Post on 18-Jan-2016
Uma noite no inferno
Preferia acreditar que não seriam capazes
de nada além das costumeiras chacotas.
Julgava-os apenas crianças. Crianças más às
vezes é verdade; mas apenas crianças.
Recusava-se a crer que pudessem fazer algum
mal à sua mulher, ainda mais acompanhada da
filhinha. Não eram pessoas assim hediondas.
Mas havia mais de três horas que ela saíra
para comprar mantimentos e da casa na
encosta do monte até o vilarejo não passava
de uma hora de carroça e outro tanto para
voltar. Trovões anunciam a tempestade.
Largou o machado que brandia e limpando as
mãos calosas no brim grosso da calça entrou
na pequena habitação. Não. Nada havia
acontecido. Mas ia começar a chover forte. Na
verdade, com o frio que fazia, era possível que
nevasse. O vento varria em redemoinhos.
Quando entrou viu pela janela que dava
para leste a vermelhidão do céu e do outro
lado nuvens pesadas cobriam o monte. Mas
como explicar vinda do firmamento aquela
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Uma noite no inferno
rubríssima luz entrando em seus olhos?
Crepúsculo sombrio. Nuvens pairavam baixas
carregadas de opressão. Saiu. Não se via um
palmo à frente. A noite desce ameaçadora. Ele
precisa ir à cidade. Não que tivesse
acontecido alguma coisa com sua mulher e
sua filha. Estariam protegidas da tempestade
na casa de Fiodor. Ninguém na cidade seria
capaz de lhes fazer mal. Não precisava se
inquietar. Deve apenas ir encontrá-las pois
talvez precisem dele para colocar as coisas na
carroça. Não estão vestidas de modo
adequado. Levar-lhes-á agasalhos. Realmente
faz muito frio.
Foi um ano difícil, pensa enquanto prepara
o cavalo. Novembro era um mês
especialmente árduo para os homens das
montanhas. O tempo das primeiras nevascas.
Começou a sentir os pingos de chuva. Gostava
do cheiro da chuva na terra mas naquele
momento respirou-o como enxofre. Uma
angústia insuportável. A voz do vento severa e
gelada. Contemplou o horizonte e discerniu
estranha coloração. Ondas de fumaça trazidas
pelos círculos. Cheiro de fogo substituiu o
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Uma noite no inferno
cheiro da chuva e envolveu suas
recordações...
Os habitantes de M* consideram-se
felizes. Quando seus domínios se reduziram ao
mínimo acreditaram que era bom sinal. Dizem
que são solidários e assim fica mais fácil
ajudarem uns aos outros. Poucas das casas de
madeira dispostas pela rua principal parecem
habitadas. A única rua. A vida da cidade.
Nesse crepúsculo em que se avizinhava a
tempestade porém parece-se com a morte.
Desemboca na praça onde o juiz de paz,
Fiodor, vive com a mulher, Helena, e os filhos
– Érika – uma bela jovem de 19 anos – e Marco
– um forte rapaz saído da puberdade. Moram
no andar de cima do cartório onde o pai
raramente exerce sua profissão. O cartório é
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Uma noite no inferno
contíguo à mercearia de onde tira o sustento
da família. O movimento basta para que ele
renove o estoque por meio de um mercador
itinerante com o qual divide riscos e lucros. Ali
vende aviamento para roupas, e material
escolar, vestimentas de montaria e garimpo,
facões e ração e alguns tipos de comida
pronta. Agora Maggie está ali. Compra o que
precisa para receber seu irmão. Talvez o
convença dessa vez a ficar e usufruir
permanentemente da paz que a cidade grande
não propicia. Subsistência simples mas sem
sobressaltos. Bandidos, o que poderiam
querer num fim de mundo como aquele, onde
a mina estava desativada e nunca chegou a
funcionar um banco? Por essa paz – e por que
mais? – os que permaneceram após a exaustão
do subsolo preferem viver a decadência da
cidade. São mais felizes agora do que em sua
época áurea.
Ao lado da praça numa elevação junto à
ravina seca ergue-se a igreja local. Faz
também o papel de escola. Autoridades
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Uma noite no inferno
federais bem-intencionadas acreditam ser isso
inadequado mas estão longe demais. No chão
onde está diretamente construída mistura-se
a terra trazida por uma infinidade de botas de
mineiros que aos domingos iam agradecer a
benção das pepitas. Isso agora é nostalgia. O
sino só repica de trinta em trinta dias quando
um padre da região vem celebrar a missa
mensal do arrependimento. O som do sino. A
cerimônia de casamento. Uma bela festa de
núpcias e a lua-de-mel com o diretor de uma
companhia mineradora européia. Um duque ou
barão que veio inspecionar a mina e
aproveitou para caçar aves raras e a levou
para Paris. Assim Érika costuma sonhar
embora vestígios de ouro estejam cada vez
mais longe de M* e M* cada vez mais longe de
qualquer lugar.
Fiodor faz parte de um ciclo bem definido
em que há terra e trabalho. Benjamin vende
charques na quantidade presumida da procura
que antecipa pela experiência. Ian e sua
mulher, Nadja, são seus melhores fregueses
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Uma noite no inferno
mas estão restritos às necessidades das
pessoas cujos calçados ele produz ou
conserta. É ele quem se aproxima agora da
loja de ferramentas de Walt, cujos
rendimentos crescem ou diminuem na
proporção das idas lá do açougueiro. Tanja
costura para fora; vive disso. Todos comem
carne. Nem todos substituem ou afiam
regulamente suas pás e enxadas e uma boa
parte das pessoas costura as próprias roupas.
Não é um ciclo apenas econômico.
Os membros da comunidade harmonizam
suas vidas independentes do resto do mundo.
A aspiração moral estagnara na pressão
coletiva, quando surgem as manadas.
Precisam de um membro cujas idéias sejam
revolucionárias e induzam à mais simples
tradição do Bem. De tal modo que seu estado
de alma se propague. Porque cedo ou tarde os
ciclos mostram uma condição para o
desenvolvimento que pode ser a redenção.
Uma ruptura porém não parece mais possível
em M* porque no hábito acostuma-se a toda
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Uma noite no inferno
sorte de necessidade e torna-se fácil não
pensar à frente e torna-se fácil esquecer.
Não é uma vida fácil. Todavia tranqüila.
Como um oceano ao pôr-do-sol o que se vê é
perfeita serenidade.
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Uma noite no inferno
Um homem bonito o jovem forasteiro que
ali desembarcou. Faz calor. Supõe que
alguém negocie pedras preciosas. É que
encontrara uma. Realmente faz muito calor.
Precisa muito de dinheiro. Coiotes e lobos
vagueavam ao redor pelas colinas quando ele
chegou.
O condutor da carroça grita. Estão
chegando à cidade. Quem é o parente que
você veio visitar? Como assim, parente? Não
veio passar a Páscoa com parentes? Para falar
a verdade o estranho nem sabia que estavam
na Páscoa. Então Dan, o condutor, imaginou
que ele veio reencontrar um velho amigo e
expressou isso em palavras. O vento em seu
rosto as levou até o rapaz que respondeu. Não
conhecia qualquer pessoa naquele lugar.
– Mas meu Deus que diabos faz nesse fim
de mundo?
Disseram que havia ouro. E comerciantes
de ouro. Eu encontrei uma grande pedra.
Um urro.
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Uma noite no inferno
– Ouro?
Gargalhadas.
Ali não há ouro faz tempo. É só um
lugarejo que resistiu e não quis se tornar uma
cidade-fantasma. Ainda assim alguém poderia
se interessar pela pedra. O condutor responde
que havia um mercador itinerante e talvez ele
se interessasse; mas só vem de mês em mês e
partira há uma semana. Dan nada disse antes
porque em vésperas de festa sempre aparece
alguém para visitar um desses pobres
coitados.
– Eu mesmo sou um... A louca da minha
irmã mora aqui. É dona do hotel. Como se
fosse algo de que a cidadezinha precisasse – o
velho termina de falar, analisa as próprias
palavras e completa: – Bem. Hoje pelo menos
precisará.
Mas se ali não havia ouro em outros
lugares na província mantém-se decerto o
negócio do ouro – argumentou o rapaz.
Verdade. Em muitos lugares...
Então?
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Uma noite no inferno
– O que não há é um meio de ir para um
desses lugares agora além desta carroça.
Dan está zombando? O rapaz chegara ao
lugar onde pegou a carona em uma diligência.
Mas por que haveria de zombar? A tal
diligência mudou o trajeto porque a estrada
principal estava interditada até o dia anterior.
O rapaz não queria ofender, mas insiste: –
E se alguém precisar sair da cidade e o senhor
não estiver?
– Para isso há os cavalos e as carroças dos
habitantes.
– E ninguém pode emprestar um cavalo?
Ninguém ali tem nada além do que
necessita.
Calaram-se. Recostando-se na carroça,
tentou se conformar. Está assim agora, o olhar
vago sobre a cidade desolada. O cocô dos
cavalos recende sua infância. Férias na casa
de seu avô. Conforme o veículo entra pela rua
principal, torna-se alvo de ávida curiosidade, e
quando a carroça fez a volta na praça, Érika
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Uma noite no inferno
tinha um olhar assim. Ele não se apercebe.
Olha as casas de madeira e o feno das
estrebarias e os lampiões. A mais terrível
sensação de sua vida. O desespero das
pessoas no incêndio. A casa destruída. No
barulho do vento, a dor da lembrança. Perdera
os pais naquelas chamas. O seguro não
devolverá a vida deles. Pegará o dinheiro e
partirá dali para sempre. Então a carroça
parou em frente ao hotel. O sol se escondera
atrás de uma nuvem e por instantes cessou o
brilho do rifle que Dan trazia ao alcance da
mão.
– Velho cretino!
Maggie atira-se nos braços do irmão que
jamais entenderia como se sobrevive num
lugar indecente como esse.
Até parece que ele não sabe.
Dan sorriu irônico – O que é que eu... – Um
forte cutucão – Ai!
As crianças – sussurrou Maggie – Olhe
como estão lindos os seus sobrinhos – fala alto
enquanto o casalzinho se aproxima.
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Uma noite no inferno
– A pequena Linda! como está linda!... E
esse rapazinho tão grande e robusto!... Ele
apanhou os sobrinhos no colo, um em cada
braço. – E então o que Wagner tem feito?
Maggie perguntou quem era o rapaz.
Precisará de um quarto no hotel por uma
semana.
Um hóspede? Ela já se havia esquecido o
que era isso.
Ele nada ouve. Eis as chamas do passado.
Escuta os gritos das pessoas em todo o
quarteirão e sente o cheiro de carne humana
queimada e vê os bombeiros voluntários
chegando. Era tarde. De repente a mulher
estende a mão.
– Muito prazer, senhora.
Maggie deixa os dedos relaxados dentro
do cumprimento do rapaz que olha nos olhos
dela e entende. Deverá ficar quase uma
semana naquela cidade. Para onde pensava
em ir quando comprou a passagem? Sim.
Compreendeu enfim. Sentiu-se bem. O
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Uma noite no inferno
pesadelo estava no passado e pela primeira
vez na vida tinha uma fortuna nas mãos. Uma
semana de férias num lugar longe da
civilização será um descanso. Pela primeira na
vida sentiu algum alívio que não provinha da
idéia de suicídio.
A primeira impressão que alguém teria ao
ver o rapaz naquele momento seria a mesma
que ao refletir sua figura o espelho invocava –
a de que estava sorrindo e que depois devia
estar meditando a respeito de alguma coisa
importante a respeito da qual precisava tomar
uma decisão e, como se sentia realmente bem,
seu semblante assumiu esse tipo de
expressão satisfeita raramente condizente
com os sentimentos mais profundos e todavia
de algum modo a eles relacionada, como a
atração estética por moças bonitas como
aquelas que com o canto do olho esquerdo
percebeu enquanto Dan falava com a irmã. Na
verdade havia certa desolação à janela do
quarto e ele ali lembrava uma estátua
cinzenta e marcada das nuances sombrias do
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Uma noite no inferno
movimento do sol. Ao longe o barulho
contínuo de um moinho sem significação.
Portas e assoalho que rangem. Vozes ao
longe. Passarinhos cantam em tamanho calor?
O perfil triste recebe as últimas luzes do dia.
– Ali! Olhem o forasteiro!
Dormentes. As poucas pessoas que
passam chamam a atenção por certo ar
indolente como se houvesse mesmo um muro
a rodear aquela comunidade impedindo que
dela se saísse. Mas ele havia entrado. Sente
inexplicável vontade de ali se estabelecer.
Batem à porta. Assovio e cantarolar.
Palpitar do coração. Ele olha o relógio. Quando
a palpitação silenciar todo o resto terá
silenciado. Caminha na direção do som e abre.
Estão ali para convidá-lo. Haverá uma festa –
diz Érika. No rosto o mesmo tipo de sorriso
pouco antes no de Maggie. Ele não é muito de
festas. Ao lado da amiga, Marina insistiu. É
bom que as pessoas esqueçam as tristezas da
vida. Ela sabe tudo de tristezas porque é filha
de um ferreiro.
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Uma noite no inferno
Augusto Mando chegara a M* sem
pretensão relacionada a ouro. Cidades que
crescem tão rapidamente como as cidades
mineiras acabam com ouro pelas ruas e sem
serviços essenciais. Satisfeitos, os homens
darão com prazer algo de sua riqueza por uma
dose de uísque; para estar com uma mulher;
precisarão de médicos e remédios quando
doentes; dos serviços de um correio; de escola
para os filhos; de uma igreja e quem sabe de
um jornal. Suas ferramentas de trabalho não
são tudo de que necessitarão. Precisarão de
cavalos sadios e equipados e carroças em bom
estado – de um ferreiro, portanto.
A idéia da mudança foi agradável à filhas.
Marina se sente à vontade entre os mineiros
muito mais do que entre as pessoas de sua
cidade natal onde o pai tinha um patrão a
quem seus encantos não comoviam e pagava
pouco a seus empregados independente da
beleza das filhas ou dos favores que
pudessem lhe prestar. Em sua cidade natal
Marina era apenas uma mocinha a mais na
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Uma noite no inferno
multidão e ofuscada pelo requinte das damas
da sociedade e até pela beleza dos prédios.
Uma desconhecida. Completamente anônima.
Entre os mineiros porém era uma rainha. Seu
pai fingiu não perceber. Mas que lugar! –
dissera Augusto então. Nada deve à nossa
cidade em movimento. Não é, minha filha?
Despida pelo olhar dos mineiros, Marina
pensou que graças a Deus as semelhanças
terminavam por aí.
O silêncio do rapaz deve ser uma vontade
tímida de ir ao baile e assim as amigas
insistem dando cutucões uma na outra e rindo
aquele tipo de risada interna que só a
cumplicidade entende exceto por algumas
sensibilidades mais apuradas ou mesmo
neurose, o que parecia ser o caso dele.
– Venha à nossa festa, estranho.
Marina garante não irá se arrepender. A
única condição – diz Érica – é que não leve
arma de fogo. Faca pode – diz Marina. Mas o
rapaz não usava arma de qualquer tipo e lhes
disse.
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Uma noite no inferno
Não usa armas nessa região e está vivo?
Não está na região há muito tempo.
Elas não escutam.
Érika acha que ele tem uma roupa
européia. Um terno azul macio de listas que
ela pode sentir num abraço armado. Marina
não dá um mês para que compre uma arma de
verdade.
– O pai de minha amiga vende umas
ótimas.
Fiodor resistiu o quanto pôde. Não queria
saber de armas mesmo em se tratando de
subsistência. Deve haver outras mercadorias
que dêem lucro. Deve haver outro jeito de
conquistar a terra. Mas acabou cedendo, como
em tudo.
Ao longo de certo tempo quis acreditar na
própria imagem no espelho. Um homem de
aparência e temperamento e índole. Esteve
naquele reflexo por muitos anos. Deixou de se
reconhecer ali aos poucos quanto mais
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Uma noite no inferno
conhecia Helena, que adorava. Então se fez
tarde demais.
Passou a entrar nos hotéis às escondidas.
O pai dela não poderia descobrir. Quando
apanharam o trem, ela estava rindo. Com o
semblante decaído ele senta-se a seu lado no
último assento à direita do último vagão da
cobra metálica fumegante de cuja janela se
via as pessoas mexendo os lábios ao som dos
passos ecoando no soalho como martelos e
sininhos dependendo se era um homem ou
uma mulher. Ela abriu um livro. Ele vê a
paisagem lentamente passar pela janela como
se nada estivesse vendo.
A terra ao redor do hotel era árida e um
cãozinho acompanhava a sombra sob ele
pensando onde poderia ter conseguido
enterrar o osso naquele solo seco e duro e
pelo jeito eterno. À noite sonharia com o
cãozinho, que depois se transformaria nele
próprio, no sonho mas em cujo despertar
súbito e vivo era realmente ele. Meu
subconsciente quer me dizer alguma coisa –
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Uma noite no inferno
pensou, sentindo o corpo esfriando, o que a
princípio pensou se dever à temperatura
desértica, pensando mesmo em que o próprio
paradoxo do deserto teria algum simbolismo
no caso (já ocorrera a fuga do chinês), e os
músculos como que entrelaçados aos nervos
que tremiam sem qualquer manifestação
externa além da luz da lua sinuosa e traiçoeira
como uma serpente de desenhos xadrezes e
mornos como os da coberta sobre ele.
– Não tenho nenhum terno, moça.
Quanto à arma ele não crê que vá precisar
mas agradece.
O baile seria às dez horas. Elas passariam
às nove e meia para pegá-lo.
– É numa casa fora da cidade.
No meio-dia ofuscante ele sente os cheiros
feminis. Gostaria que elas o perdoassem mas
tem de recusar o convite. Não está com
espírito para festas.
As paredes do hotel são úmidas e há um
vazio no ar quando as moças descem.
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Uma noite no inferno
Calaram-se e se entreolharam e depois de
uma pausa Érika segurou a amiga pelo braço e
a puxou, irada. Passos descendo as escadas e
saindo do hotel. O rapaz suspira e fecha a
porta.
O delegado Alan está sentado à mesa de
seu almoço trazido por Helena. As duas moças
entram e Érika aponta na direção do hotel.
Acaso o delegado investigou esse rapaz? A voz
de Marina é arrastada e desagradável. Se
tivesse uma oportunidade o delegado daria
uma lição no pai dela. Filha é filha. Ou talvez
ela mesmo merecesse uma lição. Essa voz. O
estranho bem poderia ser cúmplice do chinês.
Veio para lhe dar fuga. O delegado passa a
manga da camisa na gordura em seus lábios
finos.
– Calma, meninas. Podem ficar tranqüilas.
Dan esteve com Alan e conversaram. Ele e
o chinês não se conhecem. Isso ele pode
garantir. Quer apenas vender uma pepita.
