido não-composicional através
da substituição e da introdução de novos itens lexicais. Explorando
a polissernia dos termos e as possibilidades cômicas de associação de
palavras de mesmo campo semântico, esse jogo rompe com o sentido
sintagmatizado do provérbio, sem romper com o modelo de composi-
ção que ele oferece. Assim sendo, o efeito cômico do trabalho paródico
é obtido não apenas pelo rompimento inesperado do automatísmo de
uma expressão já cristalizada, mas também pelo que esse rompimento
representa em termos de banalização de um modelo tradicionalmenteinstituído.
Sob essa aura cômica, a paródia tem uma feição subversiva porque
propõe uma visão diferente daquela já institucionalizada pelo senso
comum. Há, de alguma forma, um questionamento da autoridade e da
legitimidade do discurso-fonte, o que confere à paródia uma dimensão
polêmica, já que, ao recriar, ela desconstrói um discurso já instaurado.
No caso do provérbio, essa desconstrução assume um caráter de dessa-
cralização, pois a verdade absoluta do provérbio é desestabilizada para
dar lugar a uma verdade circunstancial. Qualquer que seja sua configu-
ração material, a paródia tem um valor de provocação na medida em
que promove a ruptura da rnecanicidade que rege o funcionamento
da linguagem, em geral, e das fórmulas fixas, em particular. Seu caráter
revolucionário deve-se ao questionamento do sentido sintagmatizadopela fórmula proverbial.
Portanto, a paródia comporta em si um aspecto de destruição e
de construção: o discurso-fonte é desfeito, mas um "novo" discurso é
elaborado; ela configura-se como um processo de transformação que
dá origem a um discurso que não nega sua origem, mas vai contestá-la
por meio da desestabilização de imagens já incorporadas ao imagi-
nário coletivo e de uma certa atitude de inconforrnismo diante do
preestabelecido. Como o provérbio, pelo seu caráter de dizer cultural,
174
Análise discursiva da parodizaçao dos provérbios na mídia impressa
homogeneiza e uniformiza, parodiá-lo é uma forma de transgressão,
ainda que a sabedoria popular que ele expressa não esteja sendo sub-
vertida no seu conteúdo. O que está em jogo é, de certa forma, uma
tradição cultural ou, pelo menos, a visão de mundo que ela instituiu e
que foi sendo perpetuada. Como gênero folclórico, ele comporta co-
nhecimento moral e instruções práticas que funcionam como "estraté-
gias para situação" (OBELKEVICH, 1997) ancoradas no senso comum.
Enquanto produção coletiva, o provérbio depende do seu uso e,
por mais paradoxal que possa parecer, sua versão parodiada acaba por
fortalecê-lo, já que ela deixa subentendida sua versão primeira. O pro-
vérbio existe porque um grupo social dele se apropriou; sua sobrevi-
vência depende da sua circulação/ difusão contínua, seja na sua for-
mulação original, seja como objeto de uma reescrita, seja, ainda, na sua
integralidade ou na sua forma abreviada.
Referências
ANSCOMBREJean-Claude (org.)."La parole proverbiale". In: Lan-
#£€$,11.139,2000.FÁVERO, Leonor Lopes."Paródia e dialogismo", In: BARROS, Dia-
na; FIORIN, José Luiz (org.). Dialogismo, polifonia, íntertexlualidade.
São Paulo: EDUSP, 1994, p. 49-61.GRÉSILLON, Almuth; MAINGUENEAU, Dominique. "Polypho-
nie, proverbe et détournement". In: Langages, n. 73, mars, 1984, p.
112-125.LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de
Janeiro: Jorge Z,ahar,2001.LYSARDO-DIAS, Dylia. "O discurso do estereótipo na mídia". In:
EMEDIATO,Wander et alii (org.). Análise do discurso:gêneros, comu-
nicação e sociedade. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso,
PosLin/FALE/UFMG, 2006, p. 25-36.."Provérbios e metáforas: a dimensão cognitiva-cultural dos
enunciados proverbiais". In: CAMPOS, Maria Cristina Pimentel;
-175
Análises do discurso hoje
GOMES, Maria Carmen Aires (eds.). Interações dialógicas: linguagem
e literatura na sociedade contemporânea.Viçosa., MG: UFV, 2004, p. 41-
48.
MACHADO, Ida Lúcia. "A paródia vista sob a luz da análise do dis-
curso". In: MARI et alii (org.). Fundamentos e dimensões da análise do
discurso. Belo Horizonte: Carol Borges, 1999a, p. 327-334.
. "A presença da paródia em títulos da imprensa francesa".
In: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, jul./
dez., 1999b,p.97-114.
_. "Análise do discurso & texto paródico". In: LARA, Glau-
cia Muniz Proença. LÍngua(gem), texto, discurso: entre a reflexão e a
prática. Rio de Janeiro: Lucerna; Belo Horizonte: FALE/UFMG,
v. l, 2006, p. 71-86.
MAINGUENEAU, Dominique. Analyser lês textes de communication.
Paris: Dunod, 1998.
OBELKEVICH, James. "Provérbios e história social". In: BURKE,
P.; PORTER, R. (orgs.). História social da linguagem. São Paulo:
UNESP, 1997, p. 43-81.
SANT'ANNA, Afonso Romano. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Áti-
ca, 1985.
176
AS PALAVRAS DE UMA ANÁLISE DODISCURSO
Ida Lúcia Machado (UFMG)
A análise do discurso sobre a qual gostaríamos de falar é aquela que ficou
conhecida (sobretudo no Brasil) como Semiolingüística: trata-se de uma teo-
ria que foi criada pelo lingüista Patrick Charaudeau, do Centre tfAnalyse
du Discours da Universidade de Paris XIII (França). O primeiro ponto que
queremos aqui destacar é que as teorias que compõem essa Analise do
Discurso se inserem perfeitamente bem no domínio dos Estudos Lin-
güísticos: Charaudeau possui uma sólida formação de lingüista e sua tese
— bastante inovadora, na qual são apresentadas as referidas teorias — foi
orientada por Bernard Pottiers e defendida na Universidade de Paris IV, em
1977, com o título: Lês Conditions linguistiaues á"une analyse du âiscours.
Partindo dessa produção "inicial", notamos que o objetivo primei-
ro do autor, já espelhado neste título, foi o de refletir sobre "as condições
lingüísticas de uma análise do discurso" e não o de buscar definir o que
seria a análise do discurso em si. Gostaríamos, então, de aí destacar o
emprego de "uma", ligado ao sintagma "análise do discurso": tal uso
parece-nos mais "democrático" e aberto que um fechado "da análise
do discurso". Isso nos mostra também, de certo modo, a situação psi-
cossocial do sujeito comunicante Patrick Charaudeau, ou seja: sua cons-
ciência de que a análise do discurso (doravante AD) pertence a um
amplo domínio onde existem teorias que precederam às lançadas em
sua tese e outras que surgiriam depois dela.
Análises tio discurso hoje
É justamente através da observação de certos usos linguageiros, apa-
rentemente "inocentes", como o "uma" destacado acima, que pode-
mos, por vezes, chegar a observações interessantes que dizem respeito
ao locutor ou ao sujeito falante do discurso. Assim, alguns desses usos,
disseminados em um dado discurso, são dotados de grande força ar-
gumentativa1: desse modo, o leitor atento pode captar "pistas" que vão
enviá-lo ao sujeito-autor, às suas visões teóricas e, mais que isso, às suas
percepções sobre o mundo que o rodeia. Sempre cuidadoso com suas
palavras, Charaudeau elabora seus ditos através de "projetos de fala" e
isso é visível desde o título de sua tese; o autor "fala" a partir de um
ponto determinado: tal ponto, no caso em questão, não é rígido nem
dogmático: a Semiolingüística não é uma teoria que foi lançada para
"sufocar" outra(s).
Isso não quer dizer, de modo algum, que as idéias do supracitado
pesquisador sejam "flutuantes", podendo vagar de um lado para outro,
de modo aleatório. Já no primeiro parágrafo da primeira parte de sua
tese, Charaudeau (1977, p. 2) define bem o que pensa da AD e de
sua necessária e natural expansão, após o surgimento da teoria analíti-
co-discursiva fundadora, ou seja, a da Êcolefrançaise d'analyse du discours2,
1 Nesse ponto estamos de acordo com Anscombre e Ducrot (1983), quando afirmamque a argumentação já está na língua.2 Segundo Dominique Maingueneau (2002, p. 201),"a etiqueta "Escola francesa" per-mite designar uma corrente dominante de análise do discurso na França, nos anos1960-1970. Este conjunto de pesquisas que surgiu no rneio dos anos 1960 foi con-sagrado em 1969 pelo lançamento [de um número] da revista Langages, intitulado AAnálise do Discurso e do livro Análise automática do discurso, de M. Pêcheux (1938-1983),o autor mais representativo deste grupo." (Tradução nossa). Maingueneau chama aatual continuidade (com suas devidas alterações) dessa teoria, na mesma obra (p. 202),de "análise do discurso de tendência francesa". Acreditamos que tal sintagma "escon-de", de certo modo, várias outras "análises do discurso" criadas por franceses ou falan-tes da língua francesa, logo, queremos crer, também de tendência francesa, sobretudo seas compararmos com as analises de discurso de tendência americana ou inglesa. Aliás, amultiplicidade de "análises do discurso" existentes na França, e logo, insistimos, de ten-dência ou de origem francesa, foi mostrada pelo próprio Maingueneau em sua Apresenta-ção do número 117 da revista Langages (1995), por ele organizada. Infelizmente, o usoacentuado do sintagma "AD francesa" ou "AD de tendência francesa", por parte de
178
As palavras de uma Análise do Discurso
conhecida por vários pesquisadores brasileiros3 pela sigla ADF (Análise
do Discurso francesa). Eis o que ele diz:
A "análise do discurso" é um setor da lingüística que se encontra em ple-
no desenvolvimento. As pesquisas atuais se situam nos confins de outras
ciências humanas, tais corno a psicologia, a psicanálise, a sociologia e a
antropologia, ciências que fazem parte integrante dos fenômenos da comu-
nicação. (Tradução e grifos nossos)
Por aí, vê-se que a linguagem em ação, ou seja, o discurso é visto
por Charaudeau como um fenômeno comunicativo por excelência:
é em torno dessa idéia que ele vai construir o "edifício" da Teoria
Semiohngüística. Note-se, a título de ilustração, que tal termo é bem
explicado em um artigo de Charaudeau4 no número 117 da revista
Langages (1995) e não deve ser confundido, como vemos ainda acon-
tecer, com uma simples retomada da Semiologia: a Semiohngüística é
uma análise do discurso.
Nunca escondemos nossa admiração pela coragem de Charaudeau
por ter lançado, de certa forma, uma espécie de "desafio" aos lingüistas
de sua época: sair de seus "papéis de lingüistas tradicionais", ou seja,
começar a considerar não só o que está explícito no ato de linguagem
(doravante A de L), mas também o implícito deste ato5, ou, mais exa-
vários pesquisadores em AD, no Brasil, tem gerado uma certa confusão principalmentepara aqueles que se iniciam nos estudos analítico-discursivos. No fundo, parece-nosque tudo é uma questão de terminologia, e que Maingueneau, sem ter esta intenção,é claro, colocou em uma espécie de "camisa-de-força" o sintagma "AD de tendênciafrancesa", tornando-o por demais fechado em relação a várias outras teorias tambémconhecidas como AD (em suas abreviações ou siglas) e também criadas na França(como a que nos interessa agora). Enfim, repetimos: basta folhear o número 117 deLangages para verificar que nossa afirmação tem fundamento.3 Dentre os quais nos filiamos.4 Artigo este intitulado: Une analyse sémiolinguistique de Vanalyse du discours.J Isso no âmbito de uma análise do discurso, pois, como é sabido por todos,Benveniste,ainda nos anos 1960, postulava um lugar para o sujeito da enunciação, mas sern citarespecificamente, como o faz Charaudeau, o campo da AD.
179
Análises do discurso hoje As palavras de uma Análise do Discurso
tamente, afirmar, em alto e bom som, que tal sentido só poderá existir
na junção dos dois fatores ou espaços que rodeiam nosso mundo de
seres comunicantes: o interno e o externo.Isso implicou, naturalmente, levar em conta o papel do sujeito histó-
rico que produz o A de L6. Charaudeau (op. aí.) acredita que é chegada a
hora de se estabelecer uma reflexão nova, no âmbito da própria lingüís-
tica, reflexão esta que deve colocá-la em contato com os conhecimentos
já adquiridos por outras disciplinas, tais como a filosofia da linguagem, a
semiótica literária e não-literária, assim como também a semântica. Esta
reflexão busca, então, mostrar a ligação que pode existir entre uma teoria
analítico-díscursiva (que leve em conta tais conhecimentos) e a possibili-
dade de se enxergar a comunicação na vida social como um fator suscetí-
vel de "comandar" nossos atos discursivos; logo, a AD proposta por Cha-
raudeau vem dar um especial enfoque ao eu-comunicante e suas diferentes
representações no mundo linguageiro: autor de uma determinada obra,
redator de um artigo, grupo responsável por uma determinada campanha
publicitária, etc. Eis aí o retorno pleno do sujeito, no âmbito da lingüística
discursiva, visto como ser histórico e comunicante, capaz de "atuar" ou
de assumir diferentes papéis em sua vida em sociedade7.
A Serniolingüística parte assim de um duplo desejo ou de um du-
plo enjeu: colocar em destaque as funções dos diferentes sujeitos nos
atos de linguagem do cotidiano (mas também, do não-cotidiano, con-
forme os corpora estudados) e, ao mesmo tempo, manter uma AD que
tenha uma base lingüística, não a afastando de uma ciência que dará
6 Maingueneau irá também, por sua vez, valorizar o produtor dos "atos de linguagem"— mas, é claro, em outra perspectiva, logo, sem usar este sintagma: somos nós quem"ousamos" essa aproximação. Assim, para Maingueneau, em dois importantes livros— Lê Contexte de 1'oeuvre littéraire (1993) e Contre Saint-Proust (2006) —, o autor deobras literárias não deve ser negligenciado. Maingueneau recupera assim, com grandeelegância, a figura do "autor", que tantos anos e tantos hábitos estruturalistas relegarama um segundo plano. O "autor" faz parte de um "contexto", aquele em que a obra foiproduzida, e, à medida que levamos esse importante dado em conta, estaremos, semdúvida, realizando uma análise discursiva pertinente e realista.7 Dependendo, é claro, dos limites e normas que esta lhe impõe, em determinadoscontextos de sua vida.
180
força e credibilidade às interpretações (dos diferentes A de L) que ela
poderá propiciar.
1. Uma teoria em movimento
Tentaremos explicar um pouco mais o que foi dito até agora. Para
tanto, tomaremos como base um curso ministrado por Patrick Cha-
raudeau na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, durante uma missão por ele assumida, no dia 26 de maio de
19948. Nele, o lingüista expôs a um grupo de analistas do discurso (ou
futuros analistas do discurso) o fato de que teorias, grosso modo, podem
se dividir em "métodos" e "metodologias". Os primeiros seriam for-
mados pela reunião de conceitos, mais ou menos fixos, com existência
já comprovada no campo das ciências da linguagem, tais corno o Cog-
nitivismo, a Pragmática, entre outros; já as metodologias poderiam ser
consideradas em seus movimentos de "vai-e-vem", movimentos estes
efetuados entre o ou os métodos de trabalho e seus objetos. Metodo-
logias não são nunca fechadas, acabadas. O esquema abaixo reproduz
uma das divisões possíveis para tal elemento, se ele for aplicado em
pesquisas ligadas àAD:
{-> 1. Descritiva -^ (a) língua; (b) discurso
Metodologia {-̂ 2. Experimental -^ (a) cogniçao; (b) comportamentos
{-̂ 3. Interpretativa -^ (a) antropologia, etnologia; (b) sociolingüística;
(c) psicanálise; (d) ideologia; (e) semiologia, etc.
Nessa perspectiva, seriam possíveis as seguintes interfaces: (i) as Teo-
rias da face de Gofrman resultariam de 3b & Ib; (ii) as teorias de Gum-
perz, de 3a & Ia; (iii) as de Labov estariam em 3b & laf etc. São apenas
algumas possibilidades, apresentadas no curso citado.
s Missão inserida no Projeto Análise do Discurso: procedimentos da persuasão e da sedução,Convênio CAPES/COFECUB mantido entre o NAD/FALE/UFMG e o CAD de
Paris XIII, de 1994a 1998.
Í8Í
Análises do discurso hoje
No caso da Teoria Semiolingüística, poderíamos colocá-la, seguin-
do a idéia acima, na conjugação de Ib & 3a, b, c ou d, conforme a
orientação que o pesquisador buscará privilegiar em sua análise. Assim,
um título do livro bem explicativo do conteúdo, como por exemplo o
de Françoise Minot (1993): Etude sémio-psychanalitique de quelques jilms
publiàtaires9, nos leva facilmente a inferir que as hipóteses que nortea-
ram sua pesquisa estão na união de Ib & 3c + 3e.
De todo modo, as perspectivas de um trabalho de análise que utili-
ze a AD Semiolingüística são três: (i) a crítica ao social; (ii) a descrição
dos mecanismos psicossociais dos contextos em que estão envolvidos
os parceiros de um contrato ou de um determinado ato comunicativo;
(iii) a aplicação dos itens (i) e (ii) à linguagem (enquanto instrumento
comunicativo por excelência) e a seus usos.
A AD em pauta é, pois, uma analise do discurso que leva em conta
a crítica ao histórico-social representado por suas diferentes manifesta-
ções linguageiras. Em outros termos, trata-se de uma análise discursiva
que não ignora o lugar (histórico) de produção dos textos. Enten-
demos, por "lugar de produção", algo que envolve o eu produtor, sua
época e as razões comunicativas que o levaram a produzir tal texto e
não tal outro: em suma, as circunstâncias da comunicação. De certo
modo, tocamos, então, no caso, em uma análise sociocrítica, nos mol-
des da que foi preconizada por Claude Duchet10. E bem verdade que
a Sociocrítica tem se ocupado mais dos discursos literários11, mas uma
observação como a que transcrevemos em seguida, feita por Marc An-
9 Este livro resulta da tese da citada pesquisadora, tese esta que foi orientada por P.
Charaudeau.10 Em vários escritos. Citamos aqui apenas dois, a título de ilustra cão: "La sociocririque.Questions sur un personnage:Tebaldeo et lês valeurs". In: Dossier pédagogiques de liRTS (radio-télévision scolaire), tome II, français, 1972-1973, e também:"Une écriturede Ia socialité". In: Poétique, n. 16,1973.11 Ou daqueles que, conforme diria Bakhtin (1979, p. 239),pertenceriam a uma classemais complexa de gêneros discursivos que a simples conversação ou trocas espontâ-neas de palavras entre sujeitos falantes.
Í82
As palavras de uma Análise do Discurso
genot (1992, p. 16), vem mostrar a importância dos discursos sociais,
na disciplina em questão:
Sem uma teoria e uma prática de análise do discurso social, que é algo
bem maior do que intuímos, normalmente, é quase impossível abordar o
campo das letras, imediatamente, sem cair no a priori, na intuição descon-
trolada [...] O que falta então, e em larga escala nos dias de hoje — além
das construções elitistas feitas na história das idéias e das interpretações
mecanicistas da crítica dita "ideológica" — seria uma teoria e uma histó-
ria do discurso social.
A crítica social inerente à teoria de Charaudeau já pode ser no-
tada nas perguntas (e conseqüente busca de respostas) propostas aos
seus pesquisadores pelo autor e seus seguidores, em várias publicações:
"— Quem fala?","— De onde fala?", "— Para quem?" e "— Com
quais finalidades?".
Assim, os semiolingüistas, ao se debruçar sobre a análise de seus
diferentes corpora, irão buscar uma adequação dos ditos e escritos de
um sujeito histórico, produtor de w A de L, em uma sociedade deter-
minada, em um dado contexto, para melhor verificar a construção de
seus discursos.
De certo modo, a crítica feita aos discursos sociais na ou pela análise
Semiolingüística, vai se imbricar, em seu modus operandi, ao item (ii), ou
seja, à descrição dos mecanismos psicossociais dos contextos nos quais
se movem os parceiros de um contrato ou de um determinado A de
L.Ao descrever estes "cenários" que propiciam a ação comunicativa, o
pesquisador leva em conta o caráter psicossocial das transações lingua-
geiras, o que o conduzirá, naturalmente, aos seus modos de "falar" ou
de contar o mundo adotados pelos difererentes sujeitos-comunicantes.
Em suma, a descrição dos mecanismos psicossociais ajuda a entender
o porquê da construção dos A de L por eles empregados; tal descrição
desloca-se num movimento repetido entre o explícito e o implícito de
seus ditos e/ou escritos, ou seja, de seus textos.
183
Análises do discurso hoje As palavras de uma Análise ao Discurso
Cabe proceder aqui a uma explicação do que seja texto, em nossa vi-
são. Para nós, um texto é formado por uma série de A de L. Reunidos de
forma coerente, tais atos darão lugar a um macroato de linguagem — ou
texto. Este tem uma fundamentação em sua base, algo que o faz existir.
Uma visada, como diria Charaudeau (2004). O que queremos também
dizer com isso é que nenhuma produção linguageira é aleatória: todas
dependem das visadas que lhes forem conferidas por seus criadores.
Encerrando este segmento, devemos lembrar então que a Semio-
lingüística teve suas bases lançadas em 1977, sendo de 1983 o primeiro
livro que a divulgou junto ao público francês e aos analistas do dis-
curso. Mas essa teoria evidentemente não parou por aí. Várias outras
abordagens foram sendo feitas por seu autor e várias aplicações — que
sugerem ou apontam para um desenvolvimento da teoria — foram
realizadas por aqueles que a adotaram como análise do discurso (de
tendência francesa); citemos entre tantos, no cenário brasileiro, vários
pesquisadores dos núcleos de AD da FALE e da UFRJ (NAD e CIAD,
respectivamente)12.
2. Três competências, três procedimentos e dois saberes:
assim vai a Semiolingüística
Como tentamos explicitar linhas atrás, não há um ato comunicativo
"solto", ou seja, desligado do contexto psicossocial no qual foi pro-
duzido. Os atos comunicativos ou atos de linguagem, reunidos sob a
forma de um texto, dependem do "lugar" e da "situação" de comuni-
cação que lhes deu origem.
12 Lembramos também que ambos congregam professores vindos de outras IFES e deUniversidades particulares. Um Núcleo de AD que se fechasse em um único Progra-ma de Pós-Graduação, com professores de uma única Universidade, teria uma análisedo discurso, no mínimo, triste, pois estaria fugindo à liberdade da AD, sempre abertaao estudo de novos corpora e à discussão com pesquisadores vindos de outros lugares,com outras formações (que a Lingüística, propriamente dita).
184
Os parceiros dessas trocas comunicativas, evidentemente, acionam
estratégias linguageiras adequadas, visando garantir as condições de su-
cesso de suas empreitadas comunicativas.
Pensando nisso, Charaudeau (2001,p. 41-54), no âmbito de sua teo-
ria analítico-discursiva, elaborou e vem trabalhando com um modelo
dividido em três níveis, cada um deles correspondendo a um tipo de
competência do sujeito: (i) o nível situaáonal, ligado a sua competência
situacional, (ii) o nível discursivo, ligado a sua competência discursiva e
(iii) o nível de compreensão dos sentidos dos signos âa língua, ligado à com-
petência Semiolingüística do referido sujeito. Iremos examinar cada
um desses níveis, de forma panorâmica.
A competência situacional, segundo Charaudeau,
exige que todo sujeito comunicante e ínterpretante de um ato de linguagem seja
capaz de construir seu discurso em função da identidade dos parceiros da
troca linguageira, de sua finalidade, do tema que tal troca coloca em jogo e
das circunstâncias materiais que a envolvem, (op. cíí., p. 46, tradução nossa)
Ainda segundo o autor, nas situações interlocutivas, em geral, o
sujeito que toma a iniciativa da fala toma também o espaço da palavra,
daí excluindo o outro ou a ele se impondo ou se sobrepondo (ainda
que isso aconteça em um curto espaço de tempo). Porém, ao mesmo
tempo, o sujeito falante está também à mercê das reações do outro, seu
ouvinte e interlocutor. Daí advêm trocas verbais que se caracterizam
por uma espécie de duelo, onde cada um dos sujeitos tenta justificar
seu direito à palavra e busca orientar, do modo que lhe convém, o
tema ou assunto em pauta. Para isso, os sujeitos comunicantes usam
estratégias de captação ou até mesmo de sujeição, dentro do espaço de
manobras que os limites de cada contrato de fala/ escrita lhes irnpòe;
ou então, dentro do que é solicitado pelo gênero discursivo no qual
tais sujeitos se inserem ou fazem inserir seus textos.
Ora, a competência situacional viria, justamente, determinar o que
Charaudeau denomina, desde suas primeiras publicações, de enjeu, ou
185
Análises do discurso hoje As palavras de uma Análise do Discurso
seja, "jogo de expectativas"13 de um A de L. Na teoria aqui abordada
diga-se de passagem, o "jogo de expectativas" constitui, por si só, uni
ponto que merece ser destacado.Vejamos um exemplo, bem banal; ao
passar diante de um colega, lançamos um cumprimento qualquer, di-
gamos algo como "Oi, tudo bem?". Pode parecer exagerado, mas esse
A de L traz em seu âmago um jogo de expectativas por parte daquele
que o pronunciou.Tomar a palavra é sempre um risco ou um jogo: po-
demos ser escutados ou negligenciados (em diferentes graus de atenção
ou nao-atenção) por nossos ouvintes, sejam eles colegas, alunos, amigos,
filhos, vizinhos, etc. Nossas expressões linguageiras podem parecer dig-
nas de resposta ou não pelos nossos eventuais interlocutores. Estamos
assim em um "campo minado": a não-resposta ou o não-entendimento
de nossa palavra pode gerar em nós várias indagações, já que a comu-
nicação ou a não-comunicação são largamente subjetivas. Assim, nosso
"Oi, tudo bem?" envolve uma "aposta comunícativa" e uma expecta-
tiva: nosso colega vai nos responder ou não? Vai virar o rosto para o
outro lado? Vai fingir que não nos viu? Ou, ao contrário, vai parar e nos
abraçar? As possibilidades são muitas. Quantas vezes já não escutamos
algo do gênero: "Eu o cumprimentei e ele nem respondeu! Não sei o
que houve." Ou "Ficou tão feliz em me ver!". E assim por diante.14
Examinemos agora, rapidamente, a competência discursiva. Ela
exige, grosso modo, de todo sujeito comunicante ou daquele que vai
"interpretar", tentar entender ou até mesmo "decodificar" um deter-
minado A de L, ou seja, exige que esta pessoa esteja apta a captar ou
reconhecer os procedimentos discursivos da encenação linguageira.
Pois, ao comunicarmos, querendo ou não, estamos entrando em um
processo de mise en scène da linguagem, processo este que depende de
nossos interlocutores e do local de onde "enviamos" nossos atos co-
13 A palavra em questão pode receber várias traduções, dependendo do contexto emque está inserida: jogo, aposta, estratégia, etc. O sintagma jogo de expectativas nos foisugerido pela Profa. Maria Carmen Aires Gomes (UFV).M Este enjeu de um sujeito produtor de determinada ação comunicativa, aliás, faz tam-bém parte desta nossa exposição: ele está presente em cada uma de nossas palavras.
Í86
municativos. Segundo Charaudeau (op. cit., p. 47), tais procedimentos
seriam em número de três: (i) o enunciativo; (ii) o enuncivo e (iii) o
semântico.
Os primeiros procedimentos estão ligados às atitudes enunciativas
que o sujeito falante constrói em função da situação de comunicação,
em uma primeira instância. É preciso lembrar que essas atitudes têm
algo em comum com a imagem, que os sujeitos da comunicação dese-
jam passar de si mesmos e com a imagem que eles se dão um ao outro.
Esse jogo, onde reconhecemos a forte presença da noção de ethos, se faz
sempre respeitando-se as normas que prevalecem no grupo social onde
atuam os sujeitos comunicantes. Isso os leva a incluir, de modo espon-
tâneo, certos rituais sociolinguageiros em suas trocas comunicativas.
Os segundos procedimentos se referem ao que Charaudeau chama,
em sua Grammaire du sens et de 1'expression (1992f p. 634-835), de "mo-
dos de organização do discurso" ou, em outras palavras, as maneiras
que usamos para nos comunicar: somos mais descritivos, narrativos
ou argumentativos? Ou, quase sem perceber, usamos todas essas cate-
gorias ao mesmo tempo, conforme os A de L que produzimos ou os
textos que escrevemos? Enfim, vistos de modo bem panorâmico e no
âmbito de nossas produções enunciativas, temos os seguintes modos:
o "modo descritivo" que consiste em nomear e qualificar os seres do
mundo, com uma maior ou menor subjetividade; o "modo narrativo"
que consiste em descrever as ações dos protagonistas de uma história,
realçando seus diferentes percursos e causas; o "modo argumentativo",
enfim, que consiste em saber organizar as redes de causalidade expli-
cativa dos acontecimentos, estabelecendo as provas do verdadeiro, do
falso ou do verossímil. No "comando" de todos esses modos está o
"modo de organização enunciativo", evidentemente.
Na verdade, não há nenhum "segredo" envolvendo a utilização
desses modos de organização do discurso: aprendemos a usá-los na es-
cola, com a leitura e, de forma mais ampla, em nossos contatos ou nos
múltiplos "papéis" ou situações comunicativas que as circunstâncias da
vida nos forçam ou nos levam a assumir.
187
Análises do discurso hojeAs palavras de uma Análise do Discurso
Chegamos, enfim, aos procedimentos de ordem semântica. Segun-
do Charaudeau (op. dt., p. 48), eles se referem ao que os cognitivistaschamam de "meio cognitivo mutuamente partilhado" (SPERBER, 1989,
p. 32, tradução nossa). Na verdade, em nossas trocas comunicativas,
para que possamos nos compreender uns aos outros, devemos recorrer
a certos saberes comuns que acreditamos/esperamos serão partilhadospelos parceiros das trocas em questão.
Esses saberes são de dois tipos:
(i) saberes de conhecimento, que dizem respeito "às percepções e às
definições mais ou menos objetivas do mundo" (CHARAUDEAU,
op. dt., p. 48). Eis um caso de percepção de experiência parti-
lhada: afirmar, para um brasileiro, que a capital do país é Brasília.
Ou então dizer que a Lua é o satélite da Terra.
(ii) saberes de crença, que fazem parte de certos sistemas de valo-
res (mais ou menos normalizados). Tais saberes circulam em
um dado grupo social, fornecendo a ele a sua identidade. Para
compreender o slogan que esteve em moda há uns sete anos,
no Brasil, "Não é nenhuma Brastemp" ou uma expressão co-
loquial que ainda vemos circular tal como "Só agora a ficha
caiu", teremos que fazer uma série de inferências entre o que
escutamos e o contexto no qual tais expressões foram pro-
duzidas. Imaginem a dificuldade de um estrangeiro no Brasil
tentando entender, a partir da última expressão citada, que es-
tranha "ficha" seria esta — uma ficha telefônica? Mas isso não
existe mais no país. Ou será que a "ficha" em questão refere-se
a urna simples ficha de papel? Ou a uma ficha de relógio de
ponto? Mas que relógio seria esse? E onde foi que a ficha caiu?
No chão? Ah! Talvez uma ficha de cassino? Tantas vãs inferên-
cias para não entender que, com "Agora a ficha caiu", o sujeito
falante quis simplesmente dizer: "Agora entendi a situação." O
mesnío processo se dá, em sentindo inverso, para brasileiros na
França diante de uma expressão ou ditado popular tal como
"Lês carottes sont cuites". Por que estão falando de cenouras
188
cozidas agora? Em um domingo, pela manhã? O que eu tenho
a ver com isso? Estou aqui só querendo retirar dinheiro de um
distribuidor de bilhetes que engoliu meu cartão. Por que esta
pessoa a meu lado se dirige a mim usando um vocabulário
culinário? E assim por diante. Até que nosso brasileiro com-
preenda que a expressão usada pelo francês significa "Não há
mais nada a fazer no momento", "O banco está fechado" ou
mesmo "Que falta de sorte a sua!" ou algo do gênero, muitas
inferências serão necessárias.
Seguindo este raciocínio, a Semiolingüística vem então postular a
necessidade de uma "teoria de inferências", essencial para o estudo e
para a compreensão dos fenômenos da interdiscursividade.
Sem mais tardar, examinemos a competência Semiolingüística. Re-
sumindo bem, trata-se do seguinte: todo sujeito que se comunica e
que interpreta um ato de linguagem precisa estar apto a utilizar/ re-
conhecer a forma dos signos, suas regras de combinação e seu sentido
em determinado contexto, sabendo que esses signos são empregados
para servir de enquadramento à aplicação ou à expressão de um ato
comunicativo. Para exercer essa competência precisamos, então, estar
munidos de um certo savoir-faire ligado às nossas competências tex-
tuais, o que implica forçosamente possuir um certo conhecimento
no que diz respeito à construção gramatical, às marcas de coerência
do texto (tais como os conectores, modalizadores, etc.}, enfim: possuir
conhecimentos ligados a tudo que concerne ao aparelho formal de
enunciação. Todavia, esta aptidão precisa também estar ligada ao uso
apropriado das palavras do léxico: são elas que divulgam, conforme o
contexto onde são usadas, certos valores sociais.
Para simplificar o que foi dito, podemos afirmar, sem medo, que
Semiolingüística, em seu âmago, guarda uma curiosa metáfora: no
grande "mercado" ou "feira livre" da comunicação, existe um stanâcomposto por vários rituais linguageíros, assim como também existe um
outro composto pelas palavras e seus usos sociais. Desse modo, a tríplice
189
Análises do discurso hoje As palavras de uma Análise do Discurso
competência seria então a base necessária para analisar as condições dacomunicação linguageira.
No próximo segmento, servindo-nos de um exemplo "musical",
vamos tentar ilustrar o que foi dito.
3. Três versões de uma canção: palavras que aSemiolingüística ajuda a interpretar
Tentaremos explicar, a partir do que foi dito, as razões que motivaram
certas alterações na versão brasileira da canção italiana de G. Ferrio,
L. Chiosso e Michaèle, intitulada Parole, parole. Tal canção obteve umgrande sucesso na Itália, onde foi gravada, pela cantora Mina13, acom-
panhada do ator Alberto Lupo, em 1972.Um ano depois, essa mesma canção freqüentou as hit parades da
França, trazendo também um imenso sucesso para a cantora Dalida16.Em nossa opinião, dois fatores contribuíram para a boa acolhida dacanção: o primeiro, certamente, seria a própria Dalida, cantora que,
como Mina na Itália, tornou-se uma personagem cult da canção ro-mântica. O segundo fator estaria na voz masculina que acompanhavaDalida na versão francesa: a do ator Alain Delon17.
lj Mina era o pseudônimo da cantoraitaüana Anna Maria Mazzini, que alérn de cantar,foi também produtora e animadora de programas televisivos na Itália, tal como Teatro10. Este programa, apresentado por Mina e pelo ator Alberto Lupo, conheceu umgrande sucesso, ainda mais depois que os dois parceiros gravaram a canção supracitada.Mina deixou a vida artística relativamente cedo, com 47 anos. Talvez isso tenha con-tribuído para criar um certo mito em torno de sua pessoa, na Itália.16 Dalida chamava-se Yolanda Gigliotti. Era de origem italiana, mas nascida no Cairo(Egito). Na França, dedicou-se ao mundo da canção, onde obteve muito sucesso. Umfator interessante na vida desta bela mulher foi que eta nunca deixou de lado um jeitobem especial de pronunciar os "r" para falar ou para cantar em francês, ou seja, sempremanteve uni sotaque que não negava suas origens latinas; mas isso não a impediu detornar-se um "ícone" da música romântico-popular francesa, o que não deixa (decerto modo) de ser surpreendente.17 Ator que é até hoje considerado como um dos grandes nomes do cinema francês, aolado de "moastros sagrados", tais como Gabin.Ventura, Belmondo.
190
Porém, o mais interessante e, acreditamos, desconhecido do grande
público que ainda cultua tanto Mina quanto Dalida, é que esta canção
a duas vozes foi logo traduzida no Brasil, no mesmo ano de seu lança-mento na Itália (1972), ou seja, antes mesmo que a versão francesa (de
1973) aparecesse. A tradução/ adaptação para o português foi feita pela
cantora Maysa18, que escolheu Raul Cortez19 para interpretar a cançãoa seu lado20.
Note-se, nos três casos citados, que a mise en scène da canção empauta comporta um diálogo, onde os enunciados são expressos seja
através do canto, seja através do dito: o primeiro é assumido pela voz
feminina, o segundo pela voz masculina. Curioso diálogo que subten-de um "duelo", onde o canto tenta menosprezar ou expor ao ridículo
o dito; este não teme os clichês, como veremos, observando este pe-queno trecho da canção, em sua versão original (italiana), seguida datradução:
O dito: Tu sei come U vento che porta i violini e lê rose
O canto: Caramelle non ne voglio piü
O dito: Certe volte non ti capisco
O canto: Lê rose e i violini // qitesta será raccontali a uríaltra // violini e
rose li posso sentire // quando Ia cosa mi vá, se mi vá // quando è il momente
f / e dopo sí vedrà
lg A artista brasileira Maysa Figueira Monjardim Matarazzo, conhecida como Maysa,teve uma bela carreira durante cerca de duas décadas (do final dos anos 1950 ao finaldos anos 1970). Maysa era conhecida como a "rainha da fossa", pelo sentimento deprofunda tristeza que imprimia em suas interpretações. Sambas-canções "sofridos"como "Ouça", "Meu mundo caiu" são apenas dois exemplos, entre tantos outros su-cessos da cantora, que morreu em 1977. {Folha on-line, 18/10/2005)K Ator brasileiro de teatro, cinema, telenovelas, que morreu em 18/07/2000. (Folhaon-line desta mesma data)20 Gostaríamos de notar que já utilizamos este exemplo (ou este mini-corpus ilustrativo)em um artigo intitulado "A Análise Discursiva Semiolingüística e a tradução", artigoeste que apareceu na revista eletrônica COLL - Consultoria âe língua portuguesa e litera-tura, Rio de Janeiro, novembro/2007, p. 1-7. No entanto, na época, houve um enganode nossa parte, no que diz respeito à referência da canção original, que retificamosagora.
191
Analisei do discurso hoje
O dito: Una parola encora
O canto: Parole, parole, parole.21
O dito: Você é como o vento que traz violinos e rosas
O canto: Caramelos [doces] eu não quero mais
O dito : As vezes eu não te compreendo
O canto: Rosas e violinos // esta noite, fale disso para uma outra //
[palavras sobre] violinos e rosas posso escutar // mas quando estou bem,
se estou bem // quando é o momento certo // mais tarde veremos
O dito: Deixe-me dizer só mais uma palavra
O canto: Palavras, palavras, palavras. {Tradução nossa)
Examinemos esta "disputa" verbal entre o dito e o canto sob a pers-
pectiva da competência situacional; ela nos enviará, illico presto, a uma
situação de interlocução, ao pseudodiálogo travado entre duas perso-
nagens (um casal) que parece atravessar urna má fase na relação. Ao que
tudo indica, o homem {a voz masculina responsável pelo dito] se ex-
pressa através de clichês, usa formas linguageiras que, de tão repetidas,
já se desgastaram, pelo menos para a personagem feminina da canção.
Em um exercício de rnetalinguagem, esta voz se apropria das palavras
masculinas para ironizá-las. Assim, o canto usa uma metáfora in absentia
("Caramelle non ne voglio piü") como resposta ao primeiro dito de
seu parceiro ("Tu sei come il vento che porta i violini e lê rose"): ela
não se deixa mais levar pela doçura (aparente) das palavras masculinas.
Em seguida, a voz feminina utiliza uma metáfora in praesentia, pois
ela auto-ironiza o que acabou de dizer, ou seja, que não quer mais
doces, explicando, por assim dizer, o que pensa desse tipo de fala vazia
e por demais açucarada para ser verdadeira; é quando canta: "Lê rose
e i violini // questa será raccontali a un'altra // violini e rose li posso
sentire //quando Ia cosa mi vá, se mi vá // quando è il momente // e
21 Fomos nós quem colocamos as palavras "dito" e "canto" em itálico, precedendo aspalavras propriamente ditas, do trecho da canção aqui transcrito.
192
As palavras de uma Análise do Discurso
dopo si vedrà", ou seja, ela pode ouvir violinos e ter rosas, mas, quando
quiser, quando isso lhe for conveniente; não naquele momento em
que sente o vazio das palavras que escuta de seu parceiro.
O interessante a ser notado é uma certa performatividade presente
na canção italiana: quando a voz masculina fala de "violinos", a música
revela a presença destes, ou seja, o dito faz acontecer o que enuncia.
Mas, mesmo assim, o canto revela-se mais poderoso e assume uma po-
sição de comando da situação ao negar a palavra do outro.
No âmbito do "mercado linguageiro" italiano, a canção Parole, pa-
role foi logo enquadrada como "canção de amor". A competência de
ordem semântica pode explicar o fato, no âmbito discursivo: a língua
italiana é de uma sonoridade maravilhosa e a cantora Mina estava no
auge de seu sucesso ao cantar esta música, ao lado do ator Alberto
Lupo. Havia um "contrato de empatia" entre os dois e este contrato
passava, forçosamente, para o grande público. A canção romântica in-
terpretada por um duo vocal era algo bonito, agradável e "moderno",
dentro do air du temps.
Em outro "mercado linguageiro", o do Brasil, isso também ocorreu,
mas não com tanta intensidade. Havia uni público romântico, ligado
a este tipo de canção: a prova é que Paroles, paroles, de Dalida & Alain
Delon tornou-se aqui bastante conhecida e arrancou muitos suspiros
dos amantes da língua francesa ou da canção romântica, simplesmente.
Mas, seja como for, era uma canção de exportação um tanto quanto
"piegas" para ouvidos mais sensíveis, em um país onde se fazia boa
música.
A questão das duplas musicais é curiosa. Um duo vocal pode se
revestir de um aspecto positivo e cultural: assim, os duetistas de cordel
são bastante apreciados por diferentes ouvintes e por pesquisadores.
Mas essa junção de vozes pode também revelar um lado não-positivo
e afastado de uma cultura musical brasileira mais sofisticada: basta pen-
sarmos na invasão de uma certa country musicou de duplas sertanejas na
música popular brasileira, sobretudo após a "era Collor" (anos 1990).
Mas é difícil emitir juízos de valor! Tudo depende da situação de co-
193
Análises do discurso hojeAs palavras de uma Análise do Discurso
municação, dos parceiros envolvidos no contrato musical, das visadas
que cantores e seus ouvintes perseguem.
É por isso que chamamos aqui atenção para os saberes de crença ou
saberes partilhados. Não podemos fazer um julgamento negativo de urna
canção — e aqui voltamos a falar da versão original de Parole, parole
— sem tentar penetrar, ao menos mais um pouco, no mundo e na
situação em que ela foi criada.
Examinando esta canção do ponto de vista da competência Sernio-
lingüística, mas sempre levando em conta o ponto de vista da competên-
cia de ordem semântica, não podemos deixar de ressaltar o savoir-faire dos
autores italianos da letra e da música dessa canção: eles souberam empre-
gar as palavras certas do léxico italiano, para exprimir a idéia do poder e do
esvaziamento do poder da palavra, enquanto elemento de sedução. A ironia
que percorre a letra da canção se contrapõe ao romantismo da música
em si.Assim, uma coisa é dita pelas vozes enquanto outra é expressa pelos
instrumentos musicais. A ironia é, pois, dupla nesse sentido.
Vejamos agora como é a versão brasileira da canção. No caso dos
versos acima selecionados, tivemos em português:
O dito: Você é o vento que traz violinos, rosas
O canto: Cafonices não agüento mais
O dito: Espera, rneu bem, ainda não disse tudo
O canto: De rosas, violinos,- esta noite não fale comigo // que estas
coisas se sentem na alma// quando trazem o amor de verdade // não
quando mentem, isto tens que sentir
O dito: Só mais uma palavra
O canto: Palavras, palavras.
A adaptação de um texto vindo de uma determinada cultura para
outra é sempre uma tarefa delicada. O que se pode fazer — o mais
viável no caso, seguindo a análise do discurso que adotamos — é optar
por estratégias pontuais de ajustamento, que conterão um duplo jogo de
expectativas, organizado em torno dos atos de linguagem traduzidos.
194
Acreditamos que tal ajustamento, no caso brasileiro, recorreu à pa-
ródia. Tentemos nos explicar um pouco mais: sabemos que Maysa não
era apenas uma simples cantora do vasto Brasil: era uma mulher inteli-
gente, crítica e com um "fino ouvido" musical. Ora, na época em que
realizou a versão de Parole, parole para o português, usou uma estratégia
bastante inesperada: a do humor.
Devemos compreender que uma canção romântica, como a italia-
na, ainda que apreciada pelo grande público, devia parecer "açucarada"
demais para intérpretes mais sofisticados, nos anos 1970, no Brasil.
Assim, a cantora brasileira e os músicos que fizeram o arranjo de
Palavras, palavras, tiveram uma interessante idéia, que foi, é claro, com-
partilhada pela voz masculina de Raul Cortez: não levaram comple-
tamente a sério o romantismo da canção italiana. Assim, permitiram
que uma certa vis cômica se introduzisse na versão brasileira. Em vez
do tom um pouco dramático (ainda que amargo-irônico) da cantora
e do ator italiano22, vimos surgir na versão brasileira um outro tom
que orienta a ironia, maliciosamente, em direção a um certo "ar de
deboche", expresso (ainda que discretamente) na voz dos personagens
brasileiros.
A passagem de canção romântica à canção-paródia-do-romanüsmo im-
plica uma mudança de visada. A visada primeira apontava para uma
direção; a segunda passa a apontar para uma outra. Em outros termos:
a ironia de Parole, parole não é paródica (se considerarmos a canção em
sua totalidade); a ironia de Palavras, palavras é paródica, pois destrói ou
desvia (ainda que de leve) o objetivo primeiro da canção original.
Tentemos explicar este "desvio" pelo procedimento de ordem se-
mântica: pode-se talvez dizer que a versão brasileira levou em conta o
meio cognitivo mutuamente partilhado pelos admiradores da cantora
Maysa e do ator Raul Cortez. Pode-se verificar então, na "recons-
trução" brasileira de Parole, parole, um certo apelo aos saberes de co-
nhecimento. Em outros termos: os brasileiros — aqueles, com maior
22 Literalmence assumidos, diga-se de passagem, na versão francesa.
195
Análises do discurso hoje As palavras de uma Análise do Discurso
conhecimento musical — não aceitariam uma canção de uma dupla— ainda que fosse dotada de ironia —, mas aceitariam uma cançãoonde houvesse, de modo mais ou menos visível, um certo tom "ma-landrinho" inserido em uma situação dita "romântica".
O que nos surpreendeu, ao tomar conhecimento dessa versão, háalguns anos, mais precisamente, há sete23, foi o uso do termo "cafonice"em lugar do elegante "Caramelle non ne voglio piü". Porém, as com-petências Semiolingüística e situacional conseguiram nos ajudar a me-lhor entender a razão do uso de tal termo. Nos anos 1970, termos taiscomo "cafona", "cafonice", ainda que vindos da gíria, eram utilizados,eram "moderninhos". Faziam parte do estilo coloquial da época, semgrandes problemas. Mas, mesmo assim, será que caberiam em um poe-ma, já que a letra de uma canção romântica, como a que examinamos,é uma espécie de poema? E, insistimos — no caso da canção italiana— um poema/ letra de canção inteligente, que fez uso de estratégiasmetalingüísticas e irônicas? Sim, tudo é possível para aqueles que pos-suem requintes paródicos e coragem para aplicá-los.
4. Três parágrafos para concluir
Na verdade serão apenas algumas palavras para fechar o que foi dito,ainda levando em conta o nosso exemplo musical: no caso da adapta-ção brasileira, talvez — e insistimos nesse "talvez" —, tenha havido umforte desejo de se infringirem regras ou normas de um gênero ligadoà linguagem poética, uma grande vontade de transgressão oriunda, ébem possível, por parte da cantora/ adaptadora Maysa, transgressãoessa confirmada pela "atuação" de seu parceiro na canção, o ator RaulCortez.
Em nosso artigo anterior, sobre o mini-corpus aqui apresentado,questionamos e chegamos a criticar o uso do termo "cafonices", vin-do da gíria, termo que se desgastou com o tempo, enquanto as palavras
' Através do CD O melhor de Maysa. BMG, s/d.
196
das versões italiana e francesa da canção mantêm ainda hoje sua suti-lidade e irônica leveza. Hoje, no entanto, defendemos tal termo, quesoube mudar a visada da canção romântica vinda da Europa, acultu-rando-a, por meio da paródia, aos nossos climas tropicais. Conscienteou inconscientemente, tal uso revela ou desvela uma carnavalização do
texto poético, sem dúvida.Mas tais interpretações — que podem ser bem aceitas ou não, se-
gundo os diferentes leitores-interpretantes — só nos foram possíveisatravés de alguns "instrumentos" fornecidos pela Teoria Semiolingüís-tica, "instrumentos" que tentamos aqui descrever, ainda que de forma
panorâmica.
Referências
ANGENOT, Marc. "Que peut Ia littérature? Sociocritique littéraire etcritique du discours social". In: NEEFSJ.; ROPARS, M-C. (orgs.).La politique du texte. Enjeux socwcritiques. LÜle: Presses Universitaires
deLüle, 1992, p. 9-27.ANSCOMBRE, J.-C.; DUCROT, O. L'argumentation dans Ia langm.
Bruxelles: Mardaga, 1983.BAKHTIN, M. Esthétique de Ia créatíon littéraire. Paris: Gallimard, 1979.
CHARAUDEAU, Patrick. Lês conditions linguistiques d'une analyse du
ífcftws.Thèse soutenue en 1977, Universidade de Paris IV, France.
Lille: Services de reproduction de thèses.. Grammaire du sem et de Fexpression. Paris: Hachette, 1992.
. Langages et discours. Paris: Hachette, 1983.
."Une analyse sémiolinguistique du discours". In: Langages,
n. 117, 1995, p. 96-111.. "Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção tex-
tual". In: MACHADO, I.L.;MELLO,R. Gêneros: reflexões em Análisedo Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004, p. 13-42.
."De Ia compétence sociale de communication aux compé-tences de discours". In: Didactique dês langues romanes. Lê développe-
197
Análises do discurso hoje
ment dês compétences chez l'apprenant. Actes du colloque de Louvain-la-Neuve. Bruxelles: De Boeck-Duculot, 2001, p. 41-54.
CHARAUDEAU, P; MAINGUENEAU, D. (orgs.). Dictionnaire de1'analyse du discours. Paris: Seuil, 2002.
GOFFMAN, E. Lês rites d'intemction. Paris: Minuit, 1974.
GUMPERZ,J. Engager Ia conversation. Introâuction à ia soàolinguistiqueintemctionnelle. Paris: Minuit, 1989.
MAINGUENEAU, D. "Présentation". In: Langages, n. 117, 1995, p.5-11.
MINOT, F. Étude sémio-psychanalítique de quelques jilms publicitaires. Pa-ris: Arguments, 1993.
SPERBER, D.;WILSON, D. La pertinence. Paris: Minuit, 1989.
198
POR UM REMODELAMENTO DASABORDAGENS DOS EFEITOS DE REAL,EFEITOS DE FICÇÃO E EFEITOS DEGÊNERO
Emília Mendes (UFMG)*
1. Considerações iniciais
Na perspectiva da Teoria Semiolingüística de Patrick Charaudeau, osefeitos de discurso produzidos pela troca linguageíra constituem da-dos essenciais para a encenação da situação de comunicação, já que
são tanto inerentes ao processo de transação entre os sujeitos quantoa própria resultante do processo de significação. Além desses efeitosconstitutivos, observamos, na teoria supracitada, três outras categorias
de efeitos que auxiliam na composição da encenação discursiva: (a)De um lado, temos os efeitos de real e de ficção descritos no Langage
et discours (1983) cuja concepção recai sobre uma visão de real/ cam-po da racionalidade e ficção/ campo da irracionalidade, (b) De outro
lado, temos os efeitos de gênero descritos na Gmmmaire du sens et de
Yexpression (1992) que estão relacionados a uma problemática dos pa-râmetros de restrição que cada gênero de discurso deve seguir.
Parece-nos que a atual caracterização destes efeitos e a sua viabili-dade metodológica como instrumento de análise podem ser revisita-dos e transformados à luz do estágio atual da teoria e também através
1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do PRODOC-CAPES (Programa deApoio a Projetos Institucionais com a Participação de Recém-doutores) —Brasil.
Análises do discurso hoje Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero
de uma concepção experiencialista da linguagem desenvolvida, a priori,
por LakoíF e Johnson ([1980] 2002) e, em análise do discurso, por Au-chlin (desde os anos 1990 até os dias atuais). Assim, nosso objetivo érepensar os mecanismos de identificação dos referidos efeitos a partirdos próprios instrumentos oferecidos pelo estágio atual do quadroteórico-metodológico fornecido pela análise do discurso. Eis algunspontos nos quais nos apoiaremos: competência discursiva, memóriadiscursiva, a noção de gênero situacional, a perspectiva da ficcionalida-de no discurso, a interdiscursividade, dentre outros.
No presente artigo, adotaremos o seguinte procedimento: num pri-meiro momento, exploraremos a relação entre flccionalidade, estatuto,efeitos e a questão dos gêneros; em seguida, trataremos da questão dosefeitos de real e efeitos de ficção; num terceiro momento, abordaremosos gêneros de discurso, sua ancoragem situacional e os efeitos de gêne-ro; por fim, argumentaremos em favor de uma visão experiencialista daquestão e por uma identificação de tais efeitos a partir de noções hojeestudadas pela análise do discurso.
2. Flccionalidade, gêneros, estatuto e efeitos
Temos desenvolvido nossa pesquisa seguindo uma linha de pensamen-to que preconiza a existência de tipos de flccionalidade2. A descriçãodestes tipos é importante para que situemos o modo de agir dos efeitosque pretendemos aqui estudar. Grosso modo, definimos flccionalidadecomo a simulação de um mundo possível. Ela pode ocorrer em pelomenos três formas: (1) ela é constitutiva quando este mecanismo de si-mulação é a base da existência do fenômeno, por exemplo: a língua, amatemática, o sistema binário, dentre outros. Esta modalidade não in-terfere no estatuto nem nas relações contratuais empreendidas entre ossujeitos comunicacionais; (2) ela é colaborativa quando auxilia na cons-tituição de um dado gênero. Um exemplo deste tipo é a utilização dereconstituições ou simulações de fatos em reportagens televisivas. O
Cf. Mendes (2004a, 2005).
200
estatuto do gênero permanece factual e a simulação de mundo possívelsomente colabora para a sua composição; (3) ela é predominante quandohá a dominância de simulações de situações possíveis, logo, o estatutodo gênero é ficcional. Este tipo abarcaria a percepção mais clássicaque temos do termo "ficção". Pode ocorrer não só em gêneros comoconto, romance, piada, charge, como também aparecer em gêneros quenão seriam a priori de estatuto ficcional, como, por exemplo, uma pu-blicidade ficcional. Nestes casos, são os dados do contrato situacionalque nos ajudam a reconhecer o estatuto factual ou ficcional de umdado gênero. Seriam estes os dados: domínio de referência (tipos desaber), instituição social, formas de troca (quem se endereça a quem) e,por fim, dados periféricos como paratextos, indicações outras, suportede veiculação, etc. Assim, para estes dois últimos tipos, a flccionalidadeé sempre contratual e situacionalmente estabelecida.
A classificação acima descrita é aplicada aos gêneros de discurso.Estes, por sua vez, são situacionalmente identificados e obedecem arestrições, conforme Charaudeau (2004). Os efeitos que pretendemosestudar aqui ocorrem no interior dos gêneros e, de maneira geral, nadatêm a ver com a determinação de seu estatuto factual ou ficcional.Assim, no interior de cada gênero, há um entrelaçamento de efeitos dereal, efeitos de ficção e efeitos de gênero. Para ilustrar, podemos citaro gênero "charge", que situacionalmente possui estatuto ficcional. Emseu interior, podemos encontrar efeitos de real, como a referência adados históricos e sociais aos quais o chargista-enunciador se refere. Orecurso à simulação como instrumento pedagógico é um efeito de fic-ção dentro do gênero factual "aula". Um jornalista que use a mençãoà estrutura do gênero teatral tragédia em uma "notícia"3 poderá criarum efeito de gênero em um gênero de estatuto factual.
Assim, a discussão que nos interessa neste momento é localizada nointerior dos gêneros de discurso, embora percebamos a existência deum jogo de estratégias entre estatutos e efeitos.
3 Sobre o uso de estruturas da tragédia em notícias, consultar: MACHADO, Ida L. "Lêfait divers:Tragédie moderne?" Rencontres. São Paulo: s/d? 1995, n. 6, p. 15-25.
201
Análises do discurso hoje
3. Efeitos de real e de ficção
Para Charaudeau ([1983] 2008), um ato de linguagem é uma encena-
ção que se articula a um projeto de fala. Este trabalho de encenaçãoconsiste em fazer apostas, propor contratos, correr riscos e se diri-gir rumo ao desconhecido através da expedição da linguagem. Nessa
perspectiva, efeitos de real e de ficção criariam espaços cênicos nosquais vemos representados efeitos de discursos que poderiam ir dobem-estar ao mal-estar conversacional, de acordo com a concepçãode Auchlin (1990). Em Charaudeau (1992), vemos também a idéia decomplementaridade entre estes efeitos e o aconselhamento de quedevem ser tratados conjuntamente.
A seguir abordaremos a exposição dos efeitos, mas gostaríamos de res-saltar um fato: a definição destes é circular, pois, naquele momento, a defi-nição que se tinha de ficção (cf. MENDES, 2004a) era "algo oposto a real".
3, 7. Os efeitos de ficção
Charaudeau (1983, p. 95) diz o seguinte sobre este assunto:
Nossa hipótese é a de que esses efeitos de fala — por mais diversos que
eles sejam — e os meios que permitem engendrá-los concorrem para
criar dois espaços cênicos da linguagem:
- Uma cena de ficção pontuada por todos os procedimentos discursivos
que produzem efeitos de ficção.
— Uma cena de real localizada por todos os procedimentos discursivos que
produzem efeitos de real.4 (Tradução nossa)
" Notre hypothèse est que cês effets de parole —- aussi divers qu'il soient — et lêsmoyens qui permettent de lês engendrer concourent à créer deux espaces scèniquesde langage:
— Une scène de fiction mise en place par touces lês procedures discursives qui produi-sent dês effets de fiction.
- Une scène de réel mise en place par toutes lês procedures discursives qui produisentdês effets de réel.
202
Por um remodelamento das abordagem dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de vene.ro
Parece-nos que a grande dificuldade em responder à questão "o queé um efeito de ficção" ou "o que é um efeito de real" se localiza no fatode que o teórico — e ele não é o único — não define muito claramen-te o que é ficção. Por outro lado, quando define o que é real, ele o faz
definindo-o como sendo o oposto da ficção, o que pode ser visto nesta
passagem: "Os efeitos de real devem ser compreendidos em oposiçãoaos efeitos de ficção"5 (CHARAUDEAU, 1.983, p. 97; tradução nossa).
A criação do lugar de ficção seria uma maneira de responder a umadupla questão, conforme Charaudeau (1983, p. 95):"como posso saber se
eu existo se eu não me vejo viver no mundo?" e "como eu posso dizer queeste mundo existe se eu não tenho senão visões parciais deste mundo?".
De acordo com o teórico acima mencionado, a ficção seria o lugaronde poderíamos fabricar uma história com início e fim, um lugar noqual poderíamos ter a visão total de uni destino; uma visão unificada
deste mundo parcelado, fragmentado, um lugar no qual poderíamos vera nós mesmos. Nessa perspectiva, a cena de ficção é assim definida:
Se tal é a razão da cena de ficção, então podemos dixer que ela representa o
lugar no qual esta busca do impossível é tornada possível pelo viés do imagi-
nário, mediação que permitiria a todo sujeito construir urna imagem de uni-
cidade existencial do homem.6 (CHARAUDEAU, 1983, p. 96; tradução nossa)
Na perspectiva da Semioligüística daquela época, poderíamos carac-terizar a ficção da seguinte maneira: a partir do momento no qual acei-tássemos que a ficção existiria onde não há possibilidade de verificação
racional, então compreenderíamos que a porta se abriria sobre o irracio-
nal: o mistério, a magia, o acaso, o maravilhoso, o sobrenatural, onde seencontram as forças do bem e do mal. Então uma outra questão é ne-cessária: — O que é o irracional? — O que não é provado pela ciência?Hoje sabemos que a ciência não é mais esta entidade sacrossanta que dita
5 Lês effets de réel doivent être compris en opposition aux effets de fiction.6 Si celle est Ia raison de Ia scène de fiction, alors on peut dire qu'elle represente lê lieu oucette quête de rimpossible est rendue possible par lê biais de rimaginaire, mediation quipermetrait à tout sujei de se construire une image de Punicité existencielle de 1'homrne.
203
Análises do discurso hoje
o que é o real, o que é a verdade e o que é a racionalidade. Logo, pode-
mos concluir que o irracional não é critério para caracterizar o discurso
ficcional. Poderíamos dizer que a própria irracionalidade possui uma ló-
gica racional. Por outro lado, não podemos ser ingênuos ao afirmar que
não exista o que é denominado pelo autor como "irracional"; contudo,
esses aspectos não são exclusivos de um discurso ficcional. Por exemplo,
pensemos nesta questão: uma crença religiosa é uma ficção no sentido
em que é uma crença no sobrenatural? Assim, como explicar a crença
em milagres, em vozes que se comunicam do além, em deuses que criam
universos e dão explicações sobre nossa existência, entre outras manifes-
tações? A nosso ver, tais questões estão ligadas ao universo de crenças de
cada indivíduo ou comunidade discursiva.A Bíblia,por exemplo,pode ser
vista como factual ou ficcional conforme a crença de quem a classifica.
Para uns, pode ser real, para outros, pode ser somente um romance ex-
tenso, uni romance-rio, com genocídio, travestis, muito sexo, adultérios,
sodomia, assassinatos, guerras, massacres, incestos... (ECO, 1992)
Uma outra característica do efeito de ficção, de acordo com Cha-
raudeau (1983, p. 96), seria o inteligível, com as seguintes variações:
(a) A distância no tempo e no espaço (que produz o efeito do exo-
tismo). Parece-nos que discutir tal ponto é retornar à tese de
Hamburger7 (1986). A título de exemplo, poderíamos dizer que
é possível que relatemos nosso passado e que façamos planos
7 Levando em consideração as categorias aristotélicas "Lírica" e "Epopéia", Hamburgerinstituiu a classificação de urna modalidade de textos narrativos que reuniu sob a de-nominação de "gênero ficcional ou mimético". Em sua argumentação, levantou a hi-pótese da existência de marcas lingüísticas mensuráveis que seriam específicas do textoficcional e fez a restrição de que somente os enunciados de textos literários em terceirapessoa, ou seja, aqueles pertencentes ao gênero Epopéia seriam de fato ficcionais. Poroutro lado, os textos literários era primeira pessoa, pertencentes à Lírica, não o seriam.Na pesquisa realizada por esca autora, as especificidades do discurso ficcional produ-zido em terceira pessoa se apoiariam nos seguintes índices enunciativos: (a) presençade verbos que indicam processos interiores — pensar, refletir, crer, etc.; (b) empregomaciço de diálogos, do discurso indireto livre e do monólogo interior; (c) utilização deverbos de situação em enunciados que dizem respeito a eventos distantes no tempo eno espaço; e (d) emprego de dêiticos espaciais e temporais com o uso do tempo verbalmais-que-perfêico, como, por exemplo,"verbo no particípio passado + agora".
204
Por um remodelamento das abordagem dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero
para o futuro, sem que isso recaia sobre o "irracional", neces-
sariamente. Uma outra possibilidade de exemplificação caberia
até mesmo sobre o que vivemos atualmente. Há poucos anos
presenciamos não só a passagem do século XX para o XXI, mas
também o começo de um novo milênio. Então, é perfeitamente
plausível alguém dizer que nasceu, que foi ao cabeleireiro ou
que defendeu uma tese no século ou no milênio passado,
(b)/b desproporçÕes das dimensões (o monstruoso). Sim, poderíamos
dizer que há monstruosidade em uma narrativa mitológica, em
uma história de ficção científica com monstros alienígenas, por
exemplo. Contudo, há, também, monstruosidade em um livro de
patologia clínica, em um museu de anatomia humana; há mons-
truosidade em uma má formação fetal, o que não são fatos nada
ficcionais; ao contrário, são fatos suscetíveis de verificação.
(c) As desproporçÕes das quantidades (o enorme). As histórias de ogros
são bastante populares no caso. Podemos lembrar também de As
aventuras de Gulliver, de Jonathan Swift. Entretanto, não devemos
nos esquecer dos casos de pessoas enormes citadas no Livro dos
recordes. Aí veremos casos de uma doença chamada acromegalia,
na qual a pessoa não pára de crescer em decorrência de uma
disfunção hormonal. Finalmente, poderíamos citar o caso dos
dinossauros: seus esqueletos são reais, encontrados em museus e
suas idades podem ser calculadas cientificamente.
(d) As desproporçÕes das noções (o inacreditável). Parece-nos que essa
noção é relativa, porque ela depende do universo de crenças do
indivíduo: uma pessoa pode acreditar ou não em disco voador;
uma pessoa pode acreditar ou duvidar que o homem tenha ido
à lua; uma pessoa pode acreditar ou não nas promessas de me-
lhoria social do presidente da República.
3.2. Os efeitos de real
Em relação às cenas dos efeitos de real, Charaudeau (1983, p. 97) afirma
que a fabricação de um lugar do real teria por função responder a
205
Análises do discurso hoje Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de facão e efeitos degenero
uma outra angústia, a da solidão. Aqui ela é vista como o isolamentode sua própria experiência que, não podendo ser partilhada, não serianunca verificada e, dessa forma, não poderia ser objetivada. Esta buscadesencadearia, então, uma procura que consistiria em dar um valorobjetivo, isto é,já distanciado do sujeito, à experiência individual. Talfato solicitaria o consenso que os outros dariam a esta experiência, ouseja, uni valor de verdade e um valor de generalidade.
Os efeitos de real devem então ser compreendidos em oposição aos efei-
tos de ficção. As duas cenas correspondem à nossa hipótese de fundo sobre
o ato de linguagem como encenação de quatro protagonistas sobre os dois
circuitos que denominamos interno e externo8. (CHARAUDEAU, 1983, p.
97-98; tradução nossa)
O teórico parte da hipótese de que todo sujeito sabe que a aventu-ra da linguagem é um jogo estratégico entre os circuitos interno e externodo ato de linguagem. Este jogo leva o sujeito a fabricar, pelos efeitos defala, a cena do real. Esta cena seria assinalada por objetos, personagense eventos que são apresentados como se eles existissem por si próprios,tendo valor referencial (cópia da realidade), como se eles fossem trans-parentes em face de um mundo verdadeiro, ordenado, organizado eobjetivado por um certo consenso que é evidenciado.
Nessa perspectiva, produzir efeitos de real é fazer apelo a um con-senso que pode se apresentar sob diferentes figuras:
(a) Figura do tangível — que permitiria verificar o real através dos sen-tidos (olfato, tato, visão etc.); estabeleceria um contato direto com
o mundo que engendra o mito do testemunho do espectador.
Obviamente, parece-nos que uma forma de verificar o real seria essafigura do tangível. No entanto, nem tudo pode ser verificável através dos
8 Lês effets de réel doivent donc être compris en opposition aux effets de fiction. Lêsdeux scènes correspondem à notre hypochèse de fond sur 1'acte de langage commemise eii scène de quatre protagonistes sur lês deux circuits que nous avons appeléinterne et externe.
206
cinco sentidos. Se dissermos a palavra mesa, não necessitamos, necessa-riamente, ter diante de nós uma mesa para saber da sua existência. Além
disso, esta palavra tanto pode estar em um discurso científico quanto emum discurso ficcional. Temos também testemunhos forjados na mídia,por exemplo, de pessoas que dizem ter visto, dizem ter ouvido coisas e
isso não corresponder exatamente aos fatos ou mesmo ser uma encena-ção para convencer o público da veracidade dos fatos reportados.
(b) Figura da experiência — que permitiria verificar o real a partir de
uma vivência própria ou da de alguém; o partilhar do vivido.
Esse critério não nos parece muito convincente porque as experiên-
cias são subjetivas, e tanto a experiência de um fato que aprendemosem um romance quanto a experiência realmente vivida constituem
experiências de um indivíduo e estas podem ser partilhadas. Pensemosno caso de uma fábula de Esopo.Tornemos, por exemplo,"A raposa e asuvas". Nesse texto temos uma raposa que fala como os seres humanose desdenha, sentimento humano, das uvas que estão no alto e que elanão consegue alcançar. Há, nesse tipo de relato, e não só nas fábulas, mastambém nos relatos mitológicos, uma "moral da história" que constituiuma experiência para vários sujeitos. No entanto, esse tipo de relatopossui muitos "efeitos ficcionais", como vimos. Um outro exemplo,seria o dos contos de fadas, muitas vezes considerados educativos paracrianças, que vão exatamente se basear em experiências vividas por
seres nada reais: um lobo que finge ser a avó, um urso ou um sapo que
fala e que se transforma em príncipe, entre outras eventuais narrativas.
(c) Figura do dizer — que constrói lugares de evidência, alguns ins-titucionalizados (dicionários, por exemplo), outros registradosna memória coletiva e configurados em provérbios, máximas,
expressões idiomáticas, estereótipos, enfim, toda fala que tenha
um valor de aforismo.
Não poderíamos afirmar que essas evidências sejam tão claras. Al-gumas dessas expressões podem surgir exatamente do discurso ficcio-
207
Análises do discurso hoje Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos degenero
nal. Basta pegar um dicionário de provérbios para que possamos ver
a profusão de referências a discursos institucionalizados ficcionais. A
título de ilustração lembramos alguns provérbios sobre animais, nos
quais estes possuem atitudes humanas:
• "Macaco, quando não pode comer banana, diz que está verde."(grifo nosso)
• "Cachorro não tem razão." (grifo nosso)
• "Cachorro de cozinha não quer colega." (grifo nosso) (MOTA,1991, p. 83-139)
E mesmo alguns provérbios podem ser oriundos de textos ficcio-
nais, como é o caso, por exemplo, de provérbios que fazem menção
a fábulas ou a outros textos. Voltando ao exemplo de "A raposa e as
uvas": "Raposa de luvas não chega às uvas." (MOTA 1991, p. 229). As-
sim, tal critério de diferenciação do real e do factual se mostra muitofluido.
(d) Figura do saber — mais ou menos codificada pelas ciências, re-
presenta as técnicas que permitiriam construir e verificar o ver-
dadeiro pelo raciocínio; é o mundo do inteligível estruturadopela racionalidade.
Talvez esse fosse o critério mais exato para se definir o que pode-
ria ser o real. Contudo, várias experiências científicas, amparadas por
experimentos, mostraram-se equivocadas. Seja pelo acesso a técnicas
mais modernas, seja por novas descobertas. Há sempre a possibilidade
de novas perspectivas científicas e, com isso, a mudança de paradigma
do que é o real. Como exemplo, citemos a crença de que aTerra era o
centro do universo; um tempo depois descobriu-se que aTerra girava
em torno do Sol e, em seguida, descobriu-se que o sistema solar é uma
migalha diante da imensidão do universo. O surgimento da informáti-
ca também foi muito importante, e, com ele, o aparecimento de novos
conceitos como o de realidade virtual. Assim, qual seria a diferença
entre ficção e realidade virtual? Não seria ela somente uma modernaetiqueta para um velho fenômeno?
208
(e) Figura do dizer — representa a fala injuntiva e/ou performativa
que institui a verdade do dizer pela verdade do fazer que o
acompanha (é uma das chaves do discurso totalitário),
Essa é também uma noção muito oscilante. Pensemos, por exem-
plo, em histórias infantis, em mitos, fábulas, onde temos animais que
são juizes, governantes, legisladores, entre outros. E nesses casos, do
ponto de vista da Teoria dos Atos de Fala, poderíamos dizer, a partir
de Searle (1995, p. 5), que uma direção de ajustamento palavra-mundo
dentro da situação é instaurada.
Podemos ter também o discurso totalitário inserido em um dis-
curso ficcional. Lembremos, por exemplo, o filme de Charles Chaplin
O grande ditador que faz urna crítica ao nazismo. Da mesma forma que
a fala injuntiva de Hitler instaurava a verdade do dizer na época em
que foi ditador, a fala injuntiva do personagem "ditador" de Charles
Chaplin também o fez no referido filme.
4. Efeitos de gênero
Antes de tratarmos dos efeitos propriamente ditos, gostaríamos de fazer
um breve resumo do que é a concepção de gênero de discurso na con-
cepção da Teoria Semiolingüística. Para Charaudeau (2004), os gêneros
não devem ser determinados a partir de um só critério, mas sim a partir da
combinação de vários níveis e categorias. Dessa maneira, cada evento a ser
classificado traz um princípio de classificação que lhe é próprio e possui
ao menos três dimensões a serem consideradas: (a) o nível situacional, que
permite reunir textos em torno de características do domínio de comu-
nicação; (b) o nível das combinações discursivas, que deve ser considerado
como o conjunto de procedimentos que deve ser invocado pelas instru-
ções situacionais para especificar a organização discursiva; e (c) o nível de
configuração textual, cujas recorrências formais são muito voláteis para
tipificar definitivamente um texto, mas podem constituir índices.