Nem queria ficar mas não teve alternativa.
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Uma noite no inferno
Diante de Dan frescas e mornas. Seus
vultos contra a luz da estrebaria. Os cavalos
desatrelados se esticam e cascam e bufam e
relincham. Como estão ficando apetecíveis.
Que cor é essa da pele delas? “O senhor não é
rigoroso com as pessoas a quem dá carona”.
Ele nos come com os olhos. Dan se irrita.
“Podem estar certas de que ninguém
minimamente suspeito entra na minha carroça
ou, se entrar, não terminará a viagem”.
– Então o que diz desse rapaz?
– Quem? o talzinho? É um coitado...
As aparências enganam – dizem elas. Ele
concordou com um lascivo sorriso sarcástico.
Érika pensa por que os homens de M* são
muito vulgares e entende que elas não
chegariam assim a lugar nenhum.
– O senhor acredita que ele recusou o
convite?
A voz de Marina soou de novo e Dan
mentalizou sua irmã. “É verdade”, confirma. E
o estranho foi grosseiro com elas.
Receiam ao ver Dan aborrecido. Olhem.
Ele diz que anda com aquela carroça por todo
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Uma noite no inferno
Oeste e pode se orgulhar de conhecer as
pessoas. Sabe que mente. Se Maggie não
fosse sua irmã... Mas garantiu que o rapaz não
quer ir ao baile e isso é tudo. Argumentou
ainda: não achavam elas melhor assim? não
seria nada bom se ele aceitasse e depois
saísse por aí... “Será que esse fogo impede
vocês de raciocinarem?” (falava por
experiência própria). Ah essas mocinhas estão
se tornando realmente muito apetecíveis.
Em silêncio e com as cabeças baixas
concordam com o cocheiro. Érika murmura
entre dentes. “Não ligue. O estranho é meio
esquisito mesmo”. Assim que bateu os olhos
nele viu que não gosta de mulher. Marina
desafivela os cabelos e balança o rosto. É isso!
–exclama –Vamos espalhar que ele anda
desarmado e não gosta de mulher!
Agora Augusto está chamando a filha. Seu
grito atravessava o mar de silêncio e calor
inóspitos em ondas semelhantes à
perpetuação de badaladas se perdendo em
algum ponto do infinito. Que ela fosse logo
terminar a comida. Sabe que no baile não se
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Uma noite no inferno
come antes da meia-noite e o pai estava
faminto. Que vida – praguejou a moça. Érika
diz a ela que tenha calma. Poderia ser bem
pior sem o baile. É – concordou a amiga.
“Marina!” Poderia mesmo ser bem pior se não
tivessem o baile.
Qualquer coisa que o senhor precisar – diz
a camareira ao deixar o quarto do hóspede
com um jogo de lençóis enrolados que parecia
estar há séculos na cama em que acabavam
de ser trocados. “Obrigado”. Um sorriso. Ele
desfez a mala. Precisa tomar um banho e se
trocar. Maggie lhe disse que a água estava
quente. “Obrigado, senhora!” Tira as roupas
para entrar na tina. A própria Maggie e Nadja
e Helena sufocam os risinhos. Elisabeth, a
camareira, está em pé ao lado delas mas
desvia o olhar.
Campos de êxtase eram aqueles por onde
cavalgava Elisabeth todas as manhãs, rios de
nomes tão doces – Columbya, que corria a
maior parte do tempo pelo planalto
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Uma noite no inferno
sedimentar em vale profundo; Yakima, na
depressão que terminava em Puger Sound;
Ellenburg, que ela atravessava exultante em
comunhão com a Natureza amiga. E o grande
monte D´Or. E os vales arborizados. Ao norte a
fronteira banhada pelo Oceano, terra natal de
Elisabeth, terra abençoada, memórias alegres
de uma infância perfeita, de um primeiro
namorado perfeito, de um casamento perfeito.
Nunca saíra dali. Sua terra. Os montes da
cadeia Cascade, o orvalho rosado das manhãs,
as florestas altas, os passarinhos no arvoredo,
a cultura dos vales a sudeste, e sua felicidade,
o arredor de sua casa sem vizinhos exceto por
Lucas Rourky e seu filho no rancho deles bem
ao longe, crepúsculo de sonho para os lados
do oceano, sua casinha, os frutos no quintal, a
névoa fina que a recebia em cada despertar
ao sair pela porta de madeira rangendo uma
canção de paz. E lá ia Elisabeth trilha afora.
Poderia cavalgar para qualquer direção que
sempre havia um caminho mais belo do que o
do dia anterior. Sim era feliz, sim, Christian,
sou muito feliz. Chegou de tanta felicidade a
hesitar ao pedido, mas não se arrependeu,
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Uma noite no inferno
permaneceria feliz, pelo menos até a viagem
para o ouro, por que mesmo precisavam de
tanto ouro? Não havia ouro por aqueles
caminhos em qualquer direção na aura
dourada dos amanheceres? Jamais esquecerá
as palavras do pai em seu leito de morte:
Filha, ele é seu marido; você deve segui-lo.
Mas cuide-se. Cuide-se, digo, fisicamente
mesmo. Porque você não é assim, nunca foi
ligada a dinheiro e bens materiais. Talvez não
esteja preparada. E se os que querem ser
ricos e poderosos submergem na perdição e
ruína, também ficam aprisionados nas
concupiscências, que estarão naturalmente
ligadas ao corpo. Mesmo um corpo
escravizado às depravações físicas, em algum
momento se liberta, quando estiver saciado,
quando satisfeita a lascívia, seja de sexo ou
de comida ou de êxtase químico. Porque ainda
que doentio, nesses casos há um julgamento
do instinto a que se está sujeito, que não seja
moral, pelo padrão físico da satisfação. A
contrafação do julgamento não invalida o
julgamento: perverte-o. Mas no caso das
riquezas, da vaidade e do poder, não há
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Uma noite no inferno
instinto a ser adulterado e não há satisfação,
quero dizer, a satisfação com o dinheiro não
tem referência ou modelo. No máximo a
referência arbitrária do parâmetro quando
relativo a valores numéricos. Da mesma forma
ocorre com a vaidade e o desejo de poder. Não
há limite. Não há descanso. E transbordam,
portanto, para o domínio físico. Como se
precisassem dessa satisfação do instinto,
ainda que passageira. Não há de ser
coincidência que essas pessoas estejam
sempre ligadas com corrupções além das
ligadas ao dinheiro e todo tipo de crime com
conotações físicas.
Elisabeth achou que o pai estava mesmo
em seus últimos momentos e meio que
delirava. Beijou-o.
Ah, a jovem e bonita Elisabeth, seus seios
brancos, redondos e firmes em uma camisa
simples de linho e cambraia rendada; os dedos
de seus pés saindo das sandálias apaches –
Elisabeth dos olhos claros que refletiam como
espelhos de lagos, e os que neles eram
refletidos se perguntavam o que eles
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Uma noite no inferno
guardavam, e guardavam uma alma de
menina que para colher uma flor mais bonita
poderia correr grandes distâncias e sacrificar
boa parte de seu tempo que não era mais
assim mais tão disponível desde o casamento,
pois agora vivia para a casa e o marido, o bom
rapaz Christian Rourky que tanto agradara ao
pai dela como futuro genro, e ganhara
também toda a confiança da mãe, e deram-lhe
a filha sem questionamentos, na verdade com
grande alegria, não muito comum a pais que
estão entregando a filhinha que criaram para
si mesmos sem lembrar que chegaria o dia em
que ela estaria em idade de se casar – é
verdade, tinha pouco tempo para si a jovem
Elisabeth, para satisfazer pequeninos desejos
como o de colocar uma flor rara e fresca no
vaso da mesa na sala, colher uma linda e rara
flor com seus dedos macios e perfeitamente
roliços, ah, suas mãos são níveas e carnudas,
essas mãos que Christian adora, esses braços
também roliços como o das criadas negras –
semelhantes no formato, porque a brancura
dos braços de Elisabeth era de leite,
sedutoramente de leite. Assim era Elisabeth,
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Uma noite no inferno
toda a alegria e todo o sofrimento de
Christian. A voz de uma rouquidão suave. As
frases por ela produzidas eram poemas de
amor recitados. Enlouquecia-o a simples
hipótese de que algum dia alguém poderia
entender assim o ser de Elisabeth, ver assim a
mulher que era apenas dele, nascera ela para
ser sua deusa de cintura fina por onde
Christian a pegava todas as noites
introduzindo o amor – a cintura, o rosto
juvenil, o pescoço delicado, a proximidade do
colo que ele descobriria, o desejo – era um
bom homem, um bom marido, Christian
Rourky, um homem bom e atraente, um pouco
ciumento demais talvez, mas como não ser
ciumento com tal preciosidade dentro de casa
movendo-se por sua vida?
O rapaz chega a ver o pequeno buraco na
parede geminada com o quarto contíguo. Mas
não imagina. Depois gritos em que não
distinguem as palavras. Homens chamam lá
embaixo.
O que os imbecis querem?
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Uma noite no inferno
Melhor ir ver.
As três se levantam, ajeitando os vestidos.
Descem. Hei! Maggie fala com os homens. O
que está acontecendo?
Vozes de álcool. Perguntam pelo rapaz
que chegara à cidade. Traga-o e prepare o
quarto aqui do térreo.
Então Maggie pediu, quase ordenou. Psiu.
Silêncio. Ele pode escutar. Estão malucos?
Pensam que estão em Sodoma?
Algo parecido, diz um deles.
Helena intervém. Parem com isso. Querem
estragar tudo?
Outro dos homens percebe Sheila e
pergunta se ela não tem uma filha.
Ela era a filha. Lembra-se do senhor
bondoso com quem a mãe se casara. De como
o atormentava. Ele lendo os jornais de
domingo e ela pulando no sofá entre gritinhos
e risinhos. A mãe na cozinha. Ela perguntando
se ele já lera tal artigo na revista tal e se
deixando à mostra ao abaixar de lado para
pegar. Ele a estava olhando, decerto. Tanto
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Uma noite no inferno
que quando se endireitou viu que o jornal
parecia antes um escudo. Ela riu e disse isso,
apontando. Pare com isso, menina – ele
respondeu, pego de surpresa. Ah, deixa disso,
papai. Deixe-me agradecer tanto que tem feito
por nós duas. Conseguiu expor a tortura de
seu desejo imenso – não tanto quanto o
respeito que devia à mulher. Isso porém não
aparecia no elemento que surgiu. Ela ria e ria
e fez de tudo mas antes que a ouvisse a voz
da mãe a chamando, ele já estava
recomposto.
Não, ela não tem filha. Mas tem
plenamente a si mesma, responde. Passa a
língua nos lábios e sorri para o jovem
embriagado.
Ricardo de Almeida Rocha 34
Uma noite no inferno
Após o banho ele quer sair e pensar.
Errou para fora dos limites da cidade. Montes
e depressões. A aragem e o calor suave da
tarde em sua pele. Olhou para trás e lá está
M*: a torre da igreja dominando todo o
cenário. Com o dinheiro comprará uma
casinha ou viajará pelo mundo. Ali é a janela
de seu quarto no hotel pequenina do lado
esquerdo da estrebaria. Do outro lado a
taverna. Fumaça. Rolos cinzentos das
chaminés são os únicos sinais de vida.
Adiante vislumbra um vale muito verde e um
lago onde adivinhou um lugar perfeitamente
adequado para meditar. Caminhou muito
antes de chegar a ver novamente o lago de
uma outra elevação. Desceu pela encosta
verdejante e conforme se afastava da cidade o
ar parecia mais respirável. Aspirou e segurou
nos pulmões e soltou de uma só vez. Oh
agradável entorpecimento! Uma aragem.
Ligeiramente ocultas por árvores, as águas do
lago estão encrespadas. Passa a ouvi-las... as
águas... as águas... Mais além o mar. Enche-
se de paz.
Ricardo de Almeida Rocha 35
Uma noite no inferno
Cheiro de mato. As cores da Natureza. As
flores e os troncos das árvores. Fazia uma
tarde realmente agradável, nem fria nem
quente, como se a dimensão onde calor e frio
se estabelecessem tivesse sido substituída
pela ausência de temperatura dos sonhos e as
plantas pareciam igualmente aquele verde
indizível dos sonhos coloridos que indicam
segundo dizem estada numa outra realidade e
não apenas a manifestação do subconsciente
em preto e branco. As ramagens balançavam
por efeito de pássaros inquietos cruzando o ar
em ruídos recobertos pela consciência que o
rapaz tinha deles e o ruído das águas quase
podia molhar sua pele destinada àquela brisa
trazida sem dúvida do mesmo lugar de onde
vinha sua repentina paz, de tão tangível quase
sensual. O azul do céu se confundia com o do
mar distante. Leveza vespertina. Arranca do
pé e coloca na boca umas frutinhas vermelhas
que nascem nuns arbustos.
E a vê...
A respiração quase parou. Aproxima-se.
Que emoção é essa? É ela? Uma artimanha do
Ricardo de Almeida Rocha 36
Uma noite no inferno
destino? Cansado, não sente o cansaço. Mas
senta-se: ordem expressa do corpo. Talvez a
umas quinze jardas a verdadeira pérola.
Desviara seu caminho planejado para
conhecer a jovem oriental de vestes terrosas.
A vez anterior havia uma semana e pouco,
pouco antes de seguir caminho e encontrar a
pedra (ainda um pouquinho e Dan lhe daria a
carona). Ali estava. Bela – não muito na
verdade – bela o bastante. Uma luz magnífica
na inclinação do sol e sons de animaizinhos e
sombras de árvores e murmúrio de águas e a
serenidade do lago. Cenário adequado para
um milagre.
Porque a chinesinha possuía uma
expressão bondosa, cativante logo à primeira
vista. Alguém poderia ser feliz com
semelhante amada, boa e atraente, meiga e
trabalhadora. Aonde a levará quando
estiverem juntos? Quem havia desistido do
amor e da própria vida... Ah. Ela não está com
a menina. Isso dá uma perspectiva de
intimidade que da outra vez, ao não existir,
tornara-se razão de seguir caminho, como se
não a tivesse visto na praia. Então num
Ricardo de Almeida Rocha 37
Uma noite no inferno
vestidinho largo de algodão que lhe acentuava
as formas. Gritinho de criança. A menina corre
até a areia dura junto às ondas. A mãe está
pálida mas há um tom afogueado na têmpora
como se estivesse febril, resquício talvez de
antigos vícios. Nada de que deverá se
envergonhar. Instiga interesse e compaixão.
Uma jovem com um passado. Isso era quase
tudo. Porque longe estava o tempo das
estudantes à sombra das quais seu senso
erótico e estético andara se abrigando. Rugas
de expressão dizem de uma luta constante
contra a dor, filho de quem ele era. Sua irmã,
portanto.
Em tardes assim a vida não tem pressa. Os
pensamentos se recusam a uma conclusão,
como nuvens que se perseguem. Longe de ser
um capricho da natureza, é uma necessidade
do momento. Taiorie não percebe a chegada
do estranho. Continua a se refrescar, a mão
esquerda no braço direito, a direita no outro,
as duas ao rosto. Um rosto singelo, sem
mácula. Ele tem certeza. Encontrou uma
mulher digna. Frágil, e não o é ele também?
Também. E mais agora, absolutamente fraco
Ricardo de Almeida Rocha 38
Uma noite no inferno
e, por isso mesmo, forte como nunca. Mas não
será precipitado pensar assim, sentir dessa
forma? Amor à primeira vista ou lá o que seja.
Não importa.
Um rosto triste. A mais triste expressão
num rosto humano. Bondosa. Outra pessoa
poderá emprestar à própria face caracteres
tão marcantes de bondade? Flor de sua tarde.
Assustada, faz menção de fugir. Os olhos dele
suplicam que não o faça, e ela obedece. Ao
redor os montes se erguiam entardecidos,
ensombrando os recantos do vale. Há uma
canção na paisagem e ela também a escuta
porque dá forma às coisas que sente.
Arregaçou as mangas úmidas e olhou o
horizonte como se buscasse um sentido para a
trágica perda. Mas como poderia haver? Não
levara adiante a idéia do aborto. Então não
foi castigo. No céu a menina estava viva. Na
nuvem ela brincava. No reflexo do mar, a mãe
chorou. Então pensou. Filhinha! Viva nas
trevas de um coração e de um oceano.
Debatia-se ainda. Taiorie devia ter aceitado
Ricardo de Almeida Rocha 39
Uma noite no inferno
quando o irmão disse que a ensinaria a nadar.
Tinha medo. Cansava fácil. E o pavor do mar.
Aprenderia agora a amar a última habitação
da menina. O que há mais a temer quando se
passa pela morte? Sim, pois ela morreu.
Aquela sombra que caminhava junto dela
estava destinada a um sepulcro bem menos
belo. A um túmulo diabólico.
Odor amadeirado de lago. Atravessam
arroios sobre seixos e retomam o caminho da
relva rala e muito verde envolvidos num ar de
sonho. Distantes da emoção do amor renovam
o amor na brisa calma e no murmúrio de
águas. Vivem por terem esquecido. Vivem
pela intuição. Estão preparados. Tudo assim
sossegado. A vida fora da vida: é dessas
interrupções no cotidiano que surgem as
descobertas. Ali são madressilvas? Logo ele
irá perceber que toda resposta dela vem
através dos olhos, às vezes por gestos. Agora
desvia esse olhar para as flores. Olhos
puxados, semicerrados, dois riscos no rosto.
Adianta-se. Fazia tempo. O medo nela era
inverso. Recém se dera e se dera mal. Não:
não por amor. A blusa freme e as folhas caem.
Ricardo de Almeida Rocha 40
Uma noite no inferno
Rompe-se o muro entre ela a estranha e ela a
quem um homem conhecerá totalmente – no
tocante às montanhas, às florestas, ao lago,
ao sol e ao vale, pelo menos.
Que importa afinal? Deus aprouvera puni-
la, tirar-lhe a filhinha, a única, seu único laço
com o afeto. Deus o aprouvera. Nem sofre
tanto assim, anestesiada. Desperta para o
amor porque precisa sobreviver. Um amor
deve significar também outro filho. Ele sente
certa indiferença como se fosse um amor
indireto mas nem liga, faz tempo que o desejo
vinha crescendo, precisa desse amor, pode
fazê-lo sublime, pode, há todo elemento
conveniente – essa desbanalização da tarde
por meio do passeio; a perspectiva do alívio
após a venda da pedra. O que menos precisa é
da chegada para viver esse caminho.
Ela sabe tudo, nada sabe, nada específico
mas um tanto que lhe basta. Eu, que nada sei,
que nada entendo, pensou ela, importava-lhe
sentir o prazer, a gratificação que aos demais
seres parece natural. Que o estranho
chegasse os lábios pelas suas espáduas no
Ricardo de Almeida Rocha 41
Uma noite no inferno
movimento ansioso da demora. Quem é este
que chegou sabe Deus de onde?