Os gêneros sofrem variações temporais, históricas, influências sociais,
dentre outros, ou seja, estão em constante mutação. Um exemplo disso é
209
Análises do discurso hoje Por uni remodelatnento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero
o gênero carta pessoal, que jã foi "missiva" e hoje é "mensagem eletrô-
nica".Assim sendo, os gêneros seguem formas rotineiras que circulam de
grupo para grupo, de situação para situação e que vão sendo transforma-
das e atualizadas. Eis o esquema desenvolvido por Charaudeau (2004):
ROTLN1ZAÇÃO DAS MANEIRAS DE DIZER EM UMA SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO
=> USO DIFUNDIDO FORA DA SITUAÇÃO DE ORIGEM => CRIAÇÃO DE UMA LÍNGUA
SEGUNDA "=> REINVESTIMENTO DESTA LÍNGUA SEGUNDA EM OUTRAS SITUAÇÕES.
Para ilustrar a questão, citamos o caso do gênero "auto". Antes
de Gil Vicente (1465-1536), tratava-se de um gênero trágico; após as
obras "transgressivas" do autor (p. ex.: Auto da Barca ao Inferno), tornou-
se cômico. Hoje não é mais uma ruptura escrever um auto cômico;
tornou-se trivial, rotineiro.
Além destas variações, o jogo de estratégias de captação, de sedução
e de persuasão empreendido pela comunicação também cria outras va-
riantes genéricas: temos a transgressão e a mixagem de gêneros9. A mi-
xagem10 ocorre quando ha urna simples junção de gêneros ou de subgê-
neros. Observa-se que nesses casos não haveria, necessariamente, uma
mudança nas restrições do contato de comunicação, ou seja, o contrato
inicial é preservado. Um exemplo é o caso estudado por nós11 da coluna
"Diário de Bagdá" na qual podemos ter variantes do gênero "diário"
(diário íntimo, de guerra, de viagem, etc.) em um mesmo texto.
No caso da transgressão, há uma mudança de contrato e temos, de
acordo com Charaudeau (2004), o esquema: CONTRATO l "^INDIVIDUA-
LIZAÇÃO "=> TRANSGRESSÃO <=> CONTRATO 2. Um exemplo que consi-
déramos clássico da transgressão são os prefácios de Tutaméia, de João
Guimarães Rosa. Trata-se de quatro textos distribuídos ao longo do
livro, possuem a etiqueta "prefacio", mas não seguem as restrições que
9 A quern possa se interessar, em Mendes (2004b) esta questão é mais detalhada.10 Termo utilizado pela Profa. Dra. Ida Luck Machado na disciplina: Seminário de TópicoVariável em Análise ao Discurso:gêneros trangressivos. Pós-graduação em Estudos Lingüís-ticos — Faculdade de Letras/UFMG, segundo semestre de 2003.11 Cf. Mendes (2004b).
210
o gênero impõe: "Texto preliminar escrito pelo autor ou por outrem e
colocado no começo do livro."12 Como é possível observar na referida
obra, o primeiro "prefacio" poderia obedecer à restrição "preceder o
texto", mas os demais estão inseridos em meio aos contos que com-
põem o livro. O teor dos "prefácios", ou seja, a sua organização em
termos de categorias de língua e de discurso, também não segue o
que determinaria o gênero: apresentar o conteúdo da obra, relacioná-la
com outras, etc. Desta forma, poderíamos dizer que há uma ruptura das
restrições: o nome "prefacio" permanece, mas as restrições ali seguidas
são de um outro gênero:"ensaio" (o contrato 2). Neste caso,"prefacio"
passa a ser somente uma etiqueta e não a determinação de um gênero.
É interessante dizer que não se pode confundir transgressão de
gênero com transgressão a normas e padrões sociais. Por exemplo, de-
terminadas campanhas publicitárias da marca italiana Benetton podem
ser consideradas socialmente transgressivas, mas o gênero publicidade
permanece seguindo as mesmas restrições, ou seja, não há ruptura.
Fizemos todo este percurso para chegar à questão dos efeitos: um
efeito é mais localizado e se dá no interior do gênero. A mixagem
ocorre com a fusão das restrições genéricas. Por outro lado, a trans-
gressão muda o contrato do gênero, ou seja, a situação de comunicação
é transformada. Pode-se dizer que há uma gradação entre efeito de
gênero, mixagem e transgressão.
Após este percurso, retomemos a definição de efeitos de gênero. De
acordo com Charaudeau (1992,p. 698),"este efeito resulta do emprego
de alguns procedimentos de discurso que são suficientemente repetiti-
vos e característicos de um gênero para se tornarem o signo deste". (Tra-
dução nossa).13 Em síntese: para obter este efeito, valemo-nos de algumas
características de um gênero A e as usamos em um gênero B. Cria-se,
assim, uma "ilusão" de que o texto pertence ao gênero A invocado, mas,
na verdade, o texto pertence ao gênero B.Vejamos alguns exemplos:
12 ©2004 Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital.13 Cet effet de 1'emploi de certains procedes de discours qui sont suffisament répétitifiet caractéristiques d'un genre pour devenir lê signe de celui-ci.
2ÍÍ
Análises do discurso hoje
a) No Submarino [loja virtual], tudo se clica, tudo se transforma(texto B) — efeito de citação acadêmica de Lavoisier — "Na na-
tureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." (texto A)b) Um é bom, dois são bons e 5 são bons demais (texto B) (publici-
dade a respeito de 5 novos colunistas que falam de tecnologia doYahoo!) — efeito de provérbio (texto A) — estamos consideran-do provérbio um gênero. Neste exemplo há uma desconstruçãomas as restrições do gênero são preservadas. Podemos ver tambémeste tipo de deslocamento, mas com o efeito de provérbio preser-vado, na letra da música "Bom conselho"14, de Chico Buarque.
c) "Era uma vez...", marca lingüística já cristalizada usada em con-tos de fadas; temos vários efeitos com esta estrutura: Era uma vez
no Oeste (Sérgio Leone, 1969); Era uma vez na América (SérgioLeone, 1984); Era uma vez um chalezinho — nome de um res-taurante em Belo Horizonte, dentre outras possibilidades.
Este recurso é também usado em paródias, pastiches e plágios.Como é possível verificar, ele também se relaciona com a questão do
estilo. Vejamos o exemplo abaixo, retirado do ensaio Sobre falar merda,de Harry Frankfurt, (2005, p. 9):
Um dos traços rnais notáveis de nossa cultura é que se fale tanta merda.
Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com a sua parte. Mas ten-
demos a não perceber essa situação. A maioria das pessoas confia muito
em sua capacidade de reconhecer quando se está falando merda e de
evitar se envolver. Assim, o fenômeno nunca despertou preocupações es-
peciais nem induziu uma investigação sistemática.
Por causa disso, não temos uma idéia clara do que é falar merda, da razão
para que se fale tanta ou para que serve. E nos falta também uma avalia-
ção conscienciosa do que isso significa para nós. Em outras palavras, não
dispomos de uma teoria. Proponho iniciar o desenvolvimento de uma
compreensão teórica do que significa falar merda, oferecendo algumas
análises experimentais e exploratórias. [...]
1972 © Marola Edições Musicais.
212
Por um remoãelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero
Observamos que há um efeito do gênero artigo acadêmico noexemplo em questão. No entanto, é perfeitamente possível dizer que se
trata de uma imitação do estilo acadêmico. Este efeito de gênero acadê-mico tem uma função irônica neste caso, pois o tema "falar merda" não
faria parte do rol das coisas nobres a ser pesquisadas pela academia.
5. A via do experiencialismo
Pensamos que o reconhecimento de um efeito — dizemos "reconhe-cimento", pois a identificação deste se dá freqüentemente a posteriori— está profundamente relacionado com a experiência que temos dodiscurso e com a competência discursiva que adquirimos ao longo de
nossa vida. Eis a visão de Auchlin (2003, p. 138):
O discurso é, para mim, um dado de experienciação subjetiva particular
no qual se misturam e com o qual contribuem dados perceptivos ime-
diatos e representações complexas associadas a seqüências de unidades
lingüísticas. O que nomeamos "discurso" é o vivido. Nessa perspectiva,
seu estudo não se reduz, legitimamente, nem a manipulações cognitivas
conceituais-inferenciais, nem a seqüências de unidades lingüísticas, por
mais que sejam complexas e organizadas. [...]
A análise experiencial do discurso pressupõe um dispositivo, "órgão" ou
"sistema" que tem como tarefa elaborar em experienciação o tratamento
seqüencial de unidades lingüísticas e, inversamente, articular a experiência
interna em seqüências de unidades lingüísticas. É este "órgão da experiencia-
ção discursiva" que nomeio "competência discursiva". (Tradução nossa)'3
15 Lê discours est pour mói une donnée d'expérienciation subjective particulière danslaquelle se mêlent et à laquelle contribuent données perceptives jmmédiates et repré-sentations complexes associées aux suites d'unités linguistiques; cê que nous nom-mons "discours", c'est du vécu.A cê ritre, son étude ne se réduit légitimement ni àdês manipulations cognitives conceptuelles-inferentíelles, ni à dês séquences d'unitéslinguistiques, fussent elles complexes et organisées. [...]. Uanalyse expérientielle dudiscours suppose ainsi un dispositif, "organe" ou "système", ayant à charge d'élaboreren expérienciation lê traitement séquentiel d'unités linguistiques, et inversementd'articuler 1'expérience interne en séquences d'unités linguistiques; c'est cet "organede rexpérienciarion discursive" que je nomme "compétence discursive".
213
Análises do discurso hoje Por um remodelametito das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero
De acordo comAuchlin (1997) a competência discursiva deve servista como uni sistema auto-regulado melhorado, ou seja, aberto aotempo. Ela é global, de maturação lenta, organizada em uma suces-são de estados semi-estáveis e sem real estado terminal. Cada estadosemi-estável, enquanto é funcional, é (virtualmente) terminal e vividocomo tal. A mudança de estado semi-estável desencadeia, necessaria-mente, uma reorganização do conjunto da competência discursiva,
isto é, uma modificação do modo de existência linguageira da pessoacomo um todo.
Assim, através da competência discursiva que adquirimos e renova-mos ao longo de nossa existência, aprendemos a reconhecer, através dovivido discursivo, do experienciado, os efeitos de ficção, de real e de gê-nero. É o fato, por exemplo, de termos passado pela experiência de umconto de fadas que nos faz reconhecer sua estrutura, suas formas crista-lizadas como "era uma vez" e "se casaram e foram felizes para sempre".Esta competência é também cultural e, em decorrência disso, sujeita ainúmeras variações. Por exemplo, no caso dos contos de fadas, as ver-sões em língua francesa, em geral, terminam com "se casaram e tiverammuitos filhos". A idéia de representação da felicidade sem mencionarfilhos/ com filhos não deixa de ser um dado relevante.
É esta mesma competência que nos auxiliará no reconhecimentodos gêneros de discurso, de suas restrições, de suas transgressões, mixa-gens, dentre outros aspectos.
6. Uma proposta possível
A idéia que gostaríamos de sustentar aqui é uma caracterização dosefeitos a partir da experiência que temos do discurso. Não levaríamosem consideração a oposição nem sempre verdadeira entre "real"/ obje-tividade e "ficcional"/ subjetividade proposta por Charaudeau (1983).A nosso ver, a questão da objetividade/ subjetividade seria vista comouma marca lingüística e não como a expressão do sujeito ou a con-figuração do objeto. A escolha de uma enunciação coni marcas queindicam subjetividade (eu) ou objetividade (ele) é uma estratégia que o
214
sujeito comunicante utiliza para construir os gêneros de discurso, trata-se de um posicionamento, como o pensam Amossy e Koren (2004).
Assim sendo, um "efeito" é definido em função dos fatos do mun-do, é uma reunião de vários critérios, é sempre relativo à situaçãode comunicação. O diagnóstico depende da competência de cadaum, de seu conhecimento de mundo e de suas crenças.
A seguir, tentaremos demonstrar as duas noções que, a nosso ver,seriam básicas para o diagnóstico de um efeito: estatuto do gênero eheterogeneidade discursiva.
O reconhecimento do estatuto ao qual o gênero de discurso per-tence possui um papel relevante na identificação dos efeitos. É estaexperiência em relação aos gêneros do discurso que possuímos quenos permitiria reconhecer o efeito de um gênero A em um gêneroB. Além disso, nem sempre uni efeito pode ser considerado enquantotal. Por exemplo, quando Machado de Assis escreve "Ao vencedor asbatatas" no Quincas Borba, não se trata de um efeito. No entanto, se en-contrarmos esta frase em um texto jornalístico, ela poderá se constituirum efeito de ficção em um gênero de estatuto factual. Ainda men-cionando Machado de Assis, a sua descrição do Rio de Janeiro, porexemplo, é um efeito de real dentro de sua obra de estatuto ficcional.É também possível ter um efeito de ficção em um gênero de estatutoficcional. Um exemplo é a intertextualidade literária.
Um outro modo de diagnóstico agrupa as duas modalidades de he-terogeneidade: constitutiva e mostrada (AUTHIER-REVUZ, 1982). A partirda interdiscursividade vários efeitos podem ser percebidos e terem iden-tificadas as suas fontes. Reconhecemos que nesses casos pode haver umacerta falta de exatidão para a classificação, pois as fontes dos efeitos podemse diluir e até mesmo se fundir a outras em um amálgama complexo. Poroutro lado, a heterogeneidade mostrada é bastante explícita, é perceptívelatravés de citações textuais ou livres, discurso direto, aspas, dentre outraspossibilidades de ocorrência deste tipo de heterogeneidade.
A seguir trataremos brevemente de alguns exemplos, mas não seráuma análise exaustiva de casos.
No exemplo l temos a co-ocorrência de efeitos de real e de ficção:
2J5
Análises do discurso hoje Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de facão e efeitos degenero
Exemplo í:
Buemba 2! GERALDO, O CARECA! Estão escrevendo uma biografia
meiga do Alckmin Picolé de Chuchu chamada "Alckmin, o Menino, o
Homem, o Político". E olha este trecho: "Geraldo e Maria Lúcia dança-
vam, o chão era de estrelas, naquele salão a impressão de que existiam só
os dois, embalados pela doce melodia de Ray Conniff". Quer mais? "Ge-
raldo era cobiçado pelas moças da cidade, mas seu espírito frugal, alheio
às vaidades, impedia-o de valer-se de sua condição para obter vantagens".
Novelão Mexicano Made in Brazil do SBT. Vai virar minissérie do SBT:
O Galã de Pindamonhangaba! Não tinha aquele Pedro, o Feio? Agora é
Geraldo, o Careca! Rarará. (SIMÃO, José. Folha de São Paulo - Ilustrada,
17fev.,2006)
Podemos dizer que a coluna de José Sirnão é um artigo de opi-
nião, portanto, um gênero de estatuto factual. É a partir desta deter-
minação e de nossa competência em reconhecer marcas de hetero-
geneidade que identificaremos: (a) os efeitos de real marcados pelas
aspas, ou seja, uma citação textual de um gênero factual, a "biografia"
Alckmin, o Menino, o Homem, o Político; (b) os efeitos de ficção re-
presentados pela menção aos gêneros novela televisiva e minissérie,
ambos de estatuto ficcional. Há citação de uma novela Pedro, o feio;
(c) os efeitos de gênero que perpassam as citações textuais feitas por
José Simão. Mesmo pressupondo que, nesse caso, a biografia (texto
B) seja factual, percebemos que há um efeito do gênero romance
(texto A) como "o chão era de estrelas", o destaque para um traço de
nobreza do herói romanesco "seu espírito... impedia-o de valer-se de
sua condição para obter vantagens". A questão do humor e da ironia
são essenciais para a compreensão deste trecho, como, por exemplo,
"galã de Pindamonhangaba", mas não nos ateremos a esta análise
neste momento.
No exemplo seguinte, temos um relato de guerra feito por Robert
Fisk, ou seja, um gênero de estatuto factual.
216
Exemplo 2:
O soldado agonizava; seu companheiro entre os fedayin soluçava, por
compaixão, enquanto o amigo se debatia de dor. As balas norte-ameri-
canas o haviam atingido nas pernas, e uma médica estava tentando lenta-
mente, com cuidado infinito, remover a bota direita de seu pé. Ele se recu-
sava a gritar, se recusava a mostrar o sofrimento pelo qual estava passando,
embora seus olhos estivessem cerrados enquanto a mulher trabalhava na
bota, desfazendo os laços, e temendo cortar a perna de sua calça por medo
daquilo que poderia encontrar. [...]" (FISK, Robert. Folha de São Paulo, 5
abr.,2003,p.A24)
Vemos aqui um efeito do gênero romance: há a aparição do he-
rói e seus aliados (o soldado e seu grupo), a marcação do inimigo
(balas norte-americanas) e a ação. Valemo-nos de nossa competência
em reconhecer uma estrutura romanesca e da heterogeneidade para
podermos identificar o efeito. No entanto, sabemos que Robert Fisk
é partidário do Novo Jornalismo, que se vale desse tipo de estrutura
romanesca para escrever. Assim sendo, retomamos a questão da estreita
relação entre efeitos e estilo: este tipo de procedimento seria somen-
te um efeito de gênero ou seria uma marca estilística? No caso em
questão, como a estrutura romanesca perpassa todo o texto, não seria
o caso de considerarmos também a possibilidade de unia rnixagem?
Infelizmente, não temos ainda respostas para estas questões, que aqui
ficam para que inquietem também outros estudiosos do assunto.
No exemplo 3, temos um efeito de ficção em um gênero de esta-
tuto ficcional. Para um melhor entendimento, vamos dar uma pequena
explicação. Em 24 de abril de 2004, a Folha de São Paulo publicou uma
série de entrevistas no caderno "Mais!", com o título: "É tudo menti-
ra! ."16Trata-se de entrevistas simuladas,portanto ficcionais,de escritores
de renome {Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Julien Gracq, Mário
16 Este é o corpus de nossa pesquisa sobre "ethos forjado", desenvolvida com o apoiodo PRODOC/CAPES.
217
Análises do discurso hoje
de Andrade, etc.) que até aquele momento não tinham tido, ou não
tiveram em vida, este tipo de contato mais direto com a mídia (vale
dizer que é um distanciamento voluntário, uma decisão pessoal e não
uma condenação ao ostracismo por parte da mídia). As entrevistas são
feitas/ fabricadas por outros escritores e/ou críticos literários.
No caso de Dalton Trevisan, que tomamos aqui como exemplo, o
"entrevistador" foi Nelson de Oliveira e o título da entrevista remete
à obra mais conhecida do referido escritor; Entrevista com o Vampiro.
Estatuto do gênero: entrevista ficcional.
Exemplo 3:
Nelson de Oliveira: — Como o sr. se vê como escritor? Conseguiria
traçar seu auto-retrato?
Dalton Trevisan: — De jeito nenhum. Eu jamais me vejo. Detesto espelhos.
No exemplo e no título da entrevista, vemos uma obra de ficção
ser citada textualmente e, em seguida, um jogo com a imagem de
vampiro na resposta forjada de Dalton a seu entrevistador. Estes dois
casos são efeitos de ficção dentro de um texto de estatuto ficcional.
7. Considerações finais
Os efeitos de gênero, efeitos de real e efeitos de ficção podem compor
qualquer gênero de discurso, independentemente de seu estatuto. Estes
efeitos estão ligados à competência discursiva e sua identificação se dá pelo
estatuto e pela heterogeneidade discursiva, ou seja, um"efeito" é uma reu-
nião de vários critérios e é sempre relativo à situação de comunicação.
Vistos como instrumentos metodológicos de análise, os efeitos po-
dem auxiliar no estudo de diversos corpora, sejam eles de estatutos fac-
tuais ou ficcionais.
E interessante observar que o diagnóstico de um efeito está na ins-
tância da recepção e depende da experienciação que cada um possui
do discurso.
218
Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero
Enfim, a nossa proposta não se esgota aqui; sabemos que ainda há
situações a ser pensadas, problemas e questões a ser resolvidas. Os gê-
neros de discurso estão sempre em mutação, e cada um deles traz novas
fronteiras a ser desbravadas, vencidas.
Referências
AMOSSY, Ruth; KOREN, Roselyne."Présentation". In: Revue Sêmen
Í7 — Argumentation etprise deposition:pratiques discursives. Besançon;
Presse Universitaires Franc-Comtoises, 2004, p. 9-18.
AUCHLIN, Antoine. "Analyse du discours et bonheur conversation-
nel". In: Cahiers de linguistique française, Genebra: s/d: n. 11, 1990,
p. 311-328.
. "Uanalyse pragmatique du discours et Ia qualité du dia-
logue: argurnents pour une approche systémique de Ia compé-
tence discursive". In: BEACCO J.-C; LUZZATI D.; MURAT,
M. (éds.).Actes du Coüoque Lê Diahgique. Berne: Lang, 1997,
p. 123-135.
; PEPvRIN, L. "Approche expérientielle et textç littéraire: lê
début de Lê Libera, de R. Pinget". In: ROULET, E.; BURGER,
M. (éds.). Actes du 8ènu: colloque de pragmatique (colloque Charles Bal-
ly, Champoussin, 14-16 juin 2000). Nancy: P.U.N. 2002, p. 55-81.
."Cornpétence discursive et co-occurrence d'affects:'blends
expérientiels'ou (con)fusion d'émotions?" In: COLLETTAJ.-M.;
TCHERJECASSOF, A. (éds). Lês émotions. Cognition, langage et déve-
loppement. Hayen: Mardaga, 2003, p. 137-152.
AUTHIER-RJ5VUZ,Jacqueline. "Hétérogéneité montrée et hétéro-
géneité constitutive: éléments pour une approche de l'autre dans lê
discours". In: D~RLAV, Révue de linguistique,n.26, 1982, p. 91-151.
CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours. Paris: Hachette, 1983.
. Grammaire du sem et de rexpression. Paris: Hachette, 1992.
."Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção tex-
tual". In: MACHADO, I.L.; MELLO, R. (orgs.). Gêneros: reflexões
219
Análises do discurso hoje
em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004
p. 13-41.
. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Con-
texto, 2008.
ECO, Umberto. Pastiches etpostiches. Paris, col. 10/18,1992.
FRANKFURT, H. G. Sobre falar merda. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005,
p. 9 (ed. original: Universidde de princenton).
HAMBURGER, Kate.^4 lógica da criação literária.Trad. Margot P. Mal-
nic. São Paulo: Perspectiva, 1986.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Sào
Paulo: EDUC, 2002.
MACHADO, Ida Lúcia. "Lê Fait divers:Tragédie rnoderne?" Rencon-
tres. São Paulo: s/d, n. 6,1995, p. 15-25.
MENDES, Emília. Contribuições ao estudo do conceito deficcionalidade e de
suas configurações discursivas. 267f. Tese (Doutorado em Letras - Es-
tudos Lingüísticos) Faculdade de Letras da UFMG,Belo Horizon-
te, 2004a.
- "Variações e implicações genéricas no Diário de Bagdá".
In; MACHADO, I.L.; MELLO, R. (orgs.). Gêneros: reflexões em Aná-
lise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004b, p.
153-170.
. "O conceito de ficcionalidade e sua relação com a Teoria
Semiolingüística". In: MACHADO, I.L.; SANTOS, J.B.C.; ME-
NEZES, W. (orgs.). Movimentos de um percurso em Análise do Discurso.
Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso/ Faculdade de
Letras, v. l, 2005,p. 133-148.
MOTA, Leonardo. Aâagiário brasileiro. Fortaleza: Banco do Nordeste
do Brasil, 1991.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 2001.
SEARLE, John R. Expressão e significado. São Paulo: Martins Fontes,
1995, cap. 3, p. 95-119.
220
HUMOR E MÍDIA: DEFINIÇÕES,GÊNEROS E CULTURA
Claude Chabrol (GRPC, Universidade de Paris III)
1. Definir o ato humorístico e os contratos midiátícos
Falar de fatos humorísticos na comunicação midiática supõe primeira-
mente que se restrinja o campo de análise apenas às produções inten-
cionalmente "humorísticas", o que exclui imediatamente, como in-
sistem Patrick Charaudeau e Anne Marie Houdebine, a questão mais
geral do Risível e do Riso.
Naturalmente, o destinatário pode não reconhecer essa intenção
(desconhecimento), entendê-la mal (incompreensão), ou ainda recu-
sá-la (redução normativa) por razões que tentaremos explicar mais
adiante. É preciso também notar que é raro comunicar, de maneira
homogênea e contínua, de forma "humorística". Salvo exceções, uma
conversa que se baseie apenas numa troca de brincadeiras e zombadas
é bem pouco freqüente fora de cena teatral ou do cabaré.
Evocaremos então as comunicações que tenderiam — por meio
de uma construção semiótica complexa, intervindo freqüentemente
sobre várias substâncias (verbal, icônica, sonora) e dirigida a um ou a
vários destinatários — a provocar um efeito local "perlocutório" de
conivência, fundada nas características muitas vezes deslocadas de um
enunciado e de uma enunciação. A intenção de conivência domina
necessariamente a intenção hostil ou agressiva, já que se supõe que o
locutor midiático não pode se permitir ofender seu leitor-destinatário,
Análises do discurso hoje Humor e mídia: definições, gêneros e cultura
nem mesmo suas crenças e valores profundos. Aqui o alvo, a vítima e o
destinatário são por definição distintos.
Falaremos, então, com Charaudeau (2006, p. 2), de um tipo de atode enunciaçao humorística como de:
[...] certo modo de falar, no interior de diversas situações, com fins de
estratégia para fazer de seu interlocutor um cúmplice. Como todo ato
de linguagem, o ato humorístico é a resultante do jogo que se estabelece
entre os parceiros da situação de comunicação e os protagonistas da situa-
ção de enunciaçao. Somos assim levados, para estudar o ato humorístico,
a descrever a situação de enunciaçao em que ele aparece, a temática de que é
objeto, os procedimentos linguageiros que o fazem funcionar e os efeitos que
ele é susceptível de produzir no auditório.
Assumir isso não significa que se trate de um ato de linguagem em
sentido estrito (AUSTIN, 1970; SEARLE, 1977, p. 27-45) ou de fala, deter-
minado (CHABROL e BROMBERG, 1999), visto que se pode querer infor-
mar, avaliar, identificar, incitar ou regular, por exemplo, mais ou menos
"humoristicamente". A finalidade "ilocutória" do ato pode, portanto,
variar, enquanto a dimensão humorística modulará a força para cima
(estratégia sarcástica) ou para baixo (ironia).
A rigor, esse tipo de enunciaçao faz desaparecer a própria fina-
lidade "ilocutória", parasitando-a totalmente. Isso é particularmente
sensível quando o humor é "gratuito" e zomba das leis da linguagem
e dos pontos de vista racionais sobre o Mundo, para visar a um efeito
(perlocutório) de conivência "lúdica" já mencionado por Freud no
seu Mot (FEsprit, que o aproximava do sentimento de poder ligado
ao narcisismo e ao de invulnerabilidade do EU. Aqui, o autor-locutor
propõe um verdadeiro roteiro de ação que o destinatário pode com-
partilhar e tornar "real" co-enunciando-o e representando-o no ritual
de um jogo de linguagem. Algumas formas de autoderrisão ou de
humor negro, por exemplo, em que o autor toma como alvo sua pro-
fissão, seu grupo ou sua própria mensagem, podem ser evocadas nesse
222
caso (por exemplo, JCS publicidade; AMH e Mae Pozas, desenhos de
imprensa).O que opõe o ato humorístico ao ato de linguagem de Austin seria
essa predominância do efeito visado perlocucionário, esse estado mental
de conivência muitas vezes ligado a afetos e a emoções que se visa a
provocar no outro. Difere do ato ilocutório que se faz falando (infor-
mar, avaliar alguma coisa, mandar fazer, etc.) e do ato locutório frástico,
realizado pela produção de um enunciado dotado de uma estrutura
lingüística dada, sintáxica ou léxica.Com Charaudeau, postularemos que o "ato humorístico como ato de
enunciaçao põe em cena três protagonistas: o locutor, o destinatário e o alvo"
(op. dt., p. 2) e dependerá dos papéis que cada um vai assumir na situação
de comunicação. Um autor-locutor, supostamente "legítimo" no caso da
mídia, produz uma caricatura a respeito do 11 de setembro (Anne Ma-
rie Houdebine e Mae Pozas), ou uma crônica de humor sobre fatos da
sociedade ou sobre a atualidade do mundo político (DoloresVivero, Ma-
nuel Fernandez), ou um programa de televisão que interroga, de modo
provocador, políticos e artistas sobre suas ações e gestos (Guy Lochard),
ou ainda um texto publicitário que tenta captar a simpatia de seus leito-
res-clientes em potencial com uma mensagem muitas vezes sem relação
alguma corn as qualidades do produto, mas que visa primeiramente a
promover a marca (Jean Claude Soulages ou Monserrat Lopez).
São situações de comunicação distintas, em que atos humorísticos
aparecem sem constituir forçosamente o essencial dessas comunica-
ções que pertencem a gêneros ou subgêneros midiáticos, cujos con-
tratos diferem explicitamente entre si e que, além disso, são sensíveis
às variações ditas "culturais". Os contrastes pertinentes entre corpora
franceses e espanhóis são uma boa ilustração disso'.
1 Por exemplo, as contribuições advindas do prolongamento de um trabalho feito numgrupo de pesquisa franco-espanhol (Picasso) que reuniu em Paris e Madri, de 2000a 2004, sob a direção de José Bastos e Patrick Charaudeau, pesquisadores lecionandoem diversas universidades da Espanha e os membros da CAD (Centro de Análise doDiscurso) de Paris.
223
Análises do discurso hoje Humor e mídia: definições, gêneros e cultura
O caricaturista se inscreve num contrato de informação e de di-
vertimento iconográfico ficcional sobre fatos da atualidade. Onde o
cronista instaura um contrato de tomada de posição apreciativa e pes-
soal sobre a realidade, o animador de televisão e seus colaboradores
elaboram um contrato de conversação polêmica, divertida e infor-
macional, em que se misturam as esferas do público e do privado do
convidado. Quanto ao publicitário, este tenta captar a atenção, depois a
simpatia do cliente potencial, estabelecendo uma cumplicidade direta
com a marca que ele representa, ern proveito de um produto evocado
ligeiramente.
Entretanto, todos esses contratos operam a partir de um desloca-
mento enunciativo comum assim que atualizam atos humorísticos.
Esse deslocamento parece provocar uma suspensão das máximas de
Grice de pertinência, de informatividade, de sinceridade e de desam-
bigüização que questiona fortemente a pretensão habituai à verdade
dos Ditos e talvez à veracidade do Dizer, à primeira vista (VERNANT,
1997, p. 61-85), O ato humorístico pode realmente multiplicar as
ambigüidades semânticas e os equívocos referenciais e, aproximando
universos e visões pouco comparáveis do mundo, instaurar uma forte
(injcoerência entre as dimensões ou isotopias consideradas, em todo
caso, bastante distantes para servir imediatamente a uma comparação
que respeite o princípio de pertinência; isso sem falar de valor infor-
macional! Nós nos referiremos aqui aos processos descritivos das in-
coerências extravagante, absurda ou insólita e paradoxal, definidas por
Charaudeau (op. aí., p. 9-11).
Quanto à sinceridade, é forçoso reconhecer que não se pode julgar
facilmente até que ponto o autor-locutor adere mais ou menos ao
discurso dos autores-personagens ou dos enunciadores aos quais eles
emprestam sua voz. Uma enunciação "não séria" suspende a respon-
sabilidade habitual. Não se presume que o enunciador "humorista"
assuma a interpretação implícita séria de seu enunciado.
Entretanto, o ceticismo, a agressividade, o desafio às normas lógicas
ou sociais, o questionamento crítico das tradições e dos conformismos
224
através de personagens e de valores que os encarnam não poderiam ser
"compreendidos" como uma forma de "subentendido" estudado por
Ducrot (1972, p. 132)? A interpretação seria então o produto de um
mdodnio do tipo "Se X preferiu dizerY (humoristicamente) foi porque
pensava (seriamente) Z". Poder-se-á também evocar as leis do discur-
so: de lítotes para interpretar o procedimento enunciativo "irônico", no
qual se supõe que o locutor quer dizer muito mais do que diz, ou de
hipérbole, para o procedimento "sarcástico" quando ele diz bem mais
do que queria dizer.
Examinemos a caricatura de Plantu, citada por Arme Marie Hou-
debine, mostrando um fuzileiro naval americano que, com um me-
gafone, interpela Bin Laden: (1) "Oussama! Saia daí senão eu solto o
Charles de Gaulle!"." Não'. Isso não! isso não!", grita Bin Laden em resposta
(CA/F13). Poder-se-á sempre imputar ao autor-locutor Plantu de ter
querido exprimir ironicamente a moral da história (2): "Não é com uma
arma dessas que poderíamos amedrontar um inimigo desses e ajudar os ame-
ricanos a combatê-lo!", produzindo um efeito de derrisão. Mas é preciso
ainda recorrer a condições contextuais (quais?) para explicar que o
locutor não pôde se autorizar a dizer (2), que não é mais, de forma al-
guma, humorístico e que permite apenas um elo simbólico longínquo
com a situação imaginada na vinheta icônica.
Assim, toda a pintura clássica, em que são abundantes os nus fe-
mininos, seria apenas, como disse um crítico famoso, uma forma de
voyeurismo, e todas as comunicações humorísticas, enunciações implíci-
tas, subentendidos, ou pelo menos insinuações, tidos como necessários
pelas formas de censura social! Para ser plausível, em algumas situações
históricas a respeito de certos tipos de objeto e realizadas através de
formas precisas de panfletos satíricos, caricaturas, etc., essa hipótese
não pode ser generalizada e aplicada às produções contemporâneas das
sociedades ocidentais aqui evocadas.
Pode-se certamente reconhecer que uma tal caricatura pode pro-
duzir um pensamento associado, como (2), mas também outros, tais como
(2'): "Enviar uma tal arma derrisória aos americanos seria efetivamente uma
225
Análises do discurso hoje
boa ação",para um adversário da guerra no Iraque, ou ainda (2"):"Esse
é mesmo o único tipo de arma que nós, franceses, somos capazes de ter agora"
para um apreciador de autoderrisão pessimista, ou mesmo para um
otimista de mesmo credo (2'"):"Felizmente, com tais armas, a França não
pode mais participar desse tipo de jogo!".
Podemos afirmar que, sem ser infinita nem totalmente aberta, a lista
dos pensamentos implícitos associados a uma mensagem humorística é
freqüentemente numerosa, e poderá variar em função das atitudes, co-
nhecimentos, capacidades, implicações e motivações dos destinatários
(como propõe HOUDEBINE, 2006, p. 10). Em suma, uma variabilidade
inter ou mesmo intra-assunto poderia ser considerada corn esses tipos
de estratégia discursiva.
O enunciado humorístico não esconde uma significação figurada
implícita para além de uni enunciado literal "infeliz", porém engraça-
do. Ele evoca de preferência um feixe de impressões de sentido ou de
efeitos "poéticos" (SPERBER e WILSON, 1989, p. 326-384). Mais precisa-
mente, assumiremos, com esses autores, a hipótese de que o ato humo-
rístico, como o enunciado metafórico ou irônico, consiste em dizer e
fazer entender muito mais do que o enunciado sintético equivalente
semanticamente ao mínimo: (2),por exemplo.
Dir-se-á de tal caricatura que ela "é cheia de implícitos [...] e que,
como sempre, uma maneira indireta de se exprimir deve ser compen-
sada por um suplemento de efeitos contextuais". Exprimindo uma
significação através dessa caricatura, pode-se acrescentar que
[...] o autor encoraja (o leitor) a procurar efeitos contextuais suplementa-
res [...] e a supor que alguns desses efeitos foram desejados pelo locutor.
Quanto mais fracas forem essas implicações, mais vasta será a gania das
conclusões possíveis e maior será o engajamento da própria responsabili-
dade do auditor ao adotá-las, (op. «/., p. 352-353)
Que tipos de efeitos Plantu pôde querer comunicar? Ele escolheu
um procedimento descritivo incoerente, entre o extravagante (querer
226
Humor e mídia: definições, gêneros e adtum
ameaçar um inimigo num combate terrestre, corpo a corpo, com uni
porta-aviões) e o paradoxo (amedrontar com um navio/ arma que
não está em estado de funcionar), e um processo enunciativo sarcástico
(simbolizar o absurdo da história verdadeira desse navio sem rumo por
um absurdo imaginário ainda mais forte). Poderemos supor que ele
quis justamente comunicar implicitamente o sentimento de extremo
absurdo, logo de derrisão, que pode inspirar aos franceses, mas, sobretu-
do, ao resto do mundo e particularmente aos americanos, o espetáculo
lamentável de um florão de nossa marinha de guerra numa tal situação.
Todavia, já que foi formulado hurnoristicamente, esse sentimento não
pode ser imputado ao locutor, pois, como para a ironia,
[...] o pensamento do locutor interpretado pelo enunciado (o texto ou a
caricatura) já é por si mesmo uma interpretação [...] a de qualquer outro
(ou do locutor no passado) [...] (ora) um enunciado utilizado corno inter-
pretação de um pensamento de um terceiro é sempre, em primeiro lugar,
uma interpretação da compreensão que se tem do pensamento desse Ter-
ceiro [...] (op. cit., p. 356-357)
Podemos designar esse fenômeno como um caso de enunciado em
"eco" ou ainda "polifônico". Em resumo, por sua enunciação, Plantu
faria eco ao sentimento de absurdo e de derrisão que ele suporia pre-
sente em boa parte de seus leitores, sem que pudéssemos saber se ele o
compartilha verdadeiramente.