O sol que sumira havia uma semana tudo
tinge de luz. As árvores. Se você tocá-las
profundamente transformar-se-á em uma. Diz
o quanto se sente sozinho como se estivessem
conversando há horas. Tudo que ela oferece
como resposta é o olhar e não dá para explicar
um olhar, quando se tenta, perde-se seu
verdadeiro atributo. Ele não comenta a
respeito. Diz que ela sabe o que ele está
sentindo. Ela talvez não respondesse com
palavras, mesmo se pudesse. Deseja o mesmo
que ele e basta. Talvez ela tenha lhe pedido
isso – pediu, de algum modo. Essa respiração.
O vestido amarrotado. O balanço da
correntinha. O caminho. A referência. Aqui.
Dedos e tiras, aura de um cheiro forte e
adocicado. Mais devagar. Cílios de sol nas
folhas, raios de sol penetrando os ramos, a
terra úmida e tenra, a aspereza da pedra, o
sulco, o arrepio e o grito. Continue. Ela está a
ponto de chorar mas se contém. Isso ele não
entenderia.
Ricardo de Almeida Rocha 42
Uma noite no inferno
Nem para um ou para outro é algo novo
mas é algo novo porque em algum lugar, em
algum momento, houve uma transformação.
Questão de sobrevivência. Há o momento de
entender por que timbram coisas antigas e
futuras como se não existisse o tempo ou eu
mesma, pensa ela, e eu também – e eles em
um só corpo fossem o tempo. Ninguém nas
proximidades. Nem mesmo um distante eco de
M*. Ele deu por seu cansaço e por meio do
cansaço considerou que caminhara mais do
que a princípio imaginou. Estão sós no vale.
Pelos anos seguintes será assim.
1
1 sexta-feira, 14 de junho de 2013
Ricardo de Almeida Rocha 43
Uma noite no inferno
A habitação suntuosa em estilo vitoriano é
talvez a única prova de que M* teve um
passado próspero. Oito horas de uma noite
fresca. A pequena multidão passa pela
avenida central; muitos vão à opera. Ali
estavam Fiodor e Helena, felizes. Acertaram
ao se mudar para aquela linda cidade. Amo-
te, diziam com freqüência. Os filhos seriam
bem educados ali e felizes também. Fiodor
vê Dan passar por ele. A casa de ópera está
abandonada. Maggie ofereceu uma recepção
quando da sua primeira visita. Uma lágrima no
rosto anguloso do juiz. Hoje não haverá
recepção alguma. Fiodor comenta com a
mulher que todos passaram um pouco da
conta na bebida. Não acho, dissera Helena.
Então ele percebeu também que ela estava
embriagada. E pouco depois, a festa passou a
ser um evento mensal. E a partir Helena dali
estava mudada. São quatro da tarde em M* e
faz calor. Por Deus, faz muito calor.
Dez aposentos. Dois fazem parte do palco;
outros quatro da platéia. Dois nos antigos
Ricardo de Almeida Rocha 44
Uma noite no inferno
bastidores. O lugar onde entrarão à noite e
achar-se-ão. O prisioneiro olha pela janela do
cárcere. Mortalha noturna. Camarotes,
escadaria, corredores, bar, banheiros. Paredes
púrpuras e tapetes purpúreos. Fiodor não
imaginava que capricho era aquele.
Poltronas pelos cantos, quartos, camas,
maletas e valises. A costureira logo estará
deitada, chorando. Não sou santa mas sou
uma pessoa decente. Os camarotes não foram
modificados. Sequer foi preciso tapetes
purpúreos, pois já havia tapetes purpúreos;
apenas as paredes foram pintadas dessa cor.
Diana, filha de Jeiel, o farmacêutico, viúvo
doente que só se levanta da cama para
atender os clientes. Ela está no salão ao lado
do antigo palco. Aleluia, diz Marina! Até que
enfim!... Era difícil compreender por que a
jovem não ia às confraternizações. Estão
felizes porque enfim se decidira. Veja, Marco.
Carne fresca...
Maggie diz que Marina não deveria falar
assim. O que Diana pensará? – Que somos
Ricardo de Almeida Rocha 45
Uma noite no inferno
felizes – Sim – insistiu Marina – são felizes
apesar de viverem em M*.
Marco segura a mão da jovem, olha para
ela, volta-se de novo ao rosto de Marina; seus
sentidos se agitam com as sombras que vão e
vêm e o barulho que fazem e o cheiro que
exalam, e tudo isso afeta Diana além do
imaginável – os dedos de seus pés estão
contraídos nos sapatos de couro, não lembra
como foi parar ali, nunca deveria, mas não se
lembra, teria sido envolvida pelas vozes? Ah,
as vozes, as vozes ecoando em seu cérebro
como o ranger de uma de uma porta
eternamente aberta diante das criaturas que a
devoram.
As escadas escuras não dão em parte
alguma. Maggie diz: meu amor me espera;
precisa ir, deixá-los-ia a sós. Entregara a esse
amor a vida inteira. Os amores de Marina a
esperam também, sem vida. Até logo, Diana.
Que Marco cuidasse bem dela. Oh sim. Ele
estava preparado. O friso nas margens do
carpete, dourados, chegam a cegar. Será uma
noite inesquecível.
Ricardo de Almeida Rocha 46
Uma noite no inferno
Diana pega um livro amarelado na
empoeirada estante. Não sabe o que fazer. As
vozes aumentavam em seu cérebro quando
ele chegou por trás. Levanta o vestido. Os
livros se inclinam mais uns sobre os outros e a
estante balança fazendo esvoaçar as
partículas do pó para o espaço etéreo onde
Diana se refugiara – porque suas mãos reais
permaneceram e ali se apoiaram nos
movimentos vigorosos do rapaz. Há uma outra
mão sobre a blusa em seu seio. Não deixei de
ser sensível à beleza, ele pensa. Hun – diz.
Onde você andava que não aparecia por aqui?
Ah! vida miserável em que as coisas preciosas
são construídas quando não há mais quem era
digno do usufruto! Ela chorava quanto mais
sorria naquele mundo que Marco desconhecia.
Porém ele estava também ali, personificado
num monstro mais feroz quanto maior o
pranto que ouvia. Seria capaz de matar
segundo tal estímulo. A investida dos dedos
sob ela de súbito está molhada. Deveria
conjurar e entretanto sorriu, gargalhou.
Congratulou-se na urina. Secou a mão na
própria incursão entre as rendas. Ela estava
Ricardo de Almeida Rocha 47
Uma noite no inferno
sendo mais que violada. Estava sendo
amputada. E todavia não abria mão das flores
daquele outro mundo. Continuava afagando os
animaizinhos naquele bosque tão verde de
flores tão vivas. Quanto mais deveria sofrer
nas mãos daquele animal que vibrava na
imundície mais ela jubilava onde ele não
poderia chegar, pois agora a espada súbita de
um príncipe havia matado o monstro. Bem que
ele tentou, abrindo os botões, desnudando-a,
apertando-a, manuseando o endurecimento
inconsciente e indefeso, obrigando-a a
apalpar, a aceitar, trazendo-lhe o rosto,
mantendo-o capturado à calça enquanto
convidava o demônio ao sacrifício e o adorava,
delirando entre os som da voz desesperada
que era de Diana mas ela própria não ouvia.
Qual pecado aqui não pequei e assim tão
jovem? Que vício não aprendi em tão pouco
tempo de vida? A que perversidade me
recusei? E como que para exibir a Satã a
verdade de sua fala, encharcou a doce boca
que não mais resistia.
Ricardo de Almeida Rocha 48
Uma noite no inferno
Na volta do fim da escada, Maggie vê Dan.
Sorriem. Marina prossegue na direção dos
homens acabados de chegar. Seus pés
também estão contraídos, duros. Olá rapazes.
Estão sequiosos. Val não está aqui? Sabiam
que fugiria na hora.
Grandes espaçosas mãos, grandes olhos
injetados. Ar pesado sob o teto. Esse belo
rostinho sem-vergonha! Cabelos curtos
desgrenhados. Érika não se conformava. Você
não vai se pentear antes de irmos? Boca
exageradamente vermelha, hálito de vinho.
“Saída”. Nadja entra no mesmo aposento.
No grande quarto construído a partir de
um dos camarotes do lado direito, Alan pede
que a mulher interrompa a dança, É um
instantinho só, querida. Recebeu à parte os
homens um por um. Sua parte. Entrega um
maço de notas. O homem as colocou na calça.
Helena nunca vira antes o oficial de justiça na
cena habitual. A coisas talvez estivessem
saindo de controle. Logo haverá mais
pistoleiros do que executivos e políticos no
esquema, como nos tempos da mineradora. Os
Ricardo de Almeida Rocha 49
Uma noite no inferno
movimentos labiais são inequívocos.
Cinqüenta por cento. O aposento é assim tão
grande ou há uma ilusão de ótica? Sentada,
pensa no chinês. Talvez devesse estar lá,
consolando-o.
Cinqüenta. Nada a menos.
Sejamos razoáveis. Houve demora na
aprovação do gasto. Logo porém o atraso será
a mais perfeita desculpa.
Walt entra e dirige-se para Helena sem
tomar conhecimento dos demais. Da janela
aberta entra uma brisa úmida. E eles com
isso? Combinado não é caro. É preciso conter
essa gente. Estão perdendo a noção das
coisas. O fato de ser o delegado não implica
mais na autoridade devida. As coisas estão
saindo de controle. Nada decerto que deva
fazê-lo recuar. Encostado contra a parede,
seu rosto sereno nada demonstra. O mês que
vem virá em dobro. O homem se afasta, não
satisfeito, mas tudo certo. O mês que vem.
A situação se repete com cada um. O
governador não irá descumprir suas
promessas. Todos se contentam. Fazer o quê?
Ricardo de Almeida Rocha 50
Uma noite no inferno
O último, antes de falar com Alan, relanceou
os olhos na direção de Helena e Walt como
quem não está vendo. Hum. Ele tem é muita
pose, e só. A noite descia para dentro da casa.
Chega a pensar na família e em possíveis
conseqüências. Deixemos para lá, agora é
tarde. Diante do delegado. O governo pensa
mesmo em reconstruir M* a partir de uma
ferrovia?
A mulher retoma a dança. Alan se sentara
novamente. Uma ferrovia... Verbas de todo o
tipo. A idéia o excita, mais do que os
movimentos da mulher. Seja como for, é no
colo de Walt que ela se deixa após a última
peça. Mais. Outra vez. Walt imergiu no
perfume dela, cheiro de uma floresta. Prefere
o cheiro dela ao das notas novas estalando.
Acredite. Prazer louco! Pois sempre tivera a
fantasia de se exibir com uma terceira pessoa
presente. Que delícia! E de alguma forma
Helena devia isso a seu patético marido.
“Quanto eu amo você” – foi isso o que disse
ao introduzir o pedido? Algo assim. E ela
chegou a se sentir feliz, a noiva, precisava
Ricardo de Almeida Rocha 51
Uma noite no inferno
admitir: sentia-se feliz. Os tempos eram
outros.
Apressando-se ao longo do caminho na
direção da meta sempre fugitiva, o delegado
desliga-se da ferrovia, dos membros, dos
valores e do futuro, com mãos tremulas. Sou
um filho de Deus, pensou depois de uma
satisfação sempre frustrante; teria sido um
homem bom se tivesse sido alertado antes
que a virtude e o vício são em si mesmas a
recompensa e o castigo.
Quando decidiram permanecer na cidade,
cada qual tinha as próprias razões. Nenhuma
naturalmente apontava para a casa de opera
desativada, que foi uma conseqüência quase
natural da mistura do que é inerente à cidade
grande e das coisas peculiares aos pequenos
povoados. Na época do ouro, o hotel de
Maggie ostentava uma grande pedra de
mármore à entrada, depois vendida para uns
homens do Leste. Aproveitaram-na no hoje
famosíssimo Taehung. As ruas eram de
excelente iluminação. Nas canaletas corria
Ricardo de Almeida Rocha 52
Uma noite no inferno
discretamente o esgoto, mantido pela limpeza
pública de uma administração impecável.
Contra a sonegação e outros descaminhos,
tentou-se até impedir a circulação do ouro
com uma Casa de Fundição. Mas exercer
controle direto sobre a produção mineira
terminou por atrair todo tipo de desvio. Havia
uma menina que costumava levar seu cão
feroz numa coleira para passear todo fim de
tarde, mas acabaram proibindo isso, por causa
da integridade das pessoas. Era filha do
farmacêutico. Diziam que não existe coleira no
mundo que possa impedir uma tragédia nos
momentos da ira de uma cão. Ela chamava seu
cão de Vocabull.
Por toda a rua principal havia muitas
árvores agradáveis, depois cortadas por uma
necessidade inelutável de lenha. Com a
exaustão dos veios, a própria Natureza se
voltou contra a cidade – no verão um calor
sufocante, no inverno um frio insuportável; pó
metade do ano e lama na outra metade. Onde
ainda existem cursos dágua? O que fazer da
liberdade numa terra tão distante das
estradas; o que fazer numa solidão tamanha,
Ricardo de Almeida Rocha 53
Uma noite no inferno
de gafanhotos infestada? Os poucos espelhos
tornaram reduzida a quantidade de reflexos
de luz. A profusão de bares e prostíbulos não
deixou marcas. A única coisa parecida é a
taverna de Alfonso Negrini, apenas um ponto
de encontro. Os moradores já não precisam de
um bordel.
Tanja chegou a pensar por causa da
demora que Afonso não viesse mais. Diz-lhe
isso quando ele chega. Abraça-o. Que bom que
veio. Aproxima-se. Ele a traz para junto de si e
a abraça. Diz que demorou só para deixá-la
em suspenso. Imagine. Só para deixá-la em
suspenso, que nada. Mais que isso. Sabe do
que ela gosta. Ah, quem diria. Quando a viu
pela primeira vez, não pensou que pudesse ter
algo com uma mulher tão respeitável. Sai do
canto, pelo centro do aposento, a passos
lentos. Está perto de Afonso, mas quem
olhasse com atenção perceberia certa
distância a mais e um demasiado contraste
das cores de suas roupas. Pensou que ele não
viesse. Ora, por nada neste mundo.
Ricardo de Almeida Rocha 54
Uma noite no inferno
Como sempre ela falou em amor, com seu
sotaque do sul, numa entonação insegura.
Como se adivinhasse. Ela diz para não
perderem mais tempo, querido, nosso tempo é
curto e para vivermos uma noite tenho de
suportar um mês de tédio sem fim. Ele
responde que fará, minha potranca, essas
horas compensarem plenamente seus dias de
tédio e os meus de desejo. Diz que inventa
roupas estragadas só para vê-la. Ela pede
apenas que ele seja delicado, ela adora
qualquer coisa desde que seja com delicadeza.
Não gosta de violência.
A mulher que entrou diz que gosta.
Nunca o perdoará. Ela então teria de
desculpá-lo mas seria uma desatenção não
atender Maria que continua entrando,
esbarrando acintosamente em Tanja, a se
esgueirar chorosa corredores afora. Maldito.
Afonso chama. Vem cá. A bofetada soa e
Maria cai. Senta-se nas costas dela, apanha
uma porção abundante de seus cabelos e
puxa-a para trás. Vergada num limite
inimaginável. Devolve-a ao chão; o assoalho
Ricardo de Almeida Rocha 55
Uma noite no inferno
ecoa na noite. Cruza-lhe as pernas de modo
que com sua perna a imobiliza e a traz pelo
laço do vestido. O tecido se rasga. Trabalho
para Tanja, diz. E riem. Forçada a ficar de
joelhos, ela submete-se sem pesar.
Afonso e Maria podem ser ouvidos do
outro lado da parede mas Augusto e Margot
não prestam atenção. Ela brinca com um
pássaro ferido.
Era um homem cujos sentimentos sempre
estavam ligados a algum fenômeno físico. Não
se perguntava sobre certo e errado nem nunca
pensou em corromper ou abusar, muito menos
alguém que amava tanto. Imaginara dar à filha
uma boa educação, até porque precisara fazer
papel de pai e mãe. Ali está ela. Sorri, alegre
no balanço, equilibra-se no alto do muro. Isso
foi na última cidade em que estiveram antes
de M*. Lá a mulher o abandonara. Refletiu
num determinado toque o quanto ela era
jovem e bonita, demais para alguém como ele.
Agora a menina está comendo a comida que
ele diariamente lhe prepara com minúcia e
Ricardo de Almeida Rocha 56
Uma noite no inferno
deixa-lhe ao ir trabalhar. Sorri ainda. É. Pode
ser que a mulher o tenha deixado já em M*.
Diz a si mesmo que está melhor agora, se
convence de inocência, por que seria o tal
canalha miserável que a mulher acusava? –
naturalmente um raciocínio parcial de mulher
despeitada quando percebe que perdeu; e a
menina não, era pura e continuou pura ao
crescer, fecha os olhos agora, olhe quanta
pureza, o ar se enchia de bichinhos da noite,
não há qualquer razão de culpa. O quarto é
pequeno e agora ainda mais.
Ela move a mão como que vencida, ou
talvez vitoriosa, demorará a saber, ou nunca
saberá, na verdade ignora tais conceitos,
simplesmente não sabe e perdeu a vontade de
chorar desde que soube que está grávida do
pai.
A jovem esposa do agente dos correios
teve tudo que o dinheiro pode comprar.
Armand era um bom administrador do
patrimônio que ela dissipava com ardor.
Sheila é jovem, bela, educada, culta. Seu par
Ricardo de Almeida Rocha 57
Uma noite no inferno
nas festas costuma ser Marco, mas como
nessa noite está ocupado com a iniciação de
Diana, ela ficou num canto, conversando com
a mãe do delegado. Sheila tem quarenta anos.
A senhora Carol teve Alan com quatorze. Uma
senhora ainda atraente e muito educada. O
lampião no alto impede a escuridão total do
aposento. Sombras bruxuleiam na parede
sanguínea.
Ela não entendia. Uma mulher como a
senhora parar numa cidade como M*. O
delegado foi nomeado numa cidade em que só
se pensava em bens materiais e onde se
ignorava totalmente as delícias do intelecto,
como as conversações, bem supremo da alma,
alimento dos espíritos nobres. A mãe diz que é
realmente uma pena. Meu filho e eu
enveredamos por caminhos sem nada em
comum. Sheila sugere que talvez sim ainda
tenham alguma coisa. Pergunta: não está com
calor com esse xale? Carol se ilumina. Revela-
se para ela o poder da casa, como o poder de
uma lembrança, embora fosse sua primeira
vez desde a morte do marido. Sim, está com
um pouco de calor. Poderia tirá-lo para mim,
Ricardo de Almeida Rocha 58
Uma noite no inferno
por gentileza? Os lustres altos balançam sobre
elas.