Naturalmente Plantu não exprime esse sentimento literal e lingüis-
ticamente; ele o atualiza fazendo-o figurar numa pequena cena com
interpelação cômica, na qual domina uma incoerência divertida, como
acontece geralmente com ele. A extravagância da historinha é apoiada
pelo traço leve com que o caricaturista habitualmente desenha esses
personagens quase infantis. Tal encenação se afasta do drama ou da
vergonha para induzir uma incitação a uma autoderrisão muito leve,
que sugere efeitos do gênero "diante desses tipos de absurdo, finalmente
não muito graves, é melhor rir aqui do que chorar seriamente em todo lugar ,
221
Análises do discurso hoje Humor e mídia: definições, gêneros e cultura
em que alguns entenderão uma interpelação aos jornalistas e políticos
por demais focados em tudo o que possa evocar "o atual declínio da
França"!
Tal exegese, pois as comunicações humorísticas forçam os destina-
tários a um trabalho de interpretação sem fim e sem certezas2, pode-
ria ser repetida muitas vezes com a condição de exprimir também a
qualidade patêmica da conivência visada com o destinatário: eufórica
ou "terna", como sugerem Anne Marie Houdebine e Mae Pozas; ou
disfórica ou "negra", isto é, orientada para o trágico, como em um
Willem, por exemplo, ou em um El Roto3. Há, sem dúvida, corre-
lações a serem estabelecidas entre os tipos de conivência e os estados
patêmicos, os procedimentos e as temáticas. As análises dos diversos
gêneros midiáticos sugerem hipóteses a confirmar.
A conivência lúdica da publicidade espanhola AUDI, que compara
a vida mais excitante das quatro rodas de seu carro à vida mais banal
(implicitamente) das quatro rodas de uni carrinho de supermercado,
está bem apoiada num procedimento enunciativo irônico e uma in-
coerência extravagante, com uma temática sem lances atitudinais. Ela
orienta para um estado patêmico eufórico simples.
A conivência cínica da publicidade francesa ERAM, que exibe um
homem nu com sapatos de mulher e um slogan provocador ("Ne-
nhum corpo de mulher foi explorado nessa publicidade."), apóia-se
num procedimento sarcástico e numa incoerência paradoxal sobre
uma temática feminista muito carregada ideologicamente, objeto de
lances atitudinais fortes. Ela orienta para um estado patêmico mais
disfórico, ou, pelo menos, para um "riso amarelo".
2 As interpretações de um ato humorístico dependem, como as de qualquer enuncia-ção, de contextos anteriores e posteriores e da situação. Uma brincadeira breve duran-te um discurso "sério" não tem o mesmo alcance que num discurso "não sério", emque anedotas, zombarias e episódios semanticamente inacabados são abundantes. Emúltima análise,são os objetivos da ação da situação em curso e os contratos habituais decomunicação que decidirão (cf. os novos programas de info-divertimento, estudadospor Guy Lochard (2006).3 Consultar sua análise da caricatura In Gás, we tmst.
228
A conivência crítica da publicidade do aspirador LG mostra um ho-
mem nu, de corpo musculoso e untado de óleo, um atleta brandindo
um instrumento (?) como um troféu, com a legenda: "Nãoljonathan,
isso não é uma cafeteira. É o recipiente para o pó de nosso aspirador sem saco."
O procedimento enunciativo é sarcástico, a incoerência absurda, pois
já há algumas relações, por exemplo, entre um recipiente para pó e
uma taça, e a temática da incompetência dos homens para os serviços
domésticos é carregada de lances ambíguos. Ela orienta de preferência
para um estado patêmico eufórico mitigado, ligado à desqualificação
do homem moderno de boa vontade,"perdido" num dos domínios de
competência da mulher: a limpeza da casa.
Não podendo nos aprofundar neste artigo, citaremos as hipóteses
desenvolvidas mais amplamente em conclusão por Chabrol e Vrig-
naud (2006), tais como:
-A correlação positiva (C.+) entre visada lúdica e objeto temáti-
co pouco "investido" pelas atitudes pro/anti e, ao contrário, o caráter
muito "carregado" atitudinalmente dos objetos temáticos utilizados
pelas duas outras visadas. A intenção "crítica" sustentaria os objetos de
atitudes em conformidade com as normas e os valores emergentes na
contemporaneidade, desqualificando os antigos que caem em desuso,
enquanto a visada "cínica" os atacaria ao contrário.
- Do mesmo modo, (C.+) entre conivência lúdica, procedimento
"irônico" e incoerência "extravagante", enquanto a "crítica" e a "cí-
nica" prefeririam, embora não sistematicamente, o procedimento sar-
cástico, em todo caso com as incoerências absurda ou paradoxal, mais
apto às induções visadas.
De qualquer modo, os atos humorísticos dependerão, para seus
efeitos e interpretações finais, de contratos midiáticos especiais e
de dispositivos que os fazem agir. É necessário evocar agora o peso
dessas exigências ligadas aos gêneros midiáticos e o de sua inserção
nos interdiscursos culturais, pois eles contextualizam todos esses atos
humorísticos.
229
Análises do discurso hojeHumor c mídia: definições,gêneros e cultura
2. Gêneros midiáticos e ínterdiscursividades culturais
As mídias de imprensa ou audiovisual são muito heterogêneas do pon-
to de vista dos gêneros e do recurso ao humor. Disso decorre uma
conseqüência evidente. Antes de qualquer generalização, é necessário
descrever cuidadosamente essa diversidade, ainda mais por querermos
situar o peso das marcas "culturais". Isso explica a atenção dada à aná-
lise detalhada do corpus de crônicas francesas e espanholas (Dolores
Viveros, Manuel Fernandez), de caricaturas francesas e espanholas
sobre o 11 de setembro (Anne Marie Houdebine e Mae Pozas), de
mensagens publicitárias francesas e espanholas que negligenciariam a
argumentação sobre o produto em benefício de uma inscrição nos
imaginários discursivos sociais, em que o humor tem um lugar de
destaque (Jean-Claude Soulages e Monserrat Lopez), e, enfim, de pro-
gramas de televisão que questionam a personalidade e a pessoa de
políticos em dispositivos muito polivalentes quanto aos contratos, à
enunciaçao, séria e não séria, e aos objetivos informacionais e de di-
vertimento (Guy Lochard). Algumas grandes orientações aparecem,
ultrapassando a diversidade esperada.
A mais importante delas, por ser cheia de conseqüências comu-
nicacionais e sociais, consistiria no sentimento, já bem identificado
por numerosos autores, de uma tendência à confusão dos gêneros e à
subversão dos contratos preestabdeddos. A contribuição de Guy Lochard
é urna ilustração muito pertinente para o universo televisual quanto
ao tratamento dos políticos. Os novos programas, como Vivement Di~
manche,Tout lê monde enparle (France 2), On aura tout vu (France 3) ou
ainda Lê Vrai Journal (Canal +), tornam fundamentalmente ambíguas
as situações instauradas entre os atores políticos e seus anfitriões tele-
visuais, assim corno as finalidades perseguidas. Nestes, contrariamente
aos programas satíricos do período anterior, o Bébête Show e Os Guig-
nols de 1'Info, os políticos tornam-se o alvo dos comentários e questio-
namentos humorísticos, que misturam as esferas pública e privada e se
inscrevem num jogo interacional aberto, com animação pluriforme e
polilogal, que faz alternar questões sérias e zombarias provocadoras ou
230
sarcasmos quase-insultantes, sem muitas vezes estabilizar claramente
mais uma dimensão do que a outra.
Urna segunda orientação, menos espetacular, aparece: a de uma
tendência à autoderrisão generalizada que atinge não somente os alvos,
mas também seus autores. É o caso do publicitário-anunciante, como
afirma Soulages (2006):
[...] com essa dimensão de autoderrisão que, parecendo desqualificá[-lo]
[como] /ocw/or-anunciante pouco sério, pois por um lado ele se autoriza
a argumentar mal, instaura uma relação de conivência possível com um
destinatário que compartilharia com ele uma avaliação da comunicação
publicitária como "não séria" e como lugar de questionamento oblíquo
dos valores e tabus demasiadamente pesados dessa sociedade!
Essa tendência aparecia claramente em alguns dos programas analisados
por Guy Lochard {Vivement Dimanché) e em Manuel Fernandez e Dolores
Vivero (2006), que a encontram no âmbito da crônica, mas de forma mais
acentuada na Espanha. "Enquanto na França o alvo é sempre construído
como um outro, um adversário que se estigmatiza através de traços iden-
titários, o alvo espanhol pode ser encarnado pela própria representação do
jornalista. O auto-sarcasmo parece ser um fenômeno espanhol".
A autoderrisão não está ausente do corpus das caricaturas estudadas
por A.M. Houdebine e M. Pozas, e sua análise da vinheta "negra" de
El Roto In Gás, u>e tntst não é apenas uma denúncia dos poderes ame-
ricanos, mas também possivelmente de todos aqueles, inclusive nós
mesmos., que pusemos o petróleo no lugar de Deus!
Seria necessário falar, depois de Freud, de "Mal-estar na Civilização"
a esse respeito e generalizar, atribuindo a todos esses fenômenos sociais
visados por atos humorísticos uma orientação única predominante? Esta
revelaria uma crise profunda de todos os fundamentos identitários dos ci-
dadãos e dos sujeitos modernos nas esferas públicas e privadas, uma crise
do laço social, dos sistemas de papéis masculinos e femininos, das insti-
tuições políticas e econômicas, de seus representantes e de seus pertenci-
mentos culturais (Leste-Oeste, Ocidente-Oriente Asiático, Norte-Sul)?
23 í
Análises do discurso hoje
Seria sem dúvida demasiadamente simples. Além disso, muitas análi-
ses sugerem mais prudência e mais respeito à complexidade e à diversi-
dade dos fenômenos midiáticos atingidos pelo Humor. Primeiramente,
considerando-se França e Espanha, deve-se constatar a importância das
variações no interior de um mesmo gênero midiático, tanto num país
quanto no outro, e, naturalmente, das divergências, além das semelhan-
ças, entre duas nações hoje tão próximas social, econômica e talvez
politicamente. Elas sugeririam temporalídade e interdiscursividades em
parte diferentes (herança da ironia à francesa e do sarcasmo à espanhola,
mencionados por diversos autores?).Todavia, só nos resta abster-nos de
qualquer conclusão generalizante "culturalizante" que nos induziria a
constituir "Francidade e Hispanicidade" em essências socio-históricas.4
As comparações aqui apresentadas tendem, para nós, sobretudo a am-
pliar o corpus midiático sobre o qual se elabora a reflexão sobre os fenô-
menos humorísticos na mídia.Apenas os fatores contingentes explicam
a limitação dessas comparações a dois países, limites que será preciso
ultrapassar com o estudo de outras imprensas no mundo.
Essas variações, ditas intra e interculturais, defendem, em todo caso,
modelos muíto mais elaborados que valorizam a pluralidade das for-
mas lingüísticas — cujos jogos sobre as palavras e com as imagens
constituem apenas uma parte (vide contribuição de Monserrat Lopez)
— e semióticas, sublinhadas pelos estudiosos da área, e, portanto, a
existência de subgêneros num mesmo gênero midiático. Estes pode-
riam corresponder a temporalidades e a interdiscursividades distintas,
que, segundo as circunstâncias, desenvolvem-se mais ou menos e são
apreciadas diversamente nas diferentes imprensas.
4 Será sempre muito fácil "descobrir" interdiscursividades ou "intertextualidades" entrealgumas tendências midiáticas "humorísticas" — aliás, não quantificadas, em corpora detrabalhos constituídos apenas para elaborar hipóteses e não para prová-las, sem a seleçãoaleatória necessária nesse caso — e alguns autores emblemáticos: escritores, pintoresou pensadores, ou ainda alguns acontecimentos, todos judíáosametiie escolhidos para aocasião. Essas correlações ilusórias provam, sobretudo, a força de nossas expectativas"societais" na recepção; em resumo, um efeito de naturalização do "espírito nacional".
232
Humor e mídia: definições, gêneros e cultura
Enfim, essas questões sugerem que se dê importância ao estudo dos
efeitos produzidos, e não apenas ao estudo dos efeitos visados. A contri-
buição de Claude Chabrol e PierreVrignaud tende justamente a produzir
alguns elementos a esse respeito, após uma "enquete" quase experimental
sobre os efeitos produzidos em recepção pelas publicidades francesas e
espanholas. Essa enquete já confirma plenamente, sobre um gênero es-
pecífico, as seguintes hipóteses: o emprego de atos humorísticos abre um
espaço muito amplo de interpretações das seqüências discursivas a todos
os seus níveis. Disso testemunham: as significações plurais dos enunciados;
as atribuições de intenções opostas, positivas ou negativas, de uma mesma
enunciação que pode ela mesma ser julgada paradoxal (BERRENDONNER,
1981, citado por MAINGUENEAU, 2002, p. 330); os julgamentos ambivalen-
tes e plurivalentes do enunciador e a aceitação ou a rejeição marcada pela
conivência proposta por ele, muitas vezes em função da representação
que faz de sua pessoa o destinatário (SCHOENTJES, 2001, p. 140-157).
Naturalmente, tais resultados convidam a uma maior colaboração em
comunicação entre as ciências da linguagem e as ciências sociais: socio-
logia, psicologia social (vide CHABROL, COURBET e FOUQUET, 2004), pois,
para progredir, será preciso completar os modelos semio-pragmãticos
apresentados aqui com modelos do sujeito social e psicossocial (posicio-
namentos sociais, normas e inclusão em grupos, crenças, conhecimentos
e motivações, etc.) que permitirão tratar mais de perto a questão ainda
mal resolvida e, entretanto capital, da variedade de interpretações dos
discursos humorísticos, isto é, a parte ativa e decisiva que os destinatários
desempenham na produção das significações humorísticas.
Referências
AUSTIN, J.L. Quand dire c'estfaíre. Paris: Seuil, 1970.
BERRKNDONNER, A. Eléments de pragmatique lingüistique. Paris:
Minuit, 1981.CHABROL, C.; BROMBERG, M. "Préalables dfune classification dês
actes de parole". In: Psychobgiefrançaise, T. 44, n. 4,1999, p. 292-306.
233
Análises do discurso hoje
; COURBET; FOUQUET. "Introduction de PsychologieSociale, traitement et effet dês médias". In: Questions de communica-
tion. Presses Universitaires de Nancy: 5,2004, p. 5-18.
_; VRJGNAUD, P. "Enquête psycho-langagière sur lêseffets de l'humour en publicité". In: Questions de communication,
n. 10, 2006, p. 135-156.
CHARAUDEAU, P. "Dês catégories pour Fhumour". In: Questions decommunication, n. 10,2006, p. 19-42.
DUCROT. Dire et ne pás dirc. Príncipes de sémantiaue linguistique. Paris:Hermann, 1972.
FREUD, Sigmund. Malaise dans Ia cwilisation.Tmd. Ch. e J. Odier. Paris:PUF, 1979.
. Lê Mot d'esprit et sã rdation à Tinconscient. Paris: Gallimard,1929 (1988 tr.fr).
FERNANDEZ, M.; VIVERO, D. "Uhumour dans Ia chroniquede Ia presse quotidienne". In: Questions de communication, n. 10,2006, p. 81-102.
HOUDEBINE-GRAVAUD, Anne Marie; MAE POZAS. "De
1'humour dans lês dessins de presse". In: Questions de communica-tion, n. 10, 2006, p. 43-64.
MAINGUENEAU, D. "Uironie". In: CHARAUDEAU, P.; MAIN-
GUENEAU, D. (eds.). Dictíonnaire d'Analyse du Discours. Paris: Seuil,2002, p. 330.
SCHOENTJES, P. Poétique de 1'ironie. Paris: Seuil, 2001.
SEARLEJ.R."A classification of illocutionary acts". In: ROGERS,A.;
WALL, B.; MURPHY, J.P. (eds.). Proceeding in the Texas Conference
on Performatives, Pressuppositions and ImpUcatures.Ariington: enter forApplied Linguistics, 1977, p. 27-45.
SPERBER, D.; WILSON, D. La Pertinence. Paris: Seuil, 1986 (trad.fr.1989).
SOULAGES, J.C. "Lês stratégies humoristiques dans lê discours pu-blicitaire". In: Questions de communication, n. 10, 2006, p. 103-118.
VERNANT, D. Du discours à Factton. Paris: PUF, 1997.
234
A CONSTRUÇÃO MÚTUA DASIDENTIDADES NOS DEBATESPOLÍTICOS NA TELEVISÃO
Catherine Kerbrat-Orecchioni
(Universidade de Lumière Lyon II)
1. Introdução
IA. Apresentação da problemática
Por ocasião do colóquio "O francês falado na mídia", organizado em
Estocolmo em junho de 2005, decidimos, meu colega Hugues de
Chanay e eu, abordar os debates políticos televisivos, a partir, entre
outras, da noção aristotélica de ethos, que, apesar de sua idade mais
que venerável (por volta de 2.400 anos), pode ainda servir à análise do
discurso e, mais especialmente, à analise do "discurso em interação"1.
Resolvemos aplicar essa noção ao caso de Nicolas Sarkozy, na época
ministro do Interior, realizando um estudo detalhado de um progra-
ma do canal de televisão "France 2", no qual Sarkozy foi a vedete, o
que contribuiu para reforçar sua popularidade: trata-se do programa
100 minutos para convencer, de 20 de novembro de 2003. Nele, Sarkozy
foi confrontado com diferentes personalidades do mundo político e,
particularmente, com Jean-Marie Lê Pen, presidente do partido Front
Para retomar a expressão eponimíca de meu último trabalho (2005).
Análises do discurso hoje A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
NationaP. Observamos de perto como Sarkozy construía seu ethos
diante de diferentes interlocutores (e o adaptava, numa certa medida, à
situação interlocutiva) e que, para fazê-lo, explorava todos os recursos
semióticos possíveis, verbais, mas também paraverbais (prosódicos e
vocais) e não-verbais (mímica e gestos).
Gostaria de retornar aqui parte dessas análises3, porém:
1) baseando-as na noção mais ampla de "identidade", noção retra-
balhada recentemente no âmbito da lingüística interacional;
2) observando como um locutor pode ao mesmo tempo construir,
pelo conjunto de seu comportamento discursivo, sua própria identida-
de e a de seu interlocutor, e como essas identidades são eventualmente
negociadas entre os parceiros da interação.
1.2. Definições
A identidade de um dado sujeito A é o conjunto de todos os atributos,
estáveis ou passageiros, que o caracterizam (estado civil, característi-
cas físicas e psicológicas, gostos e crenças, staius e papel na interação,
etc.). Os componentes infinitamente diversos dessa constelação que
definem a identidade de A não são evidentemente todos de mesma
importância: em um momento T, cercos componentes são dominan-
tes, seja pela natureza do contexto, mais ou menos amplo (assim, em
nosso exemplo, o status de "ministro do Interior" pode ser considerado
como o componente essencial da identidade de Sarkozy), seja porque
eles são "ativados" no discurso. Com efeito, no decurso da interação,
os locutores vão esforçar-se para "destacar" alguns traços de sua iden-
2 Esse partido de extrema-direita foi fundado pelo próprio Lê Pen, político dotado deposições anti-semitas, racistas e mesmo facistas. (N.T.)3 Apresentadas em Constantin de Chanay e Kerbrat-Orecchioni (2007).Trabalhamosatualmente, numa perspectiva similar, sobre o debate realizado entre Sarkozy e Sego-lene RoyaJ entre os dois turnos das eleições presidenciais (3 de maio de 2007), mas osresultados desse estudo ainda não podem ser apresentados: é um trabalho de fôlego,pelo tempo dispendido não somente na análise propriamente dita, mas também natranscrição de duas horas e quarenta minutos de debate.
236
tidade, enquanto outros traços vão passar para o último plano, como se
os participantes não cessassem, de algum modo, de "zapear" no âmbito
de um repertório identitário infinitamente diversificado.
Por ethos entende-se o modo pelo qual o orador exibe em seu dis-
curso certas qualidades susceptíveis de ganhar a confiança do auditório,
a fim de tornar seu discurso mais convincente4. A noção de ethos é, por-
tanto, mais restrita que a de identidade, na medida em que as características
"étnicas"são todas construídas discursivamente (elas se baseiam no con-
junto do comportamento semiótico do sujeito), ao passo que, entre os
atributos identitários, alguns se ligam ao sujeito, independentemente de
seu comportamento discursivo — por exemplo, o status de ministro do
Interior: essa propriedade, como a de ser "firme", são dois componen-
tes da identidade de Nicolas Sarkozy, porém só o último componente
se refere a seu ethos. Dir-se-á então que alguns atributos identitários são
ethosisáveis, e são, por isso, mais eficientes que outros (por exemplo, a
"firmeza" é um atributo mais forte que a "eficiência"; ser"simpático" é
mais convincente que ser "generoso"; ser "sedutor" é mais convincente
que ser "encantador" e, afortiori, que "belo" ou "louro"). Se os atributos
não ethosisáveis podem ser abertamente reivindicados pelo sujeito ("eu
sou eficiente"), o ethos não consiste em dizer que se é isto ou aquilo, mas
em mostrá-lo por seu comportamento discursivo.
Neste estudo, nós nos interessaremos pelos componentes identi-
tários que são atualizados de uma maneira ou de outra pelos nossos
locutores no decurso da interação (sejam eles afirmados explicitamen-
te ou exibidos por outros meios mais implícitos). Realmente, mesmo
sendo claro que os sujeitos iniciam a interação já munidos de um
"ethos prévio" e de uma "identidade prediscursiva" e que isso tem um
papel importante tanto do ponto de vista da produção do discurso
quanto de sua interpretação, admitiremos que é essencialmente graças
à produção e ao deciframento de certos marcadores e índices que se faz a
gestão coletiva das identidades na interação.
4 Sobre os avatares dessa noção, remetemos à abundante literatura a esse respeito e,particularmente, ao capítulo introdutório da obra dirigida por Ruth Amossy (1999).
237
Análises do discurso hoje
1.3. Prindpios da análise
Nossa análise se baseará nos seguintes princípios:
- Durante uma determinada troca comunicativa, cada um constrói
de si mesmo uma certa "imagem" (em termos gofímanianos, dir-se-á
que cada um efetua uma "apresentação de si"), ao mesmo tempo que
constrói uma certa imagem de seu parceiro: em primeiro lugar, opo-
remos a identidade projetada ou auto-atribuída (quando esse processo é
consciente e deliberado, pode-se também falar de "identidade reivin-
dicada") à identidade atribuída (termo que é preciso entender como oequivalente elíptico de "alo-atribuída"5).
- Essas construções de imagens se fazem com a ajuda de marcadores
e índices que são muliimodais (podem ser de natureza verbal, paraverbal
ou não verbal) e polissêmicos (seu valor só se determina no contexto e
sua interpretação implica sempre uma parte de subjetividade6).
- O sujeito que se encontra em posição de locutor constrói sua
identidade ao longo de sua intervenção e, por intermitência, a de seuparceiro.
- O sujeito que se encontra em posição de ouvinte pode também,
de certo modo, exibir um ethos (de desprezo, de compaixão, etc.) pela
produção de alguns gestos e mímicas (pois, quanto a isso, o receptor
também é emissor). A rigor, pode-se até admitir que, por esse mesmo
modo (exibição de uma mímica irônica, por exemplo), o ouvinte pos-
sa também contribuir para a construção da imagem do outro.
Encontram-se assim confrontadas durante toda a interação as iden-tidades seguintes:
5 Do francês "allo-attribuée". O radical, de origem grega, "álo(s)" significa "outro".Ver, por exemplo, "alopatia". (N.O.)6 Os índices identitarios são mesmo às vezes claramente reversíveis, um mesmo com-portamento podendo ser interpretado em termos positivos ou negativos (tratando-se,por exemplo, de Tariq Ramadan, com quem Sarkozy se confronta em nosso debatee cujo comportamento pode ser visto como sutil e matizado, ou como sinuoso eaté mesmo malicioso). Sobre essas "imagens contraditórias e frágeis" ver Charaudeau(2005, p. 67-68).
23 8
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
(1) Identidade atribuída por A a A (auto-atribuída: "Eis como eu
sou/ como eu me vejo")
(2) Identidade atribuída por A a B (alo-atribuída: "Eis como eu o
vejo")(3) Identidade atribuída por B a B (auto-atribuída)
(4) identidade atribuída por B a A (alo-atribuída)
Em caso de não-coincidência entre (1) e (4) e entre (2) e (3), essa
discordância poderá dar lugar a um processo de negoáação das identida-
des (a de A, no primeiro caso, e a de B, no segundo7).
- Essa concepção interativa da identidade implica, entre outras coi-
sas, que, diferentemente da concepção aristotélica de ethos, os atributos
identitários não são necessariamente "virtudes". No que concerne à
identidade projetada, se podemos admitir que, de modo geral — e, mais
particularmente, no contexto desses debates na mídia —, ela é, antes de
tudo, uma imagem positiva de si mesmo que se tenta construir, veremos
que essa imagem nunca é totalmente controlada e que os efeitos produ-
zidos não são jamais totalmente controláveis, qualquer que seja o grau de
preparação dos debatedores. Mas são, sobretudo, as identidades atribuídas
que vão adquirir um caráter negativo em tal contexto, onde o jogo con-
siste principalmente ern construir uma imagem valorizadora de si mes-
mo, enquanto se tenta imputar ao adversário atributos desvalorizadores.
2. Análise da seqüência
A análise abordará os primeiros minutos da seqüência, durante a qual
Sarkozy (doravante NS) debate com Lê Pen (doravante LP), que aca-
bou de entrar no recinto, introduzido nestes termos pelo animador do
programa, Olivier Mazerolle (doravante OM)8:
7 Para uma modalizaçào dessas negociações de identidade, ver Lê discours en interactton,
p. 156-164.8 Nossas convenções de transcrição (transcrição nas quais os números correspondemàs intervenções, delimitadas a partir de critérios ao mesmo tempo sintáticos e prosó-
dicos, e mesmo mimogestuais) são as seguintes:
239
Análises do discurso hoje
1 OM [...] monsíeur Sarkozy (.) alors euhJean-Marie lê Pen présídentdu Front National est avec nous euh vous aüez débattre ensemblebon- [soir monjsíeur Lê Pen
2 LP [oui] bonsotr/
3 OM voilà (.) prenez place (.) monsieur Lê Pen donc vous avez suivt
euh une grande partie de cette émíssion pour ne pás dire Ia totalité
ASP qu'est-ce que vous avez à dire/ à monsieur Sarkozy\
1 OM [...] senhor Sarkozy, então,Jean-Marie Lê Pen, presidente
do Front National está conosco; os senhores vão debaterjuntos; boa noite, senhor Lê Pen.
2 LP Sim, boa noite.
3 OM Está bem. Sente-se, senhor Lê Pen, então o senhor seguiu
uma boa parte dessa emissão, para não dizer toda ASP. Oque o senhor tem a dizer ao senhor Sarkozy?9
Porém, ao invés de se dirigir diretamente a NS, LP se lança numaespécie de diatribe, ora dirigida a sua volta, ora dirigida a OM, fala naqual incrimina o "governo francês" que o trata como "um pária":
4 LP ASP ben je voudrais d'abord dire/ que ma tache n'est pasfaàleia puisque ie suir.s (.) lê représentqnt/ d'une_catéçorie_(. Jpolitique
rare/ dons notrepays/ c'est celle despanas\ (..) c'est-à-dire degens/
&: continuidade do turno, apesar da interrupção e da sobreposição;[xxxx] segmento sobreposto;(.) pausa interna na intervenção (medida quando ultrapassa um segundo);: (eventualmente dobrado ou triplicado): alongamento vocálico;/ entonação ascendente; V entonação descendente (barra redobrada em casode inclinação muito forte);ASP: aspiração audível.Os sublinhados servem para pôr em evidência os segmentos sobre os quais sefocaliza a análise.9 Optamos por manter as transcrições originais do francês (em itálico), se-guidas de sua tradução. Para evitar problemas de transcrição para o português,apresentamos a tradução de forma simplificada, ou seja, sem as convençõesadotadas pela autora (vide nota 8). (N. O.)
240
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
qui n'ontpas accès/ (.)ASP à Ia représentation politique/ (.)ASPdan:s Vassemblée natíonale Jrançaise malgré/ (.) ASP lês miüions
de voi:x/ que:: nous représentons\ (.) ASP c'est un: domainefon-damentalA (.)ASPje suis en quelque sorte monsieur Mazerolle un
intermittent de Ia politique puisque aussi bien:/ (.)j'ai été chassé
de mon siè:ge/ eu::h de depute européen/ celuí ou lês électeurs
m'avaient (.) en-envoyé/ (.)parlegouvemement/français\ (.)ASPc'est même un dês rares pay:s/ prétendument démocratiques/ (.)ASP ou lê gouvernement/ peut se permettre/ de:jeter dehoirs/ (.)
ASP un élu/ du peuple\ mais enfin/ (.) nous reparlerons de tout
çela\ (1.5s) ASP monsieu:r/ lê ministre de l'Intérieu:r/ vous me
donnez 1'impression::
4 LP Gostaria primeiramente de dizer que minha tarefa aqui nãoé fácil, pois sou o representante de uma categoria políticarara, neste país, que é a dos párias, isto é, pessoas que não
têm acesso à representação política na assembléia nacionalfrancesa, apesar dos milhões de vozes que nós representa-mos. É um domínio fundamental; eu sou de certa forma,
senhor Mazerolle, um intermitente da política, pois tam-bém fui caçado de meu posto de deputado europeu, noqual os eleitores haviam me colocado, pelo governo fran-cês. É mesmo um dos raros países pretensamente demo-
cráticos, em que o governo pode se permitir expulsar umeleito do povo, mas enfim tornaremos a falar disso. Senhor
ministro do Interior, o senhor me dá a impressão...
2. i. A auto-apresentação de LP
Nessa introdução, LP faz uma definição dele próprio: eu sou um "pária ,nos diz ele, um "intermitente da política". O status desses predicadosé bem especial, pois ambos se referem a uma identidade "atribuída ,
porém em um sentido diferente daquele que foi evocado preceden-
temente: o enunciado significa não que "me tratam de pária", porem
241
Análises do discurso hoje
que me "tratam como um pária" — a atribuição identitária em ques-
tão não se refere ao discurso mantido sobre LP, mas a seu próprio ser:
fizeram de mim um pária, e isso de modo totalmente injusto. Embora
imposta do exterior, essa identidade é assumida e mesmo reivindicada
por LP, mas não sem ironia ("uma categoria política rara", "um dosraros países pretensamente democráticos").
Diante dessa atribuição de identidade, LP reage mostrando uma ou-
tra, de forma implícita, uma identidade de perseguido (apresenta-se como
vítima de odiosa maquinação), assim como um ethos de denunciador sar-
cástico do tratamento injusto que lhe foi reservado (ethos constestador).
O primeiro atributo identitário (o de "pária") não será retomado
por NS; enquanto o segundo (o de contestador) será retomado mais
tarde, em termos extremamente desqualifi cantes (NS vai acusar LP
de "protestar" e de "arrotar", ver seção 2.4.2.). Nesse momento, sa-
biamente, NS deixa LP fazer seu pequeno show durante mais de um
minuto, até que LP se vire para ele.Vamos, então, assistir a um episódiototalmente imprevisto.
2.2. O ataque de LP contra NS, as escaramuças de NS contra LP e as
negociações de identidades
Retomemos o fim da intervenção 4 e vejamos o que se passa em se-guida:
4 LP [...] (l.5s) ASP monsieu:r/ lê ministre de l'Intérieu:r/ vom me
donnez Vimpression::
[ASP]
5 NS [bonsoir/] monsieur Lê Pen
4 LP [,..] senhor ministro do Interior, o senhor me dá a impres-são...
5 NS Boa noite, senhor Lê Pen.
No final de sua intervenção, depois de uma pausa de um segundoe meio, seguida de uma forte aspiração (como se tomasse impulso de
242
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
alguma forma), LP passa ao ataque nominativo contra NS, que ele de-
signa servindo-se do vocativo: "senhor ministro do Interior". Embora
aparentemente respeitoso, esse tratamento é uma atribuição de identidade
não tão respeitosa, no presente caso (formulada através de um pressu-
posto apresentado como uma lembrança dos fatos): o senhor é minis-
tro do Interior, e é enquanto ministro que me dirijo ao senhor.
Depois de ter lembrado a identidade estatutária de seu interlocutor,
LP se prepara, com "o senhor me dá a impressão...", para formular
uma apreciação mais subjetiva. Não conheceremos jamais a natureza
exata dessa apreciação, pois o processo de atribuição se encontra su-
bitamente suspenso por uma primeira interrupção de NS (em 5), que
será seguida por outras intervenções do mesmo gênero (em 7, 9a, 9b,
11, 13). Essas interrupções não são para NS verdadeiras tentativas de
tomar a palavra, mas pequenas escaramuças que visam a desestabilizar
o adversário e a "sabotar" seu trabalho de construção identitária. Elasvão ao mesmo tempo dar origem a uma série de negociações de identi-
dade das quais NS sairá vencedor.
2.2.1. O EPISÓDIO DA SAUDAÇÃO: POLIDEZ DE NS E IMPOLIDEZ DE LP
5 NS [bonsoir/] monsieur Lê Pen
6 LP bonsoir/ bonsoir monsieu::r eh j'ai dit bonsoir en anivant/
ASP mais euh vous étiez indus collectiv- dans mon bonsoircol-
leciij\ [ASP]7 NS [dans ma] cage d'écureuil
5 NS Boa noite, senhor Lê Pen.6 LP Boa noite, boa noite senhor. Eu disse boa noite ao chegar,
mas o senhor estava incluído coletiv- no meu boa noite
coletivo.7 NS Na minha gaiola de esquilo.
No momento em que LP entrou em cena, vimos o animador cum-primentar o recém-chegado e este responder, enquanto se sentava:
uma troca de civilidades bastante normal.
243
Análises do discurso hoje
A segunda saudação formulada por NS é totalmente diferente: ela
chega quando LP já estava falando há mais de um minuto e em favor
de uma interrupção patente (sobrepondo-se à aspiração de LP). Em
decorrência dessa colocação inusitada, o "boa noite" de NS, sem. dei-
xar de ser uma saudação, funciona ao mesmo tempo como um ato
indireto de repreensão. Esse valor resulta de um raciocínio implícito
como: iniciando uma troca comigo, o senhor deveria ter começado
por me cumprimentar; ora, o senhor não fez isso, logo o senhor não
passa de um grosseiro; essa intervenção está, além disso, reforçada pela
entonação (de contorno fortemente ascendente, o que dá ao enuncia-
do o tom de uma rápida lição de "savoir vivre"), sem falar da mímica
de triunfo (movimento de baixo para cima da cabeça inclinada e sor-
rizinho) pela qual NS acolhe o "boa noite" reativo de LP (espécie de
índice retroativo do valor indireto de repreensão).
O enunciado de NS possui, portanto, um duplo valor ilocutório
(o valor de saudação, implícito convencionalmente na fórmula "boa
noite", e o valor de repreensão, que se origina nesse contexto parti-
cular). Ele provoca, assim, uma dupla reação, que realmente ocorre:
obrigado a responder ao cumprimento (que ele chega a reiterar, não
sem uma certa irritação), LP se sente também obrigado a justificar
seu comportamento ("eu disse boa noite ao chegar, mas o senhor
estava incluído no meu boa noite coletivo", reação à reprimenda).
Outros valores interacionais, que poderíamos chamar "perlocutó-
rios", vêm acrescentar-se a esses dois valores ilocutórios, como, por
exemplo, a irrupção inopinada da saudação, que vai ter como conse-
qüência perturbar a troca e dês estabilizar o adversário, como vemos
em 6: interrompido em seu entusiasmo, ao falar, LP incorre em um
"fracasso", seguido de uma "reparação" (o senhor estava incluído
coletiv- no meu boa-noite coletivo") — ele está visivelmente "des-
concertado".
Enfim, essa saudação vai ter como conseqüência invalidar o que a
precede: como uma saudação deve vir normalmente no início de uma
troca, o que a precede vai se tornar de certa maneira "nulo e não acon-
244
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
tecido". NS sugere, assim, que o preâmbulo, não dirigido a ninguém
em particular, não tinha razão de ser e que LP deveria começar por
dirigir-se a ele (a repreensão de NS também se refere a isso).
Do ponto de vista da construção das identidades mútuas, dir-se-á
que, por essa troca de cumprimentos, NS se atribui um ethos "cortês",
ao mesmo tempo em que atribui a LP um ethos "grosseiro".
Porém, é necessário observar que se deve duvidar do caráter ver-
dadeiramente "polido" do comportamento de NS. Em primeiro lu-
gar, porque o uso que aqui é feito da saudação, o caráter "lisonjeador"
desse ato de linguagem (falamos, na teoria da polidez, de Face Flatte-
ring ActY° é seriamente prejudicado por esse ato "ameaçador para a
face" (Face Threatening Act) que vem parasitar a saudação: a repreensão,
agravada pela interrupção e mesmo pelo termo de interpelação que,
nesse contexto, vem reforçar o FTA, de preferência ao FFA. Além
disso, pode-se indagar se a repreensão sarkoziana é legítima nessa cir-
cunstância: após ter saudado as pessoas que estavam "à sua volta", logo
que entrou em cena, LP estaria verdadeiramente obrigado a dirigir
uma saudação especial a NS, quando começa uma troca tête à têté?
Nada é menos certo. Nosso sistema ritual é flutuante a esse respeito,
e pode-se julgar que num caso assim a saudação constitui antes "uma
hiperpolidez".
E, aliás, o argumento que LP vai usar para justificar seu compor-
tamento.
LP refuta a atribuição identitária que lhe é atribuída, tentando se descul-
par da acusação de impolidez. Mas, incontestavelmente, ele foi rebai-
xado de posição: viu-se intimidado por NS, foi obrigado a se justificar,
o que fez gaguejando, como uma criança apanhada em erro.
Sem lhe dar tempo para se recuperar e retomar o fio do discurso
programado, NS lança ao seu adversário uma outra "casca de banana"
para fazê-lo cair: o "golpe do esquilo", depois de ter-lhe dado o golpe
do "boa noite".
Sobre essas noções e essa teoria, consultar Kerbrat-Orecchioni (2005, capitulo 3).
245
Análises do discurso hoje
2.2.2. O EPISÓDIO DO ESQUILO: A NEGOCIAÇÃO DA IDENTIDADE DE NS,
VIA INTERPRETAÇÃO DE UMA METÁFORA
6 LP bonsoir/ bonsoir monsieu::r eh j'ai dit bonsoir en anivant/
ASP mais euh vous étíez inclus collectiv- dam mon bonsoir
collectij\ [ASP]
7 NS [dans ma] cave d'écurewl
5 LP tout àfait (.) je oui:// (.) eh bien/ écoutez/justement\jeje dois
dire/ que:
[je trouve que vous ressemblez à à un écureuil]
9a NS [méfiez-vous ca peut être sympathique un écureuil]&
10a LP ASP c'est ca et l'é- 1'écureuil [est sympa-]&
9b NS (í.5s) &[méjiez-vousl
lOb LP &thique/ U a même du panachef ríest-ce pás mais il tourne dans
sã cage/ ronde/ (.)^en se donnant ImJ l'impressionou'il fait/
beaucoup/ ASP mais alors qu'il ríavance pás du tou:t (.)
6 LP Boa noite, boa noite, senhor. Eu disse boa noite ao chegar,
mas o senhor estava incluído coletiv- no meu boa noite
coletivo.
7 NS Na minha gaiola de esquilo.
8 LP Exatamente, eu, sim, bem, ouça justamente; eu devo dizer
que acho que o senhor parece um esquilo.
9a NS Cuidado, um esquilo pode ser simpático.
10a LP É isso e o esquilo é simpático.
9b NS Cuidado.
lOb LP ético. Ele até tem coragem; não é, mas ele roda na sua gaio-
la redonda dando a si mesmo a impressão que faz muito,
mas não avança nem um pouquinho.
Num documentário difundido momentos antes da entrada de LP
no palco, ouve-se dizer de NS:
246
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
U a échoué (.) c'est comme Vécureuil dans sã cage i tourne i tourne i tourne
il se donne un mal de chien mais i reste toujours au même endroít.
Ele fracassou: é como o esquilo na sua gaiola, roda, roda, roda, tem
um trabalho louco, mas fica sempre no mesmo lugar.
Pode-se pensar que, visionando essas imagens, NS decidiu explorar
esse achado de LP, achado assaz infeliz, pois acontece que o esquilo,
na França, goza de uma boa dose de simpatia. Mas NS precisava ainda
encontrar um modo de situar sua réplica, e o mais depressa possível.
A palavra "incluído" vai servir-lhe de pretexto: ele vai pegar a bola no
ar, explorando a polissemia do termo, cujo sentido ele muda para aí
inserir "na minha gaiola de esquilo". É um pouco forçado, mas não
deixa de ser eficiente, pois vamos ver uma vez mais LP, desestabilizado
por essa nova interrupção, se esforçar numa tentativa de recuperar sua
alta posição ("eu, sim, bem, ouça justamente...") pela reapropriação de
sua comparação animal. É então que NS vai transformar a seu favor
essa comparação: enquanto ela conota para LP a idéia de uma agitação
tão frenética quanto improdutiva, NS vai lembrá-lo de que um esquilo
"pode ser muito simpático", o que LP admite (10a e lOb), reforçando
mesmo essa afirmação: substitui o "talvez" por um "é" e ainda acres-
centa outros atributos positivos do esquilo: "até tem coragem". Depois
de fazer essa concessão, tenta, com um "mas" (mas roda em sua gaiola
redonda) restabelecer a orientação axiológic o -argumenta tiva inicial da
comparação, porém já é tarde demais: quando consegue enfim proferir
a tirada prevista, esta será apenas uma bomba molhada, desativada pelas
estocadas irônicas de NS, de quem LP não "desconfiou" o suficiente
— o "cuidado, um esquilo pode ser simpático" podendo ser interpre-
tado tanto como "desconfie de sua propensão às comparações que às
vezes são armadilhas" quanto como "tome cuidado para não parecerantipático diante de um animal tão simpático (quer dizer, eu)".
Recapitulemos o desenvolvimento dessa negociação que diz res-peito à identidade de NS e cuja iniciativa nessa passagem vem dele
247
Análises do discurso hoje
próprio, mesmo se é a LP que se deve, em um momento anterior da
emissão (os telespectadores tiveram acesso a isso), a primeira formula-
ção da atribuição identitária:
- LP a NS:"O senhor é um esquilo",isto é,alguém que se agita em
pura perda (metassemas11: [agitação frenética] [ineficiência]).
- NS a LP (em 9):"Sou um esquilo", quer dizer,"alguém simpáti-
co". Aceitação do significante, mas modificação do significado e subs-
tituição de um traço negativo por um traço positivo; reapropriação
irônica da metáfora, que NS retorna a seu favor invertendo seu valor
axiológico.
— LP a NS (em 10): aceitação (com exagero, como vimos) da versão
sarkoziana da metáfora; mas é apenas uma "concessão" feita ao adver-
sário, pois LP continua, retomando sua própria visão do esquilo, cuja
atividade incessante é apenas uma ilusão de ótica, que só ilude a ele
mesmo ("ele se dá a impressão de fazer muito, mas não avança nem
um pouquinho"). Lê Pen tenta assim restabelecer a verdade de sua metáfo-
ra, que para ele conota, antes de mais nada, "ineficiência".
Atribuição que será refutada mais adiante por NS (em 13:"posso ser um
esquilo eficiente de vez em quando") sob urna forma ironicamente
modalizada.
Portanto: no âmbito da simpatia, os dois debatedores chegam a con-
cordar (proposição de NS aceita por LP), mas, no da "eficiência", ocu-
pam posições opostas (proposição de LP refutada por NS). NS voltará
ao assunto de sua eficiência, mas, dessa vez, de modo sério, enquanto
aqui tudo se passa num registro lúdico; registro imposto por NS, que,
nesse ponto de vista, dirige o jogo, enquanto, em princípio, é LP que
tem a deixa: NS consegue não só impor sua interpretação da metáfora,
mas também recuperar seu potencial humorístico, atraindo para seu
lado os que riem e destronando LP de sua pretensão de histrião. Ele
rivaliza com seu adversário em seu próprio terreno, porém num estilo
mais "simpático" (a ironia de LP é mais sarcástica que maliciosa).
11 Pode-se também falar de "conotações", porém "metassema" é mais preciso.
248
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
Notemos que, para tornar plausível esse ethos "simpático", NS em-
prega os dois principais marcadores mimogestuais da "benevolência"
(eunoia aristotélica), a saber: o sorriso, que acompanha "na minha gaiola
de esquilo", e a cabeça inclinada que acompanha o segundo "Cuidado".
Esse gesto cativante (através do qual alguns especialistas da comunicação
não-verbal descreveram virtudes reconfortantes e sedutoras) acompanha
um enunciado de conteúdo ameaçador; pode-se, no caso, falar de "mul-
timodalidade divergente", que permite a NS, atuando nos diferentes
canais que tem à sua disposição, lutar ao mesmo tempo em duas frentes:
verbalmente, ele mantém seu adversário sob pressão, e, não verbalmente,
constrói de si mesmo um ethos "simpático" junto ao público.
Correlativamente, LP aparece corno "não simpático" e como um
debatedor menos invulnerável do que se poderia esperar. Ele caiu na
armadilha de sua retórica muito floreada, fornecendo a NS as armas
para derrotá-lo (inocentando-o, assim, de algum modo, desse jogo po-
lêmico, já que foi LP que "o provocou"...). Resumindo: LP foi ridi-
cularizado por NS. Se essa seqüência é focalizada na identidade de
NS (que é negociada de modo explícito), a de LP não sai indene das
piruetas de NS, que ainda não esgotou completamente seu registro de
humor zombeteiro.
2.2.3, ULTIMAS ESCARAMUÇAS
I Ob LP [...] mais U tourne dans sã cace/ ronde/ f.) en se donnattí lui/_
Vimpression qu'ilfait/ beaucoup/ ASP mais alors qu'il n'avance
pas_du tou:t (.) [...] et: cê soi:r/ vous ne parlez que d'un ceríaín
nombre de sujeis/ (.)ASP tout particulièrement ceux sur lesquels
vous avez (.) remporté quelques succèsf (.) limitésL d'aüleurs/_
mais mais/_r_éeh\ (,) et et: vous ne
{faltes u:- vousfaites un un]
II NS [ie vous remerde de votre honnêteté12 LP mais tout àfait vous savez que j R mis un homme nkjectif// fflgü
(.)ASPet
249
Análises do discurso hoje
[euh vousfaites/ vousfaltes/]
13 NS jje peux donc être_un_écureuil] de temps en temps_ejficace
14 LP heuheu (rire)ASP
lOb LP [...] mas ele roda em sua gaiola redonda, dando a si mesmo
a impressão que faz muito, mas não avança nem um pou-
quinho [...] e esta noite, o senhor fala apenas de um certo
número de assuntos, especialmente aqueles que o senhor
realizou com algum sucesso, limitados, aliás, mas mas reais e
e o senhor não faz u-não faz um uni...
11 NS Agradeço sua honestidade.
12 LP Mas completamente o senhor sabe que eu sou um homem
objetivo e o senhor faz, o senhor faz.
13 NS Então eu posso ser um esquilo, de tempos em tempos, efi-
ciente.
14 LP heu heu (riso).
- Em lOb, LP consegue, durante um bom minuto (cuja transcrição
não reproduzimos integralmente aqui) zombar de NS, que o deixa
afirmar, sem se opor, essa atribuição identitária, até o momento em
que LP admite que NS "obteve alguns sucessos, limitados, mas reais";
confissão que constitui uma atribuição explícita da propriedade "não com-
pletamente ineficiente" e "mesmo parcialmente eficiente", pois a orientação
argumentativa global da estrutura é positiva, apesar das duas restrições
apresentadas ("algumas" e "limitadas, aliás").
Simultaneamente, LP define a si mesmo como imparcial e bom jogador,
capaz de reconhecer os méritos do adversário.
— Em 11, NS explicita essa atribuição positiva (que passa então do esta-
tuto de auto-atribuição ao de alo-atribuição) "Eu agradeço sua honesti-
dade", que pressupõe "o senhor é honesto". Mas esse elogio dirigido a LP
é efetuado de modo irônico (a ironia insinuando que a avaliação positiva
chegava um pouco tarde). Essa ironia é caracterizada igualmente pelo
agradecimento, com o qual NS exibe novamente um ethos "polido".
250
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
- Em 12, LP retoma sob a forma do adjetivo "objetivo" o termo
"honestidade", utilizado por NS ("eu sou um homem objetivo, eu").
Essa reprise diafônica transforma uma alo-atribuição positiva quase explícita
(pois toma a forma de um pressuposto) em uma auto-atribuição posi-
tiva ainda mais explícita (isto é, "colocada"). Mas, além disso, pode-se
ver aparecer no enunciado, por causa da estrutura clivada ("je...mõi")
reforçada pelo esquema prosódico, o subentendido "não é como o
senhor" (alô-atribuição negativa bastante implícita}.
— Enfim, em 13, NS volta ao fim da intervenção lOb, na qual LP
reconhecia "alguns sucessos" obtidos por ele (NS), e disso tira a con-
clusão:"eu posso ser, portanto, um esquilo que, de tempos, em tempos,
é eficiente". Essa transformação simétrica de uma alo-atribuição positiva em
auto-atribuição positiva é feita também ironicamente, pois faz voltar à
baila, uma última vez, o esquilo, mostrando, no entanto, os limites dessa
metáfora (já que o reconhecimento de sua eficiência, mesmo que rela-
tiva, entra em contradição com a afirmação segundo a qual o "esquilo
não avança nem um pouquinho").
Aparentemente surpreendido por esse novo dito espirituoso, LP
não pode deixar de recebê-lo, em 14, com um risinho, que marca o
fim do episódio lúdico.
Poderíamos dizer que nessa passagem os dois debatedores fazem, de
modo assaz inusitado, um "ataque de polidez", pois eles reconhecem,
alternadamente, algum mérito ao adversário: LP reconhece em NS
uma certa eficiência, e NS reconhece em LP unia certa honestidade.
Porém, ao mesmo tempo, cada um deles aproveita para se auto-atri-
buir, em quiasma, o mérito em questão (a objetividade, para LP, e
a eficiência para NS); auto-atribuições tanto mais plausíveis por se
basearem num fenômeno de diafonia12, o que significa que elas reto-
mam uma avaliação vinda de outro lugar e, ainda por cima, do próprio
adversário. Alérn disso, tudo se passa no modo da ironia zombeteira,
que não é muito adaptada ao estilo de LP, mais à vontade no registro
12 No sentido de Roulet, em RouleC et ai. (1985).
25 /
Análises do discurso hoje
sarcástico: é NS quem dá o tom, e LP parece ter alguma dificuldade
em segui-lo nesse terreno (ou então: eie é visivelmente "arrastado"
para esse terreno).
No fim dessas primeiras 14 intervenções, fica claro que LP, de
quem, no entanto, se esperava que ocupasse o terreno e dominasse a
interação, como novo participante no debate, encontra-se seriamente
enfraquecido pelas pequenas incursões de NS, que são como "banda-
rilhas"13 que lhe são infligidas e que têm como conseqüência arranhara imagem tradicionalmente ligada à sua pessoa: a de um debatedor
temível, do qual é difícil conter a verve polêmica. Com suas escaramuças
repetitivas, NS conseguiu "minar" o ethos lepenista e, ao mesmo tempo, re-
duzir com antecedência o impacto da diatribe na qual finalmente LP
pôde se lançar, de uma vez por todas, na intervenção 14.
2,3. Nova diatribe de LP
O ataque propriamente dito dura quase dois minutos, durante os quais
LP se empenha em denunciar, com a virulência costumeira, a incapaci-
dade dos dirigentes para reduzir as dificuldades do país, especialmente
os problemas de insegurança, novamente acusando de ineficiência NS
e o governo que ele representa. NS abstém-se de interrompê-lo, espe-
rando polidamente que o moderador julgue que chegou o momento
de lhe dar a palavra, para que-ele possa formular sua resposta. Mas não
é fácil fazer LP se calar. Após quatro tentativas infrutíferas de OM,
NS decide ajudá-lo e se lançar na confusão. Sob a pressão dessa dupla
solicitação, LP acaba abandonando a palavra em favor de NS. Antes de
saber que uso este vai fazer dela, duas observações sobre essa passagem,
que é essencialmente de natureza "monologal", são necessárias.
Como LP é quase exclusivamente o único a ocupar o terreno nes-
sa passagem, ele é também o principal gestor das identidades mútuas:
ele constrói, portanto, uma imagem negativa de NS ("a de um in-ca-
13 O termo francês é "banderilles".Trata-se dos pequenos artefatos coloridosque o toureiro finca no pescoço do touro, durante a corrida. (N.O.)
252
A constntção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
paz")14, endossando o ethos de um denunciante lúcido e sem complacência.
Porém, embora NS esteja reduzido ao silêncio, não lhe é proibido
exibir, através de seu comportamento não-verbal, um certo ethos. É
o que se passa no momento em que LP evoca as desventuras de um
oficial harki15: vemos, então, NS aparecer na tela com uma fisionomia
séria (não é hora de sorrir!) que deve refletir um ethos ao mesmo
tempo responsável e compassivo. Belo exemplo do que chamamos um
ethos de ouvinte, que só pode ficar accessível aos telespectadores com a
cumplicidade do camera-man.No instante em que OM tenta pôr fim à tirada de LP, este dá provas
de uma tal determinação na recusa de ceder a palavra que seu compor-
tamento é susceptível de prejudicar seu ethos — sua eloqüência pode
ser tomada por logorréia e sua obstinação, por falta de respeito para
com seu interlocutor e para com as regras do debate (projeção de um
ethos descartes). NS, ao contrário, prossegue no seu trabalho de construção
de um ethos polido: ele espera, para tomar a palavra, que esta lhe seja ofe-
recida pelo animador, pelo menos até que, diante da dificuldade dessa
operação, ele intervém, mas em termos muito educados ("senhor Lê
Pen, se o senhor permite um debate";"posso continuar").
2.4. NS contra-ataca
21a NS [monsieur Lê Pen/ si vous permettez un débat/ (.) alors monsieur
Lê: [monsieur lê Pen] (.)]&22 OM [monsieur Sarkozy\]
14 No decurso dessa intervenção (da qual não reproduzimos aqui a transcrição porfalta de espaço), LP usa estas palavras, que pronuncia escandindo as sílabas para au-mentar seu impacto: "Vous ètes bien súr ín-ca-pa-ble d'ordonner qu'il retourne dans sonapparfement" [O senhor é, com certeza, in-ca-paz de ordenar que ele volte para seu
apartamento].15 A denominação "Harki" foi dada a argelinos que lutaram ao lado dos franceses e quese posicionaram contra a liberação da Argélia. O problema é que, depois da guerra en-tre a França e a Argélia, esses soldados e suas famílias foram desprezados por aqueles aolado de quem combateram e, naturalmente, pelos seus próprios compatriotas. (N.O.)
253
Análises do discurso hoje
21b NS &si vous permettez un débat\ (0.9s) mói je considere que mon
devoir (.) cent minutes pour convaincre (.) c'es t de convaincre\ (.)
et qu'gn ne convainc pás dans lês saiam (.) et âonc oui (.) pour
Ia ãeuxièmefois (.)je revendique de de: (.) de débattre_ave_c vous\
(.) je n'ai pás vos idées[(...) mais au moins mais mais]
23 LP [ah ben heureusement/] (..) [mais enfin vous y venez/]
24 NS [attend- (.) puis-je_/_p_uis-je/2
puis-je continuer (.) mais je veux/ (.)face à face/ (.) démontrer
pourquoi/ vous avez tort (.) premièrement/ (.) lês banlieues\ (.)
vous me dites f.) je n'y vais pas\ (.) je vous mets au défi mon-
síeur Lê Pen (.) de me ater un quartier ouje n'aipas été\ (.) ou
j'aumis pás lê droit d'entrer/ (.) et ou sije rentmis/ (.) ca pro-
voquerait (.) une émeute\ (.) première remarque\ (.) deuxième/
remarque monsieur Lê Pen\ ca fait dix-neuf móis que j'ai Ia
responsabilité lourde de ministre âe_VJfntérieur\ í.lje ne ais pás/
que tout çe gue j'fais esiMen/ naturellement/ (.) je ne douíe
pás l que tout est réglé:/ (.) mais vous-méme vous avez reconnu
quelques succès (.) mais monsieur Lê Pen (.) qu'est-ce que dans
tout/ çe quej'aifaít\ (.)je n'auraíspás düfaire/ (.) et vous/ {,)
qui connaissez tant/ de choses\(.) dites/-mói çe que j e devrais
faire (.) pour êtreplus ejjicace\ (.) parce que monsieur lê Pen c'est
une chose/ de parler\ (.) comme vous_parlez depuis tantl â'an-
nées\ (.) de designer dês adversaires (.) de^pjojesjer (.) d'éructer/
(.) de designer dês ennemis à Ia nation (.) dejouer/ sur lês peurs
(.) c'en est une autre/ d'essayer de faire çe quejefais (.) avec
bien sur dês insuffisan:ces (.) d'e$sayer au quotidien/ ASP cette
dame/ sur leport (.) quand elle disait oui::/ (.) U essaye de faire
çe qu'U peut (.) ben au moins mói quand je me regarde âans Ia
glace (.) je me dis que pendant deux ansj'auraí essaye de faire
quelque chose/ (.) et vous monsi_eur_JLe Pen qu'est-ce que vous
proposez pour résoudre lê problème\
21a NS Senhor Lê Pen/ se o senhor permite um debate, entãosenhor Lê: senhor Lê Pen...
22 OM Senhor Sarkozy.
254
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
21b NS Se o senhor permite um debate, eu considero que meudever, cem minutos para convencer, é convencer e quenão se convence nos salões e então, pela segunda vez, eureivindico debater com o senhor. Não tenho suas idéias,mas ao menos, mas mas...
23 LP Ah! Felizmente. Mas enfim o senhor chega...24 NS Espere, posso, posso continuar? Mas eu quero face a face
demonstrar por que o senhor está errado. Primeiramente,os subúrbios, o senhor me diz: eu não vou lá. Eu o desafio,senhor Lê Pen, a me citar uni bairro onde eu não estiveou onde eu não teria o direito de entrar e, se eu en-trasse, isso provocaria uma rebelião, primeira observação.Segunda observação, senhor Lê Pen, faz dezenove mesesque tenho a pesada responsabilidade de ministro do Inte-rior. Não digo que tudo o que faço é bom; naturalmentenão duvido que tudo é decidido, mas o senhor mesmoreconheceu algum sucesso. Mas, senhor Lê Pen, o queem tudo o que eu fiz eu não deveria ter feito? O senhor,que conhece tantas coisas, diga-me o que eu deveria fazerpara ser mais eficiente, porque, senhor Lê Pen, uma coisaé falar, como o senhor faz há tantos anos, designar os ad-versários, protestar, arrotar, indicar à nação os inimigos,aproveitar-se dos medos; outra é tentar fazer o que eufaço com certamente insuficiências; tentar no cotidiano.Aquela senhora, no porto, quando ela disse: sim, ele tentafazer o que pode, bem, eu ao menos, eu quando me olhono espelho digo a mim mesmo que durante dois anostentei fazer alguma coisa. E o senhor, senhor Lê Pen, oque sugere para resolver o problema?
2.4.1. QUANDO NS RETOMA SEU "ETHOS HABITUAL"
O comportamento zombeteiro adotado até aqui diante de LP por umNS relativamente calmo (mesmo se continua de sobreaviso) não cor-
255
Análises do discurso hoje
responde ao que se espera habitualmente do personagem (LP também
não parece estar preparado para isso). Mas depois do requisitório de LP
na intervenção 14, NS não pode mais fugir à polêmica: ele vai contra-
atacar, endossando um ethos que lhe é claramente mais costumeiro:
ethos que descrevemos detalhadamente, a partir da análise de um outro
episódio dessa mesma emissão, em que Sarkozy se confronta comTa-
riq Ramadan, no artigo mencionado na introdução, e que consiste em
afirmar as qualidades de firmeza e determinação.
A determinação é marcada primeiramente pelo verbo "querer" na
primeira pessoa ("eu quero [...] demonstrar porque o senhor está erra-
do")16 assim como pelo verbo "tentar" que aparece pelo menos quatro
vezes no fim da longa intervenção 24. Quanto à firmeza, ela caracteriza
tanto os enunciados assertivos quanto os diretivos. No que concerne às
asserções, NS adota um posicionamento claro, face ao seu interlocutor,
do qual procura se distinguir, sem dúvida para se inocentar da acusação
de ciscar no mesmo terreiro que o presidente do Front National ("não
tenho suas idéias"17, "o senhor está errado", e rnais adiante, em 42 "é
falso, senhor Lê Pen [...] é duplamente falso"). No que diz respeito aos
atos diretivos, desde o início da intervenção 24, NS se dedica a um de
seus atos de linguagem favoritos, que consiste em "desafiar" o adversá-
rio (quer dizer, "ordenar-lhe que faça alguma coisa, dando a entender
que o acha incapaz de fazê-lo", segundo o Dicionário Petit Robert) "Eu
o desafio, senhor Lê Pen, a me citar um bairro [...] onde [...] se eu en-
trasse, isso provocaria uma rebelião"18 — a expressão será retomada um
pouco mais adiante sob a forma "desafio quem quiser me demonstrar
o contrário". Encontram-se também aí variantes um pouco menos
16 A freqüência do "eu quero", no discurso sarkoziano (encontram-se, por exemplo, 55recorrências na alocuçào feita na universidade de verão do Medef, em 30 de agosto de2007), foi assinalada por numerosos analistas.17 Note-se a leve estranheza desse encadeamento:"eu não tenho suas idéias, mas querodemonstrar que o senhor está errado".18 Essa afirmação torna retroativamente um aspecto involuntariamente irônico... (as~sim como a de LP à qual ela responde assume um caráter premonitório: "quando osenhor quiser ir a esses bairros, pois bem, o senhor enfrentará formas de rebelião deestilo insurrecional").
256
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
autoritárias como "diga-me o que eu deveria fazer", "o que o senhor
propõe para resolver o problema" ou "que medida eu deveria tomar"
(pergunta com valor de injunção, repetida cinco vezes).
A firmeza, e mesmo a brutalidade na realização das refiitações ou das
injunções, se manifestam não apenas verbalmente (para isso contribuem
igualmente os termos de interpelação que proliferam na intervenção 24,
na qual se encontram cinco ocorrências de "senhor Lê Pen"), mas tam-
bém por meios paraverbais e não verbais. No que diz respeito à prosódia,
vamos encontrar aqui o padrão que constitui, de alguma forma, a cartei-
ra de identidade social de Sarkozy: uma sucessão de segmentos de frase
acompanhados por uma melodia às vezes ascendente, outras vezes descen-
dente, seguidos de uma pausa bastante longa, o que produz um forte efeito
de autocontrole e de autoridade. No que concerne à mimogestualidade,
vamos encontrar as unidades mais características do gestual sarkoziano: o
punho fechado acompanhando "é convencer" (gesto que conota a ener-
gia, o "puncti') e o dedo acusador em riste, acompanhando "eu o desafio,
senhor Lê Pen" e "o senhor que conhece tantas coisas19, diga-me".
Referem-se à mesma isotopia as qualidades de combativiâade e co-
ragem que NS reivindica nessa passagem: para começar, ele tem a co-
ragem de afrontar, "face a face" e pela "segunda vez", esse debatedor
considerado temível que é LP ("sim, pela segunda vez, reivindico de-
bater com o senhor") e isso porque "não se convence nos salões", mas
nos palcos da televisão, transformados em arena onde se combate tanto
quanto se debate, mas também coragem de ir a campo, até mesmo
aos "subúrbios", essa reivindicação identitária sendo enunciada sob o
modo da refutação ("o senhor diz que eu não vou lá" retoma a decla-
ração precedente de LP sobre "as zonas de não-direito").
Tudo isso contribui para dar a impressão de que, nessa longa tirada,
NS se concede um diploma de auío-satisfação: fiz tudo o que devia
fazer e nada que não devesse fazer; é o que nos diz através dessas per-
19 Se NS não se priva de infligir esse gesto a seus interlocutores, ele não suporta servítima dele, como o atesta essa réplica a Segolene Royal, por ocasião do debate de03/05/2007:"acalme-se e não me aponte o dedo!"
257
Análises do discurso hoje
guntas e injunções endereçadas a LP; portanto "quando me olho noespelho" não me envergonho de minha imagem, já que fiz meu "de-
ver" (a palavra foi pronunciada no início da intervenção). Porém, essademonstração de auto-satisfação (associada à recorrência do pronome
de primeira pessoa, às vezes sob a forma enfática mói [...] je) correriao risco, com a repetição, de produzir um efeito desastroso de falta demodéstia: NS matiza, então, seu balanço — globalmente positivo, é
claro — com algumas autocríticas que, aliás, são bem vagas (eu nãodisse que tudo o que eu faço é bom, naturalmente", "não duvido quetudo esteja decidido"20,"e, é claro, com algumas insuficiências").
Mencionemos, enfim, que, em outro nível, NS mostra um ethos pe-dagógico, que, geralmente, ele gosta de exibir, graças a uma dicção pau-sada, ao recurso constante a organizadores discursivos de apoio ("Paracomeçar, os subúrbios [...] primeira observação [...] segunda observa-ção, senhor Lê Pen"; o gesto sistematicamente unido à palavra) e aindaàs perguntas retóricas21: Nicolas Sarkozy gosta de fazer perguntas e dedar as respostas, e também de adotar a postura de quem está dando umalição (lição aqui de cortesia e de eficiência).
2.4.2. QUANDO NS PROPÕE UMA DEFINIÇÃO DE LP
Ao mesmo tempo em que propõe de si mesmo uma definição bastantevantajosa, NS reduz seu adversário a uma imagem não muito brilhante:é um "pedante", fechado em sua retórica prolixa, um irresponsável (en-quanto ele, NS, tem "a pesada responsabilidade de ministro de Interior")que nada sabe dos meios reais que se deve utilizar para levantar o país(pois "o senhor que conhece tantas coisas" é evidentemente irônico).
Na verdade, NS nada faz aqui além de pagar LP com a mesmamoeda, porém com exagero: LP acusou-o de se agitar inutilmente,
isto é, estar agindo, mas ineficientemente; NS retruca, então, que LP
20 Trata-se evidentemente aqui de uni lapso (revelador?).21 Sobretudo, mais adiante, nas intervenções 40-42: "e por que eu não quis que elefosse expulso? Porque [...]", "porque posso ser firme, porque eu sou justo".
258
A cotistrução mútua das identidades nos debates políticos na televisão
está aquém de qualquer ação: ele fala, ele fala, é tudo o que sabe fazer! eainda mais, o único dizer de que é capaz é um dizer não construtivo,mas destruidor, vingativo e venenoso. A partir da metade dessa inter-
venção 24, NS se lança num requisitório impiedoso no qual acusaLê Pen de "arrotar" ("é uma coisa falar [...], protestar [..], arrotar [...].aproveitar-se dos medos"); é então que podemos medir todo o inte-
resse da estratégia empregada por NS, no início de seu encontro comLP, que consistiu, como vimos, em deixá-lo falar sem interrompê-loa não ser por pequenas incursões "assassinas": isso permitiu que LP se
exibisse como "arrotador", de modo que, quando chega a qualificaçãoexplícita, ela tem mais impacto do que se NS o tivesse logo tratado de
"arrotador"; acontecendo logo após LP ser apanhado em flagrante delitode "eructação", ela não se arrisca a passar por gratuita.
Diante dessa operação de sabotagem do ethos (de contestador elo-qüente ei-lo rebaixado ao nível de "comediante de salão", de histriãoparanóico), LP se agarra a seu registro preferido: a zombaria. Ele de-senvolve a idéia de que NS invade seus direitos, acusando-o de serapenas uma cópia pálida de si mesmo (para fazer isso, chama em seusocorro não mais um oficial harki, mas um "compatriota negro" quejulga que "Sarkozy seria um bom ministro se fosse ministro de Jean-Marie Lê Pen"), ao que NS retruca dando-lhe o troco na mesma moe-da: "o senhor resistiria muito tempo, senhor Lê Pen"; ele faz outrasbrincadeiras do mesmo gênero, divertindo-se em adornar NS comatributos que são de preferência seu apanágio (corno "a demagogia"):ele o ataca enfim com a questão da pena dupla, e NS se apropria, então,desse "ponto capital" para se justificar em termos veementes ("é du-
plamente falso", "desafio qualquer um a provar o contrário", etc.) atéessa declaração em forma de conclusão:
eh bien mói monsieur Lê Pen etj'en termine par lá (.) pourquoíje peitx
êtreferme\ (.) parce queje sui:s jjjuste\
Pois bem, senhor Lê Pen, e por aqui eu termino porque posso serfirme e porque sou justo.
259
Análises do discurso hoje
Declaração que não só nos oferece um condensado da retórica
sarkozíana ("moi...je",perguntas puramente oratórias, entonações des-
cendentes, seguidas de pausa, dedo indicador em riste, auto-definição
valorizadora), mas que também nos permite voltar a falar, mas, para
concluir, das noções de "ethos" e de "identidade".
3. Conclusão
Recapitulemos os principais componentes identitários exibidos e atri-
buídos por nossos dois protagonistas na seqüência estudada:
LP se define como perseguido e como denunciador sarcástico, mas
"objetivo", da impotência de seu adversário para resolver os problemas
do país. Ao mesmo tempo, faz de NS o retrato de um excitado, parcial,
demagogo e, sobretudo, ineficiente.
NS se define como simpático, cortês, capaz de humor e de malícia e,
sobretudo, firme e enérgico, logo eficiente; determinado, corajoso e em-
preendedor, satisfeito com seus resultados, mas consciente de seus limites;
claro e honesto em suas explicações. Faz LP aparecer como uni persona-
gem grosseiro, um comediante de salão, que só serve para "arrotar".
Entre esses diversos componentes, apenas fazem parte verdadei-
ramente do ethos os atributos que o locutor "exibe" de si mesmo
pelo conjunto de seu comportamento discursivo, verbal e não-ver-
bal (exemplo: "a firmeza"). Vêm-se acrescentar a estes, de um lado, as
propriedades que o locutor atribui de forma explícita ou implícita
ao seu interlocutor e, de outro lado, as que ele reivindica aberta-
mente por meio de auto qualificações (como "eu sou justo" ou "eu
sou eficiente"), sempre que possível argumentadas pela lembrança de
alguns fatos alusivos que atestem essas qualidades. A eficiência ou o
sentido de justiça são, assim, qualidades dificilmente "ethosisáveis"; elas
se medem menos por comportamentos discursivos do que por reali-
dades extra discursivas. Isso é ainda mais evidente numa característica
objetiva, como "ministro do Interior", lembrada por LP e tambémpelo próprio NS, mas com orientações argumentativas opostas (LP:
260
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
o senhor que é ministro do Interior, o senhor faz bastante mal o seu
trabalho; NS: eu, que sou ministro do Interior, faço meu trabalho o
melhor que posso).
Por outro lado, o processo das construções identitárias não poderia
ser reduzido a um simples inventário de projeções e atribuições pelas
seguintes razões (entre outras):
a) Os atributos identificáveis são raramente "quimicamente puros";
por exemplo:
- o ethos "polido" de Sarkozy: se este multiplica as fórmulas de
cortesia (especialmente para iniciar a troca ou se apropriar da inter-
venção), vimos que a saudação em 5 era de uma polidez duvidosa e
que o agradecimento em 11 também era pleno de ironia;
— o ethos "fair play" dos dois debatedores (única característica co-
mum a ambos), consistindo em aceitar reconhecer alguns méritos no
adversário22 (intervenções lOb a 13): essa pequena troca de amabili-
dades aparentes, além de ser feita inteiramente sob um modo irônico,
serve na verdade apenas como pretexto para uma dupla autopromoção
("o senhor obteve alguns sucessos" logo se transforma, na boca de LP,
em "eu sou objetivo; e "o senhor é honesto", na de NS, em "eu sou
eficiente"), guarnecida, no caso de LP, por uma alusão pérfida ("não é
como o senhor, que não é objetivo").
b) Esses atributos são de natureza muito heterogênea e suas ma-
nifestações (mais ou menos explícitas ou implícitas), extremamente
variáveis. Não são também de importância igual: LP se "apresenta",
sobretudo, como é seu hábito, como denunciador sarcástico, e NS,
como campeão valoroso da ação política no cotidiano.c) Esses atributos devem, enfim, ser considerados em relação à dinâ-
mica da interação, isto é, segundo a maneira como são introduzidos: se
de maneira iniciativa ou reativa, negociados ou não, aceitos ou refuta-dos. O ponto central é, então, a questão da eficiência ou da não-eíicien-
22 Ou o direito de ter uma opinião contrária (cf. Sarkozy em 33: "o senhor me acusade não ser eficiente, e é direito seu".
261
Análises do discurso hoje
cia de NS, pois é toda a seqüência analisada que se reduz, em suas gran-
des linhas, a uma longa negociação entre LP, que diz a NS "O senhor
não é eficiente", e NS retorquindo (e habilmente utilizando o próprio
LP) "Eu sou eficiente, sim". Ao mesmo tempo em que reivindica sua
eficiência no campo político, NS demonstra incontestavelmente, nes-
sa passagem, sua eficiência como debatedor, e, mais particularmente,
como administrador das identidades mútuas. Desse modo:
1) Enquanto mantém um "perfil éthico" coerente, NS explora uma
palheta mais extensa de traços que seu adversário, mais monolítico.