Lá fora, a noite era inquieta como um
animal acuado numa jaula. Jim ouve os galos
ao longe, profetas do amanhecer. Ao canto
junta-se a voz dos cães, latindo de longe em
longe, e corvos grasnando presságios.
O entardecer distante de qualquer lugar
conhecido, ou sentimento, escritas no céu
estrelando-se palavras encorajadoras. O lago,
o distante barulho do mar, o amor ao lado. A
imensidão do amor e do crepúsculo. Liberto do
passado e do futuro, eis que vive, ao lado do
amor; mãos dadas são asas.
Copas ensombradas, flores brancas. As
estrelas cintilam. É uma noite especial, não há
dúvida. Caminham há mais de duas horas.
Atravessaram arroios e riachos sobre seixos;
retornaram ao caminho da relva rala e muito
verde. Às vezes passam por tufos de onde
surgem os arbustos com frutinhas vermelhas,
que comem. Ele a leva pela mão e ela se deixa
Ricardo de Almeida Rocha 59
Uma noite no inferno
guiar. Como? Ele a guia. Ela se deixa. Uma
mulher que se permite novamente, sim, mais
uma vez. Lembrar-se-ão disso no futuro?
Saberão para sempre o respeito que se deve a
esse tipo de acontecimento?
Mas antes o irmão. Nunca foi uma menina
de família, agora tem a necessidade de sentir
que o ama. Porque não acha que seja de todo
má. E agora se sente forte de novo. O irmão.
Fará algo por ele, algo que não conseguiu
fazer pela filha. Essa paz que a cerca
produzirá fruto. É uma sensação forte de vida
no toque sensual. A força também renasce ao
lado, nele, e desafia insegurança e medos.
Uma nova vida. Eis a cidade lá embaixo.
Sinais. Ela esperará ali. Sinais. Algo como
quadrado, cruz, não... Cárcere. Isso. O quê?
Falar com o delegado? Não. Ela gesticula mais
e mais ansiosa. Braço? Veias... Sangue... Do
mesmo sangue... seu irmão? O que
aconteceu? Está preso? Sim. Querido.
O que fez?
Nada. Estão enganados.
Ricardo de Almeida Rocha 60
Uma noite no inferno
Verá o que pode fazer. Pergunta por que
ela não vai junto. Medo? De quê? De que tem
medo? Não o quê?
O homem, o momento; a Natureza
testemunha. Por favor, meu anjo, apenas vá.
Ajude-a. Um gesto de confiança. Ele diz
Obrigado. Espera merecer essa honra.
Os bastidores do teatro, agora uma
espécie de adega. Descem. Mais garrafas de
uísque e absinto. Cada degrau da escada
provoca calafrios em Val. É o filho de um dos
homens que estão com Marina. Que lugar é
este? Tímido, medroso, mas veja sua
excitação, espírito que quase se confunde com
intrepidez. Érika o conhece bem. Jamais veio à
Casa de Opera. Ela própria o convidara. Ele
estará enfim com sua deusa. Os homens fazem
sempre o que queremos, Marina, ela costuma
dizer à amiga e repetiu ao saírem da
delegacia. Val. Basta-lhe imaginar. Por esse
prazer submete-se. Veste um terno de
algodão coenizado, uma camisa de seda
Ricardo de Almeida Rocha 61
Uma noite no inferno
javanesa e um coat de gabardine. A própria
Érika confeccionara. Quando o estranho
entrava na cidade vestia essas roupas.
Val não tem o que dizer mas fala. Baile
sem música é estranho, não é? Em algum
momento ela estará à disposição para que ele
realize os antigos sonhos que ainda o
prendiam a M*, a própria razão de sua
permanência em M*. Não entende esse olhar.
Continua falando. Estou bem assim?
– Está ótimo, cavalheiro...
Os trejeitos dela o deixam constrangido e
excitado. Música? Ele não está escutando essa
que toca só para eles? Nada ouço, pensa, mas
tenta. Porque ela está deslumbrante no longo
vestido justo de musselina rebordada em fios
metálicos. Compensa todas as suas
esquisitices.
Manda que ele repita: Sim, querida, esta
será a nossa música. Ele o fez. Ela quase se
emocionou de verdade. Meu amor... Sabe que
chegou o dia. Será tirada daquele lugar e
levada para longe. Ele sente ter chegado a
hora. Os ombros de Érika reluzem. Suas coxas
Ricardo de Almeida Rocha 62
Uma noite no inferno
são emolduradas pelo tecido. O corpo tanto
tempo desejado. Chegou o dia.
Ela fecha os olhos e se vira de perfil; ele
apanha a garrafa de absinto. A metade de um
só gole. Não sabe mais como manter a
conversa. Leva seus lábios aos dela.
Correspondência apaixonada. As mãos
sôfregas tentam abrir os laçarotes. Érika
mantém os olhos fechados, murmura coisas
incompreensíveis. Uma moça deliciosa. Val
não procura sentido, desde que ache o que o
procura.
Deitada sobre a mesa na adega. Entre a
seda, generosas partes de intimidade
precedem mãos e lábios. Enlouquecem-na
também. Pronta para recebê-lo, abriu os
olhos. Ele tirara as roupas caras de Paris!
Diante dela apenas o filho de um mineiro, com
o peito cabeludo, mãos calosas e hálito de
absinto.
– Idiota!
Esbofeteou-o e ordenou que apanhasse as
roupas no chão e as colocasse de novo. Ele
pensa em revidar mas lembra de que há muito
Ricardo de Almeida Rocha 63
Uma noite no inferno
comprava fiado no armazém de Fiodor e
obedece.
Poeira no rosto e os olhos claros
reluzentes. Entra na cidade vazia. A delegacia.
Ninguém. O que faz ali? O irmão da chinesinha
está preso, deve interceder por ele. Olá! Jim
se agarra às barras de ferro da cela e diz
Estou aqui. O outro aproxima-se. Por que
deveria temer? Ah, precisa deixar de ser assim
tímido. Impede-o de realmente viver. Estão
agora muito perto, separados apenas pelos
ferros. Então Taiorie conseguiu mesmo
alguém, como disse que faria. Por que está
ali? Como assim, porque estou aqui? Para ser
enforcado, amanhã, quando acordarem.
Pouco consegue reter além disso. Os
detalhes, as implicações, tudo relacionado a
esse fato, Jim não mais consegue reter. Ia
morrer e só. O redor está embaçado, os sons
silenciados, os objetos sem peso, não sentia
mais cheiros.
Ricardo de Almeida Rocha 64
Uma noite no inferno
O outro está feliz, não deve esquecer, está
apaixonado e em paz. Talvez até febril. Mesmo
assim precisa saber o crime cometido. Sou
oriental.
– Não acredito – mas a reação reflete o
medo de acreditar e ter de fazer alguma coisa
a respeito, como prometera.
Dizem que matou alguém. Por que
deixaria sua vida plena nas montanhas e viria
perder tempo matando os mortos?
– E por que veio?
Procurar o pai; mas não quis saber e o
delegado o acusou.
Por que um pai rejeitaria?
Não estava ali para livrá-lo mas
interrogar, pensa Jim, e pergunta: O que você
quer afinal?
Fazer a coisa certa.
Está num lugar estranho para quem se
preocupa em fazer a coisa certa.
Quem sabe agora descubra algo sobre a
estranha cidade cujo ar pesado voltara a
respirar. Já saberia se tivesse ido ao baile em
Ricardo de Almeida Rocha 65
Uma noite no inferno
que estão neste exato momento. O baile...
Sim, o convidaram. Está cada vez mais
envolvido numa coisa de que não quer
participar. Sabe que o chinês fala a verdade,
não pode mais escutá-lo. Diz não gostar das
insinuações. Essa gente boa lhe dera abrigo.
Deve-lhes isso, ter conhecido a irmã dele.
Está mesmo apaixonado?
– Para sua sorte.
Jim é inocente mas está preparado para
morrer. Se não acredita, deixe-o em paz.
Estivera a vida inteira em meio a essa
desconfiança. Está cansado. Melhor morrer de
uma vez. Eram semelhantes, talvez as
semelhanças os separasse, como o espaço que
há entre a pessoa e o espelho. Já disse que
vou interceder por você junto ao delegado.
Meia-noite. Pássaros da noite rodeiam o
cárcere. Não há tempo. O delegado só virá
com a manhã, diz Jim. Como se houvesse
afinidade entre aquelas pessoas e a luz. Irei
para o hotel então e pela manhã... Será
enforcado. Já desistira de lutar, por que mais
essa inútil esperança? Me ouvirão, diz o
Ricardo de Almeida Rocha 66
Uma noite no inferno
estranho como a pedir desculpas; diz e sabe
que não ouvirão, acredita em Jim, sua alma
está ligada à dele.
As coisas que ouvira e presenciara da
cela. Como poderia Jim leva-lo a crer? Coisas
de que até o Deus de sua inocência duvidaria.
A imagem de Taiorie e seu gesto de
confiança. Vai até a mesa, mexe nas gavetas,
acha as chaves, abre a fechadura.
Jim tem um ranchinho nas montanhas. Um
lugar inacessível para aquela gente. Se o
culparem pela fuga. É seu. Taiorie sabe onde
é. Leve-a para lá, não a deixe jamais vir aqui.
Caminha pelas desertas ruas sombrias,
pode ver os fantasmas de sua juventude; mas
nada vê, nem a própria rua adiante, nem o céu
estrelado acima. Um estrondo. A delegacia
desaba. A poeira ainda sobe. Não será visto
como um cúmplice.
Na verdade, há música nos salões. Alan
escuta. Apanha o violino e começa a tocar.
Está aliviado. Ou mais ansioso, por sua
mediocridade. Não tem uma missão no
Ricardo de Almeida Rocha 67
Uma noite no inferno
mundo? As pessoas estão encostadas nas
cadeiras da platéia, deitadas no tapete, sobre
peças de roupa que não se pode saber de
quem são. Garrafas nas mãos e o tom das
paredes nos olhares. Ali o barbeiro, tonto;
caminha para a mesa onde do banquete. Acolá
Nadja. Muitas mãos passeiam por seu corpo.
Alguém derrama vinho e todos aceitam o
brinde. A seu lado, Marina dança para eles.
Ela não comete a indelicadeza de trocar o
nome de nenhum dos homens a quem se
dirige. Então os desafia. Ainda preferem
aquele rapaz insosso?
Olham uma à outra. Desaparecem os
homens ao redor. A menina que já não é. A
experiência almejada. Certamente, pensa
Marina, Nadja imagina esse tipo de coisas
desde sempre, mas posa de normal,
simplesmente sexy. Todas as mulheres são
assim, essas mulheres mais velhas que vivem
dizendo o que as filhas devem fazer e o que
não.
Todas as jovens querem ser mulheres
feitas. Nadja sabe que Marina jamais se
Ricardo de Almeida Rocha 68
Uma noite no inferno
casará por amor, não saberá o que é tamanha
felicidade. Porque ela é bem casada, sim.
Ainda olha Ian com amor. Ou será outra coisa
esse sentimento? Ódio? Indiferença? Que
importava? Tinha um marido. Um homem para
dizer seu.
Para Nadja não basta o marido? Por que
precisa se exibir para esses homens que
Marina conquistou?
– Nós damos conta, doçura...
Eles têm, diz um outro, o que elas
precisam.
Um tempo, bem pequena, Marina saía em
primavera, pensando no amor. Amor era a
camaradagem que nascia do desejo e o grande
sol vermelho no horizonte que durante toda a
luz da tarde se anunciava em meio às colinas.
Agora sabe que amor não passa do próprio
desejo, vinculado à posse. Assim é a vida. Não
foi ela quem determinou o instinto dos
homens; aprendeu a usá-lo.
À mesa chegam de todos os lados os
convivas embriagados, metendo as mãos nos
Ricardo de Almeida Rocha 69
Uma noite no inferno
pratos coloridos dispostos ao longo da toalha
vermelha quadriculada – grandes pães
caseiros, biscoitos de milho, carneiro
grelhado, tortas de maça feitas com sorgo no
lugar do açúcar de que M* há muito carecia;
toda espécie de caça ainda encontrável na
região, antílopes, lebres, esquilos – mas as
mãos optavam pela carne de porco: toucinho,
lingüiça, costela – tudo muito gorduroso.
Durante o transcorrer da festa, houve um
vislumbre em cada um, diferente em tempo
mas comum a todos.
Noite, noite, as estrelas acima, perdi a
conta dos dias que estive preso, pensa Jim,
esquecera a ultima vez que consciente esteve
envolto por uma noite assim, fresca, não
muito, não são comuns noites assim na Ásia,
ele lembra, o dia em que chegou à América,
quantos sonhos abortados, mas ao se afastar
daquela cidade maldita, ao se ver longe de M*,
eis estará pleno sob semelhantes noites, livre
para construir um futuro, enfim, ah, noite, sob
as estrelas, pensa, estou livre.
Ricardo de Almeida Rocha 70
Uma noite no inferno
No dia seguinte, a vida voltou ao normal
em M*. Antes do amanhecer reiniciam a lida
da sobrevivência. Um pacto silencioso.
Ninguém falava no baile até as horas próximas
ao baile seguinte. O delegado só sentiu a falta
de Jim à noite, e mesmo assim não deu
qualquer importância ao fato, afinal não houve
o assassinato de que ele era acusado, o que
nem o próprio Jim sabia. Ninguém relacionou a
fuga a um cúmplice, menos ainda ao estranho,
nem mesmo quando se soube que ele havia se
estabelecido nas montanhas com uma jovem
oriental.
Por outro lado, se encheram de interesse
ao saberem que ele encontrara alguém para
partilhar a vida e ficaria – Sim – disse Dan para
sua irmã – Foi o que ele me disse. Porque se
sentiu obrigado a justificar por que não mais
pegaria a carona.
Faz a encomenda de uma carroça – Ah,
mas precisa trazê-la para que a conheçamos –
diz Augusto. Marina ratifica. É verdade. Pois
Ricardo de Almeida Rocha 71
Uma noite no inferno
vivendo assim perto faz agora parte da
família. Enfática quando ele parte, deseja-lhe
toda a felicidade do mundo.
Ao norte da casinha corre um rio de águas
translúcidas. O verde exuberante que sobe,
um ano depois estará para embranquecer.
Outra visão de glória: Taiorie dá à luz uma
linda menina. A exultação todavia não dura. O
leite secara no seio da mãe e a criança chora
em desespero. Claro, dariam um jeito,
tranqüilizou-os Fiodor. Poderiam cuidar de
uma cabra até mesmo dentro de casa, quando
o inverno chegasse. Érika riu. Ah, as
crianças... São uma benção de Deus... –
Sobretudo – acrescentou Marco – o ato de
fazê-las...
Fiodor providenciará agora mesmo. Ele
assentiu. Quer resolver o assunto e voltar
para casa, pensa ao tropeçar no pé em seu
caminho. Cai junto a uns sacos de ração.
Érika pede muitas desculpas, contendo o riso.
Não tem importância.
Um fato sócio-cultural. Sabe-se ou não. E
quando se sabe conta-se ou não. Não há
Ricardo de Almeida Rocha 72
Uma noite no inferno
regras. Ele sabe e não conta. É a regra que
instituiu para si mesmo. Ele é essa forma de
pensar que se impôs. É o que ele é e é o que
ela terminou sendo. A alma de um homem
pertence a ele. Um casal é um monopólio.
Minha alma descansará na distância em que
se consiste.
Ao entrar na mercearia com o delegado
Marina diz quem é vivo sempre aparece e
pergunta acerca da esposa. Casaram mesmo
ou estão apenas morando juntos? Casar-se é
muito importante.
Olhou-a. O que era importante? O que era
coerente, decente, o que deveria julgar
relevante? Faz tempo não perde seu tempo
com isso. Cada qual decida. Ele não iria julgar
nada ou ninguém. Omissão? Nada disso. Mas
por que deveria ter tal pretensão? Cada qual
conhece a própria vida, a vida pregressa e o
futuro desejado. Quanto ao presente, vivamos
e deixemos viver.
Bom que tenha vindo. Pois, falando em
orientais, ultimamente o delegado pensava
muito naquele prisioneiro, aquele fugitivo,
Ricardo de Almeida Rocha 73
Uma noite no inferno
Leonard se lembrava? Era a única pessoa na
cidade quando ele fugiu. Prontamente Fiodor
lembra que ele próprio, Armand, e Jeiel
também estavam na cidade e teria mais
motivos para ajudar o chinês, já que não
acredita que seja culpado.
Subitamente colhido pela hipótese, o
delegado se cala. Fiodor, Armand, Jeiel e a
própria Diana, que saiu cedo da festa e desde
então jamais tornou a falar, entrou num
mundo próprio a que ninguém tem acesso.
Quanto a Armand, desde aquela noite não se
soube mais dele.
Bem, bem, não é importante, concluiu o
delegado.
Marina diz que não atrase a vida de
Leonard; ele precisa saber das cabras. Sheila
entra para as compras, o semblante decaído.
Não se conforma com o sumiço do marido. Um
bode bom, apesar de tudo. Sacudindo a
poeira, Leonard levanta-se. Vão até o rancho
onde Christian agora vive só. Morre para pedir
notícias de Elisabeth a Fiodor, mas se contém.
Acertam o negócio. Uma fêmea e um macho
Ricardo de Almeida Rocha 74
Uma noite no inferno
prontos para o acasalamento, e uma cabra
com cria. Fiodor se encarrega do transporte
dos animais.
O céu crepuscular assim vermelho em
nada combina com o aguaceiro que se
anuncia. O cheiro tampouco é o da aura de
chuva, muito menos o de aromas noturnos. Os
primeiros pingos, grossos. A angústia toma
conta de seu espírito. Estavam em novembro e
poucas coisas boas haviam marcado o
período. Tão diferente do tempo em que
Halmah ainda não havia nascido.
Quando Halmah não havia nascido, a vida
era melhor; a vida era mais fácil. A menina
quase levou a vida de Taiorie no parto. Por
causa da menina, teve de reatar relações com
as pessoas de M*. E agora por que outra razão
teria sua mulher de ir à cidade? O bebê não
dorme à noite, com dores de ouvido ou nas
gengivas. Bem, mas ele mesmo disse à
mulher: uma vez estivesse lá, seria bom
aproveitar e dar um pulo na mercearia. Ajeitou
Ricardo de Almeida Rocha 75
Uma noite no inferno
os agasalhos na sela e calcou os flancos do
cavalo.
Avança num galope louco. Vento e chuva:
chicote gelado em seu rosto. Precisa sofrear.
A montaria, relinchando, gira sobre si mesma,
empina. Leonard cai. O cavalo se aquieta a
seu lado. No chão. Sente-se ridículo. Por que
perdia assim o controle? O feixe de luz
caminha à sua frente. Nada tinha acontecido.
Os habitantes de M* eram frívolos, devassos
talvez, mas inofensivos. As nuvens ignoram a
luta interior, tornam-se cada vez mais baixas.
Ciprestes, ciprestes que se dobram. O
firmamento cada vez mais vermelho mostra
que sim as colunas subindo não deixam
dúvida... um incêndio... um incêndio de
grandes proporções, em meio ao temporal
desvendado pela cortina escura ao longe.
Eles foram chegando lentamente, um trote
preguiçoso...
Ricardo de Almeida Rocha 76
Uma noite no inferno
Christian nunca mais teve alegria. Como
poderia? Tristeza absoluta no lugar do ciúme.
Fortalecida e corajosa, Elisabeth lhe disse que
nunca mais tocaria nela de novo e enfrentou-
o. Nunca mais. O que pode fazer? A bela casa
nos arredores de M* está vazia sem ela. Seus
pais mandariam mesada. Mesmo sem mais
negócios na cidade, decidiu então ficar. Mas
não deveria ter vindo. Primeiro com sua
ambição e depois com seu ciúme, matou a
exuberância pura de Elisabeth. Sim, chegou a
bater no rosto dela, louco. A lavoura no
anoitecer pela janela. A voz vibrante, vívida,
de sua esposa ecoando. Sombras. O céu
aperta a paisagem na lama numa simetria
irreal. Tantas nuvens, aterrorizantes. Raios.
Esses trovões. Todas as luzes da casa estão
acesas. Mas Elisabeth não está mais ali. Está
fazendo o jantar para Maggie. Trevas.
Das paredes úmidas desprende-se um
cheiro forte que se mistura ao perfume de
Elisabeth. A casa está cheia de fantasmas.
Desde que ela o abandonou, fica noites e
Ricardo de Almeida Rocha 77
Uma noite no inferno
noites sentado, olhando para ela. Se ao menos
soubesse que ela está feliz. Mas sabe que não.
Não é vida para ela. Está arrumando quartos
para homens. Oh, e jamais dera motivos para
ciúmes como os motivos que agora
verdadeiramente existem. Uma empregada de
hotel... Naquele uniforme com avental... Como
deve estar bonita, mortamente bela, a
mortalha de Christian. O perdão se tornou
impossível, para sempre? Qualquer palavra
será dissipada pela sua estupidez ao
atormentá-la?
Viu a esposa sempre se dedicar a ele e à
casa diligentemente, ao longo dos anos.
Mesmo quando o lar passou a ser este, nesse
lugar que ela jamais quis. É preciso amar o
que se tem, dizia Elisabeth, não esperar ter
para amar ou amar apenas o que não se tem
mais. Mas não pôde me suportar em casa o dia
inteiro. Era realmente insuportável.
O aguaceiro caiu de repente,
surpreendendo a todos. Sheila estava com
Marco nos correios. Lamentava o
Ricardo de Almeida Rocha 78
Uma noite no inferno
desconhecimento do paradeiro de Armand em
noites de dedos. O rapaz perguntou se Sheila
não deveria ser mais discreta. Será melhor o
próprio teatro.
A chuva apanhou Val a voltar para sua
casa. O teatro será um refúgio conveniente. O
telhado tamborila com violência. Entra no
prédio vazio, tilintando, mas dá com o irmão
de Érika e a esposa de Armand. Que ele não
fique constrangido dessa maneira, pede
Sheila. Por que não tira logo essas roupas
molhadas? Ora, é um pedido que
naturalmente merece o protesto de Marco.
Mas não há nada demais. Bem, na festa Marco
vira-o com sua irmã. Estaria com ciúmes? Ah
que gracinha. Não há razão para ter ciúmes,
ou seja lá o que está sentindo.
– Pense que Érika não enlouqueceu como a
filha de Jeiel...
Marco devia ter sido muito bruto. E Sheila
cansara de mostrar como as mulheres gostam
de ser tratadas.
Tudo bem. Val ouvira. Tire essa roupa.
Ricardo de Almeida Rocha 79
Uma noite no inferno
Ah. Naquela noite tinha sido esbofeteado
por tirar as roupas.
Coisas de Érika. Ela é muito complicada.
Para Sheila as coisas devem ser do modo mais
simples e natural.
Marco diz a Val que se apresse.
Sheila observou. Érika deve ser louca por
preferir suas fantasias a uma realidade assim.
Então se aproxima e se ajoelha.
Val é trabalhador. Sua mãe acreditava que
daria alguma coisa na vida. Agora se sente
mais confiante. Que belo exemplar de homem.
Forte e saudável, cumpre sempre as
obrigações. A tempestade lá fora deixa de ser
ouvida. O lobo, que se escondera quando ele
passava, está uivando. Quem sabe o
respeitem mais a partir de hoje. Mas de súbito
pensa na relevância disso, de ser respeitado.
Ou da vaidade viril. Val olha pois os cabelos
de Sheila e percebe um reflexo do temporal.
A pesada porta se abriu como um dos
trovões. Os homens invadem a sala.
O que é isso, meu Deus? Quando Marco,
nu, ajoelhou-se junto dela, esvaindo-se em
Ricardo de Almeida Rocha 80
Uma noite no inferno
sangue, Sheila passou a recordar como
Armand costumava dizer que mais cedo ou
mais tarde a gente paga as coisas que faz
nesta vida. Pobre e generoso Armand...
Digamos que ele não tenha se dado conta da
vida de casado e continuara ainda com o
espírito aventureiro dos tempos de solteiro. O
pecado com a empregada, de que tanto se
arrependera, não era nada perto de tudo
aquilo.
Os homens seguem Val até a porta lateral
esmurrada. Agora o assoalho ressoa com a
grotesca queda. O cabo do rifle explode em
sua cabeça e a faca é cravada por trás em seu
pescoço.
O lobo continua a uivar.
Uma janela está aberta; um chapeleiro
estranho; o teto alto faz com que a
tempestade pareça estar dentro. Ah, um dia
que seria tão agradável. Marco é gentil
quando quer, como ontem ao marcar o
encontro; tão discreto. Jesus! Ele está morto!
Seu rosto é uma máscara de dor, como se a
dor não houvesse cessado com o fim da vida.
Ricardo de Almeida Rocha 81
Uma noite no inferno
Um dos homens que observava as inflexões
dos pensamentos no rosto dela com as mãos
na cintura, súbito, desfere o soco que lhe
rouba o ar.
Percebe sua única chance enquanto é
amarrada com as cortinas, os braços e as
pernas abertos, pendurada. Esses dois,
salpicados do sangue de Val, talvez sejam
mais manipuláveis que os dois primeiros. Não
é ainda o meu sangue, consegue pensar, e diz
Por favor... Tenta encará-los mas não acha os
olhos deles. Então grita. E a cada grito
imagina o último, e implora pelo último grito,
que todavia tarda e tarda, e tarda.
Os uivos do vento e do lobo se misturam,
a tempestade desce em rodamoinhos, quase
paralela ao chão. Sobre a terra aparecem os
quatro homens do lado de fora da casa entre a
água e o fogo que a porta cospe e os segue na
cena imensa da tormenta inelutável.
É impressionante, diz o taverneiro com os
olhos na janela; mas Maria não sabe do que
ele está falando, pois fala sem parar. Você viu
Ricardo de Almeida Rocha 82
Uma noite no inferno
a chinesinha? Uau! Depois que o Leonard
comprou as cabras, nunca mais deixaram de
vir aqui, acho que poderiam participar do
próximo baile. Será que não há homens em M*
para trazê-los a força? Ora, não são as
regras... Que mal fará uma pequena infração?
não seria um pecado mortal...
A portinhola está rangendo. Maria tem a
pele escura, Afonso acredita que ela tem
descendência índia. Seus vestidos são
simples, bem decotados, seus sapatos velhos
e gastos. Mas ela se crê irresistível, talvez
porque tenha herdado a casa ao lado do hotel,
talvez porque tenha assistido a chegada dos
primeiros mineiros, talvez porque seu cavalo é
o mais veloz dentre todos os cavalos de M*, ou
porque sua pele escura é tão lisa. Ela pensa o
que ele tanto vê lá fora na chuva que parou de
olhar os meus seios? Mas ele não está mais
olhando para fora.
O rio corre volumoso entre os cedros.
Nunca se viu seu nível tão alto; nunca se viu
sua correnteza tão forte. Leva as pedras das
margens; tem o peso de um azul profundo que
Ricardo de Almeida Rocha 83
Uma noite no inferno
se transforma em cinza escuro em alguns
pontos. Corre atrás da taverna. Por isso
decerto resolveram trazer a ferrovia, dois rios
numa região tão escassa de água, embora
Afonso tenha ouvido dizer que não passa de
desculpa do delegado para ficar com o
dinheiro e distribuir a seus pares. O som não
era nítido para Maria, mas um vago fundo
desses vultos que entram – O que querem? –
pergunta autoritário o taverneiro. Um tiro o
atinge entre os olhos e o outro explode em
seu peito. Cai contra as garrafas da prateleira
atrás dele. O som do vidro quebrando se
arrasta pela perplexidade de Maria. O quê? O
quê? Agora o rio acordou em seus ouvidos.
Agora à janela a tempestade gritou. Os
homens contra a luz crescem diante dela. Os
raios da luz são como coroas em suas cabeças.
Não pode deixar de notar o quanto são
másculos mas mesmo assim apavorada tenta
fugir sem sequer lembrar que não havia para
onde ir e tropeça na barra do vestido e cai, a
queda abafada pela convulsão dos elementos.
Esse medo é mais do que o raio que corta
a negrura dos céus e do trovão que em
Ricardo de Almeida Rocha 84
Uma noite no inferno
segundos se faz ouvir, estremecendo o prédio;
é a bota nas costas, é o ar que falta, é a água
da chuva na lufada do vento. Está toda em si
mesma, inteira no chute em seu rosto. Perde
aos poucos a consciência diante dos seres
embaçados, as criaturas rugentes.
Voltou a si com a água do balde em seu
rosto. Afonso agoniza. Os homens são ainda
vultos, apenas visões, como se fossem
demônios. Um deles a levanta pelos cabelos,
outro desfere outro soco, o terceiro se
prepara. Enquanto o taverneiro dava o último
suspiro, ela pedia que eles a matassem, por
favor.
Só muito tempo depois foi atendida.
Quebrados os lampiões, o fogo se alastrou
rapidamente.
Dan passara o dia inteiro pelos corredores
do hotel, com a fisionomia distante,
lembrando-se da casa de sua mãe, onde
passaram a infância no Leste – destacada do
casario pelos ramos floridos pendentes no
Ricardo de Almeida Rocha 85
Uma noite no inferno
muro – dizendo consigo mesmo o quanto fora
bonita aquela época de sua existência. Ouve a
voz dos sobrinhos. Por que nascera com uma
vontade tão fraca e instintos tão acentuados?
Estava a ponto de chorar ao descer para se
despedir.
Elisabeth o cumprimenta. Sente vontade
de perguntar por que está tão triste, acha
porém mais prudente evitar sua presença. Viu
o que viu. Não é mais caso de crer ou não em
indícios. E logo agora que resolveu pedir a
demissão, melhor não se envolver. O que fará?
Decerto não voltaria para Christian embora
ainda o ame. Talvez para a casa de seus pais.
Estão mesmo velhinhos; devem estar
precisando dela.
Dan comenta com a irmã acerca da chuva.
Nunca vira coisa igual. Parece o fim do mundo.
Abriu um sorriso malicioso e agora seus
pensamentos se harmonizam e ele enfia a mão
por debaixo, sentindo-se liberto e salvo de ser
triste. Pelo menos, disse, o barulho protege
das crianças.
O que era aquilo?
Ricardo de Almeida Rocha 86
Uma noite no inferno
Um carinho já saudoso, minha poldra.
Não. O que era aquilo? – repetiu ela,
fazendo um gesto de silêncio com o mesmo
dedo que apontou para cima. Ouça.
Parece um incêndio.
Quem é esse? tem uns trinta anos. A testa
dura e os cabelos crespos. O queixo quadrado.
Sem sinal de barba, o que parece a Dan
estranho para um homem daquela região..
Parecia um bom homem apenas na medida em
que um bom homem necessita sempre parecer
alguma coisa. Um assaltante, provavelmente,
aproveitando-se da tempestade. Não, é
bobagem pensar tal coisa. Mas com certeza
não vinha em paz. E se Dan fugisse? Não.
Melhor aproveitar a situação e ter uma morte
gloriosa. Será lembrado por todo o sempre. O
homem que deu a vida pela sua família. Não
fugirá. Precisa daquela tempestade, do
incêndio, do malfeitor.
Maggie sente o sangue descer; ao menos
garante a ausência de conseqüências. Até
porque dois filhos eram o bastante. Pois a
resistência que Dan ofereceu ao criminoso foi
Ricardo de Almeida Rocha 87
Uma noite no inferno
decepcionante; tão débil. O rifle ficou todo o
tempo encostado, inútil. O homem aproximou-
se do irmão, desferiu seis golpes e agora
colhe do corpo o sangue que escorre entre os
dedos a buscar o meio de Maggie, forçando,
forçando para cima, abrindo-a, misturando, o
que é o quê? Dedos fortes e frios na nádega
gelada e áspera. As chamas envolvem os dois.
As crianças!
Linda e Wagner lá em cima tentam mas
não conseguem descer para junto da proteção
materna. À janela, o irmãozinho pega a mão
da menina e jogam-se. Um baque e passa a
haver um movimento de vida na lama ardente.
Eis a chuva, a tempestade. Eis os raios e
os tétricos trovões. Sua companheira, antes
de tudo uma amiga, Christian não pode perdê-
la assim. Esteve todo esse tempo a seu lado,
sofreu tanto, inclusive por seu sonho do ouro,
seu estúpido sonho do ouro; e nunca deixou
de ser bela e bondosa. Talvez não seja tarde.
Que envelheçam juntos, a função da idade.
Vou ao hotel, pensa. Vai busca-la. Tem um
Ricardo de Almeida Rocha 88
Uma noite no inferno
pressentimento. Sai e a chuva machuca seu
rosto. Na tempestade, memórias e projetos.
Vinde, amor, não é tarde. Refaçamos nossa
história. Antes de qualquer coisa me perdoe, e
sigamos. Além do crepúsculo existe um
destino. Nas estrelas descansa uma morte boa
e frutuosa. Que ela o perdoe e ainda fraco ele
estará pronto. Tudo será diferente apenas no
que foi mau.
– Meu Deus, amor, o que você está
fazendo na rua, com um tempo desses?
Não há tempo. Leve-me daqui, diz ela.
Quase fora apanhada pelo demônio. Súbito
ver a face de Christian é uma revelação. Mas
ela está falando de quem? Ciúme, o inferno do
amor.
A vida deixara de existir pois em algum
momento entre a tarde e a noite todos
percebem que alguma coisa estranha está
acontecendo. O fogo consome alguns prédios
da rua principal com tamanho ímpeto que a
chuva não tem qualquer poder de amainar.
Ricardo de Almeida Rocha 89
Uma noite no inferno
Línguas ardentes sobem das janelas da
taverna e do hotel cujas paredes enegrecem
estalando e caindo em segundos. O encontro
de labaredas contrárias torna-se um mesmo
rodamoinho de horror tragado pelo abismo
acima da cidade, como se o mundo estivesse
de cabeça para baixo – chamas tingidas dum
vermelho vivíssimo, belíssimas, pensa alguém
à janela, chamas vermelhas, folhas
chamuscadas, madeira e lixo espalhado. Os
cavalos empinam e relincham. As carroças
andam sozinhas. Socorro! Crianças caem da
janela em meio à algazarra dos cascos
chapinhando na imensa poça. Eram tão lindas.
Ninguém faz menção de ajudá-las, saber se
estão vivas ou mortas.
Os cavaleiros se dispersam. Não. Alguns
permanecem pela rua principal, seguindo na
direção da praça. A tempestade turbilhona. As
roupas dos invasores crepitam em seus corpos
rijos impassíveis, como se fossem bandeiras.
Passam em meio ao fogo e à tempestade
alheios, como se não houvessem alma.
Ricardo de Almeida Rocha 90
Uma noite no inferno
Um blusa dobrada com habilidade; a
bainha e a renda não custarão tanto assim,
minha amiga. Na própria Tanja a bainha sobe
e chama a atenção da mulher. Ela pensa que
sou um de seus clientes? Cantarola. Afonso
não era homem que merecesse tristeza.
Nenhum homem. Estou ficando velha para
isso. Despertando, faz projeções. Está velha
também para mudar. Duas faces da mesma
moeda. O que existe aqui não irá encontrar
noutra parte: homens jovens sempre
dispostos. De resto, basta-lhe o trabalho. O
que existe aqui é absinto e trabalho por conta
própria – as formas de prazer com que se
acostumara ao longo de sua vida solitária.
Orgulha-se de si mesma e quase da própria
solidão. Na verdade é uma boa bisca, pensa
Nadja.
Um último gole de café. Tanja é boa no
que faz, desde um simples café. Obrigada.
Abre a porta. O cachorro abana o rabo e o
gato se enrosca na perna de Nadja. Um afago
e ela se prepara para sair.
Ricardo de Almeida Rocha 91
Uma noite no inferno
Moça que freqüentara as melhores
escolas, Nadja não se conformava por ter se
casado com um homem que antes decidido a
fazer fortuna do modo tradicional abandonou
tudo para tentar a sorte no garimpo. Ela não
imaginava semelhante vida para atingir o
objetivo. Era uma dama. Mulher de sociedade.
Assim a chamavam, uma dama. Pelo porte,
pelas festas, pela caridade. Enfim. Seus pais
teriam fundado uma organização de ajuda aos
necessitados caso ela quisesse, caso não
tivesse vindo. Em seu terror, terá saudade.
Pela porta aberta não saiu: os homens
entraram. Oferecer-se em troca da própria
vida é uma idéia recorrente nas mulheres de
M* – uma idéia ineficaz. Distante agora como a
própria vida pela qual iriam pedir.
Nua e em sangue, o rosto contra a terra
encharcada. Um grito da garganta mais
escura. Sente vergonha de alguma coisa que
não saberá precisar em meio ao sofrimento
mais cruel. Nada vê. Passos que se confundem
com a própria tormenta se aproximam.
Lágrimas junto as pesadas gotas que
Ricardo de Almeida Rocha 92
Uma noite no inferno
escorrem. Os cabelos pesam à altura da
cintura, mãos ásperas em monstruosa
energia, lágrimas vermelhas e terra vermelha
encharcada.
Tanja está paralisada. Nem era sua amiga,
mas meu Deus. Há um momento em que chega
a pensar não será atacada, que eles estão
hesitantes. Vê Marina atrás das carroças. Se
escapar terá muita história para contar. Havia
uma mulher chamada Nadja...