Poder-se-ia assim mostrar que, muito mais que seu adversário, ele con-
segue aproveitar o conjunto dos recursos de que dispõem os oradores
para construir sua identidade, recursos esses tanto verbais quanto não-
verbais, explícitos ou implícitos (os procedimentos implícitos apresen-
tam a vantagem de dar menos lugar à refutação que as reivindicações
explícitas).
2) LP e NS se esforçam ambos, é claro, em construir uma imagem
positiva de si mesmos e uma imagem negativa um do outro. Porém, en-
quanto LP privilegia claramente o registro do ataque, NS pratica tanto
a autovalorização quanto a desvalorização do adversário (é exemplar a
intervenção 24, em que se equilibram bem a diatribe contra Lê Pen e
a defesa em causa própria). Notemos que a estrutura íímoi...je"/ "je...
mói" é bastante útil neste caso, com o subentendido polêmico que ela
traz. O melhor exemplo é a conclusão da intervenção 24, na qual o
subentendido é reforçado por "ao menos": "eu ao menos eu quando
me olho no espelho digo a mim mesmo que durante dois anos tentei
fazer alguma coisa" — e que, portanto, posso estar orgulhoso de mim
mesmo, enquanto o senhor, senhor Lê Pen, o senhor deve ter vergonha
de sua imagem quando se olha no espelho.23 Observemos também que
essa estrutura pronominal, da qual todos sabem que NS usa e abusa,
23 Como vimos, LP também recorre a esse procedimento em 12, "afirmando", for-temente pela entonação, o subentendido zombeteiro ("o senhor sabe que eu sou umhomem objetivo, eu").
262
A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão
apresenta o risco de conotar unia "egomania"24 prejudicial a seu ethos,
e contribuir para a impressão de que ele exibe uma auto-satisfação
excessiva, apesar de algumas precauções tomadas ("não digo que tudo
o que eu faço é bom, naturalmente", "claro que com algumas insu-
ficiências"), porém, sem ter a certeza de que elas consigam neutrali-
zar completamente os efeitos negativos desse componente identitário
"projetado", mas não certamente "reivindicado". LP se abstém todavia
de explorar esse pequeno defeito do ethos sarkoziano, enquanto, por
seu lado, NS não se priva de apontar as falhas de comportamento de
LP para os telespectadores, que podem constatar a exatidão de suas
imputações (coincidência entre o ethos exibido por LP e o que lhe é
atribuído por NS).
3) Se os debatedores devem administrar conjuntamente sua própria
imagem e a do outro, também devem se esforçar por integrar ao seu o
discurso do outro: NS é excelente nesse exercício, como vimos: espe-
cialmente no uso que fez da metáfora do esquilo, de que ele se apro-
priou, invertendo o valor axiológico e mandando-a de volta como um
bumerangue, em direção ao seu adversário, que terá dificuldade para se
restabelecer do choque recebido.4) A dupla operação de autopromoção e de demolição do inter-
locutor se baseia finalmente nas capacidades de adaptação das partes
em presença: adaptação à situação, aos status e aos papéis de cada um
(NS devendo, por definição, defender sua atuação, e LP atacá-lo), assim
como às "imagens prévias" ligadas aos debatedores logo que entram em
cena, imagens que eles vão poder explorar, a fim de desestabilizar ou
desqualificar o adversário. É assim que NS vai explorar o que ele sabe
do ethos habitual de LP para colocar suas estratégias de "sabotagem" já
analisadas, a fim de desativar as pequenas "bombas" retóricas que seu
adversário preparara para lançar na arena durante o debate, LP, sabendo
que sua imagem está fortemente comprometida pela desconfiança de
24 Ou "egocracia", para retomar o título de um artigo do jornal Lê Monde 2(24/1l/2007):"Sarkozy, o egocrata".
263
Análises do discurso hoje
racismo, vai tentar provocar surpresa, convocando sucessivamente, para
sustentar suas alegações, um oficial harki e um "compatriota negro",
sem, no entanto, cessar de brandir o espectro da imigração. Há limites às
possibilidades de remodelagem das identidades: é bom surpreender, mas
com a condição de não contrariar demais as expectativas do público!
Pois, é claro, é o público dos telespectadores que se trata, antes de
tudo, de seduzir e convencer... É a esse público, único e verdadeiro juiz
dessa dramaturgia das imagens, que se destina, em primeira e última
instância, no contexto midiático, o espetáculo dos afrontamentos iden-
titários. Espetáculo com fim quase sempre incerto, pois a proximidade
é grande entre atributos avaliados positivamente, como a firmeza e a
eloqüência contestatória, e seu simétrico negativo, como o autorita-
rismo "egocrático" ou a vociferaçao venenosa: pode-se pensar que o
talento de um debatedor se baseia em grande parte na habilidade pela
qual ele consegue drar partido dessa instabilidade das características
éthicas e dos atributos identitários.
Referências
AMOSSY, R. Images de sói dans lê discours, La construction de Véthos.
Genève: Delachaux et Niestlé, 1999.
CHARAUDEAU, P Lê discours politique. Lês masques du pouvoir. Paris:
Vuibert,2005.
CONSTANTIN DE CHANAY, H.; KERBRAT-ORECCHIO-
NI, C. "1.00 minutes pour convaincre: Véthos en action de Nicolas
Sarkozy". In: BROTH, M. et ai (ed.). Lê Fmnçais parle dês médias.
Stockholm: Acta Universitatis Stokholmiensis, 2007, p. 309-329.
GOFFMAN, E. La mise en scène de Ia vie quoüdienne. 7- La présentation
de sói. Paris: Minuit, 1973.
KERBRAT-ORECCHIONI, C. Lê discours en interaction. Paris: A. Co-lin, 2005.
ROULET, E. et ai. L'articulatíon du discours enfrançais contemporain. Ber-ne: Peter Lang, 1985.
264
ANÁLISE DE DISCURSO CRITICA:REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA MÍDIA
Denize Elena Garcia da Silva (UnB)Viviane Ramalho (UnB/UCB)
1. Introdução
Situar a Análise de Discurso Crítica (ADC) na esteira dos estudos do
discurso que, hoje, recobrem uma gama variada de propostas teóricas,
implica a necessidade de resgatar o início de uma trajetória que reuniu
cinco estudiosos, cujas idéias se coadunaram no eixo dos aspectos so-
ciais da linguagem. Em lugar de privilegiar uma discussão acadêmica
voltada tão-somente para questões de natureza lingüistico-discursiva,
o grupo decidiu considerar, como ponto de partida, problemas sociais
predominantes, privilegiando uma perspectiva em favor dos desfavore-
cidos, em contraste com aqueles que detêm o poder. A linguagem pas-
sa, a partir de então, a ser cada vez mais enfocada como prática social e
o discurso como um objeto historicamente produzido e interpretado
em termos de sua relação com estruturas de poder e ideologia.
O referido grupo, formado por Gunther Kress (Universidade de
Londres), Norman Fairclough (Universidade de Lancaster),Teun van
Dijk (Universidade de Pompeu Fabra),Theo van Leeuwen (Univer-
sidade de Artes de Londres/Faculdade de Comunicação de Londres),
Ruth Wodak (Universidade de Viena; Universidade de Lancaster), ha-
via-se reunido, pela primeira vez, por ocasião de um simpósio cele-
brado em Amsterdã, em janeiro de 1991. Durante dois dias, os cinco
Análiíes do discurso hoje
pesquisadores discutiram teorias e métodos, voltados de modo especial
para uma abordagem nova que se fortalecia, naquele momento, na
esteira da Lingüística Crítica.
A partir desse evento, que reuniu, no dizer de Wodak, o "grupo
científico dos iguais", a Criticai Discourse Analysis (CDA) começa a flo-
rescer na Europa e chega ao Brasil, em 1993, pelo trabalho pioneiro
de Izabel Magalhães, na Universidade de Brasília (UnB), com a sigla
de ADC, o que marca a entrada do "grupo de Brasília" no cenário dos
estudos do discurso voltados para urna lingüística crítica.1 Em maio
de 1998, durante três dias, Fairclough participou na UnB, juntamente
com Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) e pesquisadores brasileiros,
do /// Encontro Nacional de Interação em Linguagem Verbal e Não-Verbal
(III ENIL), cujo tema central, Análise de Discurso Crítica, privilegiou
debates voltados para uma concepção de educação como prática social
transformadora. Nas trilhas do pensamento de Paulo Freire (1983),
buscou-se questionar problemas existentes na realidade brasileira, bem
como apontar mecanismos para sua superação.2
Assim é que aADC, desde as suas origens como escola (CDA),traça
como escopo central o incentivo à pesquisa lingüístico-discursiva vol-
tada para causas sociais em favor das minorias. Propõe investigações que
configurem a busca de soluções para problemas decorrentes de discursos
1 Para caracterizar algumas das posições assumidas pelo grupo, valemo-nos, aqui, depalavras de Rajagopalan (2003, p. 12), para quem "acreditar na lingüística crítica éacreditar que podemos fazer a diferença", assim como "acreditar que o conhecimentosobre a linguagem pode e deve ser posto a serviço do bem-estar geral", o que implicacolocar os estudos lingüístico-discursivos em favor dos que vivem em situação dedesigualdade social.2 Em outubro de 2004, para comemorar os dez anos de pesquisas do referido "grupode Brasília", Denize Elena Garcia da Silva (UnB), Maria Christina Diniz Leal (UnB)e Guilherme Veiga Rios (UnB-Nelis) organizaram, dentro do VII ENIL, o / SimpósioInternacional de Análise de Discurso Crítica. O duplo evento foi marcado pela presença deEnrique Bernárdez (Univ. de Madrid),Jacob Mey (Universidade de Odense), CarlosGouveia (Universidade de Lisboa), bem como da catarinense Carmen Rosa Caldas-Coulthard (Universidade de Birminghan), cuja colaboração com o grupo da UnBtem feito do ENIL, mais que um evento (itinerante hoje em dia), um espaço da ADCbrasileira de projeção internacional.
206
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
que envolvem questões de educação, letramento, bem como assimetrias
de poder, de gênero social e de hegemonia, entre outros, razão pela qual
estimula estudos que envolvam desde discursos institucionalizados, de
âmbito educacional, religioso, político, econômico e midiático, até os
que envolvem relações implícitas e explícitas de lutas de classe, conflitos
interétnicos e de discriminação, tais como o racismo. Constitui, assim,
uma corrente teórica que se caracteriza como uma forma de pesquisa
social e, como tal, eqüivale a uma prática teórica crítica, principalmente
porque leva em conta a premissa de que situações opressoras podem
ser mudadas, uma vez que decorrem de criações sociais passíveis de
ser transformadas socialmente. Mas a ADC não configura apenas uma
proposta de caráter multidisciplinar, voltada para questões sociais, uma
vez que se constitui também como método de análise.
Apresentaremos, neste artigo, uma das perspectivas teórico-meto-
dológicas da ADC, assinada por Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough
(1999). De início, sumarizamos alguns conceitos que consideramos re-
levantes na proposta dos dois autores, tais como prática social, ideologia e
crítica explanatória, os quais podem subsidiar estudos críticos de discurso
hoje. Em seguida, ilustramos a aplicabilidade desse suporte científico
com exemplos de duas pesquisas, que desenvolvemos na UnB, com
enfoque analítico voltado para a representação, categoria que nos permi-
te descrever e interpretar finalidades e legitimações das práticas sociais,
A primeira pesquisa, aqui, brevemente apresentada, tem como objeto
de estudo duas realidades — pobreza nas ruas e ruptura familiar ,
problemas que acentuam a questão social no contexto brasileiro. A
segunda, uma tese de doutorado, investiga o discurso da propaganda
brasileira de medicamentos e sua relação com questões de poder.
Com a discussão da proposta teórico-metodológica mencionada,
seguida de exemplos de análise de duas pesquisas distintas, objetivamos
3 A referida pesquisa vincula-se a um projeto mais amplo, desenvolvido em parceriacom quatro países da América do Sul: Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela, queformam a Rede Latino-americana de Estudos do Discurso — REDLAD.
267
Análises do discurso hoje
ilustrar, ainda que de maneira sucinta, o amplo espectro de aplicaçõesda ADC, não só no que diz respeito às noções gerais oferecidas dentro
desse arcabouço teórico, mas também no que tange às categorias deanálise textual, voltadas para nossa realidade social, ou seja, o contextobrasileiro.
2. Perspectiva crítico-explanatória para estudos Kngüístico-díscursivos
A vertente britânica da Análise de Discurso Crítica (ADC), apresenta-da em Fairclough (2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999), configurauma abordagem científica transdisciplinar para estudos críticos que
se ocupam da linguagem, tanto na sua exterioridade quanto na suainterioridade. Como sugere Fairclough (2003), a proposta se insere na
tradição da "ciência social crítica", comprometida em oferecer suportecientífico para questionamentos de problemas sociais relacionados apoder e justiça. De acordo com o autor, a contribuição da pesquisasocial crítica esta em procurar compreender como são produzidos pe-las sociedades tanto os efeitos benéficos (como distribuição de renda),
corno os maléficos (tais como os gerados pela desigualdade social eeconômica), e como os efeitos maléficos podem ser mitigados ou, em
condições propícias, eliminados. Consideramos que a pesquisa social
crítica começa com questionamentos a respeito de como as sociedadespodem prover algumas pessoas com tantos recursos e possibilidadespara enriquecer e satisfazer vidas, e como, por outro lado, negam aoutras esses recursos e possibilidades.
Trata-se, ainda, de um modelo que dialoga com outras perspectivasteóricas, tais como a Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF), uma vezque operacionaliza seus conceitos e aplica suas categorias, o que seráilustrado mais adiante na seção analítica. Mas tal abrangência se expli-ca pelo entendimento de que a relação entre linguagem e sociedadeé interna e dialética, ou seja, de que "questões sociais são, em parte,questões de discurso", e vice-versa (CHOULÍARAKI e FAIRCLOUGH, 1999,
268
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
p. vii). Nesse sentido, a pobreza e o abandono familiar, assim como prá-
ticas inadequadas de consumo de medicamentos em nossa sociedade,
não são apenas problemas políticos e sociais, mas também problemas
lingüístico-discursivos, conforme problematizamos neste artigo.
Na perspectiva crítica, aqui endossada, a linguagem é parte irre-
dutível da vida social, visto que se constitui socialmente na mesmamedida em que tem "conseqüências e efeitos sociais, políticos, cogni-
tivos, morais e materiais" (FAIRCLOUGH, 2003, p. 14). Consideramos queo(s) sentido(s), bem como os efeitos de um texto, como exemplifica
Fairclough (2001, p. 108), têm conseqüências de natureza extradiscur-
siva, uma vez que "alguns conduzem a guerras; outros levam pessoasa perder o emprego ou a obtê-lo; outros ainda modificam as atitudes,
crenças ou práticas das pessoas", e assim por diante.Uma observação merece, ainda, ser registrada. Como ciência críti-
ca, a ADC está preocupada com efeitos ideológicos que (sentidos de)
textos possam ter sobre relações sociais, ações e interações, conheci-mentos, crenças, atitudes, valores e identidades. Em poucas palavras,
trata-se de sentidos a serviço de projetos particulares de dominação eexploração, que sustentam a distribuição desigual de poder. A idéia deque problemas sociais podem ser desencadeados e sustentados, assim
como superados, por (sentidos de) textos assenta-se na ontologia doRealismo Crítico, cujo expoente é reconhecido no filósofo contem-
porâneo Roy Bhaskar (1978,1998).
3. Pressupostos ontológicos e teóricos em ADC
Para o Realismo Crítico, conforme foi discutido em Ramalho (2007),o mundo é um sistema aberto, constituído por diferentes domínios
(real, actual e empírico)4, assim como por diferentes estratos. Os estratos
4 Os termos originais em Bhaskar (1998) são real, actual e empirical. A fim de nãotornar ainda mais complexo o conceito de "actual", optamos por manter o termo em
inglês, a exemplo das traduções brasileiras atuais.
269
Análises do discurso hoje
— físico, biológico, social e semiótico — possuem estruturas distinti-
vas e mecanismos gerativos que se situam no domínio do real, os quais,
quando são ativados simultaneamente, causam efeitos imprevisíveis nos
demais domínios da vida social. A relação que se estabelece entre os
estratos é de interdependência causai, pois a operação de qualquer me-
canismo gerativo dos diferentes estratos é sempre mediada pela ope-
ração simultânea de outros, de forma tal que não são redutíveis a um
e sempre dependem (e internalizam traços) de outros. Por isso, como
explica Sayer (2000, p. 11), ainda que não haja necessidade de voltar ao
estrato da biologia, da física ou da química para investigar fenômenos
sociais, isso não significa que os primeiros não tenham efeito sobre a
sociedade e vice-versa.
Nesse sentido, o estrato semiótico é parte integrante e irredutível
do mundo e da vida social, uma vez que mantém relações simultâneas
de articulação e internalização com os demais estratos, incorporando-
os e, também, modificando-os. Podemos dizer que a linguagem como
sistema semiótico, com seus mecanismos e poderes gerativos, tem efei-
tos nas práticas e eventos sociais. Isso significa, conforme Fairclough
(2003), que a linguagem se faz presente em todos os níveis do social,
conforme ilustramos no Quadro l abaixo, no qual sintetizamos uni
gradiente de abstração-concre tu de de três diferentes níveis da vida
social correlacionados a três níveis da linguagem.Vejamos:
QUADRO 1: Linguagem como elemento da vida social
Níveis do social
Estrutura social
Práticas sociais
Eventos sociais
Níveis da linguagem
Sistema semiótico
Ordens de discurso
Textos
Baseado em Fairclough (2003).
De acordo com Fairclough (2003, p. 220), no nível mais abstrato
das estruturas, conforme relacionado acima, tem-se a linguagem como
sistema semiótico — com sua rede de opções lexicogramaticais. No
270
Análise de Discurso Critica: representações sociais na mídia
nível intermediário das práticas sociais, tem-se a linguagem como or-
dens de discurso —"as combinações particulares de gêneros, discursos
e estilos, que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas so-
ciais". Por fim, no nível mais concreto dos eventos, ternos a linguagem
como texto — o principal material empírico com que analistas de
discurso trabalhamos, mas não o único.
Ainda com base em princípios do Realismo Crítico, e apoiada
também em Harvey (1992), a ADC reconhece seu objeto de estudo
nas práticas sociais. Disso advém o foco no "discurso", entendido como
momento constituinte e irredutível de práticas sociais. Corno maneiras
recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais pessoas in-
teragem no mundo, práticas sociais são "articulações de diferentes tipos
de elementos sociais que são associados a áreas particulares da vida
social" (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25). Qualquer prática, sugere Fairclough,
com base em Harvey (op. cit.), envolve ação e interação, relações sociais,
pessoas (com crenças, valores, atitudes, histórias etc.), mundo material e discurso.
Em práticas particulares, esses cinco elementos mantêm entre si cons-
tantes relações dialéticas de articulação e internalização, sem se redu-
zirem a um, tornando-se "momentos" da prática. Resende e Ramalho
(2005, 2006) explicam que essas relações dialéticas de articulação e
internalização entre os cinco momentos de práticas sociais particulares
podem ser tanto minimizadas para se aplicarem à articulação interna
de cada momento de uma prática, quanto ampliadas para se aplicarem
à articulação externa entre práticas organizadas em redes.
Em redes de práticas sociais, cada prática específica configura gêne-
ros, discursos e estilos particulares, ou seja, sua ordem de discurso. Assim
é que temos ordens de discurso jornalística e publicitária, por exemplo.
Os três momentos de ordens de discurso correlacionam-se a três prin-
cipais maneiras, apresentadas em Fairclough (2003), como o discurso
figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais: como maneiras
de (inter-)agir, de representar e de identificar(-se). Sugere o autor que,
em suas atividades habituais, pessoas (inter-)agem por meio de gêneros
— "tipos de linguagem ligados a uma atividade social particular"; tarn-
271
Análises do discurso hoje
bem representam aspectos do mundo por meio de discursos —"modos
particulares de representar"; e, por fim, identificam a si mesmas, aos
outros, e a aspectos do mundo, por meio de estilos —"tipos de lingua-
gem usados por uma categoria particular de pessoas e relacionado a sua
identidade", nas definições de Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 63).
Essas maneiras de acionar a linguagem na vida social ligam-se, por sua
vez, a três principais significados do discurso — acionai, representacio-
nal e identificacional —, os quais serão retomados mais adiante.
Por agora, convém acercar-nos do conceito de articulação, proposto
por Laclau e Mouffe (2004, p. 142) nos seguintes termos: "toda prática
que estabelece uma relação tal entre elementos que resulta na modifi-
cação de sua identidade ".Tal concepção ajuda-nos a compreender, por
exemplo, as maneiras e os motivos pelos quais traços de momentos ex-
teriores, quer de amplas redes de práticas sociais, quer de práticas par-
ticulares, podem ser articulados com elementos de ordem do discurso
(gêneros, discursos e estilos), momentos que, internalizando traços dos
outros, não se reduzem a um. Em poucas palavras, o referido conceito
esclarece a conexão, em termos de causa e efeito, entre elementos dis-
cursivos e nâo-discursivos de práticas sociais.
A linguagem, de acordo com essa concepção, configura um mo-
mento de (redes de) práticas sociais, que mantém relações de articulação
e internalização simultâneas com outros momentos nao-semióticos. A
linguagem, mediada por essas relações, incorpora traços do social, assim
como gera efeitos no mundo. Nessa perspectiva, e por ser uma ciência
crítica, a ADC ocupa-se dos efeitos ideológicos do discurso, aqueles que,
em circunstâncias particulares, podem contribuir para instaurar e susten-
tar relações de dominação (THOMPSON, 2002), daí o fato de sua proposta
de abordagem teórico-metodológica basear-se na crítica explanatória.
4. Pressupostos teórico-metodológicos em ADC
Para levar a efeito a concepção de mundo estratificado, dotado de pro-
fundidade ontológica, a proposta teórico-metodológica da ADC apro-
272
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
xima-se de uma versão da abordagem crítico-explanatória de Bhaskar
(1998), orientada para investigar mecanismos causais e seus efeitos poten-
ciais em contextos particulares, com atenção voltada para causas e efei-
tos envolvidos em relações de poder. Nos termos da ADC, o objetivo
é mapear conexões entre aspectos sociais discursivos e não-discursivos,
tendo em vista dois objetivos principais. Primeiro, investigar meca-
nismos causais discursivos e seus efeitos potencialmente ideológicos.
Segundo, refletir sobre possíveis maneiras de superar relações assimé-
tricas de poder, parcialmente sustentadas por sentidos de textos (SILVA,
2002f 2006). De acordo com o princípio da profundidade ontológica,
entende-se que o trabalho de descrição e interpretação de conexões,
em termos de causa e efeito, não pode ser feito de maneira satisfatória,
entre linguagem e sociedade, apenas com base em análises qualitativas
de textos (SILVA, 2003).
Essa postura também é apoiada na ontologia estratificada do rea-
lismo crítico, segundo a qual a estratificação e a abertura do mundo
impedem o acesso direto ao domínio do real. Não obstante, trata-se
de um domínio mais abstrato, conforme este entendimento, que só
pode ser alcançado pela mediação de nosso conhecimento (crenças,
valores, atitudes, ideologias) sobre ele, ou seja, a partir do actual e do
empírico. Para Bhaskar (1978, p. 36), constituiriam "falácias epistê-
micas" pretender, por um lado, estudar o "mundo real" de maneira
"objetiva", visto que só podemos estudar o mundo real passando pelo
filtro de nossas experiências, e, por outro, conceber o mundo como
constituído apenas pelo domínio empírico, isto é, por aquilo que ex-
perienciamos.Aplicado à ADC, tal princípio implica o fato de que a realidade não
pode ser reduzida ao empírico — ao nosso conhecimento sobre ela,
que é contingente, mutável e parcial. Nas palavras de Fairclough (2003,
p. 14), "não devemos presumir que a realidade de textos seja exaurida
por nosso conhecimento sobre eles". Não pode haver análises textuais
"completas" e "definitivas", ou "objetivas" e "imparciais", por serem ine-
vitavelmente seletivas. Isso porque, sempre de acordo com Fairclough,
273
Análises do discurso hoje
"em toda análise, escolhemos responder a determinadas questões sobre
eventos sociais e textos, e não a outras questões possíveis" (p. 14).
Para investigações mais refinadas de mecanismos discursivos e seus
potenciais efeitos ideológicos em práticas sociais particulares, a ADC
propõe um arcabouço que sumarizamos no Quadro 2 abaixo.
QUADRO 2: Arcabouço teórico-metodológico da Análisede Discurso Crítica
Percepção de um problema social com aspectos semióticos
Identificação de obstáculos para que o problema seja superadoanálise da conjuntura
análise áa prática particular
análise do discurso
Investigação da função do problema na prática
Investigação de possíveis modos de ultrapassar os obstáculos
Reflexão sobre a análise
Baseado em Chouliaraki & Fairclough (í 999, p. 60); Fairclough (2003, p. 209-2 W)
Como se pode observar, o arcabouço propõe uma reflexão sobre a
análise e sua contribuição para questões de emancipação social. Trata-
se de um modelo gerado para explanação crítica de fenômenos sociais,
por meio da investigação de mecanismos que os produzem. De acordo
com Fairclough (2003, p. 15), para se ter acesso a efeitos ideológicos de
textos, é preciso relacionar a "microanálise" de textos à "macroanálise"
de maneiras como relações de poder operam através de redes de práti-
cas e estruturas. Por isso, as cinco etapas do modelo, descritas a seguir,
conjugam análises textual e socialmente orientadas.
Já de início, pesquisas em ADC costumam partir da identificação de
um problema social com aspectos semióticos. Definida a preocupação
de pesquisa, segue-se a identificação de elementos que representam
obstáculos para a superação do problema, o qual deve ser examinado
em três etapas específicas: análise da conjuntura, análise da prática par-
ticular e análise do discurso. Esses três tipos de análise podem especi-
274
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
ficar obstáculos para que o problema em foco seja superado. Nas duas
primeiras, investigam-se redes de práticas (ou conjunturas), em que se
localiza o problema de cunho semiótico, assim como a prática particu-
lar em estudo, o que inclui análise de relações dialéticas entre discurso
e outros momentos (nâo-discursivos).
Na análise do discurso, em que textos figuram como principal ma-
terial empírico, devem ser buscadas conexões entre os mecanismos
discursivos e o problema em foco. Essa análise detalhada e intensiva de
textos como elementos de processos sociais é, nos termos de Choulia-
raki & Fairclough (1999, p. 67), um processo complexo que engloba
duas partes: a compreensão e a explanação. Um texto pode ser compreen-
dido de diferentes maneiras, uma vez que diferentes combinações das
propriedades do texto e do posicionamento social, conhecimentos,
experiências e crenças do leitor resultam em diferentes compreen-
sões. Parte da análise de textos é, portanto, análise de cornpreensões,
que envolvem descrições e interpretações. A outra parte da análise é
a explanação, que reside na interface entre conceitos e material empírico.
Esta constitui um processo no qual propriedades de textos particulares
são "redescritas" com base em um arcabouço teórico particular, com
a finalidade de "mostrar como o momento discursivo trabalha na prá-
tica social, do ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e
relações de dominação" (op. dt., p. 67).
Além de englobar essas duas partes, a compreensão e a explanação,
a análise de discurso é orientada, simultaneamente, para a estrutura e
para a interação. Isto é, para os recursos sociais {ordens de discurso)
que possibilitam e constrangem a interação, bem como para as ma-
neiras como esses recursos são articulados em textos. A concepção
de textos como parte de eventos específicos, que envolvem pessoas,
(inter-)ação, relações sociais, mundo material, além de discurso, situa
a análise textual na interface entre ação, representação e identificação,
três principais aspectos do significado, que serão discutidos a seguir.Conformefoimencionadonaseçãoanterior,discursosfiguram simul-
tânea e dialeticamente em práticas sociais: como maneiras de (inter-)agir,
275
Análises do discurso hoje
de representar e de identificar(-se) .Tais maneiras, dentro da proposta de
Fairclough (2003), encontram-se associadas a três elementos de ordens
de discurso — gêneros, discursos, estilos — e aos três principais signifi-
cados da linguagem — acionai, representacional e identificacional. Não
obstante, como observa Silva (2007b), deve-se ter em mente que esses
três tipos de significados têm sua gênese nas rnacrofunções da lingua-
gem propostas por Halliday (1973,1994) e rediscutidas por Halliday &
Matthiessen (2004) dentro da Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF),
da qual trataremos de maneira sucinta a seguir.
5. A LSF e os significados do discurso na ADC
Em poucas palavras, a LSF aponta três rnacrofunções simultâneas da
linguagem, passíveis de ser identificadas em textos: a ideadonal (enfo-
que na oração como processo); a interpessoal (enfoque na oração como
ato de fala); e a textual (enfoque na oração corno mensagem). Desta-
camos, aqui, os processos de transitividade da língua, os quais se en-
contram associados à função ideacional, que consiste na expressão do
conteúdo, da experiência do falante/ escritor em relação ao mundo
real (incluindo as noções de tempo e espaço) e ao mundo interior de
sua própria consciência.
Com base no princípio de que a linguagem estrutura a experiência
e contribui para determinar nossa visão de mundo, sugere Halliday
(1994) que se pode identificar em uma oração urna transitividade evi-
denciada por vários tipos de processos — material, comportamental,
mental, verbal, relacionai e existencial — com seus significados e parti-
cipantes característicos, bem como as circunstâncias que os envolvem.
Deve-se comentar, ainda, que a teoria sistêmica hallidiana configura
urna proposta que envolve o estudo da linguagem em sua interiorida-
de, mas que também leva em conta as escolhas, as opções, as necessi-
dades, bem como os propósitos dos falantes, o que se reflete na exte-
rioridade da linguagem. Trata-se, aqui, da correlação entre a estrutura
lingüística e a estrutura social (SILVA, 2007a).
276
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
Ao estreitar o diálogo da ADC com a LSF, sugere Fairclough (2003)
que um texto, além de envolver simultaneamente as funções ideacio-
nal, interpessoal (identitária e relacionai) e textual, deve ser visto sob
o prisma de três tipos de significados do discurso, ou seja, como ação
(por meio de gêneros), representação (por meio de discursos) e identi-
ficação (por meio de estilos), que são os três elementos de ordens de
discurso. Nessa perspectiva, cada ordem de discurso encerra gêneros
discursivos característicos, que articulam discursos e estilos de maneira
relativamente estável num determinado contexto sociohistórico e cul-
tural. Cabe lembrar, ainda, que gêneros, discursos e estilos constituem
elementos de ordens do discurso, categorias diferentes de nomes e ora-
ções, que são elementos de estruturas lingüísticas. Comenta Fairclough
(2003, p. 28) que analisar textos em termos dos significados do discur-
so, isto é, na interface entre ação e gêneros, representação e discursos, bem
como entre identificação e estilos, implica uma perspectiva social deta-
lhada. Isso nos permite não só abordar os textos em termos dos três
principais aspectos do significado e das maneiras como são realizados
em traços lingüísticos nos textos, mas também estabelecer a conexão
entre um evento social concreto e práticas sociais mais abstratas.
Ainda que a relação entre os significados do discurso seja dialética,
traços semânticos, gramaticais e lexicais dentro de textos podem ser
associados, em princípio, a significados particulares. Essa especificidade
explica-se pelo fato de gêneros se realizarem nos textos em formas e
significados acionais, assim como discursos, em formas e significados
representacionais, e estilos, em formas e significados identificacionais.
Isso implica que traços lingüísticos específicos (tais como vocabulário,
relações semânticas e gramaticais) são, em princípio, moldados por sig-
nificados particulares.
Nos exemplos que apresentaremos mais adiante, trabalhamos algu-
mas categorias de análise que correspondem, especialmente, a formas
e significados representacionais, razão pela qual ampliamos essa intera-
ção teórica, sobretudo, com respeito à categoria da representação. Para
tanto, buscamos a contribuição de van Leeuwen (1997), cujas idéias
277
Análises do discurso hoje
de natureza essencialmente crítica, bem como sociológica, fbndamen-
tarn-se na proposta hallidiana, a exemplo de Fairclough.
6. A categoria da representação
Antes de enfocar a representação em termos lingüístico-discursivos, su-
gere van Leeuwen (op. dt.) que se deve buscar as maneiras como atores
sociais são representados em textos, o que pode indiciar posicionamentos
ideológicos em relação a eles e a suas atividades.Trata-se de unia propos-
ta analítica que conjuga o social e o lingüístico, mas com ênfase na agên-
cia sociológica. Segundo o autor, determinados atores, por exemplo, po-
dem ter sua agência ofuscada, ou enfatizada, em representações; podem
ser representados por suas atividades ou enunciados; ou ainda podem ser
referidos de modos que presumem julgamentos acerca do que são ou
do que fazem. Por isso, a análise de tais representações costuma ser útil
no desvelamento de ideologias em textos e interações. Para tanto, apre-
senta van Leeuwen um inventário sociosemântico detalhado quanto aos
modos pelos quais os atores sociais podem ser representados. Cada uma
das escolhas representacionais propostas encontra-se ligada a realizações
lingüísticas específicas, o que será explicado a seguir.
As representações incluem ou excluem atores sociais para servir
a interesses e propósitos particulares. Atores podem ser incluídos, su-
primidos ou colocados em segundo plano na representação. A inclusão
pode ser realizada de diversas maneiras, tais como nomeação e categori-
zação. Os atores podem ser representados em termos de sua identidade
única, sendo nomeados ou categorizados. A nomeação realiza-se tipica-
mente através de nomes próprios, ao passo que a categorização ocorre
por funáonalização e identificação. A primeira escolha representacional
ocorre quando os atores são referidos em termos de uma atividade,
ocupação ou função à qual estão ligados. Costuma-se realizar por meio
de substantivo formado de verbo rnais sufixo ("ditador"); substantivo
formado a partir de outro substantivo que denota local ou instrumento
diretamente associado a uma atividade ("estrategista"); composição de
278
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
substantivos denotando locais ou instrumentos de trabalho diretamente
associados a uma atividade ("homem-bomba"), conforme exemplos
de Ramalho (2005). No caso da identificação, são representados por
aquilo que, mais ou menos permanentemente, ou inevitavelmente, são,
como sexo, idade, classe social, etnia e, a nosso ver, até por princípios
religiosos, o que remete à fé, traço essencialmente humano.
Os atores podem ser incluídos também de forma não indivi-
dualizada, ou seja, de forma assimilada, por meio de referenda genérica
ou específica. A primeira pode se realizar lingüisticamente através do
plural sem artigo e do singular com artigo definido ou indefinido.
A segunda representa os atores sociais em grupos e pode se reali-
zar por meio de especificação por agregação, quantificando grupos de
atores como dados estatísticos, ou por coletivização, que não represen-
ta atores quantitativamente, mas os trata por meio da pluralidade, tal
como "os iraquianos", "os invasores".
Cabe, aqui, registrar que, ao contrário das escolhas representacio-
nais comentadas anteriormente, que personalizam os atores sociais,
representando-os como seres humanos por meio de nomes próprios,substantivos, cujos significados encerram característica humana, uma
outra categoria, proposta por van Leeuwen, denominada objetivação,
refere-se ao que ímpersonaliza os atores. A objetivaçao ocorre quando
os atores sociais são representados metonimicamente por meio de uma
referência a um local, ou coisa diretamente associada quer à sua pessoa,
quer à atividade a que estão ligados ("moradores de rua" e "catadores
de lixo"). Em Ramalho (2005), por exemplo, foram examinados ca-
sos de espadalização, em que os atores são representados por meio de
uma referência ao local ao qual estão diretamente associados, como
"os Estados Unidos" em vez de citar nomes de governantes dos EUA;
de autonomização de enunciado,, na qual os atores são representados por
meio de uma referência aos seus enunciados, tal como em "o relatório
afirmava"; e de instrumentalização, em que a representação se dá pormeio de uma referência ao instrumento com o qual os atores empreen-
dem uma atividade a que estão ligados.
219
Análises do discurso hoje
7. As representações em discursos institucionalizados
Como destacamos no início do artigo, nosso propósito é discutir pres-supostos teórico-metodológicos da ADC e ilustrar sua aplicabilidadeem pesquisas sobre diferentes preocupações sociais com aspectos dis-cursivos. Reunimos, pois, nesta seção, exemplos de análises lingüís-tico-discursivas, levadas a cabo em nossas pesquisas, as quais têm emcomum, além da abordagem crítica, dados gerados a partir de discursosinstitucionalizados — textos provenientes da mídia escrita —, exa-minados de modo específico sob a lupa da ADC, com o auxílio deferramentas de análise balizadas pela LSF.5
7. i. Práticas discursivas naturalizadas: a pobreza como pano de fundo
ignorado
O objetivo desta subseção analítica é apontar uma série de representaçõesdiscursivas discriminadoras, que são socialmente elaboradas e comparti-lhadas, ainda que de forma inconsciente. Apontá-las significa uma manei-ra de contribuir para a conscientização de práticas naturalizadas em nossasociedade, as quais atingem o status do denomindado "senso comum",sobretudo, com relação a questões que ilustram a pobreza nas ruas, o quevem atrelado ao descaso com os menos favorecidos. Uma vez que o estu-do tem como pilar básico princípios da ADC, cabe, aqui, enfatizar que aanálise textual é conjugada com análises de cunho sociológico.