Nadja era a mulher do sapateiro...
Obrigada agora a sentir na boca pela
décima vez o sabor ao qual se acostumara
com prazer, nunca é claro com os cabelos
puxados e em simultâneo violentada, assim,
cadela. Onde estão seu pai e sua irmã? Horror.
Desfalecimento. Engolfa. Um seio em
abrasado aperto, irrecuperável. Doendo,
doendo. Pai! Gostaria de clamar por piedade.
Que a figura paterna existisse e pudesse lhe
dar proteção e cuidados. É tarde demais.
Nunca mediu conseqüências do que pudesse
fazer para provocar. Um antigo namorado, o
primeiro, o único namorado, a quem assim se
Ricardo de Almeida Rocha 93
Uma noite no inferno
possa de fato chamar, ele despediu-se dizendo
Cuide-se, amor; assim você não vai terminar
bem. Risos na cara dele, o idiota, a vida
convida, a manhã se derrama todos os dias.
Comamos e bebamos. Quem era ele, ou ela,
para negar? Amanhã morreremos.
Nada agora nada nadando no nada.
Irrespirável parte de coisa nenhuma.
Visão turva, calor. Suor que queima.
Desesperada baba, cospe. Cabelos dourados
orgulhosos. Luz de todos os lados penetra em
cada um dos congelados cortes na pele
atônita. Cheiro de cabelos queimados, bola
vívida em torno do rosto. Deve estar muito
feia. Algum dia não? Amada um dia? Pisoteada
e pisoteada. Então não é um pesadelo. Cheiro
de fumaça. E hoje está morrendo.
Tanja não a vê mais. O fogo atrás e a
tempestade adiante. Onde os homens? Ela é
uma mulher trabalhadora. Não há termos de
que comparação entre ela e uma adúltera,
entre ela e uma devassa. Apenas tem
fantasias, bebe um pouco socialmente, e em
Ricardo de Almeida Rocha 94
Uma noite no inferno
uma comunidade se faz respeitável pelo
trabalho. Cuida de sua vida. Não pactuou
jamais por exemplo com a injustiça ou a
maledicência. Visão de impiedade na vida, em
meio da qual se destaca o corpo do homem,
não seu rosto. Não há um contexto. Não há a
relevância de um plano. Nada de lembranças.
Vivera? Deus conhecia seu coração. Tira de
sua fé a sua esperança. Por que então essa
aproximação fedorenta? Naquele dia dirão
também que havia uma costureira chamada
Tanja.
Gritos de Marina. O pai e a irmã se
entreolham. Sentada ela apressa o final, sabe
como fazer. Pára então na porta pela qual
deveriam descer surgir o homem. Desceriam
com tamanho fogo? Ouça. A mocinha não
suporta mais esse hálito de Afonso. Mas
realmente era a voz de sua irmã. Gritos de sua
irmã. O abutre não deveria estar à janela. Meu
Deus, o que está acontecendo? Ecos de
passos que não continuam. Não descerão.
Ricardo de Almeida Rocha 95
Uma noite no inferno
O delegado sai para ver o que está
acontecendo. Vê outras imagens e escuta
outras palavras pelas quais está tranqüilo e
certo de que resolverá o assunto. A cena é
composta por diversas idéias pessoais,
algumas tiradas de seus tempos de faculdade.
Não é homem de se impressionar fácil.
Deveriam tê-lo ouvido quando solicitou que a
delegacia fossem construída num prédio mais
próximo do centro. Curvado contra a tormenta
e certo de não é nada demais; já viu naquela
cidade as piores tempestades e trágico
incêndios. Um homem assim não se assusta
fácil. Aliás, precisa sugerir uma reunião para
que as pessoas passem a tomar os cuidados
básicos com relação ao fogo.
Que bibocas mal ajambradass. Pessoas
que não tinham um minuto a perder e agora
todo o tempo do mundo as consome de tédio.
Delegado! O que Helena faz aqui? Alan! Tudo é
chuva e trovões, fogo e cheiro de gente
queimada.
Ricardo de Almeida Rocha 96
Uma noite no inferno
Os correios. A farmácia. Não há fogo ou
mortes aqui. A mercearia. Tudo parece calmo.
Que prisma é esse que impede a visão?
Parecem próximos, mas a voz dela não
chega em seus ouvidos. O cavaleiro que
desponta no fim da rua parece ainda distante
mas carrega os trovões. Seu cavalo é
majestoso; um puro-sangue inglês, dir-se-ia. O
porte de homem que o monta é
excepcionalmente garboso. Passará ele as
noites certamente debruçado nos livros
apesar da tranqüila situação financeira. Érika
sente estranho calafrio, de prazer e terror.
Deve ser essa mistura louca de temperaturas
simultâneas. Pensou em subir e colocar um
vestidinho novo e umas sandálias que
realçassem seus pés, que acabara de cuidar
com imersões e cremes. Não teve tempo.
Ela estava olhando embevecida e cada vez
mais excitada a ponto de quase chorar diante
deles, os cavaleiros que se juntaram ao
primeiro, eram quase uma formação militar,
garbosos e organizados que sequer ligam para
a convulsão natural ou para o fogo, Érika
Ricardo de Almeida Rocha 97
Uma noite no inferno
gostaria de saber de onde vem e o que
querem, sente que pode estar perto de se
apaixonar verdadeiramente. Sorri com
simpatia e em seu coração os sentimentos são
como os papéis no rodamoinho.
O delegado fala. O que vocês querem?
Menciona sua autoridade ao pensar na
aprovação que teve ao ser indicado para o
cargo, isso se chama popularidade, eles
precisam mostrar deferência diante da
autoridade.
A senhora Carol grita de casa para que ele
tenha cuidado, pois acabará fazendo
referências à sua fortuna escondida ganha em
uma e outra negociação com autoridades da
capital e bandidos. Por ele, continuaria
falando, não percebe que seus gritos se
perdem na tempestade. Mas – sabe-se como é
–cada um tentando resolver o problema que
discerne e o verdadeiro problema intacto. Ele
repete a pergunta. O que querem?
Respondam, em nome da Lei! Helena escuta e
murmura alguma coisa entre dentes num
sorriso sarcástico.
Ricardo de Almeida Rocha 98
Uma noite no inferno
O cavalo logo à frente, relinchando,
empinou. A última visão de Alan antes de cair.
Os homens vão desmontando, um após o
outro. Não davam alternativa ao delegado,
que começa a atirar. As balas zuniam e os
homens continuavam avançando; dois deles
por fim o agarram, erguem e arrastam para a
delegacia. Há um rifle apontado quando
entram. Soltem ele! A senhora Carol repete o
que disse. Se não o soltarem será obrigada a
atirar. Os homens se entreolham com
expressão indefinível.
Helena está só sob o temporal. Pensa o
quanto tem poder para mudar aquela
situação. Logo estarão subjugados diante
dela. Basta que o primeiro prove. Terá de fazê-
lo ainda que não lhe agrade correr algum risco
por causa do amante. Enfim, há um
componente pessoal, um dever que tem para
consigo própria, para com sua própria vida.
Sim, e Érika e Marco podem estar correndo
perigo. Agora se lembra de que não vê o filho
desde que Sheila esteve na mercearia. Sim,
precisará agir, talvez por si mesma, que seja,
Ricardo de Almeida Rocha 99
Uma noite no inferno
porque no final das contas estamos todos
sozinhos neste mundo.
A cidade vermelha e quente em plena
tempestade. Será que isso é neve? A senhora
Carol fala, impõe-se. Diz que soltem as armas
e levantem as mãos ou será obrigada a atirar.
Um homem saca sua arma e sob o fogo do rifle
dispara no seio enorme da mulher. Parece o
fim, mas não irá lamentar. A meia-idade foi
bem aproveitada, rapazes mais jovens e
mulheres também. Chegou a flertar com um
desses homens? Abre a boca para falar mas
apenas sangue. Seus olhos agora estão
embaçados. Imagina a razão por que o filho
insistiu em dizer que o pai fora assassinado,
quando seu marido morrera de câncer. Teria
sabido que ela se insinuou para o chinês? Não.
Estava por demais envolvido com os
salteadores e os políticos, indo de lá para cá
sempre fazendo e desfazendo acordos. Então
foi com certeza por causa de Helena, com ela
o chinês tivera mesmo um caso, pelo menos
foi o que ela lhe contou. Seja como for, agora
está livre e sabe Deus onde. Viva e livre. A
vida é mesmo irônica, pensou agonizando.
Ricardo de Almeida Rocha 100
Uma noite no inferno
A noite próxima, alimentada pelo vento,
se propaga rapidamente pela campina. Para
quem olha de longe, como Leonard
atravessando o riacho a galope, um círculo
adusto determina os limites da cidade. Está
perto agora do campanário. Deveria estar com
fome. Não comeu ao longo de todo o dia.
Pensa de súbito o que faria se não houvesse
mais as razões que hoje pensa ter para viver.
Pensa o que é viver afinal. Em meio ao frio
vermelho, parece mesmo que está nevando.
Cada um dos homens que cerca Alan, cada
um deles tira o chapéu num movimento
coreografado e surgem as mulheres. São
louras e morenas e ruivas. Apenas mulheres.
O único homem no recinto é o próprio
delegado. As de trás trazem açafates, a da
frente pelo cano apanha o rifle das mãos da
mãe. Uma mulher linda naquelas roupas
negras, ainda há esse tempo de olhar. Depois
a violência do golpe no maxilar. Grite de dor.
Ricardo de Almeida Rocha 101
Uma noite no inferno
Peça misericórdia. Louve o Senhor. Faça
alguma coisa.
Em vez da excitação e do desejo sufocante
diante das coxas rijas, pois ela tirara a calça,
em vez disso o corpo sem resposta exceto
pela morte nas veias. Precisa mesmo se
torturar pensando o significado dessas coisas?
Que diferença? Amarrado na perna da mesa,
nu agora, elas também tiram as roupas, peça
a peça. Lentamente, muito lentamente. Isso
um dia era estar pronto. Agora uma por vez.
Um tipo de desespero de quem realmente
percebe que não há mais esperança, porque a
tortura é da mesma substância que um dia
foram as idéias de prazer e glória.
A sala some na dor, mas reaparece. A
virilidade se perde, mas é reanimado. As
mulheres com os cestos se aproximam. A boca
é aberta, enfiadas as iguarias. Está no mundo
como costumam estar os animais quando
subitamente se vê homem. Levanta-se num
outro corpo, uma criatura iluminada da noite,
um anjo de luz. Plaina pela sala. Ali estão elas,
sopros de uma vida distante em meio a seu
Ricardo de Almeida Rocha 102
Uma noite no inferno
vômito. Vê a si mesmo lá de cima. Elas
entendem seus rogos e o ignoram. Ele próprio
não liga para o que diz, apenas observa. Então
é assim. Vê a boca ser enchida sem
possibilidade de recusa, mais uma vez, e uma
outra. Espere. Agora é uma coisa fria. Ele vê
do alto o cano da arma entrando na sua boca.
Seu ser sai agora da sala, plaina pela rua.
Não está mais sentindo calor ou frio. Entra em
outras casas. Há tempo ainda. Aqueles a quem
corrompeu. Estão contando o dinheiro para a
fuga. Não é mais um lugar seguro. O mundo se
tornou inseguro por causa do falso brilho. O
que acontece a cada um passa pelo corpo,
mas não é no corpo que tudo se origina. Em
que plano? Em que esquema? Em que
silenciosos espaços infinitos? Em que horror?
Agora ele sabe o destino que os aguarda.
Todos serão visitados. Sabe Deus de que
maneira deixarão o corpo, o que se passará
antes que os espelhos não mais os reflitam.
Agora sabe, avisá-los-ia se pudesse. Não quer
estar sozinho, como se sofrimento fosse algo
que se possa partilhar.
Ricardo de Almeida Rocha 103
Uma noite no inferno
Os homens tomam agora a direção da
mercearia. Para Érika, tem mesmo o porte
principesco. Uma princesa na torre. Seu
amado estaria entre eles, traz para ela um
anel de brilhantes, finalmente, mal pode
acreditar. Prepara-se para recebe-lo, olhando
o pai com desprezo.
A mãe entra esbaforida. Pare com isso,
menina; não vê que são bandidos? O vestido
da filha está aquecido, o pai desvia o olhar da
silhueta. Não parecem bandidos. É que ela
está vivendo com essa inumana virtude de
estar nos sonhos e todavia é tão consciente
do que está fora dela. Não vira o que fizeram
com o delegado? Como jogaram o cavalo em
cima dele e o levaram para dentro?
Talvez até o tenham matado.
Alan também não é flor que se cheire.
Corrupto, devasso, torturador de inocentes.
Para não falar outras coisas. Helena fulmina a
filha. Fique calada.
Que inocente? Mas Fiodor se cala.
Imaginava algo assim. Graças a Deus o rapaz
Ricardo de Almeida Rocha 104
Uma noite no inferno
fugiu. Volta a servir Taiorie. Precisa de mais
luz. Aproxima outro lampião. O castigo.
Estrondeando. De uma só vez. A tempestade
nas plantações. O incêndio pode ter feito
vítimas; nem se sabe ao certo onde é. Para os
lados da taverna, Marco a freqüenta. Esses
homens...
Idiota! Castigo, castigo. Coisas da vida. E
Marco está muito bem. Se com o pai não, com
a mãe ele fala. Está lá na Casa, com a
mulherzinha do Armand.
Mãe, veja, estão se aproximando. Parecem
ter mesmo uma postura digna. Érika vai lá em
cima trocar seus horríveis sapatos.
Vingança contra delegado, qual seja a
razão, são bandidos.
Impressão da mãe, fala a filha ao calçar a
primeira sandália.
Impressão ou não, Helena sabe lidar com
situações assim. Lembra dos homens que
queriam... – diz a mãe (o resto em movimentos
labiais) – ... o maridinho dessa porca?
Arremata por sobre o som da tempestade e os
estalidos do fogo. Lembra?
Ricardo de Almeida Rocha 105
Uma noite no inferno
Passa as mãos pelo corpo, ajeitando o
vestido. Detém-se abaixo da gola abrindo
botões. Vai para a porta. Abre um sorriso.
Sem qualquer dúvida. Essa vermelhidão
do céu não faz parte do crepúsculo. Calca de
novo os flancos do cavalo e, levantando-se na
cela, inclina-se. O animal aperta o galope,
galope, galope. Fumaça atrás da colina.
Atmosfera apodrecida na entrada da cidade.
Cruzes. Ludovico Bach 1835-1868. Por que
aqui? O frio, lembra. Um montanhês forçado à
inatividade durante o inverno acaba deixando
tudo para trás em migração estacional não
raro definitiva. Estão em torno dele,
fantasmas. Antigos vizinhos, os moradores
das encostas internas da montanha. Não
poderia estar no pequeno e íntimo campo
sagrado que aquelas famílias partilhavam?
Daqui já deveria estar vendo os telhados
de M*, mas apenas névoa e fumaça. Ou o que
seja além. Ou o que seja. Atmosfera
apodrecida e o galope. Não pensa mais, tudo
são os olhos de Taiorie e os olhos de Halmah.
Ricardo de Almeida Rocha 106
Uma noite no inferno
E o frio. E a neve. Nunca se soube como o
amigo morreu. Pelo menos tentou alguma
coisa. Era preciso fazer alguma coisa, ou ele
mesmo teria de abandonar a casa querida,
onde conhecera tanta felicidade ao lado da
eterna esposa. Na cama. As contrações
aumentando. As mãos fechadas, o suor, a
testa banhada. O processo de um nascimento.
Ele ali, sua presença pouco mais que um
detalhe, um capricho do destino. A filhinha
agora faz parte deste mundo cruel, deste
belíssimo mundo. As dificuldades não são
comparáveis à alegria que trouxe, a dor é
necessária, não apenas purifica, é necessária.
Como pôde ter raiva da criança?
Nascendo e ninguém ali para ajudá-lo.
Nem uma avó para cortar o cordão e enfaixar.
Halmah chora ainda junto ao seio da mãe. E
ele ao lado das duas. E onde elas agora?
Como? O que é aquilo?
Ardendo. Do alto ele vislumbra a cidade.
Ardendo. O cheiro horrível, ânsia de vômito.
Vômito. Ardendo.
Ricardo de Almeida Rocha 107
Uma noite no inferno
Numa nesga da espessura negra aparecem
os restos exteriores da mina desativada. Um
lugar morto. Parece ser tudo o que as chamas
recusam, o que já esteja morto. Entretanto,
quando começa a descer a colina, vê a filha de
Tanja. A menina é magra e bonita, sai do
prédio como se nada estivesse acontecendo. A
capa dos cadernos combina com seu vestido
gasto. Ali outras crianças e a professora.
Então a igreja desvenda-se, incólume, intacta
em meio ao fogo.
A filha lança um grito de horror. O
estrondo e o corpo ensangüentado no chão da
mercearia. Um vento feroz abre a porta num
pavoroso silvo. Contra a tempestade aparece
o vulto. Fiodor interpõe-se entre a aparição e
a esposa. O rifle do bandido surge com o cano
direto no rosto do marido mas o homem
abaixa a arma e com uma pressão da coronha
apenas o tira do caminho.
Atrás do balcão. Taiorie abaixada com a
filhinha. Outro homem aparece, nova visão no
Ricardo de Almeida Rocha 108
Uma noite no inferno
pesadelo. Quietinha, querida, fica quietinha. O
primeiro levanta Helena e com uma bofetada a
joga para o que havia entrado, que passa a
imitar os trejeitos da mulher um pouco antes.
Ela sabe lidar com situações assim... Lembra?
Lembra? Mia agora. Late. Cacareja. Coça-se
como um macaco na mímica exagerada e
cruel. Amarrota o tecido junto ao pescoço da
mulher e a sufoca. Não chore, meu anjo. A
mecha comprida cai e divide o rosto de Helena
em duas partes de uma mesma máscara de
desespero.
Um terceiro homem entra. Parece
diferente dos demais. Suas roupas lhe caem
impecavelmente. Num gesto lento de afetada
polidez, agarra Érika pelos cabelos e a leva
até a porta, entregado-a lá fora aos
companheiros, abutres que surgiram do nada
sobre a vítima indefesa. Aqui embaixo, a
menina e a mãe esperam algum tipo de
milagre. Taiorie canta para a filha baixinho.
Estão ali como se estivessem num outro plano,
etéreo, do vasto mundo. Cantam, emendam
Ricardo de Almeida Rocha 109
Uma noite no inferno
uma música na outra. Não podem vê-las.
Deus, mantenha-nos ocultas até que
desapareçam.
Alguns seguram os braços, outros as
pernas da moça, outros rasgam seu vestido,
bátegas martelam-lhe o corpo. O terceiro
homem abre uma brecha na calça impecável.
Minha filha. Há gritos de chuva e as portas
gementes. Há o moinho desativado. Talvez
neste momento a restauração de alguma coisa
perdida. Helena quase se sente grata. Todavia
não há mais como não saber que é a
despedida. Ainda assim, corre na direção da
filha, graças a Deus por semelhante
desespero, e se joga nas pernas dela, nas
pernas de Érika. O rapaz de modos educados
interrompe-se e com o cotovelo devolve
Helena ao chão. Fiodor... Estava só... Sempre
esteve e há tanto tempo. Ali. A face tristonha
emanando seu velho amor incondicional. Seu
marido... Sim, foram felizes.
Ricardo de Almeida Rocha 110
Uma noite no inferno
Parecem se multiplicar na vaga e baça
visão das duas mulheres. Os cortes das facas
nos tecidos são cirúrgicos, e também são
precisos ao arremeterem um após outro.
Embora agonizante, Helena sente cada um;
eles parecem nada sentir, apesar da semente
perdida em alguém que não conhecem, nada
sentiam, não na carne – nos olhos refletia-se o
gozo de uma vida perfeita e perversa.
Revirando os olhos, Helena expirou.
Nesse momento o homem a viu, como
quem jamais a deixara de observar. Riu e
aproximou-se. A chinesa resiste à pressão,
agarrada à filha. Surge outro, olhos de sangue
injetados e barba cheia de baba. Agarrando-
lhe pelo outro braço, a desprende da criança.
LeThu-Xua deu um gritinho e correu pela
areia úmida. A luz no rosto do homem em sua
direção impede a mãe de discernir as feições
dele. Não há sol ainda e o horizonte confunde
os elementos. Por alguns instantes o encontro
pareceu inevitável mas num segundo
Ricardo de Almeida Rocha 111
Uma noite no inferno
momento ele sumira. Evaporou-se, e ela viu
frustrada a gratuita alegria.
Na trilha de seus medos, Leonard já vai
longe. Desviara-se da mulher surgida como
anjo de redenção e avança sem rumo. Um
brilho sob as águas do arroio que atravessa.
Esquece o sentimento que a figura feminina
despertou. Os raios multicoloridos se
espalham pela praia. De onde está agora, a
única luz que percebe, a luz que determina a
cor, está em sua mão direita, como se fosse
um ser adormecido.
Ah. Tantas súbitas perspectivas!...
Refletido na pedra, novamente o garoto
tímido e insensato, um eu antigo e gasto que
ele pensara morto, tudo o reflexo devolvia.
Mas hei, alguém na estrada, uma carroça.
É uma nova pessoa em seu encalço, correndo;
uma pessoa renovada. Esbaforida agora. Os
trancos em semitons marcam a distância do
veículo. Sim? Olha o condutor, hesita um
segundo. Garoto novamente, é torturante ter
Ricardo de Almeida Rocha 112
Uma noite no inferno
se dirigir a um estranho. Mas é preciso, pede
a carona. Claro, amigo, pode subir.
Estará a viagem quase inteira intimidado.
Um dia e pouco, com a parada para dormir
quase dois. Só ao chegar terá a ousadia de
mencionar a pedra e nem assim terá sido por
confiar em Dan totalmente. Por que está
tremendo? Espera que o homem não tenha
notado.
Foi ao longo da noite que se lembrou da
moça na praia com a menina. Insight de amor
regido pelo desejo que por sua vez se
renovara com a pedra; segurança é potência.
Vê então o quanto tem sido desgastado pela
pobreza, mais pela pobreza do que pela
solidão. Pelo cotidiano da necessidade que o
seguro de seus pais apenas por um pouco de
tempo aliviou.
Junto do mar. Qual das duas é a criança?
Porque Taiorie preservara algum tipo de droga
natural em seu corpo, ou talvez a gravidez a
tivesse gerado também. Esse jeito de ser que
nos adultos desaparece. Aperta mais os olhos
e abre o sorriso para um peixinho. Mas as
Ricardo de Almeida Rocha 113
Uma noite no inferno
gargalhadas de LeThu-Xua estão contadas.
Nessa onda. Onde está? Há um segundo sorria
tanto, a mais feliz das mulheres. E agora...
Mamãe! Onde, meu Deus? Mamãe! O tio
escuta os gritos, corre, mergulha. Onde? Como
a escuridão desce rápido quando não é
desejada...
O silêncio terá a ver com as trevas.
O pescador tenta consolar. Não, ela nada
sabe sobre o significado de uma vida eterna
noutra dimensão.
A janela que dá para os fundos da rua
principal. Labaredas sob a chuva, ou sobre, ou
em meio à chuva – quem há de saber. A
mesma janela pela qual, havia alguns minutos,
talvez uma hora, os vizinhos se acotovelavam
para olhar. Não são mais expectadores,
participam do teatro trágico: o que se passava
ali, não se passava apenas ali – homens e
mulheres violentados, surrados, decapitados,
incendiados, clamando pela morte, e outros se
esbarrando no meio da rua, fugindo para lugar
Ricardo de Almeida Rocha 114
Uma noite no inferno
nenhum, pisoteados. Fogo onde antes casas
ousaram se chamar lares. Taiorie vê também
que Érika havia sido abandonada no chão
pelos agressores, exceto o rapaz elegante sob
o qual ela estertora, que arremete, arremete,
arremete, com um furor que não se aplaca.
Quando percebem que acabou, os homens
se voltam todos para ela.
Num momento não mais esperado, entre
as vestes ardentes do homem clamando aos
céus como um reverendo e os escorpiões nas
brasas se retorcendo, em meio ao grande
estrondo de um toldo e um teto que desabam
– Barbeiro, diz a placa caída, e essa outra
Bilhar no andar de cima –, quando do impulso
heróico que brotou na alma tímida, Onde elas
estão? – pensou – preciso Meu Deus encontrá-
las. E como escutasse nitidamente os gritos
não escutados, entra na mercearia sabendo no
corpo a seqüência de atitudes. Já viu vapor
assim subir para o abismo acima, no perverso
passado em que o calor assassino rosnava na
Ricardo de Almeida Rocha 115
Uma noite no inferno
espreita de cada sobrevivência; já ouviu esses
estalidos tétricos no ronco do trovão; já sentiu
esse cheiro de carne humana que com o dos
porcos queimados se confunde.
O olhar distante num átimo aterrissa no
bandido. Poderia ter dito: Solte-a. Ou apenas
arrancá-la das mãos dele, com energia e ira
desconhecidas. Deve supor que há salvação,
deve esperá-la, para ter a essencial palavra
de consolo. Que pássaros são esses, voando
em círculos como abutres? No futuro haverá
de contar isso para os netos. Contra a morte
qualquer esforço (ou virtude) é relativo – essa
luta desigual, esse braço quebrado em seu
joelho, ou o espírito indômito que se dele se
derrama. As sombras bruxuleiam na parede,
as sombras da pugna perdida. Ardente,
muitíssimo vermelho, o espelho multiplica
raios de uma luz macabra. Tai é bela e sublime
mesmo aqui, como uma santa no inferno. Não
se atreva, canalha. No assoalho estende-se
sem vida o corpo de outro malfeitor.
Houve o momento da noite despercebida,
as estrelas aguardam em seus lares ocultos.
O som e a fúria da tempestade e do fogo
Ricardo de Almeida Rocha 116
Uma noite no inferno
desceram e a cidade está envolta. Fique firme,
amor; tenha calma, meu anjo, tudo terminará
bem. O olhar da resposta doce e confiante a
filhinha, vendo, imitou.
Eles vão saindo lentamente das casas
assoladas no sentido da mercearia. As
mulheres desdenham de uma possível parada
na farmácia de Jeiel e são as primeiras a
chegar. Diana passa a mão no vidro que seu
hálito embaçou. O dia realmente se foi. Chega
a esboçar um sorriso, tocada sabe Deus por
qual esperança. Seja qual for, é a mesma do
floco de neve na lama. Seu pai surge atrás
dela, curvo e maltratado, e a abraça chorando.
Decerto a filha estaria num mundo melhor.
Eu era isso que diziam? Deveria lhes
atender a inveja? Entregar-me? A densidade
de seu andar discorda do sonho alheio. Admito
que não estou nada bem desde o parto. O
avesso do tapete. Luxo oriental de devotada
esposa com pulseiras luzentes. Taiorie e a
aparição no momento preciso. Duas quando a
filha chega. Dão sentido à sua vida. Não é
Ricardo de Almeida Rocha 117
Uma noite no inferno
necessário saber. Crê no brilho do sol. Suor
frio precisa de água fria. Vento. E um
momento de amor que adestre a inspiração
deve bastar para que esqueça todo o mal.
As mulheres diante de Leonard não são
mais mulheres mas mazelentas visões da
morte. Súbito começam a rir, mais e mais alto,
gargalham enlouquecidas. Levam as mãos aos
coldres. Ele se adianta e pisa a própria
sombra, e a sombra o fere mais que qualquer
das balas que zuniam, mais que a bala agora
estilhaçada em seu ombro. Não mais se deterá
diante do espelho ou das próprias lágrimas, o
vazio em seu peito foi preenchido e isso basta,
mil vezes melhor a perda trágica do amor do
que jamais tê-lo conhecido; melhor mil vezes a
vida que se perde plena do que as que
tediosas e vãs se eternizam. Mas o rifle de um
dos mortos se enternece nas mãos dele, como
uma folha verde no calor causticante.
Revólveres coiceiam e balas furam o
assoalho; todavia há nessa histeria algo que
se faz necessário a uma eventual quietude
posterior. Haverá salvação? Zunidos e
Ricardo de Almeida Rocha 118
Uma noite no inferno
relâmpagos sobre a mente outrora
apaziguada. Precisa haver salvação, por elas,
todas as coisas de uma vida agarradas ali uma
à outra.
Uma a uma as bandoleiras vão caindo,
tornando-se um aglomerado inerte; e eis
revela o relâmpago não há gota de sangue no
assoalho. Ah, anjo de luz a quem idolatrei, tu
não me conheces mais, ainda que eu esteja
agora em teu poder, bendito seja o nome de
quem tem todo o poder, agora meus olhos o
vêem.
– Meus amores – diz Leonard – quando
amanhecer nós estaremos caminhando por
essas ruas, e estarão limpas, e essas lágrimas
nos olhos de vocês terão secado, e jamais nos
lembraremos desta noite.
Papai jamais havia mentido para sua
filhinha. Mamãe comovida o perdoa. O deus
das circunstâncias. Taiorie e Halmah se jogam
em seus braços.
Leonard chorou.
Sombras se arrastam em torno da casa,
pela lama. Sombras pelas janelas do segundo
Ricardo de Almeida Rocha 119
Uma noite no inferno
andar. Arrastam-se pelas cinzas dos
documentos, saem agora pela porta. Uma
criança. Uma inocente criança. O vulto se
contorce, se enrodilha, gane e suspira na
conta dos mortos.
A mercearia está cercada por todos os
lados. Acima tampouco há saída. Ao longo da
rua ainda há outros chegando. Ignoram a
farmácia de Jeiel. Entram e clamam, conjuram.
As roupas roçam na madeira da parede.
Leonard sente, escuta, vê de relance os rostos
alaranjados na janela. A casa circundada pela
sebe em chamas – ilhada, cercada pelos
bandidos que continuam a se multiplicar –
morrendo, está rachada. Ou não? O que escuta
agora acaso é som de precipício? Não a esta
distância do mar.
Ou será?
Aos poucos, tudo parece se aquietar. Por
que demoram? Querem que sofram por causa
do medo. Leonard e Fiodor se entreolham.
Olham ao redor. Estão assim quietos e
atentos, a respiração suspensa, os braços
pendidos ao longo do corpo. Porque há essa
Ricardo de Almeida Rocha 120
Uma noite no inferno
quietude, torna-se nítida a chuva; nas
lâmpadas mais intensa porque está tão
escuro. A água escorre pela parede, cascatas.
Reflexos e sombras. Será suficiente uma vaga
observação da noite exterior para entender
que todas aquelas coisas fazem parte de uma
visão, um pesadelo talvez, sabe-se lá, um
problema neurológico incurável naquela parte
do mundo sem o progresso europeu ou até do
Leste.
Fiodor prepara o rifle antes que Leonard
possa sequer perceber. Cuidado!, grita. As
mãos do homem soltam-se do vestido. Não em
minha casa! atrás do balcão onde construí
minha vida! Suor, chuva e lágrimas – o rosto
do agressor respinga sobre Taiorie e sua filha.
Quem há de saber tudo sobre todas as coisas?
O juiz clama ao som do tiro, a bala penetra em
seu ombro; ali ficará por todo o resto de sua
vida. Segure-a, diz um dos homens. É a
primeira vez que voz assim é ouvida. A
mercearia tornou-se em maldição. A dor
impede que Leonard consiga erguer o braço.
Não há como deixar de pensar no final de
tudo. O medo é realmente a pior desgraça.
Ricardo de Almeida Rocha 121
Uma noite no inferno
São três ou quatro em torno delas. Nada
mais a fazer, as coisas saíram definitivamente
de controle. Um instante todavia e um outro
que se segue, o facão no mostruário e cortado
é o cetro daquela iniqüidade mais ou menos
que humana – o que é isso afinal, essa carne
esverdeada, esse transcendental atentado ao
pudor, com que geração antecedente será
semelhante ou qual a reproduzirá no futuro?
Não há retorno possível, ou esperança de
pesadelo, ou a frustração da perspectiva mais
sombria.
Ninguém há que saiba sobre isso, que
tenha lido a respeito ou talvez imaginado. O
desprezo com que se desvencilham do juiz
empurrando-o assim e o jogando no chão, o
ódio entre urros contra Leonard – um ódio
gratuito e ininteligível (porque diante disso
tudo encontra explicação) –, é claro que
Taiorie pensa a respeito, ou talvez pensasse,
não estivesse ela mesma possessa, porque
homens ou demônios – não importa – estão
tentando contra sua vida, contra sua
garotinha.
Ricardo de Almeida Rocha 122
Uma noite no inferno
O fluxo está a ponto de se romper. Lábios
trêmulos proferem a teoria como prece.
Virtude não sanguínea. O que alguém
descobriu nem sempre há de servir. Às vezes
quando menos se espera. Lança fora os
hábitos quase vícios. O desespero tem
serventia maior que a paz acomodada. Lembra
quando chegou? O que queria da vida à
janela? Faz um esforço. Não raro tudo se
resume a isso, ao esforço de tentar. Olhe se
não é o mesmo lugar. Olhe se não são novas
criaturas. Olhe que futuro deverá. Reorganize
as idéias de acordo com a nova fonte.
Caminham ao redor delas, gargalhando.
Leonard se arrasta e volta a pensar nos tiros
misericordiosos; algo o detém – não saberia
dizer o quê, alguma coisa. Quis resistir contra
essa resistência, quis se convencer de que era
a única saída, mas continua girando diante
deles, fazendo-lhes uma frente absurda.
Chegaram em relances um e outro dos
monstros à sua volta; derrubam-no de novo,
direcionam as armas para suas pernas. Está
Ricardo de Almeida Rocha 123
Uma noite no inferno
claro que não teria sentido para eles fazer mal
à sua família se ele já estivesse morto.
Os homens têm filha e mãe diante dele,
prontos. Todo o sentido da existência está
abalado, ainda que ele possa pensar que
existe um amaldiçoado elo ligando a todos.
Não sabe todavia o que é. Imagina que existe,
que deva existir, mas não faz agora qualquer
diferença. Anos de ilusão, sopro de vida,
crostas terrosas – antes a morte do que esta
tortura. Depois que deitar no pó, se for
buscado, não mais será. Pois eles fedem a
sangue e enxofre. Há um prêmio pela sua
dor? Uma recompensa pelo seu sofrimento?
Que cano é esse de arma lá fora?
O reflexo é como a luz de um relâmpago à
janela: mesmo depois que esmaecem as coisas
ao redor, sabe-se que soará o trovão. Tudo
agora está assim, coisas mortas que adquirem
vida por causa da luz, como a lua que um dia
sem dúvida há de voltar ao céu.
Ali. Está vendo. Mal pode crer, é Diana. A
branca, magra e distante Diana. Seu
vestidinho de chita parece à prova de fogo.
Ricardo de Almeida Rocha 124
Uma noite no inferno
Ela mesma parece ser uma chama, uma chama
inextinguível. Ela, que se notabilizou na
cidade por ser diferente, não era assim? Jeiel
sempre foi um magnífico profissional, mas
mais que tudo um pai exemplar. Leonard
lembrava do carinho e do apoio quando ela
apareceu daquele jeito. Os únicos da cidade
que o visitavam na montanha. Atrás do prédio
da farmácia o jardim viça como se fora numa
cidade próspera e verde. Um dia, Taiorie falou
com ela sobre um sonho. Cultivar flores com a
produção de gladíolos. Sim, um departamento
de floricultura levando a subsistência adiante.
Nesse caso, diria que mais que subsistência,
seria vida. E não é que Diana parecia
entender? Tai era assim, promovia esse tipo
de milagre – não o libertara?
Da porta e da janela, um novo rumo. Mas
não deveria haver sangue na parede?
Voltam-se os demais para olhar, do lado de
fora não o fogo e escuridão esperados, a neve
e a chuva, as bestas da noite rondando. Então
a winchester de Jim Cung Cho com seguidos
estrondos derruba um por um daqueles que o
não consideraram. Acreditavam que estaria
Ricardo de Almeida Rocha 125
Uma noite no inferno
vencido pela depressão ou pelo álcool, o que
faz ali, como?
Halmah torna a se agarrar à mãe. Minha
filhinha, gostaria de dizer. Tem mais que
nunca essa necessidade da fala. Então diz
Minha filhinha do jeito que pode, e a menina
entende e se acalma.
Meigos movimentos à janela. Um chicote
enrosca-se no pescoço do bandido. Diana puxa
e o enforca com seu peso estirado. Ela não
pode ter tamanha força. Na verdade, ela não
poderia sequer estar ali. Mas o que é possível
e o que não é são coisas que nada mais
representam. Por um instante Leonard apenas
olha admirado, mas é o sinal de que precisa e
se levanta, maior que a dor e todo espanto.
Eles não lhe darão qualquer motivo. Quem
sabe nem saibam se existe um. Ele mantém o
homem agarrado pelo colarinho; mas está
morrendo, exangue num silêncio de
potestades e eras. Diga-me. Mas morreu em
suas mãos, o que é alguma coisa estupenda, a
mais extraordinária e terrível dentre todas,
alguém que morre em suas mãos ou, pior
Ricardo de Almeida Rocha 126
Uma noite no inferno
ainda, alguém morto por você, não importa o
tamanho do erro ou quão perverso; matar
alguém é algo de que você não se recupera,
uma perplexidade para o resto da vida, para
sempre deixarão de ser mas não por força ou
vontade humana, ainda que ninguém seja
nada e toda glória a glória de uma flor.