Na ADC, a questão da representação se configura no discurso, vin-culada ao eixo do conhecimento (relação de controle sobre as coisas),dentro dos três aspectos do significado da linguagem (FAIKCLOUGH,2003). Já a LSF enfoca a representação dentro da função ideacional dalinguagem, mediante a transitividade oracional identificada por meiode três componentes: o processo verbal, seus participantes e os aspectos
5 Os dados e reflexões analíticas foram apresentados no /// Simpósio internacional sobreanálise do discurso: emoções, ethos e argumentação, realizado na Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG), em abril de 2008.
280
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
circunstanciais (HALLIDAY, 1994).A categoria hallidiana de participantesrecebe de van Leeuwen (1997) um desdobramento em termos de fer-ramentas analíticas, o que nos permite unia análise crítica mais acuradano âmbito do significado representacional da linguagem.
Na pesquisa mais ampla, inserida no projeto sobre pobreza nas ruas,que vem sendo coordenado por uma das autoras, analisamos e com-paramos textos de diversos gêneros discursivos, tais como entrevistasnarrativas com moradores de rua, que representam redes de práticasdiscursivas individuais, assim como leis, decretos, projetos de lei e notasinformativas da mídia impressa, que integram redes de práticas ligadas ainstituições. Entre os dados que conformam os corpora da referida pes-quisa, selecionamos, para esta subseção, dois textos da mídia impressa.
Texto 1:
Catadores invadem Parque das Sucupiras
DA REDAÇÃO
O Parque de Uso Múltiplo das Sucupiras, às margens do eixo
Monumental, pede socorro. Várias famílias de catadores de papel
se mudaram para o local. A área de proteção ambiental virou depó-
sito de lixo e entulho. Os dejetos estão por toda parte e podem ser
vistos de várias janelas de apartamentos de condomínios do Setor
Sudoeste. Inconformados com o problema, moradores da região
pedem uma fiscalização intensa e o cercamento do parque, mas até
agora as queixas não resultaram em solução. [...]
(Correio Braziliense, 14/06/2007)
O fragmento acima faz parte de uma matéria de destaque, cujoconteúdo é de inteira responsabilidade do jornal, o que é configu-rado, no caso, pela informação "Da Redação". Para apontarmos, emtermos de "macroanálise", o modo como relações de poder associadasao discurso jornalístico operam, através de redes de práticas discursi-vas e estruturas, consideramos relevante mergulhar, sem nos afastar da
281
Análises do discurso hoje
superfície do texto, no nível da "microanálise", o que implica acercar-
nos do significado representacional da linguagem.
Cabe, aqui, ressaltar que a representação no discurso, como bem ob-
serva Fairclough (2003), encontra-se vinculada à relação de controle
sobre as coisas (eixo do conhecimento), enquanto a ação implica a rela-
ção de controle sobre os outros (eixo do poder), e a identificação envol-
ve a relação consigo mesmo (eixo da ética). Não obstante, pode-se, já
de início, associar representações discursivas aos dois primeiros eixos, a
começar pelo título da matéria, que evoca uma idéia de contravenção
e ilegalidade, tanto no processo material configurado na forma verbal
invadir, quanto na designação dos atores sociais: catadores (agentes in-
vasores) e o Parque (afetado).
De acordo com van Leeuwen (1997), atores sociais envolvidos em
eventos e práticas sociais, bem como as relações estabelecidas entre
eles, podem ser examinados a partir de um ponto de vista representa-
cional, em termos de que atores sào incluídos ou excluídos na repre-
sentação, e a que atores é dada proeminência. No caso do exemplo em
foco, a proeminência recai no Parque, não só pela posição que ocupa
de tópico, do ponto de vista da estrutura oracional, mas também como
participante âizente em termos de processo de transitividade:
"O Parque de Uso Múltiplo... pede socorro."
Com relação ao destaque acima, a idéia que o segmento oracional
transita, através das escolhas lingüísticas, ressalta A personalização do Par-
que, que é representado como ser humano.6 Enquanto o Parque é per-
sonalizado, outro segmento oracional — "Várias famílias de catadores
6 Cabe, aqui, lembrar que, na perspectiva das macrofunções hallidianas, a oração podeser enfocada como processo (ideacional), como ato de fala (interpessoal) e como men-sagem (textual). Uma observação a mais se faz necessária: a transitividade observadadentro da função ideaciona! envolve o processo verbal eni si, os participantes envol-vidos diretamence no processo (atores, metas, experienciadores, fenômenos, dizentes,etc.), os envolvidos indiretamente (recipientes, afetados, etc.), beni como as circuns-tâncias veiculadas por advérbios.
282
Análise de Discurso Critica: representações sociais na mídia
de papel se mudaram para o local" — permite-nos identificar uma
impersonalização por abstração, o que é reforçado pela indeterminação,
configurada lingüisticamente no emprego do pronome "várias" que
contribui para a idéia de anonimização.
Sempre de acordo com a categorizaçao sugerida por van Leeuwen
(op. aí.), pode-se, também, apontar a idéia de abstração que emerge do
sintagma "família de catadores", uma vez que se trata de uma designa-
ção genérica que relega a segundo plano o traço semântico /-í-huma-
no/. A impersonalização é ainda reforçada pela idéia de instrumentalização,
devido à forma pela qual os atores sociais, no caso, catadores de material
reciclável, são referidos. Outra representação que merece ser comenta-
da concerne a uma categorizaçao com ênfase no referente afetado — A
área de proteção ambiental —, uma referência anafórica ao "Parque", cuja
predicação consiste num comentário avaliativo do jornal: virou depósito
de lixo e entulho. Observe-se que tal avaliação é reforçada no segmento
oracional seguinte — Os dejetos estão por toda parte... — sobretudo, pela
imagem que a informação pode evocar na mente do leitor, visto que
leva a uma associação implícita. Mais que uma informação, trata-se de
uma representação que, a nosso ver, remete a valores discriminatórios,
veiculados, lingüisticamente, por urna coletivização, marcada pela plura-lidade de "os dejetos". Soma-se, a isso, a imagem da segregação espacial
da miséria, o que é passado ao leitor do mesmo modo que a idéia na-
turalizada de guetos, nas periferias urbanas.
Duas observações merecem ser, ainda, registradas. Por uni lado,
devemos mencionar que não se trata de analisar a representação em
termos de comparação com a verdade a respeito do evento concreto,
afinal, a "verdade" não se estabelece independentemente de represen-
tações particulares. Por outro lado, de acordo com T. van Dijk {l 999, p.205), os jornalistas corno grupo desenvolvem ideologias profissionais
com relação a outras elites, outros grupos de poder.7
7 Explica van Dijk (1999, p. 175) que "as ideologias não são somente conjunto decrenças, mas crenças socialmente compartilhadas por grupos .
283
Análises do discurso hoje
Vejamos, no texto (2), apresentado a seguir, como são projetadas
tais ideologias profissionais nas representações jornalísticas com rela-
ção às pessoas que vivem em situação de rua.
Texto 2:
Fiscais do SIVSOLO derrubam barracos
A Subsecretária do Sistema Integrado de Vigilância do Uso do
Solo (SivSolo) retirou 36 barracos na Asa Norte ontem à tarde. A
operação foi feita em pontos considerados críticos na região: nas
quadras 216, 909, 910 e 911. "A maioria dessas pessoas tem resi-
dência fixa e só fica aqui durante a semana para coletar o material
reciclável", explica o coordenador da operação, tenente Nelson Ra-
mos. Os invasores não apresentaram resistência, mas avisaram que
vão voltar.
(Correio Braziliense, p. 22, 27/03/07)
Observe-se que, apesar da aparência cível do título, o conteúdo da
nota informativa implica, na realidade, uma ação militar contra mora-
dores de rua, o que pode ser constatado na referência anafórica a um
procedimento do SivSolo, configurado no síntagma nominal a operação,
bem corno na referência ao coordenador da operação, no caso, um
tenente. Por outro lado, há uma referência exofórica de atores sociais
explicitada no sintagma os invasores. Disso resulta que o emprego da
expressão os invasores constitui, no texto em análise, uma representa-
ção social atribuída aos moradores de rua, cujas identidades sociais são
apagadas na reportagem, ou melhor, ignoradas, uma vez que são desig-
nados tão-somente por meio da pluralidade, numa espécie de inclusão
no texto apenas mediante uma "coletivização" (van Leeuwen, op. dt.}.
Deve-se ressaltar que tal representação, veiculada em atos referenciais
supostamente neutros, envolve, na verdade, uma opinião avaliativa por
parte do jornal. Para explicitar o poder da designação, no presente con-
texto analítico, recorremos às palavras de Rajagopalan (2003, p. 87): "é
284
Análise de Discurso Critica: representações sociais na mídia
justamente por estar camuflado como um simples ato referencial que
tais descrições acabam exercendo tamanha influência sobre o leitor do
jornal. À medida que o leitor vai-se acostumando ao rótulo, deixa de
perceber que a descrição não passa de uma opinião avaliativa".
7.2. Discurso e ideologia na propaganda de medicamentos
O exemplo de análise que ora apresentamos é proveniente de pesquisa
de doutorado, mencionada anteriormente, sobre o discurso da propa-
ganda brasileira de medicamentos. O estudo crítico tem como escopo&
central a investigação de sentidos ideológicos capazes de sustentar re-
lações assimétricas de poder, sobretudo entre peritos em saúde e publi-
cidade, de um lado, e cidadãos(ãs) comuns "leigos(as)", de outro.
Como se apoia em pressupostos teórico-metodológicos da ADC,
a pesquisa conjuga análise social, das redes de práticas de algum modo
envolvidas na atividade promocional, e análise discursiva, de textos
promocionais de medicamentos. O objeto da análise de cunho mais
social abarca uma rede composta por quatro principais práticas articu-
ladas, direta ou indiretamente, com a promoção de medicamentos: as
práticas de produção industrial e comercialização de medicamentos; a prática
publicitária; a prática da vigilância sanitária, e, por fim, o mundo da vida,
a prática do(a) cidadão(ã) comum. Sobre tais práticas, cabe comen-
tar que a indústria de medicamentos está entre as mais lucrativas do
mundo, e seu investimento em propaganda é muito maior do que em
pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos, cerca de 35% da
receita, conforme Angell (2007).
No Brasil, parte da população, por um lado, encontra-se desas-
sistida de tratamentos e serviços de saúde. Por outro, considerável
parcela da sociedade é diariamente exposta a apelos comerciais que
possuem potencial para, em práticas específicas, levar as pessoas ao
consumo desnecessário e desmedido de medicamentos. Esses pro-
dutos farmacêuticos são representados na mídia como "símbolos de
saúde", a materialização de um conceito que, hoje, significa a busca
285
Análises do discurso hoje
incessante pela expansão do potencial corporal, conforme Bauman
(2001), e pela superação das naturais limitações humanas, de acordo
com Silva (2000).
Dados seus reconhecidos riscos potenciais à saúde pública, essa
prática publicitária é regulamentada e fiscalizada no país, desde 2000,
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Amparada pe-
la Resolução de Diretoria Colegiada n° 102/2000, à Anvisa com-
pete, por exemplo, o controle de certos apelos em propagandas de
medicamentos de venda livre, ou, ainda, a suspensão de propagandas
vedadas ao público em geral, como de medicamentos de venda sob
prescrição (BRASIL, 2000). Como resultado e instrumento das mu-
danças sociais que inseriram a propaganda de medicamento na lista
dos objetos "controlados" pela vigilância sanitária, identificamos, na
pesquisa, mudanças discursivas na prática publicitária. Dentre elas, es-
tão novas "tecnologias discursivas", nos termos de Fairclough (2001),
capazes de dissimular propósitos promocionais em textos, de modo
que alcancem o(a) consumidor(a) potencial como se fossem simples
informações.
Para ilustrar tais mudanças discursivas, impulsionadas pelas novas
exigências sociais, apresentamos exemplos de textos promocionais em
que se verifica o que denominamos "cientlficização da publicidade".
Por este processo, entendemos o rompimento estratégico de fronteiras
entre diferentes campos sociais, tais corno o mundo da vida, a ciência, a
comunicação, a economia, que se verifica, no caso em análise, no acen-
tuado hibridismo entre o discurso da ciência médica/ farmacêutica e
o discurso publicitário.
Embora seja previsível o uso de vocabulário científico em propa-
gandas de medicamento, o que se verificou na pesquisa foi um proces-
so estratégico de "fusão" entre os dois discursos citados que obscurece
a distinção entre o que é "publicidade" e o que é "divulgação cientí-
fica". O híbrido de "reportagem de divulgação científica" e "publici-
dade", identificado em diversas amostras analisadas no estudo, sugere
que o controle sanitário parece ter mais impulsionado novas formas
256
Análise de. Discurso Crítica: representações sociais na mídia
potencialmente ideológicas de promover medicamentos do que pro-
priamente coibido tais práticas.
A seguir, apresentamos dois exemplos:
Exemplo (i)
Essa síndrome nada mais é do que um distúrbio dos movimen-
tos do intestino que provoca muita dor, diarréia ou, em outro extre-
mo, prisão de ventre. [...]
'É um remédio promissor para uma doença que tem graves im-
plicações na vida social' [...]
(Revista Saúde, 2002, n. 224, p. 34)
O Exemplo (1) é uma passagem de um texto divulgado em revista
impressa, na seção "Avanços", isto é, reservada para divulgações no cam-
po da ciência. O texto apresenta forma de "reportagem de divulgação
científica", mas não parece ter como finalidade principal divulgar in-
formações sobre a "síndrome intestinal". Observa-se que, assim como
ocorre em textos explicitamente publicitários, o texto em foco dá desta-
que à mercadoria, ou seja, ao medicamento indicado para a síndrome.
No exemplo acima, a macrorrelação semântica problema-solução,
típica de anúncios, é explícita. O problema é a doença que "provo-
ca dor, diarréia, prisão de ventre" e "tem graves implicações na vida
social". A solução, por outro lado, é a droga anunciada. Se as pala-
vras mencionadas acima apresentam o problema, isto é, as "necessida-
des" ou "desejos" atribuídos ao(à) leitor(a) consumidor(a) potencial, o
Exemplo (2), a seguir, delimita a passagem para a solução:
Exemplo (2)
Isso, porém, deverá mudar com um medicamento que acaba de
ser lançado no Brasil [...]
(Revista Saúde, 2002, n. 224, p. 34)
287
Análises do discurso hoje
A relação semântica local contrastava e o processo "mudar" sinali-
zam um padrão recorrente de anúncios. Na reportagem de divulgação
científica, como observou Zamboni (2001), predomina uma atitude
mais de cautela e prudência diante dos resultados apresentados do que
de comprometimento, subjetivo e explícito, com esses resultados. A
supervalorização da droga como a "solução" pode ser vista, portanto,
como um traço dessa interdiscursividade.
Ainda como traço de tal hibridização estratégica, podemos apontar
nas passagens acima palavras características do vocabulário científico
— "síndrome"f"distúrbio"— ao lado do discurso publicitário —"re-
médio promissor", "acaba de ser lançado", por exemplo.
No estudo mais amplo, verificamos que as convenções trazidas da
reportagem de divulgação científica são articuladas com o discurso
publicitário, com a finalidade não só de legitimar os medicamentos
como soluções eficazes e desejáveis, mas também de obscurecer o pro-
pósito promocional do texto, apresentando-o como "informação".
A elevada hibridização discursiva em textos promocionais de me-
dicamento consiste em uma "tecnologia discursiva", uma manipulação
estratégica da linguagem orientada para projetos de dominação. A am-
bivalência contemporânea de funções — entreter e vender, aconselhar e
vender,informar e vender — implica, como observou Fairclough (2001),
questões de poder e ideologia. Os sentidos criados nas propagandas de
medicamento atuais apontam sua potencialidade para obscurecer frontei-
ras entre informação/ publicidade e, até mesmo, entre saúde/ estética.
O estudo aqui exemplificado permite afirmar, na perspectiva da
ADC, que o discurso particular da publicidade é legitimado em gê-
neros discursivos híbridos e inculcados em identidades projetadas na
imagem do(a) consumidor(a) de medicamento.
8. Considerações finais
Neste trabalho, pretendemos apresentar, discutir e ilustrar com análi-
ses a perspectiva teórico-metodológica da ADC, desde a proposta de-
288
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
senvolvida pelo lingüista britânico Fairclough, em. parceria com Lilie
Chouliaraki, até os princípios ontológicos e teóricos que fundamentam
a concepção de linguagem como prática social, tanto constituída pela
sociedade quanto constitutiva de identidades, crenças, valores, conhe-
cimentos. Também discutimos aspectos especificamente relacionados à
abordagem de análise empírica, voltados para problemas sociais. Sinali-
zamos que, igualmente fundamentada no Realismo Crítico, a proposta
de pesquisas em ADC é emancipatória, uma vez que se ocupa de pro-
blemas sociais com aspectos discursivos, como aqueles que ilustramos
nas análises, tendo em vista dois objetivos interligados. Primeiro, inves-
tigar mecanismos discursivos e seus efeitos potencialmente ideológicos.
Segundo, propor possíveis maneiras de superar relações assimétricas de
poder parcialmente sustentadas por sentidos ideológicos.
As análises sugerem que as representações na mídia, tanto de pessoas
em situação de rua, quanto do conceito de "saúde", podem contribuir
para naturalizar e manter reconhecidos problemas sociais. Disso ad-
vém nossa preocupação em investigar os discursos da mídia impressa
e apontar caminhos para desconstruir ideologias naturalizadas, além de
clarificar como valores discriminatórios estão inscritos e mediados nos
sistemas semióticos. Esperamos haver cumprido nossos objetivos opera-
cionais, pelo menos no âmbito deste artigo, assim como contribuir para
a divulgação dessa ciência crítica da linguagem que vem agregando, de
maneira crescente, novos(as) pesquisadores(as).
Referências
ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos
enganados e o que podemos fazer a respeito.Trad.Waldéa Barcellos. Rio
de Janeiro: Record, 2007.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida.Traâ. Plínio Dentzien. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 2001.BHASKAR, Roy. A Realist Theory of Science. Brighton: Harvester,
1978.
2S9
Análises do discurso hoje
. "Philosophy and scientific reaíism". In: ARCHER, M.;
BHASKAR, R; COLLIER,A.; LAWSON,T.; NORRIE,A. (eds.)-
Criticai Reaíism: Essential Readings. London; New York: Routledge,
1998, p. 16-47.
BRASIL. Resolução RDC n. 102, de 30 de novembro de 2000. Diário
Oficial da União, Brasília, 1° dez. 2000. http://e-legis.bvs.br/leisref/
public/showAct.php?id=11079>.Acesso em 07 jan. 2005.
CHOULIARAKI, Lilie; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in Late
Modernity: rethinkíng Criticai Discourse Analysis. Edinbourg: Edin-
bourg University, 1999.
FAIRCLOUGH, Norman, Discurso e mudança soad/.Trad. (org.) Izabel
Magalhães. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. Lon-
don/ New York: Routledge, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983.
HALLIDAY, Michael. A.K.; MATTHIESSEN, C.M.I.M. An Introduc-
tion to Functional Grammar. London: Hodder Arnold, 2004.
. Introduction to Functional Grammar. 2. ed. London: Edward
Arnold, 1994.
. "The Functional Basis of Language". In: BERNSTEIN, B.
(ed.). C/1355 Codes and Control London: Routledge & Kegan, 1973,
p. 343-366.
HARVEY, David. Condição pós-moderna.Trad. Adú\ U. Sobral e Maria
S. Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1996.
LACLAU, Ernest; MOUFFE, Chanttal. Hegemonia y estratégia socialista:
hacia una radicalizacián de Ia democracia. Buenos Aires: Fondo de Cul-
tura Econômica de Argentina, 2004.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística critica: linguagem, iden-
tidade e a questão da ética. São Paulo: Parábola, 2003.
RAMALHO, Viviane. "Diálogos teórico-metodológicos: Análise de
Discurso Crítica e realismo crítico". In: Cadernos de Linguagem e
Sociedade, v. 8, 2007, p. 78-104.
290
Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia
. O discurso da imprensa brasileira sobre a invasão anglo-saxônica
ao Iraque. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília. Pro-
grama de Pós-Graduação em Lingüística, 2005.
RESENDE,Viviane de Melo; RAMALHO,Viviane. Análise de Discur-
so Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
; RAMALHO, Viviane. "Análise de Discurso Crítica: uma
reflexão acerca dos desdobramentos recentes da teoria social do
discurso". In: ALED/Revísta Latinoamericana de Estúdios dei Discur-
so, v. 5, n. l ,2005, p. 27-50.
SAYER, Andrew. "Características-chave do realismo crítico na prática:
um breve resumo". In: Estudos de Sociologia. Revista do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da UFPE, v. 6, n. 2,jul./dez., 2000, p. 7-32.
SILVA, Denize Elena Garcia da. "Criticai Discourse Analysis and
the Functional Bases of Language", In: BARBARA, Leila;
SARDINHA,Tony Berber (eds.). Proceedings ofthe 33'J International
Systemic Functional Congress (PUC-SP, São Paulo, Brazil), 2007, p.
932-949. Acesso em 20 dez. 2007a. Disponível: http://www.pucsp.
br/isfc/proceedings/Artigos%20pdf/45cda_sil va_932a949.pdf.
. "Identidades enfraquecidas versus cidadania cultural". In:
Joachin Sèbastien (org.). Diversidade cultural, linguagens e identidades.
Recife: Elógica, v. l, 2007b, p. 51-68.
."Metáforas sob a lupa da Análise de Discurso Crítica". In:
BARBARA, Leüa; SARDINHA, Tony Berber (orgs.)- Língua, gra-
mática e discurso. Goiânia: Cânone/GELCO, 2006, p. 161-178.
."A ética na pesquisa: reflexões sobre metodologia na coleta
de dados". In:VIEIRA,Josenia Antunes; SILVA, Denize Elena Gar-
cia da (orgs.). Práticas de Análise do Discurso. Brasília: Plano; Oficina
Editorial do Instituto de Letras, 2003, p. 161-171.
. Percursos teóricos e metodológicos em análise do discur-
so: uma pequena introdução. In: SILVA, Denize Elena Garcia da;
VIEIRA, Josenia Antunes (OT^.). Analise do Discurso: percursos teóri-
cos e metodológicos. Brasília: Plano; Oficina Editorial do Instituto de
Letras, 2002, p. 7-19.
29 i
Análises do discurso hoje
SILVA,TomazTadeu da. (org./trad.). Antropologia do ciborgue: as vertigens
do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica: 2000.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ:Vozes, 2002.
VAN DIJK,Teun A. Ideologia: una aproximación multidisáplinaria. Barce-lona: Gedisa Editorial, 1999.
VAN LEEUWEN, Theo. "A representação dos actores sociais". In:
PEDRO, Emília Ribeiro (org.). Análise critica ao discurso. Lisboa:Caminho, 1997, p. 169-222.
ZAMBONI, Líliari Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e a divulgação
cientifica: subjetividade e heterogeneidade no discurso de divulgação cientí-
jica. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.
292
A ORGANIZAÇÃO RELACIONAL DETEXTOS DE GÊNEROS JORNALÍSTICOS
Janice Helena Chaves Marinho (UFMG)
1. Introdução
O discurso, concebido como interação verbal situada em suas dimen-
sões lingüística, textual e situacional, pode ser estudado com base num
instrumento de análise tal como o proposto por Roulet, Filliettaz e
Grobet (2001).Trata-se do Modelo de Análise Modular (MAM), que
nos fornece um quadro de reflexão e de instrumentos heurísticos pró-
prios para favorecer a descrição da complexidade da organização de
discursos autênticos.
Para que se possa estudar todos os aspectos ligados ao discurso, o
modelo adota a hipótese de que um objeto cuja organização é bastan-
te complexa deve ser decomposto num certo número de sistemas de
informações simples e autônomos, que serão descritos inicialmente de
maneira independente, sem referência a outros sistemas de informa-
ções, para posteriormente se proceder à combinação das informações
resultantes das análises de cada um desses sistemas e se chegar à inter-
pretação da complexidade da organização de discursos.
Os sistemas elementares ou módulos, distribuídos em subconjuntos
nas três dimensões — sintático e lexical (dimensão lingüística); hierár-
quico (dimensão textual); referencial e interacional (dimensão situacio-
nal) —, fornecem informações que serão combinadas com as extraídas
da descrição das formas de organização elementares ou complexas. Pás-
Análises do discurso hoje
sando-se sucessivamente da descrição das dimensões modulares à des-
crição das formas de organização, pode-se chegar então à compreensão
da complexidade e da heterogeneidade das atividades discursivas.
O estudo da organização relacionai de atividades discursivas materia-
lizadas em textos constitui um importante aspecto da elucidação de sua
interpretação, na medida em que informações dele extraídas poderão ser
combinadas com informações de outra natureza, possibilitando, assim, as
análises de todas as formas de organização complexas do discurso.
E na forma de organização relacionai que se estudam as relações
textuais e o papel dos conectores na sinalização ou na determinação
dessas relações. O interesse pelo estudo dos conectores em textos —
que têm sido estudados sob diferentes perspectivas e têm recebido di-
ferentes denominações, tais como: marcadores discursivos, conectores
discursivos, conectores pragmáticos, partículas pragmáticas, marcadores
de relação textual, etc. — deve-se ao fato de que esses elementos de-
sempenham papel na articulação textual-discursiva, embora sua con-
tribuição específica para isso não esteja ainda muito clara.
Diversos estudos sobre os conectores vêm sendo desenvolvidos hamais de trinta anos, sob diferentes pontos de vista com o propósito de
compreender o que eles são e quais são as funções que esses elementos
podem exercer no texto ou no discurso.
Uma das obras pioneiras sobre os conectores — Lês Mots du discours
(DUCRDT et aí., 1980) — os concebe como morfemas que possuem a
função de ligação entre unidades do discurso e que contêm instruções
semânticas em que se inscreve a natureza da orientação argumentativaque atribuem aos enunciados.
SchirTrin (1987), interessada em mostrar como os marcadores discur-
sivos funcionam para contribuir para a coerência do discurso, analisa-os
como elementos que marcam unidades de discurso seqüencialmente
dependentes. Para ela, esses elementos são os marcadores faticos (como
por exemplo "/ mean", "weU", "y'know"), os marcadores temporais
(como por exemplo "now", "then"), ou ainda os conectores propria-mente ditos (como "but",('because", "só", por exemplo). A autora reco-
294
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
nhece que os marcadores discursivos, que não se encaixam facilmente
numa classe lingüística, são recursos coesivos.
Blakemore (1992), na perspectiva da Teoria da Relevância (TR),
afirma que os conectores devem ser considerados como expressões
que impõem restrições semânticas aos tipos de implicaturas que o
ouvinte pode extrair do que o falante diz. Eles são usados pelos fa-
lantes para indicar como os enunciados que introduzem devem ser
interpretados como relevantes. A autora propõe que os conectores
não têm uma representação de sentido tal como as expressões lexi-
cais, mas têm somente um sentido procedural, que consiste em instru-
ções sobre como manipular a representação conceituai do enunciado.
Ela defende que os conectores devam ser analisados como restrições
contextuais lingüisticamente especificadas, como meios efetivos para
a restrição da interpretação de enunciados em concordância com o
Princípio da Relevância1.
Reboul e Moeschler (1998), interessados em compreender o fun-
cionamento dos conectores no discurso, propõem uma abordagem al-
ternativa, com origem na pragmática cognitiva (Teoria da Relevância)
e assim os definem como marcas lingüísticas, pertencentes a categorias
gramaticais variadas (conjunções de coordenação, conjunções de su-
bordinação, advérbios, locuções adverbiais), que: (a) articulam unidades
lingüísticas máximas ou unidades discursivas quaisquer; (b) oferecem
instruções sobre a maneira de ligar essas unidades; (c) impõem que se
tirem da conexão discursiva conclusões que não seriam tiradas na sua
ausência. Os autores defendem que tais expressões têm um conteúdoprocedural e que a sua função é essencialmente interpretativajá que a
sua presença pode facilitar a tarefa do interlocutor. Sua função é, dessa
forma, mais cognitiva do que discursiva, visto que, "minimizando os
esforços de tratamento e dirigindo o processo de descoberta dos efei-
1 O Princípio da Relevância é o princípio de base da TR, segundo o qual todo ato decomunicação traz em si mesmo a garantia de sua pertinência ótima, ou seja, o locutorproduz um enunciado o mais pertinente dentro das circunstâncias, para que valha apena interpretá-lo.
295
Analises do discurso hoje
tos contextuais, asseguram de maneira eficaz a pertinência do discur-so"2 (REBOUL; MOESCHLER, 1998, p, 98).
Fraser (1999), tentando elucidar o status e o funcionamento dos
marcadores discursivos, acaba definindo-os como uma classe de expres-
sões lexicais extraídas das classes de conjunções, sintagmas adverbiais e
preposicionais, que sinalizam uma relação entre o segmento que intro-
duzem (S2) e o segmento anterior (SI). Para o autor, os marcadores não
simplesmente exibem uma relação entre os segmentos, como considera
SchifErin (1987), mas impõem a S2 um certo conjunto de interpreta-
ções, considerando-se a interpretação de SI e o sentido do marcador.
Teóricos que trabalham com modelos baseados nas taxonomias das
relações de coerência ou retóricas (como a Rhetoríal Structure Theoty
— RST) consideram que os conectores podem ser usados para tornar
explícitas essas relações. A RST, inicialmente concebida como o quadro
dos estudos sobre a geração automática do texto, é uma teoria proposta
como uma explanação para a construção da coerência discursiva e da
organização do texto. Ela trata da organização textual, por meio das
relações de coerência existentes entre partes do texto, e explica a coe-
rência postulando a existência de uma estrutura textual hierárquica e
conectada, na qual toda parte de um texto tem um papel, uma função a
preencher, com respeito às outras partes (TABOADA, 2006). Fornece, assim,
ao analista um modo sistemático de observar um texto. O diagrama a
que chega o analista ao observar^ (e julgar) o texto oferece um panorama
de alguns propósitos ou intenções do autor na inclusão de cada parte do
texto, que está conectada a outra por meio das relações.3 O reconheci-
mento dessas relações é muitas vezes, embora nem sempre, guiado pela
presença de um conector, considerado marcador de relação retórica.
Num trabalho em que busca articular as propriedades dos conectores e
a interpretação do discurso, Rossari (2000) desenvolve um estudo semân-
tico dos conectores, elementos designados pela literatura lingüística como
conectores pragmáticos — conjunções, locuções adverbiais ou interjeições
2 Tradução minha.3 A RST define uma lísca de aproximadamente trinta relações.
296
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
—, cuja função é significar uma relação (daí o termo conector), relação
que se estabelece entre entidades lingüísticas ou contextuais (daí o termo
pragmático). A autora reivindica uma abordagem semântica para fazer so-
bressair as características estáveis do potencial semântico dos conectores,
as suas aptidões para exercer restrições estabelecidas pelo próprio código
sobre o ambiente lingüístico em que são usados. Para tanto, adota uma
análise duplamente comparativa, visto que se centra nos contrastes entre
enunciados com ou sem conectores ou nos contrastes entre enunciados
com conectores que integram uma mesma classe semântica. Segundo a
autora, tal análise causa impacto na forma como se concebem as relações
discursivas, na medida em que o estudo dos conectores oferece um es-
clarecimento particular a essas relações. Os conectores são concebidos
não só corno vetores de restrições que limitam suas possibilidades de
emprego em configurações adequadas ao tipo de relação que eles são
levados a explicitar, mas também como vetores de relações que não
podem se manifestar independentemente de seu emprego.
Os pesquisadores que seguem o Modelo de Analise Modular como
referencial teórico-metodológico consideram quef para o estudo dos
conectores — que deve estar integrado a esse modelo global da com-
plexidade da organização de discursos —, pode-se combinar meto-
dologias usadas pelas diferentes abordagens, pelo fato de elas parece-
rem complementares e convergentes (ROULET, 2006). Assim, segundo
Roulet (op, dt.), na descrição dos conectores, considera-se a análise das
relações entre constituintes textuais de discursos reais, a análise semân-
tica das instruções dadas pelos conectores e a definição cognitiva de
operações básicas requeridas para a construção do discurso.
Os conectores são definidos como formas lingüísticas que indicam
ou determinam uma relação ilocucionária ou interativa entre consti-
tuintes do texto e informações estocadas na memória discursiva (defi-
nida como um conjunto de saberes compartilhados pelos interlocuto-
res4) e que oferecem instruções procedimentais que facilitam o acesso a
informação relevante para a interpretação da relação (ROULET, 2006).
4 Cf. Berrendonner (1983).
291
Análises do discurso hoje
Inicio este artigo com uma breve apresentação do modelo de análise
adotado e da descrição da forma de organização relacionai do discurso.
Em seguida faço algumas considerações acerca dos gêneros jornalísticosaqui estudados — o texto de opinião e a notícia — e a descrição dos
perfis relacionais dos textos analisados, por meio dos quais é possível te-
cer considerações sobre a marcação das relações textuais nesses textos.
2. O Modelo genebrino e a forma de organização relacionaido discurso
O Modelo de Análise Modular do discurso — doravante MAM — con-siste num instrumental teórico e metodológico que combina informaçõesde diferentes dimensões discursivas. Alinhado às propostas de Bakhtin,concebe o discurso como interação verbal e o descreve com referência asituações reais de uso, a configurações textuais que ele produz e a recursos
convencionais que ele carrega e evidencia (FILLIETTAZ; ROULET, 2002).
Seus autores postulam que, para a consideração da complexidadeda organização do discurso, ela pode ser analisada inicialmente pelaidentificação de um conjunto restrito de componentes elementares, osmódulos, e em seguida pela combinação desses componentes elemen-tares, o que resulta nas formas de organização.
A forma de organização relacionai resulta da combinação de infor-
mações de natureza lexical, hierárquica e referencial. O seu estudo pos-sibilita a identificação das relações textuais, chamadas de ilocucionárias
ou interativas, que podem existir entre os constituintes dos textos e as
informações estocadas na memória discursiva dos interlocutores. Essasrelações são definidas considerando-se o processo de negociação sub-jacente às interações, exposto na estrutura hierárquica.
Segue-se a hipótese de que cada constituinte textual constitui umtraço/ registro de linguagem de uma atividade comunicativa e de que
essa atividade comunicativa ocorre por meio de urna troca. As trocassão, portanto, unidades de comunicação, enquanto os textos são os tra-ços/ registros das trocas. Um texto possui um valor acionai, ou seja, um
298
A organização relaãonal de textos de gêneros jornalísticos
valor comunicacional que pode ser manifestado em dois níveis, globale local, e que pode ser realizado por três tipos de unidades textuais: a
troca {unidade comunicativa), a intervenção (unidade textual interme-
diária) e o ato (unidade textual mínima). Essas três unidades textuais
podem manter relações hierárquicas entre si.Numa estrutura hierárquica, as relações ilocucionárias são as que
ocorrem entre as informações no nível da troca. As intervenções que
a compõem podem estar ligadas por relações ilocucionárias iniciativas(como perguntas, pedidos) ou reativas {como respostas). Os consti-
tuintes que pertencem à intervenção, por sua vez, podem estar ligados
por relações interativas, definidas de forma genérica em oito tipos:preparação, argumento, contra-argumento, comentário, topicalização,
reformulação, clarificação e sucessão.A descrição da organização relacionai de um texto contribui para
a elucidação de sua interpretação, através da interpretação das posiçõeshierárquicas dominantes de seus constituintes, e permite o alcance deseu perfil relacionai, exposto em esquema arbóreo, que evidencia asrelações textuais dominantes no interior de sua organização. Esse perfil
relacionai pode ser completado com procedimentos que evidenciam a
computação de relações textuais específicas.
3. Análise
Os textos selecionados para a análise que aqui apresento são textos
de opinião e notícias, publicados no jornal Folha de São Paulo e/ouno Folha Online, bem como textos produzidos por estudantes, comoatividade escolar5. São dez editorias (cinco produzidos por colunistasda Folha e cinco por estudantes) e dez notícias (cinco produzidas por
jornalistas da Folha e cinco por estudantes).
5 Os textos foram produzidos pelos estudantes como atividade de produção de textos,após prévia leitura e discussão de textos autênticos. As produções dos estudantes foram
digitadas tal como foram escritas por eles.