Daí para frente o tiroteio ganha ares de
batalha, torna-se ensurdecedor. Refeitos, os
homens não podem mais ser detidos, pois
deixaram de lado Taiorie e Halmah,
determinados a simplesmente destruir
aqueles de quem eram inimigos, que
destruíram o poder das pessoas ao redor ao
falarem prudentemente com seus lábios e não
sacrificarem seus filhos e suas filhas.
Porque lá de fora vem uma feroz reação
aos malfeitores.
Deixe que Jeiel descubra. A arma que
reflete está nas mãos de Christian, que vai e
vem em seu cavalo. O chicote com Diana na
parte exterior da janela junto ao balcão. Lá
dentro Fiodor se levanta e Leonard se junta à
sua família. No telhado do prédio em frente,
Jim e sua espingarda. Há menos de um minuto
Ricardo de Almeida Rocha 127
Uma noite no inferno
a arma de Armand também está disparando
de lá.
Ele cresceu numa família outrora bastante
conceituada da China, fizera refeições com
reis e generais, sem que, como qualquer
criança, isso o afetasse. Mas eram tempos
passados. Quando descobriram que ele era um
bastardo, expulsaram a mãe, que morreria nas
ruas de Pequim. As grandes perspectivas que
sonhavam para seu futuro morreram com ela.
É um sobrevivente. Precisa manter-se vivo e
proteger a irmãzinha. Um lutador. Depois da
grande viagem, é acolhido na aldeia dos
pescadores. Madrugadas insones fica
imaginando o que poderia ter sido em seu país
ou o que será de fato ao terminar sua busca.
Parece que a cidade mineira de que falaram é
essa. Pai. Pai? Armand já tem problemas
demais, ainda mais agora com essa história.
Quer apenas retomar seu casamento e o que
menos precisa é de um filho súbito. O que não
esperava era uma visão como aquela, a
mulher e o filho de Fiodor. E agora seu filho.
Ricardo de Almeida Rocha 128
Uma noite no inferno
Por quê? Mas por que haveria de importar? As
coisas simplesmente acontecem. É aqui e
agora e pronto.
Necessidade de acreditar ou as
evidências, dilema extremo – porque a
suspeita não é a sentença mas caminha a
passos largos nessa direção.
Num verão de sua juventude, Armand
conheceu Sheila num balneário. Espraiava-se
ao sol e se deteve toda a manhã na
contemplação dela até a abordagem em que
tentou o equilíbrio entre a malícia e a
delicadeza, julgando pela teoria que diz
ficarem as mulheres fascinadas por extremos
opostos convivendo num mesmo homem e,
partindo por instantes do próprio pressuposto
de que era tal homem, tentou se revelar.
Era um anjo, Sheila. Encantadora numa
primeira vista, sedutora numa segunda, digna
de amor ao abrir a boca – assim Armand ficou
feliz por ter aceito o convite de um amigo, a
que normalmente dirão não (detestava
grandes aglomerações de modo geral e em
Ricardo de Almeida Rocha 129
Uma noite no inferno
particular aglomeração de veranistas ricos).
Estava enfeitiçado. A principio pensou apenas
em intimidades, mas logo quis tê-la a seu lado
pelo resto de sua vida.
A seu redor, a maioria dos rapazes
desfrutava de seu corpo, num maiô sensual
porque discreto. Alguns talvez esperassem
uma chance, mas não como ele, que mantinha
uma calculada distância. Porque aqueles
estavam distanciados pela própria
proximidade, afastados de seu amor pela
amizade.
Tudo era então muito diferente de uma
cidade mineira do Oeste, no apogeu ou na
decadência, as pessoas tratavam o sexo com a
necessária sutileza e a corte como uma regra,
portanto era um lugar muito diferente de M*.
Portanto Armand acreditou-se em
vantagem quando seus olhares se cruzaram. E
pensou que era quem deveria ensinar quando
enfim numa noite ficaram a sós. Era o quinto
dia das férias.
A sublimidade de estarem juntos
subitamente foi comprometida quando ela
Ricardo de Almeida Rocha 130
Uma noite no inferno
mostrou-se experiente a ponto de arrancar
sangue.
– Não gosto disso, querida.
– Do que você gosta?
De manhã a luz incidiu sobre os mesmos
olhos que fizeram Armand sonhar e era esses
olhos que agora iluminavam seu caminho de
volta para M*, num desesperado galope.
Quando deixou a cidade após apanhar a
esposa com Marco, agiu por orgulho muito
particular. Quando planejou a volta, sua
intenção era vingar-se. Mas quando passou
pelo correio vazio em meio àquela tempestade
macabra e viu a mercearia em chamas, tudo
em que pensava era salvar a mulher.
Não saberá dizer por que teve aquela idéia
de subir no telhado. Se ainda ama assim, fará
qualquer coisa por esse amor e possivelmente
será a última coisa que virá a fazer.
Ali está ela, ali está Sheila. Veio salvá-la,
ele quer dizer, mas não precisa, porque ela
entende e o abraça forte, pedindo o seu
perdão. Meu amor...
Jim verifica o pulso e descobre a gravidade
do ferimento. Meu pai – repetiu.
Ricardo de Almeida Rocha 131
Uma noite no inferno
Na ação que se tornou a própria essência
de cada ser e levou a contemplação muito
além do que poderia em si mesma, mais à
frente e despreocupada porque tudo será
enfim como tem de ser, Fiodor localiza seu
espaço naquele caos. Porque quem garante
que sob o caos não esteja o sentido mais
profundo, o mais verdadeiro significado das
coisas que não parecem ter nenhum? Que
noite extraordinária, oh que noite! E estou
aqui.
Pessoas ainda correm de lá para cá,
cortam o ar os disparos e ecoam, balas
perdidas colhem mulheres e crianças.
Possivelmente as formigas são os seres vivos
que mais resistem ao fogo, mais que os
próprios escorpiões. Em determinado
momento, ninguém percebe exceto Jeiel, os
bandidos não mais parecem se multiplicar.
Poderia o farmacêutico jurar que viu um ou
dois deles tentando fugir.
Ricardo de Almeida Rocha 132
Uma noite no inferno
Chegou à janela e o brilho da arma de Jim
na mureta do telhado o entorpece de prazer,
mais uma passagem de Christian no cavalo e
outra vez sua mira se mostra fantástica.
Limpou a mão na roupa e era como se
estivesse limpando a própria alma. Havia
lágrimas em seus olhos quando ele próprio
tornou a apontar um rifle em sua vida há tanto
tempo vã. Que Diana também se orgulhasse
dele. Nem percebe que nada sente de suas
dores e que sua doença nenhum sintoma
manifesta.
Quando tempo passou até que crescessem
sobre eles, contra a luz – que se apaga nos
vultos, são apenas réstias saindo dos
malditos, como aura de anjos, dos mais
iluminados dentre os anjos –, quanto tempo
passou, está ele morto para que o diga,
morto, que esperança ainda poderia haver
além desse tiro fulminante que o salva,
derrubando o opressor? A mão da amada o
alcança, os dedos carnudos, as unhas
perfeitas, as branquíssimas palmas, essa
concha que se lhe oferece – dão-se as mãos;
comunicam-se as almas, pelos olhares e pelas
Ricardo de Almeida Rocha 133
Uma noite no inferno
mãos. Um tiro certeiro e também Fiodor foi
salvo de um bandido que ele sequer viu se
aproximar.
Não há mais uma missão para os
bandidos, agora se trata de uma questão
pessoal. É mister ainda a morte lenta.
Quebram os lampiões no balcão e nas
paredes, quebram ainda no alto com pedaços
de madeira. Falta os homens lá fora, teriam
dito, pois assim imaginam a menina, e todos
saem no encalço daquele que usara o chicote.
Não perceberam qualquer tiro do telhado, não
perceberam ou não ligaram para o cavaleiro e
muito menos o homem agora naquela janela
quase em frente. A única perda entre eles,
para eles, era o enforcado. Os que estão
dentro não podem escapar. As chamas
crescem e crescem em segundos, alcançam o
teto, vistas ao longe sobem. Quem haverá
todavia que as veja?
O alicerce de uma casa. Labareda nos
ouvidos. Contas de colares rolando pela
chuva, garrafas; um calendário espedaçado,
apenas um cartão. Quem caminhará a partir
Ricardo de Almeida Rocha 134
Uma noite no inferno
de hoje por essa rua? Constituirá para si
novos passantes, novos altares cotidianos,
outro gado e pessoas? Eles estão ali, montam
e seguirão na procura da menina, seguirão
caso algo não os impeça, e não sejam
despedidos para onde vieram. Por ali –
escutam o caminho. E quando chegam, ei-la
indefesa, é apenas um velho aleijado.
São as vozes de Jeiel e sua filha. Escutam
lá de dentro como se não houvesse o fogo.
Amor, ah meu amor, tudo dará certo sim, eu te
conheço. Nossa vida está firmemente
assentada. Desceu a chuva, a neve, e não foi
abalada; e após raios, dilúvio e as pedras de
saraiva, andaremos sobre o que era antes
fogo consumidor. Ele acredita. Erguendo-se
nas listas do assoalho apodrecido vê que em
vez de continuar crescendo o incêndio parece
arrefecer. As frinchas e interstícios trazem a
inequívoca luz, embora seja noite, ou talvez já
tenha amanhecido, entre o espaço de tempo
necessário para que uma chuva se transforme
em neve e fogo se torne inextinguível.
Christian e sua arma são como uma
mesma coisa, dando cobertura a pai e filha.
Ricardo de Almeida Rocha 135
Uma noite no inferno
Eis porém com o tempo se torna inútil, porque
conseguem agarra-la e já não pode protege-la
sem por em risco a vida dela. É o perigoso
momento de sua hesitação, sem saber que
atitude tomar; não quer desistir, Elisabeth
está vendo e está propensa a permitir de novo
se apaixonar por ele, praticamente lhe pediu
que fosse ajudar as vítimas dos ataques,
portanto refez a conexão entre eles, temos de
ajuda-los, disse ela, assim, tornando-os de
novo nós.
O cavalo de Elisabeth surge então. Ela
usou de toda sua habilidade de amazona para
manter longe os bandidos, sofreou, girou,
empinou, atacou com os cascos. Chega porém
o momento em que nada mais há a ser feito
porque ela é derrubada. Sua perna é forte o
bastante para ser arrastada sem maiores
danos mas escuta o som doloroso e surdo da
própria queda para fora da sela, caindo
também nas mãos terríveis da horda. Daí por
diante seus gritos são intercalados pelas
gargalhadas que tem alguma tenebrosa
ligação com o cheiro horrível. O que foi feito
da noite? Olha o céu e é tudo o que vê por
Ricardo de Almeida Rocha 136
Uma noite no inferno
alguns segundos em que tudo se resumia
nisso, no que foi feito da noite, como era
possível surgir uma semelhante e gloriosa
manhã, ou gloriosa seria se não estivessem as
duas à mercê dos homens, alvo de seu ódio e
luxúria e escudos contra a arma de Christian,
agora a única arma.
Mas como assim a única, onde está aquele
deus do telhado? Seja como for, não
adiantaria, uma arma ou duas, elas seriam as
primeiras vítimas, fosse quem fosse e onde
estivesse agora não poderia mais ajudar,
exceto se o fizesse com as mãos, como esse
relâmpago que surge de entre as casas,
livrando primeiro Diana, com golpes certeiros
de uma luta ali desconhecida, de pés voadores
e empuxos imprevistos de inopinadas tábuas
onde deveriam estar as mãos e na desarmada
técnica guerreira abre espaço para que o rifle
de Christian volte à ação, derrubando quantos
fossem aparecendo diante delas.
Lá dentro, as tábuas rangem. Aqui não é
mais lugar nenhum. Leonard está ali sem mais
qualquer propósito. Sai. Onde? Onde a aragem
substituíra o vento, onde restara do fogo
Ricardo de Almeida Rocha 137
Uma noite no inferno
apenas vestígios cinzentos sob a luz das
camadas brancas, o ar que Diana aspira está
carregado de seu alento, respirando fundo e
pedindo cuidado. Cuidado com o homem
caído, não está morto e mexe em sua arma.
Um corpo se interpõe entre a bala e o corpo
da moça, enquanto as flamas vorazes
minguam para dentro de uma perfumada
profundeza.
Ela corre e se aproxima. Leonard... Um
galo ousa cantar a manhã que se aproxima. A
expressão serena e branca, essencial, aparece
em nuvens que podem muito bem ser a névoa
última, o túnel, a perfeita realidade que só se
impõe por um gesto pessoal. Leonard! – a
chinesa e a filha pisam na lama que sobe aos
vestidos. A esposa abraça o corpo
ensangüentado e a menina começa a chorar.
Antes que os montes nascessem,
contempla-a e sua luz é a luz de anjos. Sua
mão o guia à terra firme. O ar se renova e se
faz desejável. Sente na boca o dulcíssimo
beijo, devolvendo-lhe o perdido alento; em
seu colo, reclina a cabeça para dormir. Sua
alma vaga entre os astros fora do tempo. Ela
Ricardo de Almeida Rocha 138
Uma noite no inferno
tem nas mãos uma flor suficiente como
consolo mais que um jardim inteiro. Através
dela entrevê coisas que eram e que serão,
dentro de um tempo que não se anseia mas se
afinal se conquista. Desce às águas e é
purificado de si mesmo. Ao longo da estrada
iluminada, o guia a aureolada dama. Num
lugar alto e santo, junto às portas, a distancia
que ela perde à sua frente torna-a maior e
mais diáfana.
Deveras, onde há pouco a noite, agora a
luz da manhã nas casas que sobreviveram. O
cavalo da adolescente tem oito anos, os
joelhos baixos, o peito forte, as espáduas
valentes. É obediente e livre no seu amor por
ela. Recebe também as cores suaves e
aquecidas espalhadas pelo horizonte e está
refletido na montra da farmácia. Ali também
uma ou outra chama. O inferno não é feito de
fogo, murmura Diana, mas de pensamentos
humanos.
Um trote, trote, trote. O reverendo está
chegando. Sem dúvida irá querer fazer o culto
Ricardo de Almeida Rocha 139
Uma noite no inferno
em memória das vítimas, quando pregará
sobre as razões de uma igreja incólume. Sim.
Não mencionará os corpos dos malfeitores sob
a neve desaparecidos nem a ausência de
sangue onde alguns caíram na mercearia.
Um homem bem apessoado vem com ele.
Jamais se esquecera da menina que serviu
como testemunha de seu casamento, aqui
mesmo, meu Deus do céu, ali em cima, e o
senhor sabe, como enviuvara, e faz o pedido
ao qual, bem, responde Fiodor: perdi esposa e
filha e o senhor perdeu a futura noiva.
Havia ainda um outro, o mercador
itinerante. Faz algum comentário que o
homem de Deus escuta com atenção.
No dia do culto, a ausência de Taiorie será
sentida. Terá desistido? É normal. Tão nova e
tanta tragédia. Mas não. Ela abrigará os
trabalhadores da ferrovia, porque é de sua
propriedade boa parte do terreno por onde a
ferrovia passará, lhes dará as refeições
durante as obras. E a produção das flores
começará logo, exuberante.
Quando uma tonalidade se volatiliza,
outra começa a ser gerada. A montanha surge
Ricardo de Almeida Rocha 140
Uma noite no inferno
da manhã. Ali passa o arroio, sob uma das
janelas. Taiorie e Halmah pertencem àquele
lugar.
No final da noite, quando amanhecia, ele
morreu. Halmah não se lembra com clareza,
exceto por uns flashes inconstantes. Sabe que
estava perto. Só nas visitas de Diana se chega
a falar no assunto abertamente. Assim a
adolescente adquiriu a memória colorida com
que chega à vida adulta. Seu pai. Mesmo que
não fosse seu pai. Suporta melhor sua
ausência por isso, porque não chegou a haver
uma separação, ela ainda não tinha
consciência para tanto.
A moça alta de traços orientais vê poucas
pessoas ao longo da vida nos vales internos
da montanha prefere não acompanhar a mãe
quando das compras na cidade ou a mãe é que
prefere ir sozinha para sossegar seu sonho no
caminho. Se o sol ilumina o pequeno rebanho
logo cedo, não há como trazer à mente
aqueles corpos pelo chão enquanto
amanhecia, às centenas, e logo depois corpo
Ricardo de Almeida Rocha 141
Uma noite no inferno
algum mas a rua branca, e o leitoso vale além,
e a montanha imponente e branca.
A fria manhã avança gloriosa e à paisagem
branca se agrega a alaranjada luz que sepulta
a brutalidade em seu silêncio.
No rosto dourado de Jeiel registra-se um
renascido desejo de vida que não supunha
felicidade. Esse homem salvou a minha filha.
Acreditará nas melhores coisas. É a
mesma casa, a mesma vida. Porque as duas
são mulheres num mundo de homens, não
deve deixar de esperar e abandonar qualquer
de seus projetos. Ao longo das noites – e
decerto isso não é uma manifestação de fé ou
de bondade – se convenceu de que esteve lá
naquela noite, e de que era inocente de ter
estado lá naquela noite, não poderia prever
tudo aquilo e evitá-lo, constituía um desígnio
à parte do livre arbítrio concedido, uma
determinação de sabedoria maior que a dor.
Ele era uma pessoa especial. Imagina que
como toda pessoa especial deveria estar
disponível para seu chamado. Ainda assim,
precisara ela realmente estar ali? Diante da
Ricardo de Almeida Rocha 142
Uma noite no inferno
novidade do espelho, ajeitou o decote da
camisola inútil. Foi um amor maior, mais que
verdadeiro; o passeio no lago não se perderá,
sua memória está a serviço de uma história
mais ampla, de águas sim, também de árvores
e frutinhas, mas ainda de fogo e tempestade.
Daquele dia até a noite determinada, esse foi
o tempo do sensual usufruto e das noites de
carinho. As cores ao redor não deixam dúvidas
sobre a primavera. Estava certa quanto à
produção de plantas ornamentais e a
qualidade de vida que a filha poderia ter numa
comunidade assim. E agora que a ferrovia
chegou, há sempre essa nova perspectiva.
Passou pela janela e viu ao longe, junto as
cores, a fumaça. O som inconfundível
anunciou o trem.
A luz de dias assim é tudo de que precisa.
A composição faz a curva e se aproxima mais e
mais da estação.
Se sua força nasceu do amor ou da
tragédia, ignora; mas sabe que está ligada
para sempre às sombras do crepúsculo e às
luzes do amanhecer, uma e outra coisa
Ricardo de Almeida Rocha 143
Uma noite no inferno
concede a seu rosto um tom veemente de
cristal.
O vale está cheio de flores.
FIMFIM
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No. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998
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