299
Análises do discurso hoje
O MAM assume que a construção de qualquer interação verbal, fa-lada ou escrita, reflete um processo de negociação em que os interlocu-
tores recursivamente iniciam proposições, reagem a elas e finalmente asratificam. Uma proposição como uma pergunta, por exemplo, pode ser
formulada de tal forma que irá causar uma reação simples como uma
resposta ou pode causar a necessidade pelo interlocutor de abertura de
uma negociação secundária de modo a esclarecer o que de fato se per-
guntou.A reação, por sua vez, pode ser uma resposta completa que con-duz os participantes da interação a uma ratificação ou pode ser apenas
parcial ou mesmo confusa, o que implicará a necessidade de abertura deoutra negociação. A vontade dos interlocutores de efetuar negociações
faz com que eles produzam tais constituintes comunicativos. As trocas,que funcionam como projeção textual dialogai máxima de um proces-so de negociação, são compostas por intervenções. Cada fase do proces-
so de negociação corresponde a uma intervenção, que pode ser restritaa um só ato principal ou pode ser formada por uma configuração maiscomplexa: outras intervenções, atos e trocas subordinadas.
O desenvolvimento e o fim de um processo de negociação estão as-sociados a dois princípios: (1) o princípio da completude dialógica, que
determina que uma troca chega ao fim quando os interlocutores alcan-çam um duplo acordo; (2) o princípio da completude monológica, quedetermina que cada constituinte de uma troca deva ser formulado de
modo a ser suficientemente claro para funcionar como uma contribui-ção adequada a esse processo (ROULET; FILLIETTAZ; GROBET, 2001).
Os textos que examino podem ser interpretados como represen-tando a fase de reação de um processo de negociação, na medida emque cada uni deles pode ser visto como uma resposta a uma proposi-ção, isto é, um assunto ou um fato que desencadeia a necessidade deuma discussão, da expressão de uma opinião ou do oferecimento de
informação. Cada um deles, então, constitui uma intervenção cujosconstituintes se conectam por meío de relações textuais interativas.
Essas relações podem ser identificadas pela presença de conectoresou pela possibilidade de sua inserção nas seqüências do texto, por meioda qual se poderão explicitar as relações nelas presentes. Há relações
300
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
que podem ser também identificadas pela construção sintática, como
o deslocamento à esquerda, que ocorre em construções topicalizadas.Há outras para as quais não existem marcadores específicos, corno as
de preparação e de comentário. A sua determinação se dá pela conside-ração da posição ocupada pelo constituinte subordinado, antes ou de-
pois do constituinte principal.Os conectores presentes no texto, ou que nele podem ser inseri-
dos, tornam explícita a maioria das relações interativas. Dessa forma,afirma-se que eles contribuem para a elucidação da articulação dos
constituintes textuais, evidenciando as relações dominantes no texto e
a forma como ele é construído.Na produção de um texto, os autores buscam expressar suas idéias e
podem expor a forma como elas se relacionam entre si com marcado-
res, que podem ser os conectores (advérbios ou conjunções) ou mesmooutros mecanismos provenientes de diferentes aspectos da organizaçãodo discurso, como as formas verbais, os modos, a pontuação, etc.
3.1. Algumas considerações sobre os gêneros analisados
Os gêneros textuais refletem, em sua materializaçao lingüística, relaçõestextuais que influenciam o processo de negociação, as intenções dosinterlocutores (tais como informar, dar uma opinião, criticar, instruir)e ainda as perspectivas dos interlocutores (subjetiva ou objetiva).
As categorizações dos gêneros podem ser pensadas em termos deagrupamentos de textos que compartilham propriedades e funções. Osdois gêneros que analiso neste trabalho pertencem ao domínio jornalís-
tico, mas desempenham diferentes funções comunicacionais em relaçãoa seus leitores. Conforme De Broucker (apua ADAM, 1997), há dois gran-des gêneros redacionais jornalísticos que agrupam os textos do domíniojornalístico: o gênero da informação (notícias, entrevista, reportagem, re-senha, etc.) e o gênero do comentário (editorial, crônica, carta do leitor,charge, artigo de opinião, etc.). Esses dois grandes tipos se opõem quantoao tema. (um fato vs. uma idéia), à intenção argumentativa (reportar vs.opinar) e à posição enunciativa (distanciamento vs. engajamento).
301
Análises do discurso hoje
Sabemos que não há fronteiras claramente definidas entre as cate-
gorias dos gêneros, e assim consideramos esses dois gêneros redacio-
nais como dois pólos num continuum, conforme está representado no
quadro abaixo, inspirado no quadro apresentado em Adam (op. dt.), em
que os textos dos gêneros jornalísticos se distribuem conforme este-
jam situados em relação às duas posições enunciativas polares:
pólo distanciamento — informaçãoEnquete
ReportagemNotícia
EntrevistaResenhaAnálise
EditorialCartas dos leitoresArtigo de opinião
Crônicapólo engajamento — comentário
O artigo de opinião, como se pode ver, encontra-se mais próximo
do pólo do comentário. Ele constitui um texto que tem como pro-
priedades o fato de se centrar numa idéia e de procurar expressar uma
opinião sobre ela. Seu conteúdo é,_então, mais a exposição e a discussão
de uma idéia do que o relato de um fato, e o seu autor pretende mais
fazer valer uma opinião, tomar uma posição, do que reportar, informar.
Considerando essas características, pode-se prever que um artigo de
opinião tenderá a apresentar argumentos, explicações ou justificações
acerca de uma idéia a partir do ponto de vista do autor ou abraçado por
ele, favorecendo a instanciação de relações genéricas de argumento.
A notícia, por sua vez, se encontra mais próxima do pólo da informa-
ção. Ela se centra em um fato ou acontecimento, procurando informar,
dar esclarecimento sobre esse fato. Seu conteúdo, assim, é mais uni relato
do fato do que a expressão de uma opinião, e seu autor pretende mais
fazer conhecer, sem assumir posições, julgamentos. Ao apresentar uma
302
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
notícia, o jornalista tende a focalizar um assunto principal, relaciona-
do a um fato acontecido, e a apresentá-lo com apoio comprobatório e
objetividade, sem expressão ostensiva de seu ponto de vista. Nesse caso,
pode-se levantar a hipótese de que esse gênero favorecerá a instanciação
de relações de comentário, pois, com o recurso da inserção de consti-
tuintes subordinados a um constituinte principal, o autor poderá expor
objetivamente detalhes e explanações sobre o que noticia.
3.2. A descrição da organização relacionai dos textos
Considerando as estruturas hierárquicas dos textos, propostas a partir
da interpretação do processo de negociação que eles refletem, analiso
a sua organização relacionai.Como explica Roulet (2006), nessa forma de organização traba-
lha-se com categorias genéricas de relações (baseadas na satisfação dos
princípios de conipletude dialógica e monológica), uma vez que cada
urna cobre um conjunto específico de relações interativas. Assim, uma
relação de argumento, por exemplo, cobre as relações de causa, expli-
cação, justificação, argumento potencial, motivação, evidência, conse-
qüência, etc. E unia relação de contra-arguniento cobre as relações de
desacordo, contraste, concessão, oposição. Usando essas categorias, des-
crevem-se as relações genéricas entre constituintes textuais e informa-
ções implícitas, estocadas na memória discursiva dos interlocutores.
Há sempre uma relação interativa entre dois constituintes de mes-
mo nível hierárquico, e ela pode ser ou não marcada por um conector.
Nessa classificação, por exemplo, os conectores porque, já que, uma vez
que, se e então, portanto, ou os conectores mas, porém, apesar de e embora
indicam a mesma relação textual genérica, de argumento e de contra-
argumento, respectivamente.Usando essa classificação, é possível descrever a organização rela-
cionai dos textos.Tal descrição pode ser representada por esquemas ar-
bóreos, estruturas hierárquico-relacionais, que expõem a interpretação
do analista das hierarquias entre os constituintes textuais, bem como
das relações aí existentes.
305
Análises do discurso hoje
Os artigos de opinião analisados, tanto os publicados na Folha quan-
to os produzidos por estudantes, apresentam majorítariamente uma es-
trutura hierárquico-relacional bastante semelhante. Como evidenciam
os esquemas a seguir, esses textos são compostos por duas grandes inter-
venções, normalmente complexas, pois contêm outras intervenções e
atos. A primeira intervenção, que pode trazer uma afirmação, uma per-
gunta ou uma citação como ponto de partida para o desenvolvimento
do texto, possui um valor comunicacional mais fraco e dessa forma se
subordina à segunda intervenção. Esta normalmente traz a finalização
do texto, onde conclusões, resultados ou às vezes até contra-argumen-
tos ao que se expôs antes são apresentados. Seu valor comunicacional é
forte e por isso ela tem o estatuto de constituinte principal.
As figuras a seguir expõem a macro estrutura hierárquico-relacional
de artigos de opinião dos dois grupos analisados6.
i- Isls-1-8
Ip-9-17
arg
- Ip-18-24
Figura 1: Macro EHR do texto Violência e Inércia
r- Islp-1-4
ls-5-13
-lp-14-16
arg ouref
Figura 2: Macro EHR do texto Promessas Esquecidas
6 São usados: í para intervenção, A para ato, s para subordinado, p para principal, argpara argumento, c-arg para contra-argumento, ref para reformulação, pré para prepara-ção, com para comentário. Os números representam a numeração dos atos, feita a partirda segmentação do texto em unidades textuais mínimas. Sobre a determinação daunidade textual mínima, ver Marinho (2007).
304
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
A segunda grande intervenção é precisamente onde são expressos os
pontos de vista dos autores dos textos.Tanto os colunistas quanto os estu-
dantes dão proeminência a suas opiniões ern seus textos ao optar por essa
configuração. Na maioria dos textos analisados, na primeira intervenção,
seguindo uma idéia apresentada por terceiros, em uma afirmação, uma
pergunta ou uma citação, os autores discutem diferentes pontos de vista.
Em seguida, abrem uma segunda intervenção, que subordina a primeira,
onde buscam concluir seus textos assumindo seu próprio ponto de vista.
Essa segunda intervenção é freqüentemente marcada por expressões de
natureza adverbial (No Brasil; Nesse lusco-jusco de conceitos e idéias; No lulo-
petismo;A rigor, a rigor; Por essas e por outras; Para uso próprio), por constru-
ções frasais usadas na marcação da finalização do texto (Conclui-se que...;
Fica bem claro que..,; Seja como for...) ou por conectores (Portanto; E).
Nos dois grupos de textos são usados conectores para a marcação
das relações interativas. Os estudantes, no entanto, para essa marcação,
tendem a empregar apenas as conjunções listadas nas gramáticas ou
apresentadas nos livros didáticos:
(1) [8]Mas para a mídia isso não é conveniente, [9]pois seria um
ponto final para Geraldo [10]e não causaria nenhuma polemica.
(Sem título 2)
Ap - (8]Mas para a mídia isso não é conveniente,
Lis
arg
i— As - [9]pols seria um ponto final para Geraldo
arg
l— Ap - [10]e não causaria nenhuma polemica.
(portanto)
(2) [ll]Se por um lado, há aquele cidadão que não é influenciado
por esses meios de comunicação, [l 2] esse mesmo cidadão e in-
fluenciado por alguém que sofre influência direta dessa ditadu-
ra, [13]e assim sucessivamente, [14]como se fosse a reinvençao
da roda. (O poder das palavras)
305
Análises do discurso hoje
IP
As - [11]Se por um lado, há aquele cidadão que...
Ap - [12]esse mesmo cidadão é influenciado por...i— "r* l ' •u rcom L
AP - [13]e assim sucessivamente
As - [14]como se fosse a reinvenção da roda.arg
Os colunistas muitas vezes empregam, em seus textos, expressões
que, a meu ver, assumem no texto uma função conectiva, como as
construções ao que dá prova e seja como for, por exemplo.
(3) [27]Ficamos sempre no limbo, [28]do que dá prova, entre
tantas outras coisas, o fato de que o presidente da Câma-
ra dos Deputados é nominalmente comunista, [29]mas
participou alegremente de um governo vigorosamente
pró-mercado (na prática), [30]embora, durante a campa-
nha eleitoral, renegasse as privatizações, [31]que, vitorioso,
passou a adotar gostosamente (nas rodovias federais, por
exemplo). (ROSSI, Clóvis."O crime e o lusco-fusco". Folha
de São Paulo. Opinião. 5 nov., 2006, p. A2)
Isarg
Ap - [27]Ficamos sempre no limbo
_ Iscom
As - [28]do que dá prova...As - [29]mas participou alegremente...
AP - [30]embora, durante a campanha...
c-arg Ipc-arg
As - [31]que, vitorioso, passou a adotar...com
(4) [l 8]No Brasil, o enfoque dos "coitadinhos" se justifica mais que
na França [19]porque o país há muito deixou de ser a terra das
oportunidades. [20] Seja como for, o crescimento da violência
pede, a gritos, idéias novas. [21]As de Ségolène podem até ser
ruins, [22]mas são melhores que a inércia que se vê no Brasil,
[23]como se o problema fosse desaparecer [24]se a gente não
306
IP
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
falar dele. (ROSSI, Clóvis."Violência e inércia". Folha de São Pau-
Io. Opinião. 7 jun., 2006, p. A2)
r- Ap - (18]No Brasil, o enfoque dos "coitadinhos"...Is
L As - [19]porque o país há muito
Ap - [20]Seja como for, o crescimento da violência...As - [21]As de Ségolène podem até ser ruins,c-arg
Ap - [22]mas são melhores que a inércia...l_ Ip l_ Is
ref com rIsarg
Ap - [23]como se o problema fosse...
As - [24]se a gente não falar dele.
Nos dois grupos de textos, há também seqüências em que as rela-
ções não são marcadas. A ausência de conectores ligando as seqüências
força o leitor a inferir a relação. Na interpretação do trecho extraído
de um artigo de opinião, reproduzido em (5), para determinar a re-
lação interativa entre o ato [2] e a informação estocada na memória
discursiva que possui origem em [1], é preciso lançar mão de um ter-
ceiro componente discursivo, o situacional, além das informações de
natureza hierárquica e lingüística.
(5) [l]Não venho acompanhando em detalhes a saia justa entre o
pessoal da cultura, notadamente do cinema e do teatro, com
o pessoal do esporte. [2]Alguns setores da sociedade acham des-
cabida a obrigação do Estado de sustentar [3] ou apenas apoiar
iniciativas culturais e esportivas. (CONY, Carlos Heitor. "Cultura
e esporte". Folha de São Paulo. Opinião. 17 dez., 2006, p. A2)
Para determinar a relação, é preciso computá-la inferencialmente,
combinando as informações oferecidas pelos constituintes com as in-
formações de natureza referencial, baseadas em nosso conhecimento
de mundo. De acordo com o modelo genebrino, pode-se computar
essa relação usando-se um simples modelo de inferência que liga pre-
missas a uma conclusão, como se expõe a seguir:
307
Análises do discurso hoje
Premissa í
Premissa 2
Premissa 3
Conclusão
Informação lingüística
(forma lógica enriquecida)
Informação lingüística
(forma lógica enriquecida)
Informação contextual
acessível na memória
discursiva
Interpretação
O autor diz para o leitor que ele não tem
acompanhado em detalhes a situação entre o
pessoal da cultura e o do esporte.
O autor diz para o leitor que alguns setores da
sociedade consideram descabida a obrigação
do Estado de sustentar iniciativas culturais ou
esportivas.
É sabido que alguns setores da sociedade
consideram descabida a obrigação do Estado de
sustentar iniciativas culturais ou esportivas.
O autor diz para o leitor que ele não tem
acompanhado em detalhes a situação entre o
pessoal da cultura e o do esporte, mas que ele
sabe que alguns setores da sociedade consideram
descabida a obrigação do Estado de sustentar
iniciativas culturais ou esportivas.
Esse método permite computar informalmente todas as relaçõesinterativas específicas em discursos reais, combinando-se as informa-ções lingüísticas oferecidas pelos constituintes e pelos conectores (queestejam presentes ou que possam ser inseridos) com as informações
contextuais. A ausência de marcadores leva necessariamente o leitor alançar mão desse cálculo inferencial.
As notícias produzidas por jornalistas e pelos estudantes tambémapresentam estruturas hierárquicas semelhantes. Elas são formadas porduas grandes intervenções ou por um ato seguido de uma intervenção
complexa. Mas diferentemente do que ocorre com os artigos de opi-nião, a primeira intervenção das notícias é a que carrega o seu valorcomunicacional mais forte, tendo dessa forma o estatuto de principal.Nessa primeira intervenção é trazida a informação sobre o fato que énoticiado. A segunda intervenção normalmente traz detalhes do queé noticiado, em narrativas ou descrições,
As figuras 3 e 4 expõem as macro estruturas hierárquico-relacionaisde notícias pertencentes aos dois grupos analisados.
308
A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos
riu
—Ip-1-4
>—ls-5-16com
Figura 3: Macro EHR do texto Um carro "afoga"
r—Ip-1-5
!—IScom
— 1-9-13— l -14-21
— l - 22-31
Figura 4: Macro EHR do texto Após referendo, cai a venda de armas nas lojas
Nas notícias, a relação predominante entre as duas intervençõesque as compõem é a de comentário, determinada pela presença depronomes relativos, que podem ser marcadores desse tipo de relação,ou pelo fato de o constituinte subordinado suceder o constituinteprincipal. Outra característica desses textos é a grande presença deconstituintes coordenados, como mostra a figura 4, prevalecendo arelação hierárquica independente, visto que a presença de um consti-
tuinte não se liga à presença de outro.Freqüentemente nas notícias é usada a conjunção aditiva e, expli-
citando a coordenação dos constituintes por ele ligados ou, noutroscasos, traduzindo a sucessão temporal de acontecimentos ou ligando
seqüências numa relação interativa de argumento.
(6)[5]Não tendo conseguido, [6]ele pegou o carro [7]e partiucompletamente desgovernado, [8]e acabou na piscina de uma
casa vizinha. (Briga termina com carro na piscina)
309
Análises do discurso hoje
As - [SINão tendo conseguido,
IP arg
Is
A - [6]ele pegou o carro
— A - [7]e partiu completamente desgovernado,
Ip p As - [8]e acabou na piscina de uma casa vizinha.
São também empregadas expressões conectivas temporais comoem seguida, depois de, quando, comuns no encadeamento de seqüências
narrativas.
(7) [12]Quando o garoto conseguiu sair do carro [13]fez a despre-
zivel e inútil brincadeira [14]"O carro presizava mesmo deum banho." (Dando um mergulho)
ÍP
As - [12]Quando o garoto conseguiu sair do carro
arg
Ip
p AP - [13jfez a desprezível e inútil brincadeira
_ As - [14]"O carro presizava mesmo de um banho."com
Em muitas passagens das notícias, encontra-se ainda o uso do pro-
nome relativo que, marcando a relação interativa de comentário.
(8) [HJSegundo a PM, [12]os sem-terra ficarão na nova ala do
complexo penitenciário da Papuda, [l 3] que ainda não foi
inaugurada. (Da Folha Online. Invasão)
r- As - [11]Segundo a PM,
comprepr— Ap-[12]os sem-terra ficarão na nova ala...
As - [13]que ainda não foi inaugurada,com
As estruturas hierarquizadas a que se chega com a interpretaçãodas notícias dos dois grupos expõem uma predominância da relação
310
A organização relaciona! de textos de gêneros jornalísticos
de comentário nesse gênero textual.Vale mencionar ainda que os jor-
nalistas tendem a formar seus textos favorecendo a coordenação de
intervenções complexas. Os estudantes, por sua vez, tendem a produzir
os textos obedecendo à estrutura canônica das notícias, que, de acordo
com Revaz (1997), constitui-se de: início > situação > fato > narração
> conclusão. Dessa forma, as notícias por eles produzidas são formadas
por constituintes ligados por relações de dependência.
4. Considerações finais
A análise das organizações relacionais de textos desses dois gêneros
jornalísticos, centrada na determinação das relações textuais e no papeldos conectores na marcação ou no estabelecimento dessas relações,
permite evidenciar diferenças em suas construções, que refletem suasdiferentes propriedades.
Embora produzidos por autores profissionais e estudantes, que se en-contram em diferentes estágios de desenvolvimento de sua competência
discursiva, os artigos de opinião, assim como as notícias, apresentam es-
truturas hierárquico-relacionais bastante semelhantes entre si, bem comoa predominância do mesmo tipo de relação textual interativa.
Espera-se que com essa pesquisa, que contempla a problemática
das relações de discurso bem como a problemática da construçãode gêneros textuais do domínio jornalístico, se tenha alcançado al-guma contribuição para uma melhor compreensão dos mecanismos
envolvidos na articulação de textos, assim como para uma melhorcompreensão de convenções que regem a construção de textos de
diferentes gêneros.
Referências
ADAM Jean-Michel. "Unités rédactionnelles et genres discursifs: ca-dre general pour une approche de Ia presse écrite". In: Pratiques,
n. 94,1997, p. 3-18.
Análises do discurso hoje
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1992.
BLAKEMORE,D Understandíng Utterances:an Introduction to Pragmatícs.
Oxford: Blackwellf 1992.
BERRENDONNER, A. "Connecteurs pragmatiques et anaphore".
In: Cahiers de Linguistique Française 5, 1983, p. 215-246.
DUCROT et ai Lês Mots du discours. Paris: Lês Éditions de Minuit,
1980.
FILLIETTAZ, L.; ROULET, E. "The Geneva Model of discourse
analysis: an interactionist and modular approach to discourse orga-
nization". In: Discourse Studies, 4(3), 2002, p. 369-392.
FRASER, Bruce. "What are discourse markers?" In: Journal of
Pragmatics 31, 1999, p. 931-952.
MARINHO,Janice Helena Chaves. "A determinação da unidade tex-
tual mínima". In: MARINHO, J.H.C; PIRES, M.S.O.;VILLELA,
A.M.N. (orgs.). Análise do Discurso: ensaios sobre a complexidade dis-
cursiva. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2007, p. 39-50.
REBOUL, A.; MOESCHLER, J. Pragmatique du discours. De 1'inter-
prétation de 1'énoncé à 1'interprétation du discours. Paris: Armand Colin,
1998,chap.IV
REVAZ, Françoise."Le Récit dans Ia presse écrit". In: Pratiques, n. 94,
1997, p. 19-23.
ROSSARI, Corinne. Connecteurs et relations de discours: dês liens entre
cognition et signification. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 2000.
ROULET, E. "The description of text relation markers in the Ge-
neva model of discourse organization". In: FISCHER, K. (ed.). Ap-
proaches to Discourse Parííc/eí.Amsterdam: Elsevier, 2006, p. 115-131.
ROULET E.; FILLIETTAZ, L.; GROBET,A. Un modele et un instru-
ment d"analyse de l'organisation du discours. Berne: Peter Lang, 2001.
SHIFFRIN, D. Discourse Markers. New York: Cambridge University
Pres, 1987.
TABOADA, Maite. "Discourse markers as signal (or not) ofrhetorical
relations". ln:Journal ofPragmatics 38 (4), 2006, p. 567-592.
312
SOBRE OS ORGANIZADORES EAUTORES
Glaucia Muniz Proença Lara tem doutorado em Semiótica e Lin-
güística Geral pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado
em Semiótica,junto ao Centre de Recherches Sémiotiques (Paris).Atual-
mente, é professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), onde atua tanto na graduação quanto na pós-
graduação na área de Língua Portuguesa (EstudosTextuais e Discursivos).
Tem vários capítulos de livros e artigos publicados em revistas científicas,
além dos livros Autocorreção e auto-avaliação na produção de textos escolares
(1999) e O que dizem da língua os que ensinam a língua (2004). Organizou
as coletâneas Linguagem), texto, discurso: entre a reflexão e a prática - v. l (Lu-cerna, 2007) e, juntamente com Ida Lúcia Machado e Wander Emediato,
Análises do discurso hoje - v. l (Nova Fronteira/ Lucerna, 2008).
Ida Lúcia Machado é pós-doutora pelas Universidades de Paris
13 (1998) e Paris 3 (2005/2006). Realizou seu doutorado emToulou-
se 2 (França) e seu mestrado na USP (l982).É professora da Faculdade
de Letras da UFMG, onde criou, em 1996, o Núcleo de Análise do
Discurso — NAD (grupo ligado ao CAD de Paris XIII), do qual é
a atual coordenadora. Organizou várias coletâneas sobre Análise doDiscurso (Coleção do NAD/FALE/UFMG) e dois congressos inter-
nacionais, também sobre Análise do Discurso, na mesma Universidade.
Coordenou dois projetos CAPES/COFECUB, reunindo a UFMG, aUFRJ e a Universidade de Paris XIII. Participou de vários colóquios e
Análises do discurso hoje
seminários no Brasil e no exterior, centrados na Análise do Discurso e,
em especial, na Teoria Semiolingüistica. Criou, em 2005, a AMPADIS
(Associação Mineira de Pesquisadores emAD).
Wander Emediato de Souza é professor da Faculdade de Letras
da UFMG, onde atualmente ocupa o cargo de vice-diretor. Atua na
área de Língua Portuguesa (Estudos Textuais e Discursivos). Graduou-
se em Letras pela UFMG, onde também concluiu o mestrado em
Lingüística. É doutor em Ciências da Linguagem pela Universidade de
Paris XIII (França). Pesquisador-membro e atual subcoordenador do
Núcleo de Análise do Discurso da FALE/UFMG, possui vários textos
publicados em livros e revistas da área de Letras e é autor do livro A
fórmula do texto: redação, argumentação e leitura.
Anne Hénault é professora da Universidade Paris IV -— Sorbon-
ne e dos IUFM (Instituis Universitaires de Formation dês Maítres),
em Paris. Publicou vários livros, entre eles, Lês enjeux de Ia sémiotíque,
Lê pouvoir comme passion, Questions de sémiotique (org.) e Histotre de Ia
sémiotique, esse último com tradução em português .
Antoine Auchlin é doutor em Lingüística, é professor e pesquisa-
dor da Universidade de Genebra e formador de adultos. Colaborador da
primeira "Escola genebrina de análise do discurso" (E. Roulet e outros),
aplica e discute o modelo numa perspectiva contrastiva (Pragmática com-
parada da enunáaçào em francês e chinês, Berna: Lang, 1993). Seus trabalhos
recentes sistematizam o tratamento do discurso (problemática do "su-
cesso conversacional"), focalizando a prosódia nas interações e as "mes-
clagens experienciais" e inscrevendo-se, no âmbito da análise do discur-
so, no paradigma do experiencialismo e da cognição corporificada.
Arnaldo Cortina é professor livre-docente do Departamento de
Lingüística e do Programa de Pós-graduação em Lingüística e Língua
Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraqua-
ra e pesquisador do CNPq. Desde suas primeiras pesquisas, ainda no
mestrado, até a que desenvolveu para a livre-docência, preocupa-se em
estudar a concepção de leitor na constituição do texto. A perspectiva
314
Sobre os organizadores e autores
teórico-metodológica adotada em seus trabalhos é a da semiótica dis-
cursiva. Algumas de suas publicações são: O príncipe de Maquiavel e seus
leitores: uma investigação sobre o processo de leitura; "Semiótica e leitura:
os leitores de Harry Potter", capítulo do livro Razões e sensibilidades: a
semiótica em foco; "Teoria semiótica: a questão do sentido", capítulo do
livro Introdução à Lingüística:fundamentos epistemológícos, entre outros.
Beth Brait é crítica, ensaísta, docente, orientadora e coordenadora
do LAEL/PUC/SP e docente da FFLCH/USP. Fez doutorado (1981)
e livre-docência (1994) na USP e pós-doutorado na Ecole dês Hautes
Études en Sciences Sociales — Paris/França. E pesquisadora nível l do
CNPq e autora, organizadora e colaboradora de várias obras: A persona-
gem; Ironia em perspectiva polifôníca; Bakhtin, díalogismo e construção do sentido;
Bakhtín: conccitos-chave e Bakhtin: outros conceitos-chave; Gusti e dísgustí. So-
áosemiotica dei quotidiano. É colaboradora da Revista Língua Portuguesa.
Catheríne Kerbrat-Orecchioni, antiga aluna da Ecole Norma-
le Superieure (Boulevard Jordan), é titular de gramática e doutora em
Lingüística. Atualmente, é Professora Emérita da Universidade Lyon II,
onde fez toda a sua carreira, sendo, ao mesmo tempo, várias vezes profes-
sora convidada em diferentes universidades estrangeiras (Universidade
de Columbia em Nova York, Universidade de Genebra, Universidade
da Califórnia em Santa Bárbara). No âmbito das ciências da linguagem,
interessa-se sobretudo pela pragmática, a análise do discurso e a análise
das interações, domínios sobre os quais publicou numerosos artigos e
urna dezena de obrast dentre as quais L'énoncíation, IJimplidte, Lês inte-
ractions verbaies, 3 v., La conversation, Lês actes de langage dans lê discours, Lê
discours en interaction. Ocupou de 2000 a 2005 a cadeira de "Lingüística
das interações", no Institut Universitaire de France.
Claude Chabrol conheceu o "Estruturalismo" com Claude Levi-
Strauss e a semiologia nos seminários de R. Barthes e AJ. Greimas
(EHESS), a partir de 1968. Estudou a imprensa feminina (Lê Récit Fémi-
nin: Mouton 1971) e textos bíblicos com M. de Certeau (cf. Languages
22). Professor de Psicologia Social da Comunicação na Universidade
Paris X — Nanterre e, depois, em Paris III — Sorbonne, desenvolveu
315
Análises do discurso hoje
uma orientação "Psico-semiótica e pragmática" para testar, no âmbito
da recepção, conjecturas sobre o processo de tratamento dos textos e
suas significações (Discours du tfava.il social et pragmatíque: PUF, 1994).
Colabora regularmente com P. Charaudeau e com o CAD de Paris
XIII. O contrato de comunicação publicitária é uma das ilustrações
dessa colaboração (R/PS, n. 4, 2000), assim como a análise dos atos de
linguagem (Psychologiefmnçaise, n. 44-4, 1999). Lançará, pela editora
De Boeck, no final de 2008, Psychologie de Ia communication ei persua-
sion, uma síntese dos trabalhos psicológicos e de análise de discursos
americanos e europeus, em co-autoria com Miruna Radu.
Christían Plantín é diretor de pesquisa no CNRS (Centre Na-
tional de Ia Recherche Scientifique), na França. Suas pesquisas em
ciências da linguagem focalizam o discurso e as interações e voltam-se,
principalmente, para as problemáticas da argumentação e das emoções.
Editou, juntamente com Marianne Doury e V Traverso, o livro Lês
Émotions dans lês interactions (2000, Presses Universitaires de Lyon) e
publicou Uargumentation - Histoire, théorie, perspectives (2005, Presses
Universitaires de France), cuja tradução em português será publicada
ainda em 2008.
Denize Elena Garcia da Silva é mestra em Lingüística pela
Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Lingüística Hispânica
pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É Pro-
fessora Associada da UnB e líder do Grupo Brasileiro de Estudos de
Discurso, Pobreza e Identidades, registrado no CNPq. É fundadora e
conselheira honorária do Grupo de Estudos de Linguagem do Cen-
tro-Oeste (GELCO) e, atualmente, é Delegada Regional do Brasil
junto à Associação Latino-americana de Estudos do Discurso (ALED).
Tem vários artigos publicados em periódicos no exterior e, no Brasil,
destacam-se os livros: A repetição em narrativas de adolescentes: do oral ao
escrito (2001); Nas instâncias do discurso: uma permeabilidade de fronteiras
(2005) e Língua, gramática e discurso (2006).
316
Sobre os organizadores e autores
Dylia Lysardo-Dias é professora Adjunta da Universidade Fede-
ral de São João Del-Rei, onde leciona na graduação e no Mestrado
em Letras. Doutora em Estudos Lingüísticos pela UFMG, possui pós-
doutorado pela UNICAMP. É pesquisadora-membro do Núcleo de
Análise do Discurso da FALE/UFMG e tem publicado artigos sobre o
discurso publicitário, estereótipos e representações sociais.
Emília Mendes possui graduação em Letras, mestrado e doutora-
do em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais (2004) e pela Universidade de Paris XIII (doutorado sanduíche).
Atualmente é bolsista recém-doutor do PRODOC/CAPES no Pro-
grama de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos da FALE/UFMG. É
também tradutora.Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase
em Análise do Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas:
análise do discurso vertente francesa, teoria semiohngüística, teoria da
ficcionalidade, dentre outras. Participa do Núcleo de Análise do Dis-
curso (NAD) FALE/UFMG desde 1995.
Helena H. Nagamine Brandão fez Doutorado na PUC-SP, Li-
vre Docência na USP e pós-doutorado na Universidade de Grenoble
III (Langues et Lettres), Grenoble, França. É professora Associada do
Departamento de Letras Clássicas eVernáculas na Universidade de São
Paulo, onde atua no Programa de Pós-graduação em Filologia e Lín-
gua Portuguesa, orientando e desenvolvendo pesquisas nas áreas de
Análise do Discurso e Lingüística Aplicada. É autora de Introdução à
Análise do Discurso; Subjetividade, argumentação, polifonia. A propaganda da
Petrobrás; Gêneros do discurso na escola — mito, conto, cordel, discurso político,
divulgação científica (organizadora) e Aprender e ensinar com textos didáticos
e paradidáticos (co-organizadora).
Janice Helena Chaves Marinho é professora da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Possui pós-doutora-
do pela Universidade de Fribourg/Suíça, doutorado em Lingüística
e mestrado em Letras: Língua Portuguesa, ambos pela UFMG. Atua
na graduação e na pós-graduação, na área de estudos do texto e do
317
Análises do discurso hoje
discurso. É líder do Grupo de Estudos sobre a Articulação do Discurso,
certificado pelo CNPq. Suas pesquisas mais recentes voltam-se para
o estudo de expressões conectivas e de seu impacto sobre as relações
de discurso.
Mareei Burger leciona análise do discurso e teorias da comunica-
ção na Universidade de Lausanne (Suíça) e no Instituto de Informação
e Comunicação da Universidade de Neuchâtel (Suíça). Seus trabalhos
incidem principalmente sobre a construção da identidade nos gêneros
da comunicação midiática e política. É autor de artigos em francês
e em inglês, veiculados em Communication, Stuâies in Communication
Sdences, Revue de Sémantique et Pragmatique, e publicou Lês Manifestes.
Paroles de combat. De Marx à Breton {2002, Delachaux et Niestlé). É
também um dos autores e co-editor de Vanalyse linguistique dês discours
dês médias. Entre sciences du langage et sdences de Ia Communication (2008,
Nota Bene), Argumentation et Communication dans lês médias (2005, Nota
Bene) e de La Communication touristiaue. Approches discursives de Videntité
et de Valtérité (2004,L'Harmattan).
Maria Leda Pinto é graduada em Letras pela Faculdade Dom de
Aquino de Filosofia Ciências e Letras (FUCMAT), mestre em Edu-
cação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e
doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). É professora
da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), onde atua
na graduação e na pós-graduação. Possui experiência na área de Le-
tras, com ênfase em Língua Portuguesa e Lingüística, tendo publicado
diversos capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Suas
pesquisas mais recentes têm como tema a cultura e a identidade do
pantaneiro, na perspectiva da Análise do Discurso.
Viviane Ramalho é mestra e doutoranda em Lingüística pela
Universidade de Brasília (UnB). Está em fase final de elaboração de
tese sobre o discurso da propaganda brasileira de medicamentos, sob a
orientação da Profa. Dra. Denize Elena Garcia da Silva. É docente da
Universidade Católica de Brasília (UCB). Dentre suas publicações re-
318
centes, estão o livro Análise de Discurso Crítica, em parceria com Viviane
Resende, e o capítulo "La invasión anglosajona a Irak en ei discurso
de los médios impresos brasileiros", no livro Criticai Discourse Analysis of
media texts (Universitat deValència,2007).
CONSELHO EDITORIAL LUCERNA
Angela Paiva Dionmo
Carlos Eduardo Falcão Uchôa
Dino Fioravante Preti
Evaníldo Cavalcante Bechara
Ingedore Grunfeld Villaça Koch
José Luiz Fiorin
Leonor Lopes Fâvero
Luiz Carlos TravagliaNeusa Maria de Oliveira Barbosa Bastos
Ricardo Stdfola Cavaliere
Sueli Cristina Marquesi
Valier Kehdi
PRODUÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
Shahira Mahmud
REVISÃOCarolina Rodrigues
Parla Serafim
DlAGRAMAÇÃOAbreu's System
Este livro foi impresso no Rio de Janeiro, em outubro de 2008,
pela Ediouro Gráfica, para a Editora Nova Fronteira.
A fonte usada no miolo é Bembo, corpo 11/15.O papel do miolo é ofFset 75g/rn2. c o da capa é cartão 250g/m2.
Visite nosso site: www.novafronteira.coni.br
Ao leitor, não se lhe apresenta apenas umconjunto de ensaios contendo um inventárioteórico-metodológico, mas, de fato, um acervode possibilidades analíticas em distintos cenáriosda realização língüfstico-discursiva, vivenciadose construídos por sujeitos e atores em contextossituacionais diversos. Por tudo isso, o alcance destobra se estende a pesquisadores e profissionaisde perfis também diversos, cujo foco de interesseesteja voltado para o aprofundamento dacompreensão sobre as formas de expressão e deprodução do sentido no campo da linguagem edos discursos.
Sueli PiresConsultora acadêmica do Instituto Internacionalda UNLSCO para Educação Superior na AméricaLatina e CaribeDiretora de Gestão do Conhecimento do InstitutoCultural Inhotim
capa Cravo Ofício